Um despertar democrático

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Resumo: A presente pesquisa analisa como a educação pode influenciar nas transformações e rupturas Estatais. Mais que isso, coloca fim à ilusão de que o país é democrático e que, ele próprio, num todo, reivindicou pela conquista do voto universal. Tendo a convicção de que o Brasil apenas será um país democrático quando os seus cidadãos forem de fato cidadãos, com total consciência do voto, do funcionamento dos jogos políticos e do processo de criação das leis que os regem, busca-se nestas linhas a relação entre a história, a educação e as instituições jurídicas do Brasil. Não nos bastam intelectuais, mas que todos o sejam. Se continuarmos nos prestando aos serviços da pequena parcela de intelectuais que temos, estes poucos continuarão a governar, e eles próprios continuarão a impedir que outros intelectuais se formem. O intelectual é o maior obstáculo para o nascimento de outros intelectuais.[1]

Palavras-Chave: ética; educação; processo ético-educacional; educacionismo.

Abstract: The present search analyzes how an education can be influence the changes and state disruptions. More than that, put an end to the illusion that the country is democratic and which itself claimed by conquest of universal vote. With the conviction that Brazil will only be a democratic country when its citizens are indeed citizens, with full awareness of the vote, of the functioning of political games and the process of creating the laws that govern them, the research seeks a relationship between history, education and legal institutions in Brazil. We do not just have intellectual but that all of them are. If we keep settling for the services of the few intellectuals, they just continue to govern and prevent other intellectuals graduated. The intellectual is the greatest obstacle to the birth of other intellectuals.

Keyword: ethics; education; ethical educational process; educationism.

Sumário: Introdução. 1. Uma nova mentalidade educacional. 2. Um pouco de história e de moral. 3. A democracia brasileira. 4. O processo ético-educacional: Estado e Comunidade. 3.1. Por que as políticas públicas? 3.2. Quais são os compromissos? 5. A revolução educacional por Cristovam Buarque. 6. Uma sugestão ética. Considerações Finais. Bibliografia.

INTRODUÇÃO 

“A escola actual é a escola da vida. Os professores e os paes devem conjugar o pensamento de tal maneira que a creança, em casa, encontre um mestre e, na escola, tenha um pae.” (VIANNA, sem data)

De início, é de suma importância esclarecer o termo proposto para o seguimento dos trabalhos. O que se entende por mentalidade educacional?

No livro intitulado “Cultura e Formação Humana no Pensamento de Antonio Gramsci”, Carlos Eduardo Vieira (1999) lança sob o leitor uma intrigante oração. Diz ele que “Para Gramsci, o acesso à cultura promoveria um novo modo de ser que determinaria uma nova forma de consciência”. Consciência, aqui, assemelha-se com a concepção de Mentalidade que para Cristovam Buarque somente é alcançada por meio de uma “revolução doce”. É possível encontrar em Alberto Carlos Almeida vestígios desse processo:

“Há, sim, um lado dominante em lenta erosão – o das classes baixas -, e outro ainda pouco presente, mas que tende a se fortalecer à medida que a escolaridade média da população aumentar. Sim, porque entre os fatores que determinam esse abismo entre brasileiros, um dos mais importantes é a escolaridade. É a educação que comanda a mentalidade. Quem passou pelos bancos escolares de uma universidade e obteve diploma tende a ser uma pessoa moderna: impessoal, contra o jeitinho brasileiro […]” (ALMEIDA, 2007, p.25)

Na atual conjuntura do país, uma profunda revolução educacional faz-se necessária para que se mudem os mais variados quadros dentro da sociedade brasileira. Enquanto alguns cientistas sociais apontam para a questão das escolas e o conteúdo programático por elas inserido na grade curricular, parte dos próprios professores acusa os pais de serem os principais responsáveis pela educação de seus filhos. É preciso, em um primeiro momento, separar de quais educações se está falando.

Encontra-se na obra de Cristovam Buarque (2011) profunda proposta para uma revolução na educação, voltada para o plano escolar, visando uma verdade futurista e ideal na qual a classe trabalhadora seja capaz de promover e compartilhar uma cultura de alto nível e assim diminuir as desigualdades sociais.

No entanto, há o interesse também de observar, neste projeto, a educação ética e política, e que tem como objetivo conscientizar as massas para o que está acontecendo no país e como ele funciona. De fato, não se pode obrigar ou querer que todas as pessoas participem ativamente das movimentações políticas do Estado em suas mais variadas e hierárquicas instâncias, mas é dever do próprio Estado mostrar aos seus cidadãos como as engrenagens desta grande máquina se movimentam.

Os índios e líderes tribais ensinam aos seus filhos ainda na infância como sobreviver no ambiente que os rodeia, prevenindo-os das ameaças que os perigos naturais do lugar em que se vivem já os proporcionam. É direito de cada um conhecer o círculo onde nasce. Levando em consideração que se nasce dentro de um território já demarcado e governado, com um sistema já consolidado de poder e dele não se pode fugir, o mínimo esperado é que lecionem a respeito desse ambiente também. Grosso modo, não é admissível que se nasça em cima de um imenso jogo, do qual não se pode escapar, em que aquele que dá as cartas não ensina as regras mais básicas de controle.

Tendo a convicção de que o Brasil apenas será um país democrático de fato quando os seus cidadãos forem de fato cidadãos, com total consciência do voto, do funcionamento dos jogos políticos e do processo de criação das leis que os regem, a presente pesquisa se baseará no estudo de dois tipos de educação.

Coloca-se, assim, a formação da pessoa como trabalhador e intelectual, e a formação dela como ativista político. Gramsci (1975) divide muito bem esses dois tipos de cidadãos, dando-os a alcunha de “intelectuais orgânicos” e “intelectuais tradicionais”. No entanto, os dois são necessários para a progressão de uma realidade mais justa e que acabe com as desigualdades sociais; ambos são partes do mesmo processo educacional e do mesmo caminho para o que se tem por ideal.

Eis que a melhor educação não é aquela lecionada pelos pais, tampouco pelos professores, mas aquela que conta com a união desses dois institutos e de todos os âmbitos que envolvem a vida da criança, considerando-se assim as ruas, o bairro e a cidade em que ela mora, a influência do fator midiático e o exemplo das pessoas que a rodeia. O que os pais constroem, os professores podem destruir; o que os professores constroem, as mídias podem destruir; o que as ruas constroem, os pais podem destruir, e o ciclo se torna vicioso quando não subsiste uma ética padrão nesse conjunto de fatores que formam a “selva de concreto”. Quando não há uma mesma ética sendo lecionada e praticada, o que se pode ver é uma criança crescendo confusa e sem rumo certo, nem orientação devida, podendo tornar-se um cidadão com maiores probabilidades de possuir conceitos deformados quanto ao que o cerca.

Cabe aos professores lecionar a respeito daquelas matérias que levarão essa criança ao mercado profissional, preparando-a para uma acirrada competição na qual a qualidade técnica e o conhecimento teórico e prático serão suas bases para o sucesso. Contudo, o exemplo, a moral e a postura por eles demonstrada são essenciais para determinar o modo como ela administrará tal sucesso. Portanto, tamanha influência na composição e na formação ética da criança, adolescente e jovem, é um dos fatores que devem ser levados em conta neste processo. Não há problema em serem criados intelectuais, mas que todos o sejam. Se houver essa continuidade de serviços da pequena parcela de intelectuais de atualmente, estes poucos continuarão a governar, e eles próprios continuarão a impedir que outros intelectuais se formem. O intelectual é o maior obstáculo para o nascimento de outros intelectuais.

1. UM POUCO DE HISTÓRIA E DE MORAL

“Se a educação sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda.” (FREIRE, 1997)

A formação ética de cada grupo é peculiar, única, nascida mediante fatores históricos, políticos e territoriais, ou seja, influenciada pelo modo de sobrevivência cabível a determinada comunidade mediante as condições de cada terreno, modo de se alimentar, suas necessidades básicas, forma de governo e de se auto-sustentar, às guerras e à religião.

Antigamente, esse grupo primitivamente fechado, independente de sua formação social – patriarcal ou igualitária de postos –, construía, mediante consensos pacíficos ou agressivos e sequenciais as regras a se seguir para manter o grupo unido. Regras essas que mesmo não positivadas surtiam efeito, e em algumas das vezes nem explicadas eram, mas tão somente observadas pelos demais. Essas regras eram o pressuposto ético dessa comunidade, primária ainda, mas que se formava de princípios que subsistem ainda hoje, seja no que tange o respeito ao líder ou aos próprios conjuntos de regras de convivência – proibições e permissões. Fazendo referência a Antonio Gramsci, Carlos Eduardo Vieira sustenta que:

“A cultura é composta de múltiplas ambiências: a família, a região, a língua, a classe social, a religião, a escola, o trabalho, enfim, na expressão de Gramsci, as diversas sociedades que produzem os horizontes culturais de formação do indivíduo em sociedade. A cultura de uma época é o resultado do embate e da interação das concepções de mundo, das experiências e das práticas sociais que perpassam essas diferentes ambiências culturais. As diferentes posições ocupadas na estrutura econômica da sociedade determinam relacionamentos diferentes dos homens com a cultura, com a sociedade, com a natureza; contudo, a ação dessa variável importante deve ser compreendida no interior de um processo mais complexo de afirmação de um determinado modo de vida.” (VIEIRA, 1999, p. 62)

Ali, naquele grupo ou comunidade, tão primitiva ou nem tanto, o controle ético e o processo educacional de seus filhos era absolutamente homogêneo, posto o tamanho territorial e de fácil acesso a informação, e o fato de terem se formado a partir de um mesmo período histórico e realidades iguais.

O Brasil e seus grupos regionais nem de longe se aproximam de assemelhar-se com a realidade dessas comunidades ou grupos sociais, pois sua população não compartilhou de um mesmo processo histórico, nem se criou debaixo de uma mesma ética ou processo educacional. Seria isso de fato? Essa é, ao menos, a impressão que muitos têm quanto à sociedade brasileira. Mas, num contrassenso a essa ideia, citando a conformação de portugueses, índios e negros africanos, Darcy Ribeiro diz em seu livro intitulado “O povo brasileiro”:

 

“A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação.” (RIBEIRO, 1995, p.20).

O território onde hoje forma-se o Estado chamado Brasil foi outrora habitado por incontáveis tribos de indígenas e posteriormente invadido por diversos povos europeus já construídos e com sua própria nacionalidade, a grande maioria desembarcando apenas no intuito de explorar e não o de construir um povo só.

Ainda ao proclamar-se a independência do Brasil, o povo que o habitava – exceto por grupos revoltosos separatistas -, não participaram de um mesmo processo inicial de construção ética. Conforme aponta Ribeiro (Ibid., p.199), tem-se, portanto, um amontoado de grupos estrangeiros misturados dentro de um mesmo território, cada qual com ideias, pensamentos e objetivos dos mais diversos, espalhados por um país com dimensões continentais e com poucos preparados para governá-lo e planejá-lo, crescendo, assim, sem qualquer planejamento e vertiginosamente. Um território independente apenas na teoria, pois seu povo não tinha preparo nem conhecimento, tampouco a noção do que se fazer com o problema ou a conquista que tinham em mãos.

A única tentativa de construção ética existente, conquanto criticada, imposta, era a da igreja católica ministrada pelos jesuítas. Sendo assim, Darcy Ribeiro pergunta “como se explica que núcleos tão iguais e tão diferentes permaneceram aglutinados numa só nação?”. E indaga:

“Quando é que, no Brasil, se pode falar de uma etnia nova, operativa? Quando é que surgem brasileiros, conscientes de si, senão orgulhosos de seu próprio ser, ao menos resignados com ele? Isso se dá quando milhões de pessoas passam a se ver não como oriundas dos índios de certa tribo, nem africanos tribais ou genéricos, porque daquilo haviam saído, e muito menos como portugueses metropolitanos ou crioulos, e a se sentir soltas e desafiadas e construir-se, a partir das rejeições que sofriam, com nova identidade étnico-nacional, a de brasileiro.” (Ibid, p.132) 

É importante que seja feita essa busca pelas origens, pelo passado, em prol de socorrer estes escritos que tratam de um processo ético-educacional que valha ao Brasil atual. E, neste sentido, Sérgio Buarque de Holanda, apesar de reconhecer a mistura de povos que deram razão aos brasileiros, ressalta a importância da influência lusitana em nossa cultura.

“A frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir. Os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se regrarem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente às forças ativas.” (HOLANDA, 1995, p.33)

O autor ainda dispõe que não é uma questão biológica, visto que os povos ibéricos já mostraram seu valor. Mas ressalta:

“O que ambos admiram como tal ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica, o que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor.” (Ibid., p. 38)

É interessante notar como a questão do trabalho, religião, o temor a um Deus e a questão moral estão interligadas dentro desse raciocínio, de modo que, quando há carência dessa moral do trabalho, “[…] Compreende-se a reduzida capacidade de organização social”. O esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses, o que estimula a organização racional dos homens e sustenta a coesão entre eles. Mas, inexistindo uma moral para o trabalho, entende-se em partes as precariedades quanto às ideias de solidariedade. Mais ainda, “a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares” (Ibid. p.14). Além, os padres jesuítas e seu princípio da disciplina pela obediência, utilizando-se mais uma vez da referência sagrada – ou seja, de uma visão superior e não das coisas, não do trabalho, e não da solidariedade pronta para com o outro.

Considerando que todas essas características, mais a preguiça brasileira, atribuída ao índio indolente, mais o negro fujão e às classes dominantes viciosas – como expõe Ribeiro -, fazem parte de um povo mutante que conseguiu transformar-se em civilização pujante, de fato temos uma mesma etnia predominante em nosso território.

“Para Sérgio Buarque de Holanda seriam características nossas, herdadas dos iberos, a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidade lusitanas, bem como o espírito aventureiro e o apreço à lealdade de uns e outros e, ainda, seu gosto maior pelo ócio do que pelo negócio. Da mistura de todos esses ingredientes, resultaria uma certa frouxidão e anarquismo, a falta de coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência. Mas derivariam delas, também, certo pendor para o mandonismo, para o autoritarismo e para a tirania”. (RIBEIRO, 1995, p. 451).

Porém, quando analisada a presente situação do sistema educacional, a percepção de injustiça que o povo guarda de seu próprio Estado e todas as suas mazelas (DIEMENSTEIN, 2003, p.4), a pergunta remetida perante essa afirmação é: até que ponto isso é bom? Ou, nas palavras de Darcy Ribeiro, “devemos convir que somos feios?”

“Muito pior para nós teria sido, talvez, e Sérgio o reconhece, o contrário de nossos defeitos, tais como, o servilismo, a humildade, a rigidez, o espírito de ordem, o sentido de dever, o gosto pela rotina, a gravidade a sisudez. Elas bem poderiam nos ser ainda mais nefastas porque nos teriam tirado a criatividade do aventureiro, a adaptabilidade de quem não é rígido mas flexível, a vitalidade de quem enfrenta, ousado, azares e fortunas, a originalidade dos indisciplinados.” (RIBEIRO, 1995, p.451)

Em seu auxílio, vem Alberto Carlos Almeida dizer que:

“O jeitinho brasileiro é importante em nossa sociedade. Não apenas por ser muito difundido, mas principalmente pelo fato de nos permitir entender porque o Brasil tem tanta dificuldade em combater a corrupção. A PESB mostra que isso acontece porque a corrupção não é simplesmente a obra perversa de nossos políticos e governantes. Sob a simpática expressão jeitinho brasileiro, ela é socialmente aceita, conta com o apoio da população, que a encara como tolerável. Numa interpretação complacente, o jeitinho é sempre o instrumento que possibilita a quebra das regras. Sejam boas ou ruins, por definição, elas são universais e se aplicam a todos os cidadãos. Se forem injustas ou ilegítimas, devem ser mudadas. Porém, uma vez estabelecidas, devem ser seguidas.” (ALMEIDA, 2007, p.47)

O que separa, então, esse país imenso que apesar de todas essas características possui abismos tão profundos em sua formação social? Acontece que, mesmo que um povo possua características próprias, esse fator não é o bastante para se consolidar uma civilização fraterna, solidária, pacífica ou igualitária, e isso se dá pela razão de que qualquer conjunto de características acarreta consequências diferentes. O que diferencia e uma das maiores consequências deste país, portanto, que “desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é a estratificação de classes” (RIBEIRO, 1995, p.450). Apesar disso, esse mesmo problema é que une as classes de baixo na pirâmide social. Diemenstein, Holanda e tantos outros, como Cristovam Buarque, atentam para o problema da divisão de classes. Buarque, inclusive, aposta na educação como saída para uma economia mais igualitária e equilibrada a partir de uma concorrência justa e uma melhor distribuição do que ele chama de capital-conhecimento. Especificamente tais assuntos serão trabalhados posteriormente e, ainda com relação às discrepâncias de classes, dá sequência Darcy Ribeiro:

“O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.” (RIBEIRO, 1995, p. 452)

Séculos após a vinda dos portugueses é que se instalaram faculdades no Brasil no intuito de formar intelectuais para administrar esse vasto território. Desde então, a política vigente em grande parte da história da sociedade brasileira foi a educação prevista para aqueles jurados a governar – nobres e ricos -, e a abstenção da educação prevista para o restante da população, tidos como pobres e desinformados. Essa população despreparada era vítima também do despreparo das instituições jurídicas, que só a partir daí começaram a surgir baseadas nas instituições já existentes na Europa.

O processo educacional voltado para toda a sociedade brasileira simplesmente não existia, já que se reservava apenas à pequena parcela dos nobres. Enquanto isso, os demais grupos espalhados pelo território cresciam e se desenvolviam separada e quase isoladamente, ao passo que os intelectuais tocavam o país para frente nos âmbitos superiores da sociedade brasileira.

O país continuou a crescer sem qualquer planejamento, sem projetos, sem homogeneidade entre sua população, e a pífia conquista dos menos desfavorecidos seguiu seu curso até hoje. No entanto, o mesmo fato ocorreu recentemente, quando, para livrar-se de uma ditadura militar, os mesmos intelectuais moveram o país numa ruptura do Estado pela Democracia. Democracia essa que novamente aconteceu apenas no papel, já que se vê a realidade da mínima população sem consciência e desinformada, que não compartilhou de um mesmo processo educacional e ético (posto o abismo existente entre a educação e a orientação proporcionada a ricos e pobres), fazendo com que o Brasil presenciasse novamente uma realidade diferenciada e um paradigma, um quadro com paradoxos claros, pois revela uma população com vistas de crescimento diferentes dentro de um mesmo Estado. O povo brasileiro, de berços diferentes, mas de uma etnia só, acompanha no alto de seu despreparo as elites intelectuais mais uma vez tomarem decisões por eles, sem que tenham a mínima noção do que realmente está acontecendo.

É preciso ter uma homogeneidade no processo educacional de toda a sociedade brasileira, ou então ela continuará a ter elites intelectuais que governarão enquanto outra parte apenas assistirá. De certo, essa parcela pode apenas assistir, pois ninguém tem o poder de obrigá-la a ser politicamente ativa – mas isso desde que saiba o que está acontecendo.

Fator preocupante é que, detentores de uma mesma qualidade, há a possibilidade de que não importa quem esteja no poder, podendo amanhã as classes baixas lá estarem; a situação continuará a mesma. É preciso que algo seja modificado.

“Quem somos nós, os brasileiros, feitos de tantos e tão variados contingentes humanos? A fusão deles todos em nós já se completou, está em curso, ou jamais se concluirá? Estaremos condenados a ser para sempre um povo multicolorido no plano racial e no cultural? Haverá alguma característica distintiva dos brasileiros como povo, feito que está por gente vinda de toda parte? Todas essas arguições seculares têm já resposta clara encontrada na ação concreta. Nesse campo de forças é que o Brasil se fez a si mesmo, tão oposto ao projeto lusitano e tão surpreendente para os próprios brasileiros. Hoje somos, apesar dos lusos e dos seus colonizadores, mas também graças ao que eles aqui nos juntaram, tanto os tijolos biorraciais como as argamassas socioculturais com que o Brasil vem se fazendo.” (RIBEIRO, 1995, p. 246).

Quanto ao Brasil e à divisão de classes econômico-sociais:

“Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potencia econômica, de progresso auto-sustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.” (Ibid, p. 455)

Mas, para Cristovam Buarque, algo precisa ser feito, algo precisa ser profunda e complexamente planejado. É preciso uma revolução técnico-educacional. Para Antonio Gramsci (1997), também, é preciso uma reconstrução cultural e moral.

2. A DEMOCRACIA BRASILEIRA

“Ressalte-se a ideia de que surge novo Estado a cada nova Constituição, provenha ela de movimento revolucionário ou de assembleia popular. O Estado brasileiro de 1988 não é o de 1969, nem o de 1946, o de 1937, de 1934, de 1891, ou de 1824. Historicamente é o mesmo. Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é, porém, juridicamente.” (TEMER, 2006, p.35)

“Cidadania é o direito de ter uma ideia e poder expressá-la. É poder votar em quem quiser sem constrangimento, processar um médico que tenha agido com negligencia. É devolver um produto estragado e receber o dinheiro de volta. É o direito de ser negro, índio, homossexual, mulher, sem ser discriminado. De praticar uma religião sem ser perseguido (…). Tão frágil como o papel e, quase sempre, com seus direitos assegurados apenas no papel. Assim se resume a cidadania no Brasil, onde, apesar de todos os avanços, a regra é a exclusão social, a incapacidade de oferecer um mínimo de igualdade de oportunidades às pessoas. Essa é a raiz da violência que vivemos por todos os lados e que nos faz sentir como reféns.” (DIEMENSTEIN, 2003, pp.03-04).

Que Estado é o que não informa aos seus cidadãos o que está acontecendo? Que não proporciona, no mínimo, educação exemplar igualitária? Que Estado é o que coloca as cartas na mesa e não explica as regras para seus jogadores? Democracia sem valor essa, na qual tão poucos têm a consciência democrata. Democrata, quem? Como pode sê-lo quem não sabe o que é Democracia? Assim, como pode ser chamado de Democracia o sistema vigente num lugar no qual os cidadãos não sabem ler, tampouco escrever, e em muitas das vezes leem e escrevem, mas não compreendem o que veem e redigem?

A quem querem enganar? Quem se engana? Provavelmente seja algum mero erro de percurso ou informação. Um país carregado pelas correntes de uma globalização em que o processo constitucional elevava-se grandiosamente, aliado a um descontentamento do povo para com o sistema ditatorial vigente, e o mesmo sem sequer saber o que é Democracia, Constitucionalismo ou sistema ditatorial em questão.

Quem sabia, à época das revoluções, eram tão somente aqueles que sabiam, ou seja, que possuíam a capacidade e o poder de saber. As elites intelectuais clamaram pela ruptura do Estado e a proclamação da Democracia para eles e para o povo ignorante aos acontecimentos governamentais, aprisionados em sua larga jornada de trabalho. E elas, tais elites intelectuais, tiveram o sacrifício de lutar pelo povo – assim como os pais que escolhem o homem com o qual sua filha se casará, mas sem saber se aquele ou aquilo é o melhor para ela. O povo aceitou sem saber ao que aceitava, por que aceitava ou se estava aceitando coisa qualquer.

Em um de seus discursos descritos em “A Questão Social e Política no Brasil”, décadas atrás, Rui Barbosa ponderou:

“Mas, senhores, e é isso o que eles vêem, será isto, realmente, o que nós somos? Não seria o povo brasileiro mais do que esse espécimen do caboclo mal desasnado, que não se sabe ter de pé, nem mesmo se senta, conjunto de todos os estigmas da calaçaria e da estupidez, cujo voto se compre com um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vêz dàguardente? Não valerá realmente mais o povo brasileiro do que os convetilhos de advogados administrativos, as quadrilhas de corretores políticos e vendilhões parlamentares, por cujas mãos corre, barateada, a representação da sua soberania? Deverão, com efeito, as outras nações, a cujo grande conselho comparecemos, medir o nosso valor pelo dessa troça de escaladores do poder, que o julgam ter conquistado, com a submissão de todos, porque, num lance de roleta viciada, empalmara a sorte, e varreram a mesa?

Não. Não se engane o estrangeiro. Não nos enganemos nós mesmos. Não! O Brasil não é isso. Não! O Brasil não é o sócio de clube de jogo e de pândega dos vivedores, que se apoderaram da sua fortuna, e o querem tratar como a libertinagem trata as companheiras momentâneas da sua luxúria. Não! O Brasil não é esse ajuntamento coletício de criaturas taradas, sobre que possa correr, sem a menor impressão, o sopro das aspirações, que nesta hora agitam a humanidade toda. Não! O Brasil não é essa nacionalidade fria, deliqüescente, cadaverizada, que receba na testa, sem estremecer, o carimbo de uma camarilha, como a messalina recebe no braço a tatuagem do amante, ou o calceta, no dorso, a flor-de-lis do vedugo. Não! O Brasil não aceita a cova, que lhe estão cavando os cavadores dos Tesouro, a cova onde o acabariam de roer até aos ossos os tatu-canastras da politicalha. Nada, nada disso é o Brasil. (…) O Brasil não é isso. É isto. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta assembléia. O Brasil é este comício imenso de almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesoiro. Não são os mercadores do Parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de jornais. Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não são os ministros de tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os publicistas de aluguer. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplomatas de marca estrangeira. São as células ativas da vida nacional. É a multidão que não adula não teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de força e de luz para a renovação das nossas energias. É o povo, num desses movimentos seus, em que se descobre toda a sua majestade.” (BARBOSA, http://periodicos.fundaj.gov.br Acesso: 06/04/2012)

Infelizmente, podemos dizer, que tais brilhantes palavras de Rui Barbosa se tratavam mais de um esperançoso discurso quanto ao futuro do país do que o país era de fato.

Marilena Chauí (2003) comenta os dizeres do professor Carlos Jamil Cury sobre a situação atual da sociedade, resultado da educação brasileira. Segundo ele, vivemos o paradoxo entre a qualidade e a democratização do ensino, de modo que o ensino privado e seleto corresponde à primeira, e a educação pública representa a segunda. Desse modo, a educação se mostra prestando um favor à desigualdade social. Chauí aponta ainda uma pesquisa feita em 2000:

“O CPDOC e o ISER realizaram pesquisas para verificar o que a população brasileira entende por direitos do cidadão e quais os direitos considerados por ela como os mais fundamentais. Os resultados foram alarmantes.

1)  45% dos entrevistados não tinham idéia do que fosse um direito do cidadão e tendiam a identificar “direito” e “o que é correto” ou “direito” e “o que é certo”, dando uma interpretação moral para um conceito político;

2) dos 55% restantes, que entendiam, mesmo que vagamente, o que é um direito do cidadão, praticamente todos colocaram a segurança pessoal como o primeiro dos direitos e apenas 11%  colocaram a educação como um direito do cidadão;

3) desses 11%, apenas 5% disseram que o direito à educação deve ser assegurado pelo Estado por meio da escola pública gratuita.” (CHAUÍ, 2003, p. 2).

O resultado é assustador, mas embora a pesquisa mostre que as pessoas talvez não estejam realmente preocupadas com a educação, elas apontam a instrução e o emprego como suas principais metas de vida.

A escola é vista como uma ponte para o mercado de trabalho, desconsiderando o aprendizado sobre o que é ser cidadão, o que é democracia, ou o que é Estado e direito, já que isso o cidadão, em sua grande maioria, nem sabe o que é.

Levando-se em conta que a idéia de democracia e direitos sociais é algo extremamente recente para o povo brasileiro, é possível entender o porquê da dificuldade de absorção dos princípios democráticos, ainda mais quando observamos a questão dos intelectuais, o nosso processo educacional e ético vigente, a nossa conscientização sobre o que é mentalidade educacional, além do processo histórico do Brasil, alinhado por Chauí em poucas palavras.

 “Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é fortemente hierarquizada: nela, as relações sociais e interssubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão.” (Ibid., p. 3).

A sociedade brasileira não apenas não consegue ter-se de fato como democrática, como também os direitos sociais vigentes em lei e em costumes internacionais não passam de privilégios para as altas classes burguesas – hoje divididas entre diversos patamares, da mais alta à classe média. O direito, para os pobres, é visto como coisa rara ou destinado somente aos ricos, e de fato é, pois o ensino público não alcança a qualidade do ensino privado, de modo que os menos favorecidos financeiramente dificilmente conseguem igualar-se aos mais favorecidos em competições intelectuais ou técnicas, como vestibulares ou concursos públicos. As faculdades públicas são conquistadas, assim, pelos que estudaram toda a vida em escolas privadas, e as faculdades privadas têm em sua composição os alunos de escolas públicas que dividem seu tempo entre o trabalho e o ensino para conseguirem pagar as mensalidades. Assim, como sempre estiveram longe da idéia de educação de qualidade como dever do Estado, continuam lutando com as armas que têm, mas não por melhorias. Tais palavras condizem com a educação voltada à formação dos trabalhadores como meio de inseri-los à intelectualidade; a educação voltada ao âmbito político, portanto, será tratada nos capítulos a seguir.

Chauí continua, ainda, afirmando que “no Brasil não há cidadania nem democracia”.

“O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade. (…) Visto que a democracia é criação e garantia de direitos, podemos dizer que a sociedade brasileira, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática e nela a população não consegue perceber a esfera dos direitos sociais e políticos.” (CHAUÍ, 2003, p. 6).

A passagem da Ditadura Militar para o Estado Democrático de Direito nada mais foi que uma ideologia caindo às vistas de outra ideologia, movida por elites intelectuais, colaboradas pelo instrumento midiático, de modo que as massas apenas acompanharam o processo – sendo que uma grande parcela das pessoas não o acompanhou ou não o entendeu. De fato, nenhuma revolução instantânea modifica o Estado. Vivemos o resultado virtual de um embate ideológico, uma ideia em formação – embora ilusionem já ser uma verdade consumada -, na qual a elite que luta, e comanda, enquanto o povo continua alienado.

Conclui-se a posteriori – e aqui socorre novamente Darcy Ribeiro em “O povo Brasileiro”, (1995, p.207) – que hoje, em decorrência de todos os fatos acima expostos, à percepção social, às rachaduras sociais e econômicas e ao Estado inoperante, parcela do povo confia é no crime organizado – como a população marginalizada -, aos cultos evangélicos que salvam os homens do alcoolismo, as mulheres da pancadaria dos maridos bêbados, as crianças de toda sorte de violência e do incesto. As instituições tradicionais perdem seu poder de doutrinação, a escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam.

“O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa fazendo a cabeça das pessoas. Impondo-lhes padrões de consumo inatingíveis, desejabilidades inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas populações e seu pendor à violência. Algo tem que ver a violência desencadeada nas ruas com o abandono dessa população entregue ao bombardeio de um rádio e de uma televisão social e moralmente irresponsáveis, para as quais é bom o que mais vende, refrigerantes ou sabonetes, sem se preocupar com o desarranjo mental e moral que provocam.” (RIBEIRO, 1995, p.206).

3. O PROCESSO ÉTICO-EDUCACIONAL: ESTADO E COMUNIDADE

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (Lei 8.069/1990, art. 227 caput)

Em concordância com a ideia de um novo processo ético e educacional em nossos bairros e comunidades, a presente pesquisa vale-se da Agenda 21¹ e da Agenda Habitat Para Municípios², as quais tratam de orientar os municípios em como cumprir da melhor forma possível os compromissos assumidos pelo Governo Brasileiro perante a comunidade internacional, visando à melhoria de vida nos assentamentos humanos, seu desenvolvimento, o aprimoramento de seu ambiente de lazer e trabalho, estimulando suas potencialidades individuais e coletivas por meio de políticas públicas.

De fato, a ótica principal de tais conferências cuida do fator econômico, da moradia, do trabalho, saúde, escola e demais fatores que caracterizam uma vida digna, segura, sustentável e de qualidade para a sociedade local; assim como a observância do engajamento de todos os entes que fazem parte do ambiente comunitário em um universo mais consolidado e que lhes proporcione um futuro com maiores perspectivas de luta, de sonhos e de esperanças.

Mara Biasi Ferrari Pinto³ (2003), atenta para uma realidade na qual se contribui para a construção de um mundo muito desigual, em que a pobreza e as discrepâncias entre famílias, municípios e povos existam, sem que haja condições dignas de sobrevivência, muitas vezes sem que consigam ao menos se manter. Além disso, diz que “a distribuição espacial das cidades brasileiras configura uma rede heterogênea, que se constitui num grande desafio à gestão do desenvolvimento urbano no plano federal”.

Desse modo, não apenas o sistema econômico vigente em nosso Estado e na grande maioria dos demais países deve ser analisado, mas também o conhecimento e capacitação dos cidadãos para se inserir nas políticas sociais, pois não é pleno que se ofereça a todos uma moradia, saúde, segurança e trabalho, enquanto não possuem a consciência de onde estão, de onde vivem, de como as relações sociais funcionam e de que forma podem trabalhar para a melhora do meio em que vivem. Noutras palavras, não é plausível permitir que os governantes atuais transformem aqueles ainda desprovidos de orientação intelectual, em meros seres bem alimentados, cuidados e atendidos, mas que não possuem palavra nem voz ativa, ou que vote, conquanto não vote conscientemente.

Ressalte-se que dentre as propostas oferecidas pela Agenda Habitat e pela Agenda 21 destaca-se o que diz respeito ao envolvimento não apenas local, mas regional, nacional e internacional, considerando-se as distintas possibilidades de cada município em desenvolver suas próprias políticas sociais por questões econômicas, características regionais e geográficas em cada parte do país. Convoca, assim, tanto o Governo, quanto a sociedade num todo para garantir o desenvolvimento, a administração responsável, o respeito aos direitos humanos e, veementemente, impedir o enfraquecimento da Democracia perante a estagnação do incentivo à participação popular.

O processo de democratização facilitou o acesso a direitos antes impraticáveis, mas não basta apenas essa facilitação. É preciso haver a união de todos os âmbitos da sociedade, público e privado, na mesma empreitada de um progresso econômico, social, educacional, saudável, construindo uma cultura local característica – que preserve direitos em comum, que instrua, embora sem ignorar as qualidades e diferenças regionais.

No livro intitulado “Direitos Humanos e Políticas Públicas”, (2001, p. 60), Maria Paula Dallari Bucci, Nelson Saule Júnior, Patrícia Helena Massa Arzabe e Luiza Cristina Fonseca Frischeisen expõem suas ideias a respeito do assunto abordado. Esta última, de logo, cita os princípios estabelecidos como fundamentos da República Brasileira, sendo tais a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político; e, com relação ao pluralismo político, faz um adendo pertinente ao dizer que tal fundamento não diz respeito apenas ao pluralismo partidário, “mas também à existência de associações civis para a defesa de diversos interesses e grupos existentes na sociedade brasileira”, de modo que para a implantação efetiva e eficaz dos direitos sociais é preciso que se realizem políticas públicas – direitos estes estabelecidos pela Constituição Brasileira no decorrer de seu artigo 5º (FRISCHEISEN, p. 44).

Em seus dizeres, Maria Paula Dalarri Bucci cita Paulo Bonavides sintetizando a caminhada histórica do processo transformador da constituição como documento político para constituição normativa, além do seguinte trecho proferido por Konrad Hesse:

“A concretização plena da força normativa constitui meta a ser almejada pela Ciência do Direito Constitucional. Ela cumpre seu mister de forma adequada não quando procura demonstrar que as questões constitucionais são questões de poder, mas quando envida esforços para evitar que elas se convertam em questões de poder. (BUCCI, p. 9)

Tem-se aqui, novamente neste trabalho, a questão do governante – numa relação histórica de poder – na condição de barrar a formação de novos intelectuais, como também uma eventual falha vista, mas não sanada, na sistematização do ordenamento jurídico. Quer dizer que a constituição de um povo não pode se abster meramente em seus próprios ditames, às suas normas, ignorando por vezes princípios, ou, utilizando de um termo proposto por Dworkin, comentado pelo próprio Bonavides e mencionado por Bucci (2001, p.11), a questão das “policies”. Estas seriam as normas programáticas, as diretrizes para que algo se concretize, diferentemente das normas e dos princípios. Enquanto aquelas se destinam a fins a se seguir, esta outra se destina a fins a se cumprir. Assim explica Eros Roberto Grau, também lembrado em tal obra, coexistindo as duas e formando uma relação de operacionalidade, terminando por não permitir que o processo se estagne.

3.1. POR QUE AS POLÍTICAS PÚBLICAS?

“Há tempos, muitos estudiosos, baseados nas estatísticas sombrias, têm alertado para o óbvio: o país precisa urgentemente de uma política para a juventude, unificando programas federais, estaduais e municipais, associados a entidades não-governamentais, devidamente focados nas regiões mais vulneráveis.” (DIEMENSTEIN, 2003)

Embora nossas doutrinas não estejam acostumadas com as abordagens sobre Políticas Públicas, de forma ordenada, ainda mais quando interligadas com o ramo do Direito, podemos verificar que tais matérias se encontram natural e inteiramente vinculadas uma à outra em uma sociedade sob a égide do sistema democrático e com bases sociais. (BUCCI, 2001, p.6).

Uma vez que a função de nossos princípios e normas é garantir direitos e obrigações na esfera pública e privada, visando não apenas os direitos individuais conquanto os coletivos e difusos, podemos afirmar, como bem acentua Andre Estefam (2011), que seu objetivo também parte do pressuposto de defender bens valiosos e caros à sociedade. Desse ponto de vista, todo direito é política pública, e toda política pública é direito, seguindo uma realidade de pensamento mais presente em países como os Estados Unidos da América que no Brasil.

De todo modo, as políticas públicas estão, aos poucos, sendo implantadas pelos nossos municípios (PINTO, 2003) influenciados em grande parte por uma iluminação gradual e uma conscientização que cresce a cada dia mais na mente dos jovens, principalmente naqueles que têm a cada dia mais acesso à informação e a condições melhores de vida, o acesso à educação de qualidade, ao se abrir de portas promovido pelo Estado em promover algumas ainda criticadas políticas públicas para os mais necessitados, ou historicamente prejudicados social e economicamente. Logo, com o crescimento ininterrupto, a tendência é que tenhamos uma sociedade muito mais madura, autossuficiente, sustentável e capaz. No entanto, mesmo que o progresso esteja acontecendo, é pouco e deve haver um impulsionar e um investimento maiores.

Além das palavras de Maria Paula Dallari Bucci (2001) sobre a recente ideia da interdisciplinariedade no direito ou o fato de alguns institutos e categorias tradicionais do direito buscarem novo sentido ou nova força em outras áreas de conhecimento – das quais vinha se apartando desde a caminhada positivista que se iniciou no século XIX -, em tempo é hora de estabelecer um estudo jurídico sobre quais os instrumentos necessários e possíveis no sentido de um processo ético e educacional aprimorado. A questão ética, embatida por Zygmunt Bauman, Sérgio Buarque de Hollanda, Levinàs e outros, e que vem se estabelecendo desordenadamente em nosso país desde seu início e na mistura de culturas diversas, precisa ser orientada. Não bastam as leis, nem o direito basta. Nos versos de Carlos Drummond de Andrade, que não era jurista, encontra-se uma verdade não vista pelo positivismo cegado, enxergado pelos estadistas e visionários da paz: “As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”.

3.2. QUAIS SÃO OS COMPROMISSOS?

“Um menino de rua é mais do que um ser descalço, magro, ameaçador e mal vestido.  É a prova da carência de cidadania de todo um país, onde uma imensa quantidade de garantias não saiu do papel da Constituição.  É um espelho ambulante da História do Brasil. No futuro, o menino de rua será visto como hoje vemos os escravos.” (DIEMENSTEIN, 1994)

Nelson Saule Junior (2001) discorre a respeito dos compromissos elencados pela Agenda 21 face à implementação dos direitos humanos nos assentamentos humanos. Dos compromissos por ele elencados, estão:

“Papel do Poder Local: Observar o parágrafo 12 da Declaração de Istambul, que afirma a importância do poder loção, ao reconhecer que os governos locais são os parceiros essenciais para colocar em pratica a Agenda Habitat, onde, tendo conta o ordenamento jurídico de cada país, deve ser promovida a descentralização mediante governos locais democráticos, e o fortalecimento da capacidade financeira e institucional do poder loção, de acordo com a situação dos países, para responder às necessidades da população.

Reconhecimento da Capacidade do Poder Local como Sujeito da Comunidade Internacional: Adoção do princípio da cooperação descentralizada nos campos da cooperação internacional nos termos do parágrafo 198 da Agenda Habitat, visando o estabelecimento de novas formas de parceria e cooperação envolvendo organizações da sociedade civil, setor privado e governos locais. Este princípio implica no reconhecimento da capacidade dos governos locais estabelecerem cooperação e relações entre si, de participarem da cooperação internacional e de participarem no processo de definição das políticas globais para os assentamentos humanos. Com base neste princípio, os governos nacionais e os organismos internacionais de cooperação bilateral e multilateral devem apoiar e estimular a cooperação entre os governos locais, bem como fortalecer as redes e associações de cidades, municípios, governos locais.

Promover a Descentralização para Atribuir Poder Político e Econômico ao Poder Local: A promoção do desenvolvimento local, o respeito aos direitos humanos, o estabelecimento de parcerias entre os setores público, privado e comunitário, o atendimento das necessidades das comunidades, de acordo com o parágrafo 177 da Agenda Habitat, têm como requisitos necessários a descentralização efetiva de responsabilidades; da gestão das políticas públicas, das instâncias de tomada de decisões; de recursos suficientes para o Poder Local. Capacitar o Poder Local para a Gestão dos Assentamentos Humanos Nos termos do parágrafo 178 da Agenda Habitat, é considerado estratégico para o fortalecimento do Poder Local, capacitar e habilitar os governos locais, o setor privado, os sindicatos, as organizações não-governamentais e organizações comunitárias, para o desempenho da função do planejamento e gestão dos assentamentos humanos. Adoção dos Princípios da Responsabilidade, Transparência e Participação Popular: Para promover a democracia e o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, nos termos do parágrafo 179 da Agenda Habitat, o Poder Local deve observar os princípios da responsabilidade, transparência, e da participação popular. Os governos devem garantir o direito de todos os membros da sociedade, de participar ativamente dos assuntos da comunidade em que vivem, e garantir a participação na adoção de políticas em todos os níveis.

Fortalecer e Estimular Ações de Cidadania e de Participação Popular: Nos termos do parágrafo 180 da Agenda Habitat, devem ser tomadas as seguintes medidas:

. desenvolver a educação em cidadania para destacar o papel dos indivíduos como atores políticos de suas comunidades;

. institucionalizar a participação da população mediante mecanismos de consulta, na tomada de decisões nos processos de gestão a nível local;

. reforçar a capacidade dos governos locais para efetivar a participação dos setores privados e comunitários na definição das políticas fixação dos objetivos e prioridades locais e no desenvolvimento econômico local.

Fortalecer a Descentralização e o Poder dos Governos Locais: Nos termos do parágrafo 180 da Agenda Habitat devem ser implementadas as seguintes medidas:

. rever e revisar a legislação com o objetivo de aumentar a autonomia local e a participação na tomada de decisões, na aplicação, e utilização dos recursos, especialmente com relação aos recursos humanos, técnicos e financeiros, e no desenvolvimento de empresas locais;

. prestar apoio aos governos locais mediante a revisão dos sistemas de geração de recursos advindos de tributos (impostos e taxas);

. facilitar a troca de experiências de tecnologia, de gestão entre o Governo Nacional (ou Estaduais) e os governos locais na prestação de serviços, controle de gastos, aquisição de recursos, estabelecimento de parcerias, desenvolvimento de empresas locais;

. disseminar práticas inovadoras de oferta, operação e manutenção de bens e serviços públicos, e analisar e divulgar informações sobre o desempenho dos governos locais no atendimento das necessidades da população;

. fortalecer os governos locais e suas associações e redes em relação a iniciativas na esfera da cooperação nacional e internacional, para dividir informações sobre práticas inovadoras de gestão sustentável dos assentamentos humanos; e

. desenvolver e aumentar a cooperação com relevantes órgãos das Nações Unidas, bem como com associações e redes de cidades, governos locais e outras associações e organizações internacionais para a troca de informações, experiências, conhecimento e tecnologia.” (SAULE JUNIOR, 2001, p. 18)

Também a despeito de compromissos assinalados pelas duas Agendas tratadas neste capítulo, especificamente sobre a questão da organização e do poder local expõe a Habitat em seu artigo de número 44:

“Nós nos comprometemos com a estratégia de capacitar todos os principais atores nos setores público, privado e comunitário para assumir um papel – nas esferas nacional, estadual/municipal, metropolitana e local – no desenvolvimento de assentamentos humanos e de moradias.” (2003, art. 44, p. 39)

E, dando prosseguimento ao artigo 44, a Agenda Habitat dispõe um rol de ações em seu artigo 45:

“Nós também nos comprometemos com os objetivos de:

a) Capacitar a liderança local, promover uma ordem democrática, exercer a autoridade pública e utilizar recursos públicos, em todas as instituições públicas, em todos o níveis e de uma maneira que contribua para a garantia de uma governança transparente, responsável, justa, eficiente e eficaz de cidades pequenas e grandes e áreas metropolitanas.

b) Estabelecer, quando for pertinente, condições favoráveis para a organização e desenvolvimento do setor privado, além de definir e realçar o seu papel no desenvolvimento dos assentamentos humanos sustentáveis inclusive por meio de treinamento.

c) Descentralizar a autoridade e os recursos, sempre que pertinente, além das funções e responsabilidade para um nível mais eficaz na abordagem das necessidades das pessoas em seus assentamentos.

d) Apoiar o progresso e a segurança para os povos e as comunidades, onde cada membro da sociedade possa satisfazer suas necessidades básicas e exercer sua dignidade pessoa, segurança, criatividade e aspirações pessoais.

e) Trabalhar em parceria com os jovens na gestão e desenvolvimento de assentamentos humanos, de forma a desenvolver e realçar habilidades, dando educação e treinamento de forma a prepará-los para processos decisivos atuais e futuros e meios de vida sustentáveis.

f) Estimular o desenvolvimento de marcos legais e institucionais sensíveis a gênero e a capacitação, em esferas local e nacional, que elevem ao engajamento cívico e à ampla participação no desenvolvimento de assentamentos humanos.

g) Estimular a criação de organizações comunitárias, organizações da sociedade civil, e outras formas de entidades não governamentais que possam contribuir com os esforços para reduzir a pobreza e melhorar a qualidade de vida nos assentamentos humanos.

h) Institucionalizar uma abordagem participativa para o gerenciamento e o desenvolvimento dos assentamentos humanos sustentáveis, baseada no diálogo contínuo entre todos os atores envolvidos no desenvolvimento urbano (o setor público, o setor privado e as comunidades), sobretudo mulheres, pessoas portadores de deficiências e povos indígenas, incluindo os interesses de crianças e jovens.

i) Estimular a capacitação e o treinamento para o planejamento de assentamentos humanos, em esferas nacional e local, que incluam educação, treinamento e fortalecimento institucional, principalmente para mulheres e pessoas portadores de deficiências.

j) Promover marcos legais e institucionais, nos planos nacional, regional e local, que favoreçam a mobilização de recursos financeiros para o desenvolvimento da habitação e de assentamentos humanos sustentáveis.

k) promover acesso equitativo a informações confiáveis, nos níveis nacional, subnacional e local, utilizando, sempre que pertinente, tecnologia e redes de comunicações modernas.

l) Garantir a disponibilidade de educação para todos e apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de capacidade local para a provisão de moradia adequada para todos e o desenvolvimento de assentamentos humanos sustentáveis, uma vez que a solução de problemas relativos aos assentamentos humanos depende cada vez mais da ciência e da tecnologia.

m) Facilitar a participação de inquilinos na administração de habitações públicas e coletivas, além das mulheres e membros de grupos vulneráveis ou desfavorecidos no planejamento e implementação do desenvolvimento urbano e rural.” (2003, art. 45, p. 40)

Os dois artigos acima, transcritos em seu conteúdo integral, levam a perceber a imensa potencialidade que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios possuem para intentar na construção de um processo não apenas educacional e ético, como também em políticas públicas que estimulem todos os âmbitos da comunidade local.

Não apenas os compromissos foram expostos, mas também as formas de atuação dos municípios através de políticas públicas na promoção dos Direitos Humanos. No tópico 03 de sua exposição, Nelson Saule Junior fala a esse respeito: a formação de monitores, incentivados pelos próprios municípios, envolvendo os servidores do Poder Público Municipal, professores, profissionais de nível superior, categorias de trabalhadores da região, lideranças comunitárias, agentes pastorais e sociais, e incluindo, ainda, parcerias com as Universidades e Faculdades da região do município.

De grande importância ainda é a capacitação dos professores para lecionar a respeito de cidadania, cultura, meio ambiente, política e família, incluindo tais matérias na grade curricular dos alunos do ensino de primeiro grau, instruindo-os, desde moços, a não apenas conhecer o meio em que vivem, mas também participar de eventos culturais e sociais. O aprendizado da cidadania, simultaneamente com a sua prática – como é possível perceber no artigo trabalhado -, é fundamental para a consolidação das ideias pregadas na construção e nas bases morais das crianças. Assim, acontece de modo que o aprendizado é mais eficaz posto a vivência imediata com aquilo que a priori se aprende teoricamente.

Disserta a Agenda Habitat, em seguida, a respeito dos fatores que formam um elo, uma corrente, e que faz referência com a ideia esclarecida na presente pesquisa, a Mentalidade Educacional; esta que não é composta apenas pela educação dos pais, nem meramente o ensino técnico dos professores, mas por todos os integrantes da comunidade em que vive a criança, o jovem e o adolescente, e que de maneira direta ou indireta corrobora para o seu bom crescimento, ideal ou não. Falou-se sobre a utilização dos meios de comunicação, o rádio, a internet e a TV, que podem e devem ser utilizadas na divulgação de atividades locais e das quais fazem parte os eventos culturais, seminários, teatro, música, debates, fóruns, concursos ou festivais voltados a educar a população sobre sua condição de cidadão, seus direitos e seus deveres, além de desenvolverem uma participação conjunta dos habitantes de um mesmo lugar. Complementando a ideia de envolvimento comunitário, propõe-se a atuação local mediante ações de solidariedade, como o desenvolvimento de projetos sociais para os mais necessitados, que unam a esfera pública e a esfera privada e promova a distribuição de alimentos e geração de empregos, tão necessárias.

Em alusão ao exposto, é necessário destacar que esse envolvimento deve ser feito urgentemente, ou então outros envolvimentos – não organizados – se darão fora do controle dos pais ou dos professores, de modo que a criança ainda em formação exceda os limites morais e sociais aceitáveis e siga um caminho traçado na marginalidade, sem rumo definido. Dessa forma, uma escolha que temos de fazer valendo-nos dos instrumentos que temos e que alcançamos a duras penas, como regem a Agenda Habitat e a Agenda 21: investir na Educação ou deixar que a evolução se dê a esmo.

Além da formação de agentes e monitores em Direitos Humanos, a Agenda Habitat – conforme dispõe Nelson Saule Junior (2001, p.26, apud AGENDA HABITAT PARA MUNICÍPIOS) -, propõe a criação de Ouvidorias Públicas locais, por meio de lei municipal, e que seja portadora de competências para: requisitar informações e processos junto aos órgãos públicos, verificar a pertinência das denúncias, reclamações e representações, bem como solicitar aos órgãos competentes a instauração de sindicâncias, de inquéritos, auditorias e demais medidas para apuração das responsabilidades administrativas.

O objetivo é a comunicação direta entre os cidadãos e o Poder Público local, realizado através da pessoa do Ouvidor, representante dos interesses dos cidadãos perante os órgãos do Poder Público. Outra medida a ser tomada e que também se dá por criação de lei municipal é a Assistência Jurídica, promovendo a defesa dos direitos da pessoa humanada, através da Defensoria Pública, atendendo, inclusive, às disposições da Constituição do Brasil em seu artigo 5º, inciso LXXV. Prestado para a população mais carente, trata-se de orientações, documentos e atividades básicas e necessárias para a mediação de conflitos.

Igualmente para defender os interesses dos consumidores, há a disposição sobre a criação de um Serviço Municipal de Defesa ao Consumidor. Para tudo isso, ou seja, para o controle e o estudo dos impactos das Políticas Públicas no município, faz-se importante a criação de Conselhos de Proteção dos Direitos Humanos e o monitoramento das Políticas Públicas, que dentre suas funções se destacam:

“a) Pesquisar, estudar e propor soluções para os problemas referentes ao cumprimento dos direitos humanos;

b) Receber e encaminhar aos órgãos competentes, denúncias, reclamações, representações de qualquer pessoas ou entidade em razão de desrespeito aos direitos humanos;

c) Propor às autoridades competentes a instauração de sindicâncias, inquéritos, processos administrativos ou judiciais para a apuração de responsabilidades por violações de direitos humanos;

d) Requisitar dos órgãos públicos informações, cópias de documentos, relatórios e processos administrativos sobre a utilização de recursos e prestação de serviços públicos”. (SAULE JUNIOR, 2001, p.28, apud AGENDA HABITAT PARA MUNICÍPIOS).

Outra medida citada é a criação de uma Comissão de Direitos Humanos como comissão permanente do Legislativo Municipal, que também detenha incumbências no âmbito da defesa dos Direitos Humanos.

Com o objetivo de promover um mundo mais igualitário, justo, e com menos conflitos em todas as escalas da sociedade – municípios, Estados e União -, numa busca constante pela paz, por uma estabilidade econômica e na consolidação plena dos Direitos Humanos é que a Agenda Habitat e a Agenda 21 nasceram. A dignidade da pessoa humana deve ser observada com zelo e defendida com ardor, mas, mesmo que os objetivos se façam muitos e muitos queiram colocá-los em prática, alguns problemas podem surgir. Como exemplo, é possível citar a questão econômica dos municípios e a falta de recursos legais, institucionais, financeiros, tecnológicos e humanos para responder de forma adequada à rápida urbanização. No entanto, a sociedade num todo deve se unir, conforme nos remete o seguinte trecho da Agenda Habitat:

“A implementação da Agenda Habitat, inclusive através de leis, prioridades, programas e políticas nacionais de desenvolvimento, é direito soberano e responsabilidade de cada Estado, em conformidade com todos os direitos humanos e liberdade fundamentais, incluindo o direito ao desenvolvimento, levando em conta o significado e respeitando integralmente os vários valores religiosos e éticos, aspectos culturais e convicções filosóficas dos indivíduos e suas comunidades, contribuindo para o pleno aproveitamento por todos dos seus direitos humanos, de forma a atingir os objetivos de moradia adequada para todos e o desenvolvimento de assentamentos humanos sustentáveis.” (AGENDA HABITAT PARA MUNICÍPIOS, 2003, p.25).

Assim, retomam-se as ideias de Antonio Gramsci (1929) a respeito da construção de um processo educacional, gradual, no qual toda a sociedade se envolva; mais ainda, afasta-se o fantasma de uma ética e de uma educação ideológica, imposta cegamente à sociedade, uma vez que os valores individuais devem ser prezados e os direitos humanos defendidos, valendo-se muito mais de uma forma dialética de progredir do que qualquer pensamento por demais rígido, que eduque à força ou que meramente construa robôs em atendimento ao mercado de trabalho.

Além disso, com relação ao Brasil, é necessário que façamos uma análise sobre a situação atual e se algo já está sendo feito no âmbito escolar. No próximo capítulo, Cristovam Buarque disserta a respeito do assunto e também dá sugestões de quais atitudes tomar em um primeiro momento.

4. A REVOLUÇÃO EDUCACIONAL POR CRISTOVAM BUARQUE

 “A única revolução possível, lógica e ética no mundo de hoje é por meio da educação.” (BUARQUE, 2011, p.141)

No Brasil, quando falamos em educação, a impressão é que uma mudança não se faz tão emergencial, ou tão imediata, como se houvesse diversas outras atitudes a serem anteriormente tomadas e outras várias leis para serem aprovadas sobre assuntos mais importantes. Mas, o que pode ser mais fundamental do que a educação, cujo próprio nome já diz: fundamental?

No decorrer do último século, educadores como Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Fernando de Mello Vianna, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e tantos outros se mobilizaram com relação ao assunto. Este capítulo, contudo, atentar-se-á especificamente a um educador que se mobilizou nos anos mais recentes e que num engajamento concreto levou a bandeira da revolução educacional no Brasil aos púlpitos e às discussões no Senado Federal, assim como fez em sua campanha à Presidência da República no ano de 2006 e durante a experiência ao ser Ministro da Educação nos anos de 2003 e 2004.

Dentre as suas obras, aquela que interessa a essa pesquisa de forma mais preponderante é “A Revolução Republicana na Educação – Ensino de qualidade para todos”, para a qual Buarque fez uma nota inicial no intuito de apresentá-la ao leitor:

“(…) Muitas destas ideias e propostas orientaram os trabalhos do MEC no ano de 2003. Algumas delas foram implementadas, outras elaboradas como propostas de Projetos de Lei encaminhadas então à Casa Civil para serem enviadas ao Congresso Nacional pelo Presidente da República. A mudança de administração do MEC, em janeiro de 2004, levou à interrupção desta concepção de revolução na educação e à suspensão das propostas. Desde aquele ano, apresentei boa parte delas no Senado Federal, na forma de Projetos de Lei, onde estão em andamento. Em 2006, levei-as ao debate nacional, durante a campanha presidencial. Em 2007, este texto foi apresentado ao Ministro da Educação, Fernando Haddad, em resposta ao pedido de sugestões feito pelo Presidente da República, durante o primeiro lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação. Ao longo dos meses seguintes, o texto inicial foi ampliado, levando em conta as sugestões que tenho recebido nas muitas palestras, entrevistas, encontros e conversas nas dezenas de cidades visitadas pela Campanha Educação Já. Mas, sobretudo, ele foi ampliado, modificado e complementado graças às nove audiências públicas realizadas na Comissão de Educação do Senado Federal. Foram 39 expositores, entre professores, reitores, secretários estaduais e municipais, prefeitos, ministros, representantes de sindicatos e de ONGs. Apesar de toda a evolução na sua elaboração, este texto é apenas um elemento para o debate que leve à revolução educacional de que o Brasil precisa.” (BUARQUE, 2011, p.5).

O autor (BUARQUE, 2011, p.21) fala logo após a sua introdução à respeito da necessidade de uma utopia, ou seja, da busca por algum ideal no intuito de torná-lo realidade. Para ele, essa utopia atende pelo nome de Educação. Nela, é pregada uma educação igual para todos de modo padrão, proporcionando aos estudantes uma consciência ecológica, uma excelente base científica e tecnológica e eficiência social, política, econômica e gerencial até o fim do Ensino Médio.

O Educacionismo – como a essa ideia o autor se refere -, não é algo que se deixa acontecer às avessas ou sem planejamento, até porque sem planejamento tal Educacionismo jamais poderia acontecer. O Brasil, na visão de Cristovam Buarque, ainda se nega a fazer uma revolução em seu ensino de base e a refundar a sua universidade (Ibid, p.18); uma revolução que não seja baseada na estatização da economia ou no fechamento das fronteiras, como nos moldes antigos, mas em um processo educacional. “É como se uma cortina de ouro dividisse a humanidade, cortando cada país em dois: uma parte educada e rica, e outra pobre e sem educação. (…) Só a educação pode incorporar as massas excluídas e fazer do Brasil um centro gerador de capital-conhecimento.” (Ibid, p.17).

A ideia de capital-conhecimento é, em sua visão, o instrumento utilizado hoje pelos capitalistas e operadores em detrimento das massas excluídas. Assim, para que se dê um salto econômico, social e cultural, o país deve impulsionar a criação de capital-conhecimento; mas, em vez disso, o Brasil não apenas detém uma educação retrógrada, como também produz desigualdades. A educação, que deveria ser a grande fonte de conhecimento e de oportunidade para todos, utilizada para fortalecer a cultura de nossos municípios, têm colaborado para o se forjar de uma sociedade ainda dividida entre ricos e pobres. Aqueles que detêm maior poder aquisitivo contratam um melhor ensino, enquanto os demais precisam se servir daquele ensino gratuito que tiver para ser ensinado. Destes alunos, muitos não estudam até o final do ensino médio ou nem adentram aos portões de uma escola; noutros casos, nem há escolas cobertas para se estudar. (Ibid, p.28).

A constatação é a de que o Brasil não tem futuro. Ao invés de instruir a criança a entender o mundo, deslumbrar-se com suas belezas, indignar-se com suas injustiças e ineficiências, agir para fazê-lo melhor e mais justo, tendo um ofício que lhe assegure um emprego e os instrumentos para transformar a realidade, perde-se numa educação pública em ruínas, de famílias desarticuladas, meios de comunicação que não têm compromisso com a educação, sem um elo entre os entes municipais onde a criança vive e cresce. Aqui, em acordo com a Agenda 21 e a Agenda Habitat, é possível constatar a extrema necessidade de se colocar em prática as disposições de seus artigos no que tangem ao envolvimento da sociedade em todos os seus mais variados âmbitos. A consequência de não se fazer isso está no exposto pelo autor ao afirmar veementemente que “O futuro de um povo está em como suas crianças são educadas”, ou em outras palavras, que “O futuro de um país tem a cara de seu sistema educacional.” (BUARQUE, 2011, p.43).

No decorrer de sua obra, problemas já existentes no Brasil por conta de um mau planejamento educacional e econômico são tratados especificamente, tais como: desemprego, violência urbana, ineficiência econômica, pobreza cultural, apartação social, baixos salários mínimo e médio, desigualdade de renda, dependência e perda de soberania, trabalho infantil, atraso científico e tecnológico, baixa produtividade, baixa competitividade, desaglutinação social e o baixo valor agregado na economia. Em contrapartida, também trata das causas de tais problemas:

“Causa cultural. Não damos importância à educação. Ao longo de toda a nossa história, educação nunca foi importante. A influência colonial portuguesa que dificultava o acesso às escolas, o ritual religioso de deixar aos sacerdotes a tarefa de ler e aos fiéis a tarefa de ouvir, e outras razões desconhecidas aos poucos nos fizeram um povo que não considera a educação como valor fundamental. Um brasileiro médio fica transtornado quando encontra seu carro riscado, mas pouco se importa se seu filho passa o dia sem aula. Ele aceita satisfeito que o filho deixe de estudar para se tornar jogador de futebol, mas reage se o aluno insiste em estudar para ser filósofo ou professor primário.

Causa ideológica. Os dirigentes brasileiros, suas classes ricas e médias, desprezam o povo, e por isso nunca tiveram um compromisso com os serviços necessários para as massas, nem saúde, nem transporte, nem habitação, nem educação. Desde a escravidão, quando aos escravos era proibido estudar, até os dias de hoje, quando a educação do povo não é vista como compromisso central dos governos. Ao longo de toda a nossa história, a elite dirigente e as camadas de renda média ou alta sempre se sentiram descomprometidas com o povo. Ao criar nossa bandeira, os republicanos escreveram “ordem e progresso”, mesmo sabendo que 65% da população adulta de então – 6,4 milhões de pessoas – não sabiam ler nem escrever. Porque para os líderes da República, a maioria não lhes importava. Em 1889, os republicanos gastaram longas horas discutindo onde colocar cada uma das estrelas no desenho de nossa bandeira, mas não se lembraram dos analfabetos. Cento e vinte anos depois, o número de adultos que não sabem ler e não conseguem identificar sua bandeira é quase três vezes maior do que no ano da Proclamação da República – 16 milhões. É a educação dos pobres a mais abandonada: temos escolas públicas degradadas, mas algumas escolas privadas com a qualidade equivalente às melhores do mundo. As faculdades públicas que recebem os filhos dos ricos têm o nível das boas universidades do mundo. Só não é uma das melhores porque lhes falta algum apoio público, mas principalmente porque perde milhões de cérebros deixados para trás ao longo da educação de base. E não apenas a educação: tudo dos pobres é relegado. Temos aeroportos de padrões europeus, e paradas de ônibus de padrões africanos. Quando o controle aéreo entra em crise e os aviões atrasam, o assunto vira matéria em todos os jornais, mas os permanentes atrasos de ônibus que deixam milhões nas paradas urbanas jamais se tornam notícia. Quando a elite política brasileira investe em benefícios para as massas, é porque essa é a única forma dela se beneficiar. Como a luta contra a pólio ou contra a Aids, exemplos brasileiros, porque os vírus não escolhem classe social: cuida-se de todos ou não se cuida de ninguém.

Causa política. Além do desprezo pelo povo, que caracteriza uma sociedade classista, aristocrática ou escravocrata, a elite brasileira, talvez inconscientemente, tem interesse em proteger seus filhos dos filhos do povo, assegurando o monopólio do ensino superior. Ao mesmo tempo em que é contrária à cota para negros, mantém a cota de ingressos na universidade para ricos, ao não oferecer aos pobres a chance de cursar um Ensino Médio de qualidade. Evita assim a concorrência que beneficiaria a maioria, que é pobre: se todos tivessem acesso à mesma escola, a minoria – os filhos dos ricos – conquistaria um número muito menor de vagas do que a maioria – os filhos dos pobres. É o que acontece no futebol: uma vez que todos têm a mesma oportunidade, porque a bola é igualmente redonda, as regras são as mesmas, os campos de pelada têm as mesmas características para ricos e pobres. Mas as escolas são completamente diferentes. A bola é redonda para rico e para pobre, mas o lápis do pobre é diferente do computador do rico.

Causa financeira. De tanto desperdiçarem recursos, de tanto se endividarem para implantar um modelo econômico perverso, de tanto criarem privilégios, os governos brasileiros comprometeram seus recursos com o pagamento da dívida, com a necessidade de superávits fiscais, com a manutenção de privilégios transformados em direitos constitucionais. No Brasil, há uma lei de responsabilidade fiscal que prende o prefeito que não pagar sua dívida com um banco, mas nenhuma punição está prevista se ele fechar escolas para pagar o banco. Há leis que asseguram aos servidores públicos salários equivalentes a quarenta salários mínimos, mas não asseguram escolas para os filhos dos servidores de baixos salários. O Brasil foi jogado em uma crise financeira por causa dos desperdícios e vícios da elite rica, e usa seus erros, maldades e egoísmos como desculpa para não investir na educação dos filhos de seu povo.

Causa corporativa. No Brasil, os que fazem a educação colocam em primeiro lugar os interesses do estado e do governo, em segundo os interesses da escola, em terceiro dos professores, por último consideram os interesses das crianças e dos alunos. Quando se decide tomar uma medida minimamente lógica de defesa dos interesses das crianças, como garantir vaga para todas elas, surgem os argumentos de que “não há dinheiro” ou “a escola não suportaria” ou “a qualidade vai cair” ou “os professores ficarão sobrecarregados”. Raramente se pergunta “onde ficarão as crianças se não garantimos vagas para elas?”. Nossos cursos de pedagogia e licenciaturas se organizam mais em função dos interesses de pesquisas, das vaidades pessoais dos professores universitários, do que das necessidades das crianças. Dentro das escolas, pedagogos se interessam mais em testar seus conhecimentos, escrever teses, provar suas sabedorias, do que em ajudar as crianças a se formarem. No Brasil, os alunos são muitas vezes pretexto para os interesses dos governos, dos professores, dos vendedores de equipamentos, construtores de escolas, editores de livros e fornecedores de merenda, e não a verdadeira razão de ser da educação: a garantia de que toda criança terá uma escola onde aprenderá a conhecer, usufruir e melhorar o mundo, independente da cidade onde nascer, da classe social de sua família, da sua raça ou gênero, tendo o apoio para corrigir as deficiências físicas e mentais que possa ter.

Causa da descontinuidade. Desde que começou sua industrialização, o Brasil teve diversos governos, regimes democráticos ou ditatoriais, mas nunca mudou o objetivo do crescimento. Mais de um governo se sucede dando continuidade à construção de hidrelétricas, rodovias. Mas na educação, a cada governo – às vezes até dentro do mesmo governo – projetos iniciados são interrompidos, ou substituídos. Falta continuidade de um ano para outro, de uma geração para outra, o que termina inviabilizando todos os projetos, que necessitam de tempo para a sua maturação.

Causa do propósito utópico. O Brasil foi uma colônia por toda a sua história. Sua independência manteve o País como simples fornecedor de bens primários, agrícolas ou minerais. Na segunda metade do século XX, o Brasil encontrou um propósito, importado: o crescimento econômico. Em função dele, com uma vontade surpreendente para um país desigual, politicamente dividido, usou todos os seus recursos, endividou-se, desvalorizou vergonhosamente sua moeda, provocou uma das maiores migrações já ocorridas na história, concentrou a renda, implantou um brutal regime ditatorial e, sobretudo, abandonou todos os demais setores, especialmente a educação de base. O resultado foi o grande êxito da economia e o grande fracasso social e educacional.

Causa das metas. Quando se inicia uma hidrelétrica, tem-se a meta de concluí-la. Na educação brasileira, os projetos não têm metas. Há décadas se fazem programas de alfabetização, mas só em 2003 foi criada uma Secretaria Especial com a tarefa de cumprir a meta estabelecida de erradicar o analfabetismo no prazo de quatro anos. Mas no ano seguinte a Secretaria foi extinta, e a meta, abandonada. A matrícula foi ampliada sem meta de em quanto tempo conseguir que todos estejam alfabetizados, ou que todos terminem o Ensino Médio. Sem metas, a educação não conclui seus projetos.” (Ibid, p. 31).

Disserta o autor que em meio a todos os problemas citados existe ainda a ilusão de que o país está melhorando, todos estão na escola, têm-se escolas suficientes e a qualidade do ensino está melhor, mas tudo isso não passa de uma forma de se esconder o problema. (Ibid, p.54).

Quando há o desejo de que algo melhore, investe-se para que esse algo melhore. Contudo, o Brasil não investe o suficiente em educação. Investindo e planejando, evolui-se saudavelmente, mas não é o que acontece em nosso ordenamento, hoje, e esse é o principal dilema do país. (mais fundamentação). Apesar de muitas lideranças públicas e privadas terem se mobilizado nos últimos anos, para o autor essa mobilização de ONG’s, políticos que se atentam à causa apenas durante suas campanhas eleitorais, ou mobilizações isoladas, não surtem efeito, sendo necessário que o próprio Presidente da República tome a iniciativa de carregar o estandarte de uma revolução educacional. Dentre suas atividades, deverá mostrar-se às redes de comunicação, todos os anos, orientando e levando uma mensagem à nação, abordando o assunto como se fosse uma obsessão, trabalhando ativamente junto às famílias e aos professores, esforçando-se para que o Brasil não somente melhore sua educação, mas que dê um salto gigantesco no processo educacional vigente.

Nessa “Educação Já”, apesar de sua ênfase na pessoa do Presidente da República, Cristovam Buarque também trabalha com a questão da descentralização e da mobilização de todos; uma descentralização gerencial, com uma coordenação nacional da educação, citando dados dos recursos até então transferidos pelo Governo Federal (Ibid, p.75). A razão para que, antes da descentralização, a União seja colocada em primeiro plano como modificador de um processo educacional está, em suas palavras, na realidade de que “só a União é capaz de universalizar a educação e unificar a qualidade” (Ibid, p.74). De fato, a nacionalização e a padronização do ensino só é possível com a intervenção direta do Estado – mas, ao mesmo tempo, e como discorre as Agendas, respeitando e trabalhando as características próprias e culturais de cada região, observando suas necessidades e dificuldades peculiares.

É possível combinar a descentralização gerencial das escolas com prefeitos, governadores e a União em uma ação que ultrapasse a mera distribuição de livros, merenda e transporte. Além de afirmar que a renda necessária para colocar tal ideia em prática é pouca mediante ao que o Governo Federal dispõe, o autor reforça que o Governo Federal precisa ser o agende coordenador do sistema educacional brasileiro, sendo o Presidente da República o líder mobilizador da educação no Brasil. Nesse sentido, dever-se-ia transformar o MEC em Ministério da Educação de Base; criar uma Agência Nacional para a Proteção da Criança e do Adolescente; garantir descentralização gerencial responsável; realizar a revolução na educação em todo o País em 10 ou 15 anos, iniciando-a imediatamente por cidades-polo e ampliando-se a jornada escolar e do ano letivo; fazer a revolução implantando o Programa Escola Básica Ideal; fazer a revolução nas demais cidades do Brasil; definir padrões nacionais para todas as escolas brasileiras, padrões nacionais de salário, formação e dedicação do professor, padrões nacionais para as edificações e equipamentos das escolas, padrões nacionais mínimos para o conteúdo escolar; estabelecer uma Lei de Metas para a Educação e uma Lei de Responsabilidade Educacional (definindo a inelegibilidade para os que não conseguissem cumprir as metas anuais); valorizar, formar e motivar o professor, criar uma Rede Nacional para a Formação de Professores, apoiar e aprovar leis para criar um Piso Nacional de Salário para a Carreira de Professor, implantar um Conselho Nacional do Magistério, uma Carreira de Estado de Magistério Brasileiro e uma Rede de Centros de Pesquisas e Desenvolvimento da Educação, dentre outros.

Mais, ainda, e de fundamental importância, é a modernização do conteúdo, já disposto na Agenda 21 e na Agenda Habitat na legitimidade do município para adicionar matérias no conteúdo programático de suas escolas. Dentre os ensinamentos que rodeiam tais matérias, o autor cita a ética no comportamento pessoal; solidariedade e os direitos humanos; respeito à natureza; respeito à diversidade; indignação diante de preconceitos e injustiças; habilitação para o uso dos instrumentos de informática; aprendizado pleno de pelo menos um idioma além do Português; gosto pela cultura; hábitos social e fisicamente saudáveis; ensino de Matemática e Ciências; capacidade de aprender e reaprender depois da escola e inserção de cada aluno na perspectiva do aprendizado contínuo e permanente ao longo da vida. E ressalta, ainda, que tudo isso deverá se dar desde as primeiras séries do Ensino Fundamental. (Ibid, p.90).

Há ainda a necessidade da qualificação da infraestrutura, construindo novas escolas, garantindo equipamento moderno de teleinformática e multimídia em todas as escolas, além de equipamentos de ginástica, teatro e música. Para aqueles que cometam algum ato grave contra o processo educacional, o autor estipula punições tão pesadas quanto outras punições já existentes, como, por exemplo, no Direito Administrativo: a) tratar como crime hediondo o desvio de verbas e toda forma de corrupção no sistema educacional; b) Aprovar uma lei específica para criminalizar com rigor o vandalismo nas escolas. (Ibid. p.91).

A escola não pode a cada dia mais se fechar para o mundo, para o Estado, para os municípios e comunidades atrás de muros e cercas elétricas, temendo o que vem de fora, mas sim abrir-se para a sua comunidade, para o Estado e para o mundo. Para isso, o autor acha necessária a criação da Agenda Federal para a Coordenação da Segurança Escolar, permitindo que as crianças frequentem as aulas sem medo da violência, tendo a tranquilidade e os meios psicológicos suficientes e ideais para evoluir em seu aprendizado.

Além da concretização da universalização da frequência às aulas até a conclusão do Ensino Médio, há de se atender ao acompanhamento da alimentação e do desenvolvimento psicológico pedagógico; garantir vaga a toda criança brasileira, a partir dos quatro anos de idade; identificar e trazer para a escola todas as crianças que compõem os não matriculados; retomar o compromisso da Bolsa-Escola com a educação; a criação de uma caderneta de poupança para a criança; garantir uniforme escolar e atender a todos os portadores de deficiências; garantir transporte coletivo para toda criança e passe livre para todos adolescente matriculado na escola; determinar a obrigatoriedade do Ensino Médio; garantir bolsa para todo aluno universitário em curso de licenciatura nas áreas consideradas prioritárias para o Ensino Médio, além de ampliar a duração do Ensino Médio e com garantia de formação técnica em pelo menos um ofício.

Erradicando o analfabetismo no Brasil, Cristovam Buarque considera pertinente envolver a universidade com a Educação de Base baseada num programa de refundação do Ensino Superior (Ibid, p.112), pois sem uma boa escola para todos, a universidade perderá potencial – assim como sem um ensino superior que participe ativamente da comunidade onde está inserida deixará de contribuir com um papel fundamental na sociedade. Mais que isso, propõe a criação do Ministério da Educação de Base e o Ministério do Ensino Superior. É preciso lembrar que os alunos de hoje serão os professores do amanhã, e, portanto, a tradição do conhecimento não meramente técnico, mas também empirista, e a experiência de cada profissional deve ser feita para os mais jovens. Assim, garante-se um ensino mais fortificado, proporciona a aproximação da criança com uma universidade, o que para ela ainda pode ser visto como algo muito distante.

A avaliação da educação de base deve ser feita (Ibid, p.114),  assim como a criação de um cartão escolar de acompanhamento Federal, e, retornando a um tema que tange constantemente esta pesquisa, o garantir do envolvimento das famílias e os meios de comunicação na revolução educacional. A educação, portanto, não é uma tarefa apenas da escola, mas também da mídia e da família.

“Aos Presidentes caberá apelar aos meios de comunicação para que utilizem a temática educacional, não apenas divulgando instrução, mas principalmente disseminando a cultura da educação como fator importante do desenvolvimento nacional.” (Ibid, p.121).

A estimulação do envolvimento dos meios de comunicação, da família e de suas crianças, criando canais televisivos educacionais e de reforço escolar é fundamental. Não podemos sistematizar o ensino no sentido de trabalhar seus vários ambientes separadamente. Deve ser simultâneo, conjunto, inserido num único processo ético e educacional.

Ainda sobre a questão midiática, Gerson Leite de Moraes, em seu livro “A Idade Mídia Evangélica no Brasil”, trata de forma crucial a questão das concessões de rádio e televisão em nosso país; cita Freston, e o dá razão quando afirma que “de fato, mídia e política se fortalecem, e numa relação de reciprocidade, estruturam-se e progridem imanadas ao ponto de não conseguirem mais um afastamento. Tornam-se mutuamente dependentes e exploram-se até as entranhas” (MORAES, 2012, p. 37)

Diz que, ao contrário da publicação de jornais e revistas – que têm certa penetração social ou, noutras palavras, possui uma facilidade maior de se produzir -, “não se pode dizer o mesmo sobre a concessão de canais de televisão e emissoras de rádio no Brasil. As concessões” complementa, ainda: “viraram objetivos reais para os vários grupos religiosos brasileiros”.

O funcionamento de rádio e televisão no Brasil, como bem explica Alexandre Brasil Fonseca, é definido como híbrido: “No Brasil não há um modelo rígido e que regula de forma clara o funcionamento desses veículos de comunicação de massa”. (Ibid. p. 49) Tal característica, que une tanto meios adotados nos Estados Unidos e no Reino Unido, o faz estar em parte à mercê do mercado e noutra parte à mercê do Estado. Esta realidade existe, de modo que qualquer assunto pode ser tratado nos canais e nos programas televisivos, desde aqueles que têm fundo educacional como aqueles com conteúdo erótico.

A seguir, dois dados mostram a importância de a mídia brasileira no influenciar de seus cidadãos.

1) “3,5 horas é a média diária de tempo que o brasileiro passa vendo TV. 81% da população assiste à TV todos os dias. A TV e o Rádio são as maiores e únicas fontes de informação para a maioria dos brasileiros. A TV está presente em 87,7% dos domicílios e 88% dos brasileiros ouvem rádio todos os dias”.

2) “Uma pesquisa feita em 2003 pela empresa Multifocus com 1500 crianças das classes A, B, C e D de SP, RJ e BH e Curitiba mostrou a que a televisão é o principal meio de interação da criança com o mundo. Segundo a pesquisa, 81% das crianças passam mais de duas horas em frente à TV, 36% assistem aos programas sozinhas, metade das que têm até 11 anos têm livre acesso à programação entre 18h e 21h e quase 40% ficam até às 23h em frente da tela.” (DIEMENSTEIN, 1994)

O primeiro dado é oferecido pela EPCOM e encontrado na obra de Moraes, conquanto o segundo dado é trabalhado por Gilberto Diemenstein em “O Cidadão da Papel”, ambos no ano de 2002.

O fato possui seu lado bom e seu lado perigoso, dependendo da sua finalidade. Se 80% da população brasileira depende de tais meios de comunicação para se orientar e se atualizar, seria um excelente caminho para difundirmos cultura e informação de qualidade; por outro lado, se são utilizados para fins de controle político ou movimentações mercadológicas, há ressalvas importantes a se fazer já que não existe uma responsabilidade social nem um projeto saudável de instrução ético-educacional. Pois:

“Sem sombra de dúvidas, a detenção de canais de rádio e emissoras de televisão rendem um poder sem paralelos num território onde mais de 80% da população acessam de alguma forma essas mídias. É o fenômeno do “coronelismo eletrônico””.  (MORAES, 2012, p. 40)

Situação aproveitada inclusive por grupos religiosos, e que apresenta-se como o assunto principal do livro de Moraes:

“E os grupos religiosos no Brasil logo perceberam o poder que esses meios lhes confeririam e lutaram e lutam muito para conquistar e manter esse poderio midiático”. (Ibid., p.40)

No meio de tantos jogos de poderes, onde se digladiam empresas de mercado e portentosas instituições religiosas – em busca da atenção e da audiência do telespectador -, onde caberá a educação, a instrução cívica, a promoção de eventos, programas ideais e a responsabilidade de construção social?

Lembra, Moraes, que as concessões no Brasil são prerrogativas do Governo Federal, necessitando de autorização do Estado para funcionarem. O resultado é um intrincado jogo de manobras políticas no qual se observa inenarráveis artimanhas de “apadrinhamentos”, interesses pessoais e indicações; ou seja, nada daquilo que deveria ter relação com o assunto e que também deveria depender de critérios diferentes, tais como o bem público e uma instrução de qualidade.

Para a mudança nas redes de comunicação, valemo-nos, portanto, das disposições de documentos – como as trabalhadas Agenda 21 e Agenda Habitat – para procurar transformar essa realidade e tornar os meios de comunicação de massa mais democráticos, atendendo à construção de um processo ético-educacional, à boa informação, e não a jogos de poderes de particulares.

A luta é árdua mas deve ser estimulada. É preciso não apenas fazer, mas também garantir a continuidade dos programas educacionais – reapresenta Buarque -, e é exatamente essa uma das razões de se utilizar o ordenamento jurídico, a fim de consolidar e impedir que toda a evolução feita nessa áreas – familiar, escolar, informativa – se perca. É corrente ouvir o ditado popular que diz ser a sociedade quem faz as leis, mas as leis não mudam a sociedade. Uma lei pode não mudar a sociedade, mas os projetos aprovados com força de lei podem promover grandes mudanças.

O que se pergunta, ao final de um plano pedagógico tão amplo, com tantos outros detalhes a serem debatidos, é a questão do investimento e quanto se gastará do início ao fim. O autor, nesse sentido, também apresenta uma perspectiva animadora. Qual é o custo de fazer?

“Cerca de R$ 7 bilhões por ano, além dos gastos atuais, é o que é preciso para o Brasil iniciar sua revolução na educação. Com menos do que esse valor, não haverá o salto, apenas um avanço, como aqueles que vieram no passado – merenda, transporte, livros didáticos, Fundef, e agora Fundeb e PDE. Mais do que esse valor, o sistema não é capaz de absorver imediatamente. Nossa inanição não permitirá gastos maiores. Seriam desperdiçados. Não seremos capazes de absorver, de repente, equipamentos para toda a rede; nem de formar todos os professores. O máximo que podemos absorver é algo em torno de R$ 7 bilhões anuais, além do que é gasto atualmente, até chegar a R$ 20 bilhões anuais dentro de quatro anos. Como comparação, R$ 7 bilhões equivalem a apenas 0,3% da renda nacional, 1% da renda do setor público, pouco menos de um quarto do lucro de uma única estatal em 2006 – a Petrobrás.” (BUARQUE, 2011, p. 129)

E o custo de não fazer, qual é?

“Todos perguntam de onde virá o dinheiro para aumentar o gasto atual de cerca R$ 1.100 anuais por aluno na educação de base, dos quais apenas cerca de R$ 150 anuais saem do Governo Federal. Mas ninguém pergunta de onde vem o dinheiro que financia a educação de 7.346.230 alunos em escolas privadas, graças em parte à dedução no Imposto de Renda de até R$ 2.480,66 para cada um. Ninguém pergunta de onde saem os R$ 4.400 mensais (R$ 52.800 anuais) gastos com cada jovem infrator preso. Ninguém pergunta de onde vem o dinheiro para projetos de infraestrutura, ou para compensar a redução de impostos, ou para investir no Ensino Superior ou Técnico, mas todos querem saber quanto custa e de onde vem o dinheiro para construir uma única escola. Ninguém tampouco se pergunta quanto custa não fazer a escola, o custo da omissão. Não fazer uma revolução na educação já está custando a alma do Brasil, perdida eticamente por causa do muro da desigualdade, e perdida econômica e cientificamente por causa do muro do atraso. Se compararmos o Brasil e a Coréia do Sul, esse custo de não fazer aparece de forma drástica. No começo dos anos 1960, a Coréia do Sul tinha renda anual per capita da ordem de US$ 900. O Brasil tinha o dobro, então US$ 1.800. A Coréia fez sua revolução educacional a partir da educação de base, tomou outras medidas, e tem hoje uma renda per capita que é o dobro da nossa. Tudo repetido aqui, se tivéssemos feito o mesmo, nosso PIB seria agora de ao redor de R$ 6 trilhões, em vez de R$ 2 trilhões. Adiar essa revolução terá um custo destruidor do nosso futuro, não apenas pela perda financeira, mas por todo atraso, desigualdade, degradação, dependência.” (Ibid, p.129).

Depois do fracasso das ideologias prisioneiras da economia – assevera o autor -, dentre eles o capitalismo, desenvolvimentismo e socialismo, o mundo exige uma nova concepção ideológica. Uma ideologia que não é cega, nem autoritária, mas dialética; que não privatiza o ensino, mas que distribui renda e conhecimento. Seria um movimento educacionista, com a força de um movimento abolicionista – e, no final das contas, o abolicionismo educacional pode ser tão ou mais complexo ainda; ou, quem sabe, o movimento abolicionista apenas se dará verdadeiramente, de fato, quando nosso povo não somente estiver livre das correntes de ferro, mas também das correntes do “não saber”.

5. UMA SUGESTÃO ÉTICA

“Assim, paradoxalmente, a moralidade é a escola da justiça”. (BAUMAN, 1997, p.62,            apud LEVINAS, s.d.).

“O mundo moral de Levinas estende-se entre eu e o Outro” (BAUMAN, 1997, p.62).

Assim tem início o capítulo IV, do livro: “O mal-estar da pós-modernidade”, de Zygmunt Bauman. Traça, assim, a ideia do outro e um ambiente no qual uma ética plena é possível. Uma ética que é capaz de ser exercida a partir do momento em que se analisa quem está ao redor – enxergando, portanto, a própria identidade, tornando as pessoas mais próximas e fazendo com que enxerguem aquilo que têm em comum.

A relação de alguém com o outro, segundo o autor, representa o berço não apenas da sociedade e dos direitos e deveres, como também da ética. Mas será que é possível manter essa ética, nascida entre dois, mesmo com a intervenção de um terceiro? O autor afirma que com o aparecimento do terceiro, essa ética encontra um lugar inóspito, pois ele não se vê – não é mais tão próximo, é distante, onde as características em comum não são vistas, a ideia de “pessoa humana” se desfaz e entra em foco outra imagem, a imagem de “cidadão”, de um “desconhecido”, criando pré-conceitos de classe e ademais. Poderia, assim, considerar os desentendimentos com relação à cor, etnia, posto social e outros no decorrer da história. Mas, na existência da ideia do outro, onde até o terceiro – desconhecido – é visto como “próximo”, Bauman dispõe:

“Isso deixa à parte a maioria das coisas que preenchem a vida diária de todo ser humano: a busca da sobrevivência e auto-engrandecimento, a consideração racional de fins e meios, a avaliação de ganhos e perdas, a procura do prazer, o poder, a  política, a economia… Acima de tudo, penetrar nesse espaço representa tirar uma folga da atividade cotidiana, deixar do lado de fora suas normas e convenções mundanas. Na reunião moral de dois, eu e o Outro chegamos despidos de nossos adornos sociais, despojados de status, distinções sociais, desvantagens, posições ou papéis, não sendo ricos nem pobres, arrogantes ou humildes, poderosos ou destituídos – reduzidos à simples essencialidade da nossa humanidade comum.” (BAUMAN, 1997, p.63)

Levinas assinala ainda uma relação entre eu e o outro, de liberdade para com ele e de integridade, trabalhando com o conceito do ser humano, que se torna quase impessoal. Assim, o outro também se transforma em terceiro, de modo que não se pode violar a independência nem a liberdade. Uma ética racional, na qual a razão nunca contradiz a ética, sendo a justiça puramente racional também.

Posto isto, poderia tal ética ser orientada em um ambiente familiar ou comunitário, dentro de predisposições de tratados e máximas de direitos humanos, como a Agenda 21 e a Agenda Habitat? Poderia a prática de uma ética, desde cedo, ensinada aos moços, estimular uma visão de mundo que resolvesse as divisões sociais e classistas citadas por Darcy Ribeiro em “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”? Nas palavras de Bauman:

 “Pode a ética, nascida e criada na estufa do encontro de duas pessoas, suportar a investida do Terceiro participante? E – mais relevantemente – pode a capacidade moral que se faz sob a medida da responsabilidade pelo Outro como o Rosto ser suficientemente forte e potente, ou suficientemente vigorosa, para sustentar uma carga inteiramente diversa da responsabilidade pelo “Outro como tal”, o Outro sem um Rosto?”. (Ibid., p.63)

A ética reivindica o direito de julgar a justiça – interpretada politicamente -, e o Estado deve seguir e ser obediente às suas normas éticas. Há uma diferença entre o ético e formal. Segundo o autor, é a ética que reivindica o direito de julgar a justiça politicamente interpretada, que exige a obediência do Estado a suas próprias normas éticas. (Ibid., p. 65). “Acha que um tal Estado (justo) é possível?” perguntam R. Fornet e A. Gómez em entrevista com Levinas sob o título Philosophie, justice et amour, que conseguinte responde: “Sim, um acordo entre a ética e o Estado é possível. O Estado justo será a obra de pessoas justas e dos santos, em vez da propaganda e da pregação (…) A caridade é impossível sem a justiça, mas a justiça sem a caridade é deformada.” (BAUMAN, 1997, p. 65, apud PHILOSOPHIE, 1982).

Responde, de tal modo, às indagações até então interpostas neste capítulo.

Há a generosidade e a bondade entre o eu e o outro, criando-se uma ética. Porém, quando começam a surgir vários terceiros – desconhecidos -, mas que se ferem, a mera singularidade do eu e do outro não mais funciona, sendo necessário um recurso à razão. Mesmo assim, esse modo sistematizado com que se cuida dos terceiros só existe porque, antes, existia uma ética entre eu e o outro – que é o que aprendemos em casa, com os primeiros.

Em um segundo momento é preciso que se estabilize essa instituição por meio do Estado e da Justiça. É claro que a consequência é a redução da visão da singularidade humana à de cidadão, mas sem isso ela seria inconcebível, jamais se consumando. Afirma, ainda, que em uma totalidade, a Justiça não existe justamente por isso.

“[…] É preciso arbitrar as instituições e poder político que as sustenta. A justiça requer o estabelecimento do Estado. Nisto reside a necessidade da redução da singularidade humana a particularidade de um indivíduo humano, à condição do cidadão. Esta última particularidade reduz, empobrece, dissolve, dilui o esplendor da singularidade eticamente formada, mas sem essa singularidade já eticamente apreendida ela própria seria inconcebível, jamais se consumaria…” (Ibid., p. 66)

A característica de toda Justiça é a insatisfação consigo mesma – reafirma. Ela provém da caridade e os direitos humanos não são função do Estado, mas uma instituição não estatal. Ela vem da aprendizagem primeira, da ética primeira, da caridade primeira, mas para que o Estado administre-a é necessário que perca essa característica pessoal e singular. Em contrapartida, não poderia existir qualquer administração se não houvesse antes a aprendizagem pessoal e singular do eu com o outro – sendo possível então, através da razão, a convivência justa com o terceiro.

Se não fosse pela lembrança da singularidade do rosto, diz, não haveria ideia de justiça generalizada e impessoal – e o Estado, poder-se-ia dizer, só é justificável como veículo ou instrumento da ética.

Evidentemente, os moldes da sociedade contemporânea não se satisfazem meramente com uma ética entre pessoas, e Hans Jonas predispõe sobre o assunto. Diz que essas éticas dos interesses humanos e das instituições sociais não são mais a importância principal, sendo preciso outra ética. Ele traça uma desigualdade social e ambiental causada pelo consumismo e pela modernidade líquida, causando injustiça e uma preocupação para com a sobrevivência da espécie humana no planeta. De fato, a consolidação desse ensinamento, dessa ética sustentável, só é possível se enraizada desde logo na vivência dos jovens, a partir de uma teoria e de uma prática executada mediante políticas públicas nos municípios, no bairro, nas comunidades.

Se, portanto, a justiça provém de uma ética na visibilidade e no respeito à dignidade impessoal do outro, nas microrrelações, porque não deveriam ser defendidas e praticadas também nas macrorrelações?

Baumam problematiza, assim, a questão da Democracia e do Estado de Bem-Estar social, assim como quais atitudes são exemplares para se alcançar esse estágio ético. Em sua obra, no entanto, ressalta Levinas ao citá-lo novamente em:

“A ética não é um derivado do Estado. A autoridade ética não deriva dos poderes do Estado para legislar e fazer cumprir a Lei. Ela precede o Estado, é a exclusiva fonte da legitimidade do Estado e o supremo juiz dessa legitimidade. O Estado, poder-se-ia dizer, só é justificável como veículo ou instrumento da ética.” (Ibid., p. 69)

 Ressuscitando enfaticamente ao fim deste trabalho a questão dos Direitos Humanos, o ordenamento jurídico e sua inter-relação com a moral – o que a princípio pode parecer uma contradição -, conclui que:

“A justiça é despertada pela caridade – essa caridade que está aquém da justiça mas igualmente além dela (…) A preocupação com direitos humanos não é a função do Estado. É uma instituição não-estatal dentro do Estado – um apelo à humanidade que o Estado ainda não consumou”. (Ibid., p.67).

Nas palavras de Bauman:

“A algo maior do que qualquer letra da Lei, do que qualquer coisa que o Estado até então tenha feito. A justiça administrada pelo Estado nasce da caridade gerada e preparada dentro da situação ética primeira, no entanto a justiça só poder ser administrada se nunca deixar de ser impelida por seu original spiritus movens, se se reconhece como infinda perseguição de uma meta continuamente esquiva – a recriação, entre os indivíduos e cidadão, da singularidade do Outro como o Rosto… E se sabe que não poder “igualar a bondade que a deu à luz e a mantém vida” (L’autre, Utopie et justice, 1988) – mas que não pode jamais deixar de tentar fazer exatamente isso.” (Ibid., p.67).

Posto isto, explicitando a importância da relação primeira, da família, da comunidade e de todos os ambientes que envolvam a criança em sua formação fundamental, faz-se presente o ditado popular e que se consagra em: “A mudança vem de baixo”.

“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. (Jo 15, 12)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se considera preponderante, aquilo que se vê com o trabalho apresentado, não é outra coisa senão a esperança. Apesar das problemáticas envolvendo a própria concepção do Estado Brasileiro, suas raízes diversas e seu histórico de crescimento desordenado, percebe-se um amadurecimento progressivo da sociedade à medida em que ela se torna mais consciente de seus direitos e deveres. Mais que isto, é notório o nascer de novos estudiosos sobre a educação e que se empreitam na luta por melhores condições de vida da população, de um melhor ensino, da construção de um processo ético-educacional que proporcione uma visão e um modo de viver em comunidade muito mais saudável para esse povo tão combativo e de uma etnia só. Procura-se, no decorrer das palavras, a reformulação cultural; uma reformulação cultural que, à sua época, já era defendida por Gramsci.

A luta, agora, não é pelo capitalismo ou socialismo, mas – como clamado repetidamente por Cristovam Buarque – de uma nova ideologia, dialética, chamada de educacionismo. Tal educacionismo, podemos dizer, que regula inclusive princípios capitalistas e socialistas – do equilíbrio econômico às lutas por igualdade social.

Mas apenas a vontade de alguns não é o bastante. É necessário o apoio e a colaboração do próprio povo e, tão quão importante, dos políticos e dos líderes deste país, representantes do povo, eleitos por ele e para ele eleitos. Não basta que a questão seja tratada no âmbito das ciências sociais ou da filosofia, mas também, e principalmente, nas salas de ciências jurídicas, até que a sua fundição seja laborada no ordenamento jurídico vigente. O povo têm direitos que não lhe são apresentados e aqueles conhecedores dos direitos não podem continuar a escondê-los de seus próprios portadores. A luta para a sua conquista foi penosa, atravessou os séculos, e deve ser valorizada.

 

Referências
VIEIRA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. Editora Record, 2007.
BUARQUE, Cristovam. A Revolução Republicana na Educação – Ensino de qualidade para todos. Editora Moderna LTDA, 2011.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil – Companhia das Letras, 1995.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. Companhia das Letras, 1995.
DIEMENSTEIN, Gilberto. Até quando vamos ficar parados. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/colunas/gd171103a.htm. Acesso: 31/03/2012.
DIEMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel. Editora Ática, 1994.
BUCCI, Maria Paula Dallari. SAULE JUNIOR, Nelson. ARZABE, Patrícia Helena Massa. FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Direitos Humanos e Políticas Públicas. Editora Polis, 2001.
MORAES, Gerson Leite de. A Idade Mídia Evangélica no Brasil. Fonte Editorial, 2010.
VIEIRA, Carlos Eduardo. Cultura e Formação Humana no Pensamento de Antonio Gramsci. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.25, n.1. 51-66, jan/jun, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Jorge ZAHAR Editor LTDA, 1998.
Agenda Habitat. Declaração de Istambul e Agenda Habitat – Conferência das Nações Unidas sobre assentamentos humanos – Habitat II, Istambul, 1996.
Agenda 21. Conferência das Nações Unidas sobre meio-ambiente e desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992.
BOBBIO, Norberto. Estado, Gobierno y Sociedad. Editora Fondo de Cultura Economica.
CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural – O direito à cultura. Fundação Perseu Abramo, 1997.
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Ed. Gallinard, 1998.
GRAMSCI, Antonio. La alternative pedagogica. Ed. Castellano, 2007.
KONDER, Leandro. Filosofia da educação – de Sócrates a Habernas. Editora Mauad.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Coia das Letras, 2004.
 
Nota:
 
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Antonio Isidoro Piacentin, Doutor em Direito Constitucional e Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Campus Campinas.


Informações Sobre o Autor

Schleiden Nunes Pimenta

Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; aluno de mestrado na Faculdade de Letras Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo; conciliador capacitado pela Justiça Federal da 3a Região em Campinas; pesquisador nas áreas de Literatura e Filosofia Teoria da Justiça e Direitos Humanos


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