A execução extrajudicial no âmbito do SFH e sua dissonância com a ordem constitucional

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Este artigo busca discutir a recepção do instituto da execução extrajudicial no âmbito do SFH pela Constituição da República Federativa do Brasil de 05/10/1988, partindo do estudo de princípios constitucionais relevantes à matéria, passando pela análise do procedimento da execução extrajudicial no âmbito do SFH desenhado pelo Decreto-Lei 70/66, bem como de um julgado relativo ao caso.

1. Introdução

Este artigo busca discutir a recepção do instituto da execução extrajudicial no âmbito do SFH pela Constituição da República Federativa do Brasil de 05/10/1988 e assim auxiliar no estudo de tão empolgante tema, o qual tem intensa relevância prática, embora não tenha a pretensão de esgotá-lo, visto sua profundidade e amplitude.

A presente discussão partirá do estudo de princípios constitucionais relevantes à matéria, passando pela análise do procedimento da execução extrajudicial no âmbito do SFH desenhado pelo Decreto-Lei 70/66, bem como de um julgado relativo ao caso, concluindo pela dissonância daquele diploma legal com a ordem constitucional vigente estabelecida pela atual Constituição, não tendo sido, portanto, por ela recepcionada.

2.  Princípios Constitucionais Estruturantes

O Professor J. J. Gomes Canotilho cunhou a expressão princípios constitucionais estruturantes para designar os princípios que lastreiam o ordenamento jurídico de um Estado. No caso brasileiro, a Constituição da República promulgada em 1988 os denomina de Princípios Fundamentais e foram eles dispostos no início do texto constitucional, como que para demonstrar serem eles o fulcro do ordenamento jurídico brasileiro. Quis o legislador constituinte deixar expressos os princípios estruturantes do Estado Brasileiro, não se contentando apenas no embasamento filosófico, abstrato, mas os positivou no texto constitucional para lhes dar maior carga de eficácia.

Estabelecem os princípios estruturantes insertos no Texto Magno o arcabouço do ordenamento jurídico, fornecendo diretrizes hermenêuticas para a aferição da constitucionalidade dos normativos infraconstitucionais. Essa estrutura constitucional deve ser observada por esses normativos, quer sejam eles produzidos após a promulgação da Constituição vigente, quer tenham sido eles editados antes disso. São, portanto, inconstitucionais ou não recepcionados os normativos infraconstitucionais que estejam em dissonância com ordem constitucional estabelecida.

Dos princípios estruturantes do regime político estabelecidos na Carta Magna de 88, alguns dizem respeito mais intimamente ao escopo deste trabalho: 1) Princípio republicano; 2) Princípio do Estado Democrático de Direito; 3) Princípio da Cidadania; 4) Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Além desses princípios estruturantes, outros princípios constitucionais também fundamentam a reflexão desta dissertação; são os chamados por José Afonso da Silva (2000, p. 95) de princípios jurídico-constitucionais: 1) Princípio da Isonomia; 2) Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional; 3) Princípio do direito à habitação; 4) Princípio da jurisdição estatal; 5) Princípio do devido processo legal.

2.1    Princípio republicano

Princípio de fundamental relevância para o estudo ora empreendido é o princípio republicano. Não se imagine que República é apenas a forma de governo que se opõe à Monarquia. O princípio republicano vai muito mais além, visto que também se opõe à ditadura, que em várias ocasiões não assume a forma monárquica de governo, tal como já ocorreu no Brasil. República, na realidade, é “uma coletividade política com características da res publica” (SILVA, 2000, p. 104), ou seja, da coisa pública, coisa do povo e para o povo, estando intimamente ligada ao conceito de democracia.

O princípio republicano aponta para o princípio da isonomia, segundo o qual a igualdade material deve ser perseguida e preservada, não se admitindo privilégios a uma determinada classe social ou grupo econômico. Este princípio declara deverem ser os iguais tratados igualmente e os desiguais tratados desigualmente. Não significa, por óbvio, que o mais forte receba maior proteção quando litigando com o mais fraco, mas justamente o oposto, o mais débil na relação deve receber uma proteção jurídica que lhe permita litigar em igualdade de condições. Aponta também o princípio republicano para os princípios da jurisdição estatal e do devido processo legal.

2.2  Princípio da jurisdição estatal

Quanto à jurisdição estatal, como já visto em capítulo anterior, o Estado assumiu a tarefa jurisdicional no objetivo de pacificar as tensões sociais. Antes, o mais forte, através da autotutela, fazia valer suas razões, visto que imperava a chamada justiça privada. Tal ocorria porque o Estado não tinha força suficiente para impor-se aos particulares, mas o sistema da autotutela não garantia a consecução da justiça, vez que o mais fraco, mesmo estando coberto de razão, não podia impô-la ao oponente mais forte, não havendo qualquer aparato judicial para substituir-se a ele e fazer valer o seu direito. Daí a suprema importância da jurisdição estatal, pois, como afirmam Carlos Antonio de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco, a jurisdição é uma das funções do Estado, mediante a qual se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar atuação da vontade do direito objetivo que rege a lide que lhe é apresentada em concreto para ser solucionada; e o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressando autoritativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através da execução forçada). (Teoria Geral do Processo, 6 ed. p. 83, RT apud CUNHA, 2000, p. 2)

Ao assumir essa função, o Estado Moderno retirou dos particulares a faculdade de exercer seus direitos pelas próprias mãos, tendo nisso o objetivo de evitar o caos social e permitir o desenvolvimento e o progresso sociais, coisas impossíveis caso a autotutela, verdadeira lei do mais forte, ainda imperasse.

2.3 Princípio do devido processo legal, ampla defesa e contraditório

Consentâneo ao princípio da jurisdição estatal, refulge o princípio do devido processo legal, já que qualquer lesão ou ameaça a direito pode ser levada à apreciação judicial, para cada tipo de litígio deve a lei apresentar expressamente uma forma de composição jurisdicional. Mas devido processo legal não deve ser compreendido meramente como processo estabelecido em lei, mas processo que observe os ditames da justiça e da eqüidade, visto que há exemplos históricos de processos estabelecidos em lei, mas extremamente autoritários, tendenciosos e injustos, tais como os procedimentos da Inquisição, que prescreviam expressamente a tortura, ou os procedimentos legais da Alemanha nazista.

Corolário do princípio do devido processo legal são os princípios da ampla defesa e do contraditório. Na realidade, não pode haver devido princípio legal sem ampla defesa e sem contraditório. Por ampla defesa entende-se a possibilidade de as partes poderem lançar mão de todos os meios e recursos lícitos para defesa de seus interesses e direitos. Ou seja, garante a CF 88 que os litigantes, quer autor quer réu, têm o direito de esgotar todas as possibilidades na defesa de seus direitos e interesses, trazendo ao processo todos os elementos que possam contribuir na formação da livre convicção do juiz. Irmão gêmeo da ampla defesa, o princípio do contraditório estabelece que a parte tem direito a participar ativamente no processo, tendo conhecimento de todas as manifestações e produções de provas da outra parte, tendo a possibilidade de pronunciar-se sobre elas, contestá-las e apresentar suas próprias provas. Para que seja garantido o contraditório, imprescindível a comunicação dos atos processuais às partes, que se dão através da citação e da intimação. Impossível a ampla defesa sem o contraditório, e impossível o devido processo legal sem a ampla defesa e o contraditório.

Importante ressaltar que a CF 88 garante textualmente que aos litigantes, quer em processo judicial quer administrativo, bem como aos acusados em geral, são garantidos o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Estes princípios, portanto, por força do comando constitucional, extrapolam o processo judicial, alcançando todo e qualquer litígio, todo e qualquer procedimento.

2.4 Princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional

Este princípio tem íntima relação com o princípio da jurisdição estatal. Fundam-se os dois no princípio de que o Estado, para garantir a paz e a ordem social não pode admitir, exceto em raríssimas exceções, a autotutela, o exercício privado das próprias razões. Dessa forma, montou o Estado ao longo dos séculos aparatos jurisdicionais e administrativos com o objetivo de substituir-se aos particulares.

A Constituição Federal de 1988 cristalizou o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional no inc. XXXV de seu art. 5º: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Está este princípio no título das garantias individuais, as quais têm, por expressa determinação constitucional, aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CF 88). Dessa forma, inadmissível qualquer lei ou interpretação legal que leve à conclusão que determinada matéria não necessita ser levada à discussão perante o Judiciário.

Além de um princípio basilar do próprio conceito de civilização que se opõe à barbárie da autotutela, verdadeira Lei da Selva, a inafastabilidade da tutela jurisdicional é uma garantia do cidadão, garantia essa que não lhe pode ser extirpada, antes deve ser fortalecida e confirmada diariamente. Para que esta garantia lhe seja assegurada, há que haver o reverso da medalha, que é a indeclinabilidade da prestação jurisdicional, ou seja, o Poder Judiciário não pode negar-se a apreciar a lide a ele devidamente apresentada. Forma-se, portanto, um binômio para amparar o cidadão, a sociedade e a própria civilização: tem o cidadão direito de levar qualquer litígio à apreciação do Judiciário e este tem o dever de apreciar o caso e entregar a prestação jurisdicional.

A jurisdição é, hoje, monopólio do Estado e expressão de sua soberania, como afirma Moacyr Amaral Santos (1999, p. 67)

É função do Estado desde o momento em que, proibida a autotutela dos interesses individuais em conflitos por comprometedora da paz jurídica, se reconheceu que nenhum outro poder se encontra em melhores condições de dirimir litígios do que o Estado, não só pela força de que dispõe, como por nele presumir-se interesse em assegurar a ordem jurídica estabelecida.

2.5 Princípio do Estado Democrático de Direito e da cidadania

É de todos conhecido que a Constituição Federal de 1988 é fruto de um grande movimento cívico-político que se espraiou pelo País na esteira do esgarçamento do Regime Militar instaurado em 1964. Os anseios por liberdade de expressão, remoção do aparato jurídico que foi denominado à época de “entulho autoritário”, qual seja, leis, decretos, decretos-lei, portarias e outras normas que embasavam juridicamente o Regime de exceção, bem como o desejo de construir um Estado democrático fundado no primado da lei foram tônicas na convocação da Assembléia Nacional Constituinte.

Este princípio evoca, portanto, a repulsa a todo e qualquer traço de autoritarismo e ecoa o primado da lei e do direito, confundindo-se estes com as idéias de justiça e eqüidade. Impossível, portanto, a construção de um estado democrático de direito com a permanência em vigor de normas autoritárias, contrárias ao próprio conceito de democracia.

É inquestionável que só há espaço para o exercício da cidadania em um estado democrático de direito. Esta é a razão pela qual pouco se ouvia falar em cidadania durante o período militar, visto que os militares viam com desconfiança qualquer associação, esmerando-se na vigilância e às vezes até mesmo no seu controle. Com a queda do regime autoritário, aflorou nas pessoas o sentimento de cidadania, de participação, de pertencer a uma nova sociedade, a um novo país.

Este princípio está intimamente ligado ao anterior, vez que não se pode falar em cidadania sem democracia e sem o respeito ao ordenamento jurídico. O respeito e a observância ao ordenamento jurídico, entretanto, não estão restritos aos cidadãos, pessoas físicas, mas também diz respeito às pessoas jurídicas e às autoridades de qualquer nível.

2.6 Princípio da dignidade da pessoa humana

A Constituição Federal de 1988 reconhece e protege a dignidade da pessoa humana como seu atributo natural, inerente à sua personalidade. Do princípio da dignidade da pessoa humana emanam outros princípios basilares do estado democrático de direito, tais como o princípio da presunção de não culpabilidade, o princípio do direito de ação, o princípio da assistência médica e social, e princípio do direito à habitação, dentre outros.

Impossível construir um estado democrático de direito sem atentar para a proteção à dignidade humana. Tal princípio consta expressamente no texto constitucional porque durante o regime de exceção não havia o mínimo respeito pela dignidade das pessoas, ao contrário, pois promovendo o próprio Estado perseguições, prisões, deportações, torturas e assassinatos, perpetrava as mais graves lesões e infrações à dignidade das pessoas.

Vive-se hoje tempos diversos, em que a própria Constituição estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da Nação brasileira. Em vista disso, em flagrante desobediência à Lei Magna todo aquele que, de algum modo, venha a atentar contra a dignidade da pessoa humana.

Ressalte-se, também, por ora, o objetivo fundamental da República consignado no Texto Magno de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Tal objetivo não será alcançado se os princípios acima elencados não forem observados.

3. Princípios Constitucionais Norteadores da Ordem Econômica

A CF 88 inovou ao inserir no texto constitucional normas referentes à ordem econômica e financeira no Título VII, o qual foi subdividido em quatro capítulos assim distribuídos: I) Dos princípios gerais da atividade econômica; II) Da política urbana; III) Da política agrícola e fundiária e da reforma agrária; IV) Do Sistema Financeiro Nacional.

O primeiro capítulo deste Título estabelece os princípios norteadores da atividade econômica, os quais devem estar, por necessidade de coerência interna, em consonância com os princípios estruturantes do Estado Brasileiro, bem como concordes com os direitos fundamentais expressos no art. 5º do Texto Ápice. Assim é que vemos como que uma repetição de conceitos já expressos anteriormente, soberania nacional (art. 1º, I, e 4º), propriedade privada (art. 5º, XXII, XXIV, XXV, XXVI), e função social da propriedade (art. 5º, XXIII) ao lado de novos princípios como a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente e a busca pelo pleno emprego.

O Capítulo IV, que trata do Sistema Financeiro Nacional foi recentemente modificado pela Emenda Constitucional 40/2003, a qual derrogou todos os incisos e parágrafos do art. 192, bem como deu uma nova redação ao caput. Anteriormente, este capítulo, através de seu parágrafo 3º, chegou a estipular que os juros reais não poderiam ultrapassar 12% ao ano. Tal determinação gerou uma reação extremamente forte por parte do setor financeiro brasileiro, que conseguiu inicialmente, a partir do julgamento da ADIn nº 4, que o STF decretasse que aquele parágrafo não era auto-aplicável, necessitando ser regulamentado por lei complementar, conforme o caput. Mais recentemente, como dito, logrou o setor financeiro nacional uma vitória definitiva com a derrogação do dispositivo por força da EC 40/2003, o que demonstra que esse setor continua tão poderoso hoje quanto o foi no passado, quando conseguiu dos governos militares a edição do DL 70/66.

Permanecem ainda, entretanto, como princípios norteadores do Sistema Financeiro Nacional a promoção do desenvolvimento equilibrado do País e que o SFN está a serviço dos interesses da coletividade. Com esses dois princípios, a Constituição quer deixar claro o objetivo do setor financeiro não é o lucro privado, tão somente, principalmente não é o lucro desmedido, alheio às necessidades do País e de seu povo. O Sistema Financeiro tem uma função social claramente expressa na Constituição e as atividades dos agentes financeiros devem, obrigatoriamente, desenvolver-se dentro desses parâmetros traçados, verdadeiros limites constitucionais a eles impostos.

Além disso, devem as atividades dos agentes financeiros obedecer aos outros princípios adotados pela CF 88 e já vistos acima: isonomia, princípio republicano, dignidade da pessoa humana, cidadania, inafastabilidade do controle jurisdicional, etc. Os bancos por mais poderosos que sejam, não estão acima do ordenamento jurídico e muito menos acima da Constituição.

4. A Execução Extrajudicial no âmbito do SFH

A execução extrajudicial no âmbito do SFH foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto-Lei 70/66, o qual também autorizou o funcionamento das associações de poupança e empréstimos e instituiu a cédula hipotecária, que vem a ser, por óbvio, um título executivo extrajudicial. Na dicção de Becker (2002, p. 313), abeberando-se da lição de Girolamo Bongiorno, a execução extrajudicial no âmbito do SFH é uma “autotulela com função executiva satisfativa”, encontrando-se à margem da jurisdição estatal, conforme se verá na descrição do seu procedimento.

4.1 Procedimento da execução extrajudicial

Atrasando o mutuário do SFH três ou mais prestações (Lei 8.004/90, art. 21), poderá o credor executar a cédula quer judicialmente, seguindo os trâmites da Lei 5.741/71, quer extrajudicialmente, seguindo os trâmites do DL 70/66, que é a execução extrajudicial. Optando o credor pela via extrajudicial, muito mais célere, não precisará recorrer ao Judiciário, bastando que formalize a solicitação de execução da dívida a um agente fiduciário (DL 70/66, art. 31), que até 1986 era o Banco Nacional da Habitação – BNH. Interessante é o comentário que faz Becker acerca da figura do agente fiduciário:

Até mesmo Dora Martins de Carvalho, que defende a constitucionalidade da execução extrajudicial, questiona a legitimidade da intervenção do agente fiduciário, pois apesar de, pela proposta original do governo, ele ser encarado como um tertius, eqüidistante das partes, na prática ele se confunde com o credor, que assim se torna o executor particular do seu próprio crédito (BECKER, 2002, p. 314).

O agente fiduciário, que na maioria das vezes é o próprio credor, se substitui ao juiz, atuando como se de poder jurisdicional investido estivesse, seguindo o seguinte procedimento, previsto nos artigos 29, 31 a 38 do DL 70/66: 1) em 10 dias, notifica o credor ao devedor por meio de Cartório de Títulos e Documentos, dando-lhe prazo de 20 dias para pagar as prestações atrasadas (DL 70/66, art. 31, § 1º), devidamente acrescidas das penalidades cabíveis, até o limite de 10% do valor do contrato, mais a remuneração do agente fiduciário (DL 70/66, art. 34, I); 1.1) Caso o devedor não seja encontrado, o § 2º do art. 31 do DL 70/66 faculta ao credor a publicação de editais por três dias em um dos jornais de maior circulação local para notificação do devedor; 1.2) ao devedor é facultado purgar o débito mesmo após a transcorrência dos 20 dias, só que, neste caso, o débito abrangerá juros moratórios e correção monetária (DL 70/66, art. 34, II); 2) Não pagando o mutuário inadimplente as prestações atrasadas, autoriza o DL 70/66, em seu art. 32, que o agente fiduciário publique editais intimando-o do primeiro público leilão do imóvel gravado, leilão este que deverá ocorrer em 15 dias; 2.1) Não sendo arrematado o imóvel neste primeiro público leilão, o credor publica novos editais para um segundo público leilão, a realizar-se também em 15 (quinze) dias; 3) Alienado o imóvel, é emitida uma carta de arrematação, em que a assinatura do devedor é irrelevante (DL 70/66, art. 37, § 1º), a qual é título hábil para a transcrição no Registro de Imóveis (DL 70/66, art. 37, caput), formalizando-se, dessa forma, o perdimento do imóvel por parte do devedor; 4) Não sendo o imóvel arrematado no segundo público leilão, é emitida uma Carta de Adjudicação, a qual o credor averba no Cartório de Registro de Imóveis, tornando-se o proprietário do imóvel; 5) Efetuada a transcrição, o adquirente pode requerer em juízo sua imissão de posse no imóvel. Reza o art. 37, § 2º, que o mandado lhe será concedido liminarmente caso o devedor não comprove, em 48 horas, “que resgatou ou consignou judicialmente o valor de seu débito, antes da realização do primeiro ou segundo público leilão” (art. 37 § 3º).

Verifique-se que o devedor não é citado e não lhe é dada qualquer oportunidade para defender-se ou discutir o valor do débito que lhe é apresentado, sendo simplesmente notificado para pagar o que o credor afirma que ele deve, não havendo qualquer sinal de contraditório ou ampla defesa, o que é direito fundamental expresso no texto constitucional (CF 88 art. 5º, LV).

Já foi visto acima que o contraditório e a ampla defesa são corolários do devido processo legal, o qual não se restringe aos processos judiciais, mas a qualquer litígio. Constata-se facilmente que a privação do contraditório e da ampla defesa no procedimento do DL 70/66 atenta contra a dignidade do devedor, visto que possui o credor amplas possibilidades de, sem evocar a atuação jurisdicional do Estado, mas por seus próprios meios, pôr o imóvel do devedor em leilão ou adjudicá-lo.

Embora o DL 70/66 faculte ao credor a intimação do mutuário inadimplente seja feito extrajudicialmente, via editais, há julgados determinando que antes de serem publicados os editais o devedor deve ser intimado pessoalmente através de oficial de justiça. Frustrada a intimação judicial, aí então estaria o credor autorizado a publicar os editais. Não havendo a intimação via judicial, estará o procedimento de execução extrajudicial viciado de nulidade. É este o entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região[1].

Conforme visto, o credor toma as ações acima sem que o mutuário inadimplente tenha tido oportunidade de contraditar nem de se defender. Sem contraditório e sem ampla defesa não há devido processo legal. Resta clara a ofensa à ordem constitucional vazada nos incisos LIV e LV do art. 5º da CF 88.

5. Dissonância da execução extrajudicial com a ordem constitucional

Visto o procedimento da execução extrajudicial, cumpre discutir-se sua consonância com a ordem constitucional vigente no País desde 05 de outubro de 1988. O STF e o STJ têm reiteradamente se posicionado pela constitucionalidade do DL 70/66. Entrementes, estaria realmente o processo de execução extrajudicial em consonância com a ordem constitucional inaugurada pela CF 88? O escopo deste trabalho é justamente buscar responder a este questionamento.

5.1    A execução extrajudicial é exercício de autotutela

Inicialmente verifica-se que o processo de execução extrajudicial no âmbito do SFH, conforme desenhado no DL 70/66, é uma execução que prescinde da figura do Estado-juiz. O próprio credor apura o quantum debeatur, efetua as notificações, promove os leilões e emite a carta de arrematação. Ao devedor não é dado, dentro deste processo, discutir o valor apresentado pelo credor ou apresentar qualquer tipo de defesa. Trata-se, como afirmam Wambier, Almeida e Talamini, “exercício de autotutela” (2002, p. 34), procedimento que não alcança o objetivo primordial do processo, conforme a lição de Cintra, Grinover e Dinamarco, que é a pacificação social através das resoluções das lides (2001, p.24-25).

Trata-se de um procedimento que nega todo o processo de evolução do Direito, do desenvolvimento de seus institutos, da construção das garantias do cidadão, nega, portanto, todo processo civilizatório da humanidade e volta aos primórdios de sua história, quando o Estado não possuía força suficiente para evitar que os particulares exercessem suas razões através de seus próprios meios.

Admitir como constitucional o processo de execução extrajudicial no âmbito do SFH é admitir a autotutela, a iustitia própria mano, o que repugna o conceito de civilização. Qual a diferença em essência existente entre o procedimento do credor hipotecário e o procedimento de um senhorio que, em vista do inadimplemento de seu inquilino, vai ao imóvel e o toma à força, pondo do inquilino no olho da rua? Não são ambos credores? Ou será que a diferença é porque um é um credor pessoa física e o outro faz parte do setor mais forte da economia nacional? Não estaria aí havendo uma ofensa ao princípio da isonomia?

5.2   A execução extrajudicial e o princípio da isonomia

Foi visto claramente que o princípio da isonomia pugna pela igualdade material entre os litigantes e que se deve buscar tratar os desiguais desigualmente para que o mais débil possa ter as mesmas condições do mais forte na relação jurídica. Mas o que se vê na execução extrajudicial regida pelo DL 70/66? Ao mais débil na relação não é dada qualquer possibilidade de defesa, não pode levantar qualquer argumento para discutir o valor cobrado, a única coisa que pode fazer para aplacar o credor é pagar a dívida, com todos os seus acréscimos. Mas pagar a dívida não é meio de defesa, é satisfação da obrigação!

A simples leitura dos arts. 29 a 38 do DL 70/66 é suficiente para deixar patente a “legalização” do uso da força pelo próprio credor num procedimento que passa ao largo da intervenção estatal, que passa ao largo do exercício da jurisdição estatal. É nessa relação privada de exercício de força que o devedor, pessoa física, muitas vezes um trabalhador que recebe um salário minguado, esmagado pela política econômica do governo federal, a começar pela política econômica dos próprios governos militares, encontra-se totalmente desamparado frente ao gigantismo do credor, um titã econômico com bilhões de reais de lucro, centenas de advogados e mil e uma relações com os ocupantes dos mais altos cargos públicos. Obviamente esta não é uma relação isonômica.

O mais clamoroso, no entanto, é que ao forte, ao poderoso, ao titã econômico é dada mais força e ao débil, ao desamparado, não é dado nada, a não ser a obrigação de satisfazer o crédito o mais rápido possível, sob pena de ter seu imóvel retirado de sua esfera de domínio, imóvel este que muitas vezes é seu único bem de raiz, e dele ser retirado por determinação judicial. Note-se, por oportuno, que o DL 70/66 só permite a defesa após o mutuário ter perdido seu imóvel! Aplaca-se primeiro a fome, a gula de lucros da instituição financeira e depois, só depois, vê-se o que tem o mutuário a dizer em sua defesa. Efetivamente não há isonomia nessa relação, mas um brutal privilégio conferido à mais forte das partes envolvidas.

5.3    A execução extrajudicial ofende o princípio republicano

Aliás, o setor financeiro é cheio de privilégios, como, por exemplo, poder praticar juros acima dos definidos na chamada Lei da Usura e poder capitalizar juros sobre juros, que aos particulares é proibido sob o argumento de tratar-se de anatocismo. Tais privilégios não têm razão jurídica, senão razões políticas e econômicas. O setor financeiro, que no passado, como visto, fez valer seus interesses na promulgação do DL 70/66, continua fazendo-o ainda hoje com a manutenção desse processo executivo. Privilégios a determinados setores da sociedade são aversos ao princípio republicano, conforme visto acima, já que este repulsa qualquer privilégio.

Não se vive mais em um regime aristocrático, no qual uma pessoa era tida como juridicamente superior às demais pelo simples fato de ter nascido em uma determinada família ou em uma determinada classe social. Segundo o princípio republicano, todos são iguais perante a lei, todos têm dignidade, todos têm direitos e garantias, não importando sua condição social ou econômica.

O privilégio dado às instituições financeiras, entretanto, esmaga o princípio republicano e todos os demais a ele visceralmente ligados, visto que essas poderosíssimas instituições não precisam peticionar ao judiciário para executar seus créditos hipotecários, recebem autorização jurídica para exercer a iustitia própria mano. Inquestionavelmente a execução extrajudicial como desenhada no DL 70/66 não leva em conta o princípio republicano e seus correlatos.

5.4 A execução extrajudicial e a inafastabilidade da tutela jurisdicional

Muito se tem discutido acerca deste assunto, posicionando-se o STF e STJ no sentido de a execução extrajudicial não ferir este princípio, visto que o mutuário pode impetrar ação de revisão de encargos cumulada com consignação em pagamento antes da notificação do leilão, ou mesmo com ação ordinária para suspensão do leilão, ou, ainda, optar por apresentar sua defesa nos termos do § 2º do art. 32 do DL 70/66, ou seja, depois de ter perdido o domínio de seu imóvel.

Com a devida vênia aos ilustres Ministros que adotam esta posição, não é isso que está descrito no DL 70/66. O diploma que disciplina a execução extrajudicial não dá margem a essa intervenção jurisdicional, nem mesmo a prevê. Esta intervenção jurisdicional tem ocorrido justamente porque muitos juízes têm entendido que, mesmo não havendo previsão legal no DL 70/66, o Judiciário não pode ser afastado de apreciar a matéria a ele apresentada.

Entretanto, refletindo-se um pouco mais aprofundadamente, verifica-se que essa pretensa garantia que têm os mutuários de recorrer ao Judiciário que o STF e o STJ enxergam, na verdade é a cristalização mais pura do privilégio inaceitável conferido às instituições financeiras. Em que sentido? Ora, basta ler o DL 70/66 para se ver que o credor, a instituição financeira, bilionária e poderosa, não necessita ir ao judiciário para leiloar o imóvel do devedor e, vendido este, emitir carta de arrematação, nem necessita o arrematante qualquer ordem judicial para inscrever tal título no Cartório de Registro de Imóveis. Tudo é feito à margem do Poder Judiciário. Mas ao devedor, pessoa física, na maioria das vezes um assalariado, sujeito a todos humores da política econômica do governo, nada é assegurado pelo DL 70/66. Querendo ele defender seu imóvel tem que recorrer ao Judiciário.

Aí está a cristalização do privilégio do mais forte. A instituição financeira para executar não precisa ir ao Judiciário, pode fazê-lo por si mesma; o mais fraco, se não quiser perder seu imóvel em pouquíssimo tempo, tem que recorrer ao Judiciário, tem que contratar advogado, tem que pagar custas, tem que despender recursos. Ora, se está ele inadimplente com seu credor é porque não está podendo pagar, provavelmente por falta de recursos (não se pode presumir que todo devedor inadimplente é caloteiro, mesmo porque tal atitude fere o princípio constitucional da não culpabilidade, segundo o qual ninguém é culpado até o trânsito em julgado de processo devidamente conduzido segundo as normas processuais). Ora, se não tem ele condições de pagar as prestações, que são mensais, como pode ele ter condições de recorrer ao Judiciário? É sabido que recorrer ao Judiciário no Brasil é muito caro, praticamente inacessível para pessoas de renda mais baixa.

Busque ele a justiça gratuita, diriam os advogados das instituições bancárias. De fato seria ele muito provavelmente dispensado das custas judiciais, porém que dizer do advogado? É amplamente sabido que poucos são os Estados da Federação que possuem Defensoria Pública, os Núcleos de Prática Jurídica dos Cursos de Direito das universidades brasileiras, sabe-se, basicamente só trabalham com direito de família. Vê-se que dizer simplesmente que o mutuário inadimplente pode recorrer ao Judiciário, na prática, não é assim tão simples e fácil.

E mesmo que fosse, isso não desconstituiria o fato de que o poderoso não precisa do Judiciário para executar, para exercer privativamente suas próprias razões, mas o fraco e o débil, sim. Neste sentido, verifica-se afastada a tutela jurisdicional, principalmente porque, na prática, poucos são os mutuários que se encontram em condições de contrapor-se judicialmente às instituições financeiras.

5.5 Análise de julgado reconhecendo a constitucionalidade do DL 70/66

O Ministro Décio Miranda, julgando Mandado de Segurança ainda no antigo TFR, MS nº 77.152, proferiu sentença reconhecendo a constitucionalidade do DL 70/66 frente à Emenda Constitucional n° 1/69, sentença esta transcrita in verbis pelo Ministro Ilmar Galvão no julgamento do Recurso Extraordinário nº 223.075-1/DF, no qual reafirmou a recepção daquele Decreto-Lei frente à Constituição Federal de 1988. Dentre as argumentações do eminente julgador está a de que o DL 70/66 criou uma nova forma de execução que tem como moto a satisfação do credor e não os motivos do devedor, e que a defesa do devedor sucede ao último ato da execução, a entrega do bem excutido ao arrematante.  Interessante notar é que no processo executivo judicial não é assim, pois antes de ter seu bem excutido, o devedor tem todo direito de discutir a dívida e defender-se amplamente. Constata-se, mais uma vez o reconhecimento de um privilégio conferido ao credor, privilégio este, como visto acima, que fere o princípio republicano e todos os demais a ele correlatos.

Resta claro que só permitir que o devedor se defenda após a entrega de seu imóvel ao arrematante é uma ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, pois o art. 5º, LIV diz expressamente que “ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (grifamos). É óbvio que a defesa e o contraditório devem preceder a privação dos bens e não o contrário. O comando constitucional, que tem aplicação imediata, é claro nesse sentido. Não se admite atirar primeiro e perguntar depois. Isso fere o mais básico dos direitos do cidadão que é apresentar suas razões antes que qualquer coisa seja feita contra ele.

Inverter, portanto, a ordem do dispositivo constitucional, além de flagrantemente inconstitucional, é também uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, um dos princípios estruturantes da República brasileira e do Estado Democrático de Direito que a ordem constitucional almeja construir, visto que os seus direitos como cidadão são desconsiderados levando-se em consideração apenas as ganas de lucro das instituições financeiras.

O Ministro Décio Miranda aduz ainda em seu julgado, fundamentando a constitucionalidade do DL 90/66 frente a EC 1/69, que

No novo procedimento, inverteu-se a ordem, deu-se prevalência à satisfação do crédito, conferindo-se à defesa do executado não mais condição impediente da execução, mas força rescindente, pois, se prosperarem as alegações do executado no processo judicial de imissão de posse, desconstituirá a sentença não só a arrematação como a execução, que a antecedeu.

Com a devida vênia do ilustre julgador, não se pode ser tão simplista assim, pois o processo judicial para debate das alegações do devedor dá-se pelo rito ordinário, o que significa em uma demora de anos até que a lide seja solucionada. E durante esses anos todos, onde viverá o devedor com sua família, vez que o imóvel já lhe foi tomado? Terá o devedor condições de suportar o ônus de uma batalha judicial de anos a fio sem ter onde morar, ou morando de aluguel ou de favor na casa de parentes? É este o quadro de uma sociedade justa e solidária, conforme é objetivo fundamental da ordem constitucional vigente?

Outro ponto importante acerca da imissão de posse no imóvel excutido pelo arrematante é que o DL 70/66, art. 37, §§ 2º e 3º estipula que, transcrita a carta de arrematação do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis, é facultado ao arrematante o ajuizamento de ação de imissão de posse no imóvel, cuja liminar será concedida em 48 horas! É interessante notar que o juiz está praticamente obrigado a conceder a liminar, visto tratar-se de disposição expressa de lei. Isto, obviamente, atenta contra o princípio consagrado no nosso Direito da livre convicção do juiz. Por este princípio, correlato aos princípios do contraditório e da ampla defesa, o juiz, à vista das provas coligidas nos autos, das manifestações das partes, das contraprovas produzidas, tem o poder-dever de decidir qual das duas partes tem razão na lide, qual delas tem o melhor direito. Impor ao juiz a concessão de liminar é retirar dele a principal característica da judicatura e transformá-lo em um simples funcionário cumpridor de ordens, sem nenhuma autonomia.

Um outro detalhe é também digno de nota: para evitar a imissão de posse no imóvel pelo arrematante, o devedor só tem 48 horas para provar que resgatou ou consignou judicialmente o valor de seu débito antes da realização do leilão. Tal exigência vem a ser cômica, se não fosse trágica, pois o devedor não fica inadimplente por desejo próprio, mas por causa das circunstâncias econômicas. Se não teve ele condições de pagar as prestações mensais, como poderia ele ter condições de purgar toda a dívida de uma só vez? Tivesse ele também pago a dívida, não teria ele evitado o leilão?

Além disso, o prazo de 48 horas é extremamente exíguo, impossibilitando a defesa de seu patrimônio. O prazo adequado para a defesa é um corolário do contraditório. Como poderia o devedor defender-se apropriadamente se o prazo a ele concedido é tão exíguo? Digno de nota que tal velocidade a favor da instituição financeira não encontra paralelo em outros procedimentos: procedimento ordinário, 15 dias (art. 297 CPC), ação monitória, 15 dias (art. 1.102b CPC), processo cautelar, 5 dias (art. 802 CPC).

Mais uma vez, favorecimento ao setor financeiro, mais uma vez uma afronta ao princípio republicano, e mais que isso, uma proteção a um dos setores mais fortes, mais poderosos e influentes da economia nacional, uma clara ofensa ao princípio da isonomia, na verdade, uma inversão do princípio da isonomia, pois trata os desiguais de maneira desigual, não para alcançar a igualdade material, mas para claramente favorecer desbragadamente a parte mais forte da relação.

Diz ainda o Ministro Décio Miranda em seu arrazoado:

Essa mudança, em termos de política legislativa, pôde ser feita, na espécie, sem inflição de dano irreparável às garantias de defesa do devedor. Tem este aberta a via da reparação, não em face de um credor qualquer, mas em relação a credores credenciados pela integração num sistema financeiro a que a legislação confere específica segurança.

Reconhece o douto julgador que a legislação confere aos credores do setor financeiro uma segurança não conferida a outros credores, chegando a dizer não se tratar de um credor qualquer. Ora, a construção de um sistema jurídico que privilegia os fortes e poderosos não é uma atuação que concorra à consecução dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil insculpidas no artigo 3º da CF88, visto que com isso é impossível criar-se uma sociedade justa e solidária e muito menos erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais, posto que aos ricos e poderosos é dado não só permanecerem ricos, mas ficarem mais ricos e poderosos em detrimento das camadas mais pobres da população.

Essa afirmativa do Ministro Décio Miranda é a chancela, é o reconhecimento expresso do que vem sendo dito nesta dissertação: o setor financeiro, poderosíssimo setor da economia nacional, recebe privilégios inimagináveis aos cidadãos. Esses privilégios, reconhecidos pelo ilustre Ministro como se fosse um fato natural é na realidade a mais repulsiva afronta ao princípio republicano, visto não vivermos mais em uma sociedade aristocrática, mas democrática, e ao princípio da isonomia, visto que ao mais forte, ao mais poderoso, se lhe conferem mais poder ainda.

Tais privilégios estão em claro confronto com o arcabouço jurídico desenhado pela Constituição de 1988, no qual foram privilegiados a dignidade da pessoa humana e não os lucros exorbitantes das instituições financeiras, a democracia e não a aristocracia, o devido processo legal e a inafastabilidade da tutela jurisdicional e não a autotutela e o exercício privado das próprias razões.

Mas o ilustre Ministro, citado pelo não menos ilustre Ministro Ilmar Galvão, continua asseverando não haver de inconstitucionalidade no DL 70/66:

Igualmente desamparadas de razões dignas de apreço as alegações de ofensa aos §§ 1º e 22, do art. 153 da Constituição: a execução extrajudicial não vulnera o princípio da igualdade perante a lei (todos, que obtiveram empréstimo do sistema, estão a ela sujeitos) nem fere o direito de propriedade (a excussão não se faz sem causa, e esta reside na necessidade de satisfazer-se o crédito, em que também se investe o direito de propriedade, assegurado pela norma constitucional).

Já se falou acerca do princípio da igualdade acima, fale-se agora do direito de propriedade levantado pelo digno julgador. A pergunta a ser feita é, o que é mais danoso, o banco esperar dois ou três anos para reaver o imóvel hipotecado, havendo possibilidade de surgimento de outra solução para o caso, ou uma família ficar sem teto por todo esse tempo, enquanto enfrenta as angústias e agruras de um processo judicial? Há que se ponderar, levando-se em conta os princípios estruturantes e os objetivos fundamentais da República, qual a opção de menor custo social, de maior poder de pacificação e menos esmagadora ao cidadão. Além do mais, não se trata meramente de discutir direito de propriedade, mas sim direito à moradia, elevado à condição de direito social pela EC nº 26, que modificou o art. 6º da CF 88.

Estaria o direito de propriedade da instituição financeira acima do direito de propriedade do cidadão, acima do direito de moradia, insculpido na Constituição como direito social, acima do direito de defender-se amplamente e contraditar, acima de sua dignidade? Seriam os lucros das instituições financeiras o objetivo fundamental da República? Parece que, tomando-se este caminho, não se estará construindo uma sociedade justa e solidária, e muito menos contribuindo para a pacificação social, escopo primordial do processo.

Vários juízes e tribunais, inobstante o posicionamento contrário do STF e do STJ, têm decidido pela inconstitucionalidade do DL 70/66[2], numa clara expressão de que este diploma legal, engendrado, como visto, nas entranhas da ditadura militar, com o escopo de favorecer o setor financeiro, tem agredido a consciência jurídica de vários julgadores.

Além disso, tribunais, e o próprio STJ, não estão observando o DL 70/66 à risca, visto que estão admitindo ações contestatórias antes da realização dos leilões, às quais estão concedendo o condão de suspender a sua realização. Tal foi o caso relatado pela revista eletrônica Consultor Jurídico em 15/01/2004 tratando de um julgado da 1ª Câmara Cível do TJRJ, no qual a Corte determinou a nulidade da execução extrajudicial pelo fato de a notificação não ter sido pessoal. Segundo o Des. Martinho Campos, relator do processo, “certas medidas editadas no regime militar, como o DL 70/66, contrariam direitos e garantias individuais essenciais nos regimes democráticos – tão desprezados na época – e princípios arraigados no direito brasileiro”. Disse mais o relator que as instituições que se valem da execução extrajudicial, agem com “extrema leviandade” (Ernnany Filho, 2004, p.1).

Para a Quarta Turma do STJ, a existência de uma ação revisional de contrato do SFH, apesar de não ser previsto tal possibilidade no DL 70/66, enseja a suspensão das medidas de execução extrajudicial por parte do credor. Tal foi o caso estampado na revista eletrônica Consultor Jurídico, também no dia 15/01/2001[3].

Estes posicionamentos revelam que a aceitação dos ditames férreos do DL 70/66 não é assim tão pacífica e que seu procedimento está sujeito a controle jurisdicional, mesmo fora do momento estabelecido pela letra da lei, o qual só se daria depois da imissão de posse no imóvel pelo arrematante.

Foi esta uma construção jurisprudencial para contornar a barreira do reconhecimento da constitucionalidade desse diploma legal pelo STF, a fim de mitigar seus efeitos deletérios. Tal postura só vem corroborar a tese sustentada neste trabalho de que o procedimento desenhado nos artigos 29, 31 a 38 não está em consonância com a ordem constitucional inaugurada pela CF 88, pois se assim o estivesse, desnecessário, e até ilegal, a inobservância restrita ao texto legal.

Conclusão

Pelo exposto, verifica-se claramente que a execução extrajudicial no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação – SFH está em dissonância com o ordenamento constitucional brasileiro estabelecido pela Norma Ápice de 1988 por afrontar os princípios da isonomia, do devido processo legal, da ampla defesa, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da infastabilidade da tutela jurisdicional, bem como os princípios republicano e da jurisdição estatal, além de ferir o direito à moradia, estando, portanto, derrogados os artigos do DL 70/66 que estabelecem este processo de execução.

 

Referências bibliográficas
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Notas
[1]  “Embora o devedor tenha sido procurado no local de sua residência por quatro vezes, não restou caracterizado que estaria em lugar incerto e não sabido. Em conseqüência, deveria o agente fiduciário realizar a notificação por via judicial para, somente após, se fosse o caso, realizar a notificação por edital” (TRF 4ª Região, Rel. Des. Federal Eduardo Tonetto Picarelli, JDU de 29/1/2003, p. 434). “a intimação dos mutuários para o leilão será feita, necessariamente, na pessoa dos devedores. Caso a intimação extrajudicial não logre o efeito desejado, o exeqüente buscará a via judicial para tanto, ou para, com certidão do oficial de justiça, configurar a necessidade da intimação através da via editalícia” (TRF 4ª Região, Rel. Des. Federal Albino ª Ramos de Oliveira, DJU de 22/08/2001, p. 1.066).
[2] Súmula 39 do 1º TACívSP; 1º TACívSP, Argüição de inconstitucionalidade 493.349-9/01, São Paulo, rel. s/direito a voto: Juiz Paulo Eduardo Razuk, j. 23.6.1994, JTA 151/186; TARS, Incidente de Inconstitucionalidade na AC 189040938, Canoas, Órgão Especial, m.v. rel. Ivo Gabriel da Cunha, j. 1.6.1990, JTARGS; TARS, AC 191109115, Pelotas, 3ª C.Cív, v.u., rel. Arnaldo Rizzardo, j. 2.10.1991; TJMS, AI 57.303-9, Campo Grande, 2ª T.Cív., v.u., rel. Des. José Augusto de Souza, DJMS 13.4.1998, p. 3; TRF-3ª Região, AI 96.03.058855-5-SP, 5ª T. v.u., Rel. Juíza Suzana Camargo, j. 9.12.1996, RT 746/414; TRF-4ª Região, AI 92.04.31542-3-PR, 5ª T., v.u., rel. Juiz Almir José Finocchiaro Sarti, j. 27.6.1996, Boletim Informativo Bonijuris, n. 325, p. 3.936
[3] Consultor Jurídico. Jan. 2004. Disponível em < http://conjur.uol.com.br/textos/12433/ >. Acesso em 15/01/2004

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Rubens Cartaxo Junior

 

Bacharel em Direito e Licenciado em Letras. Natal/RN

 


 

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