Da interrupção de serviço público essencial

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Resumo: Constitui-se em objeto de estudo do presente artigo versar sobre um tema que avulta de importância na esteira do Direito do Consumidor, haja vista a dimensão jurídica que remonta a interrupção de serviço público essencial nos tempos hodiernos, sobretudo pela valorização das atividades imprescindíveis para a consecução da dignidade da pessoa humana esculpida na Carta Magna, as quais lograram relevo em face da globalização e dos princípios da ordem econômica, assim como pela introdução da Lei 8.078 de 1990 que trouxe à baila maior proteção ao consumidor, refletindo os interesses sociais. Outrossim, far-se-á um estudo acerca do conceito de serviço público essencial, bem como os princípios que o regem e expender sobre a legalidade ou não da interrupção de tais serviços à luz do ordenamento jurídico pátrio.


Palavras-chave: serviço público essencial, consumidor, interrupção, Estado.


Sumário: 1. Introdução. 2. Concepção de serviço público essencial. 3. Classificação dos serviços públicos. 4. A constitucionalidade do art. 5º, § 3º da Lei de Concessões de Serviços Públicos. 5. A ilegitimidade da interrupção dos serviços públicos essenciais. 6. Relação de serviços essenciais à luz da Lei. 7.783/89. 6.1. Água. 6.2. Energia elétrica. 6.3. Telecomunicações. 7. Conclusão.


1. Introdução


Ab initio, insta observar que com o advento dos princípios neoliberais e o processo de globalização da economia, sobretudo com o desenvolvimento das atividades comerciais e industriais e a integração econômica, desencadeou-se uma relação de desigualdade no tratamento entre fornecedores e consumidores. Em razão de tais fenômenos, a partir da década de 1950, as organizações de defesa dos consumidores da América e Europa ensejaram movimentos sociais que velaram pela proteção ao consumidor.


A introdução do microssistema jurídico do Código de Defesa do Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro veio atender a este anseio social pela busca da paridade no tratamento entre os dois pólos da relação de consumo, dirimindo as práticas abusivas tão comuns antes do referido diploma consumerista.


Não se pode olvidar que a Constituição Federal estabeleceu a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, cuja finalidade consiste em assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros princípios, a defesa do consumidor (art. 170, IV/CF). Depreende-se, então, a valoração da figura do consumidor enquanto titular de direitos e garantias constitucionais fundamentais.


Nesse diapasão, a sociedade não pode prescindir dos serviços públicos essenciais, haja vista que os mesmos são fundamentais para a consecução da cidadania e dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, III/CF), “constituindo-se um mínimo invulnerável” [1] sendo assegurada pelo Código de Defesa do Consumidor a continuidade de tais serviços, isto é, a natureza ininterrupta destas atividades.


Diante de tais considerações, faz-se mister salientar os lúcidos esclarecimentos de João Sardi Júnior ao asseverar que:


“Tais serviços são na verdade indispensáveis a vida moderna, e basicamente são os pilares de sustentação de uma nação, tanto é que quando alguns países se declaram guerra os primeiros ataques são contra alvos ligados aos serviços essenciais, pelo simples motivo de serem a espinha dorsal da infra-estrutura do país”. [2]


Dessa forma, faz-se oportuno expender sobre este tema em estudo porquanto atende diretamente aos anseios da sociedade a fim de alcançar o pleno desenvolvimento da sociedade contemporânea, objetivando proteger o bem comum e a justiça social.


2. Concepção de serviço público essencial


O Código de Defesa do Consumidor é silente quanto à caracterização dos serviços públicos essenciais. A Lei 7.783 de 28 de junho de 1989, vulgarmente conhecida como “Lei de Greve”, em seu art. 11, parágrafo único, aduz que “são necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Assim, perfunctoriamente, tem-se por ilação que serviços essenciais são precisamente aquelas atividades imprescindíveis à satisfação das necessidades inadiáveis da comunidade.


No que tange à concepção de serviço público, a doutrina apresentava um sentido assaz amplo que correspondia a todos os atos de natureza estatal. Abrangia os atos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. A extensão do conceito foi tão larga que doutrinadores franceses defendiam a tese de que a noção de serviço público suplantaria a de soberania, ao definir Estado como “uma cooperação de serviços públicos organizados e fiscalizados”. [3]


Dentre os doutrinadores pátrios, Hely Lopes Meirelles afasta os atos do Poder Legislativo ou Judiciário deste rol de atividades ao assentar que serviço público é “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado”. [4] Apesar do esforço envidado pelo ilustre mestre, permissa venia, o conceito de serviço público por ele apresentado ainda é muito extenso.


Ulteriormente, grassou-se uma concepção estrita de serviço público. Os partidários desta corrente partiam do pressuposto de que o conceito de serviço público não poderia encerrar todas as atividades da Administração, isto é, dentre as atividades exercidas pelo Poder Executivo, ter-se-ia atividades que seriam efetivamente serviços públicos.


Nesse sentido, fixaram-se três critérios para a definição de serviço público. Primeiramente, desenvolveu-se o critério subjetivo que estabelecia que serviço público referia-se aquele prestado pelo Estado. Tal critério orientava-se pela pessoa jurídica prestadora da atividade. Em seguida, surgiu o critério material cujo conceito considerava a atividade prestada propriamente dita. Assim, as atividades que tem por fulcro o atendimento das necessidades de caráter coletivo são consideradas serviços públicos. Finalmente, fixou-se o critério formal, cujo fundamento é o regime jurídico. Então, serviço público consiste naquele realizado sob o regime de Direito Público.


As noções de serviço público de antanho agregavam os três critérios, de tal modo que serviços públicos correspondiam às atividades de interesse coletivo, prestadas pelo estado, sob um regime publicístico.  Ausentes tais requisitos, considerava-se o conceito de serviço público incompleto, sendo, portanto, estanques tais critérios.


Cumpre observar que a identificação da natureza do serviço público não é uma tarefa fácil. Não obstante a ousadia de muitos doutrinadores grassou-se razoável entendimento e compressão do tema, havendo, até mesmo, calorosos debates. Em verdade, tais serviços apresentam uma multiformidade de matizes.


Percebe-se que se processa uma transição gradual de essencialidade, tornando-se mais intenso quando culmina nos serviços públicos difusos. Vê-se, portanto, que todos os serviços prestados pelo Poder Público estão embebidos por esta medida de essencialidade, de forma imarcescível.


Desse modo, em virtude da ausência de legislação que regule e determine quais os serviços públicos essenciais, na Lei nº. 7.783/89, no art. 10 e incisos, são aventados alguns serviços essenciais, in verbis:


Artigo 10 – São considerados serviços ou atividades essenciais:


I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;


II – assistência médica e hospitalar;


III – distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;


IV – funerários;


V – transporte coletivo;


VI – captação e tratamento de esgoto e lixo;


VII – telecomunicações;


VIII – guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;


IX – processamento de dados ligados a serviços essenciais;


X – controle de tráfego aéreo;


XI – compensação bancária.


Vale salientar que este artigo da lei dispõe um rol exemplificativo, elencando, de forma aberta, os serviços ou atividades essenciais, não sendo numerus clausus. Sob esse prisma, possibilita-se ao legislador descrever outras modalidades de serviços públicos essenciais.


Questão importante a ser analisada é o fato de que os serviços essenciais caracterizam-se pelo imediatismo da sua prestação, sobretudo pela premência em que deve ser fornecido. Razão pela qual se torna mais ardente a inafastabilidade da sua prestação.


Diante do que foi exposto, merece ser frisado que a dificuldade em circunscrever o tema, deve-se em parte à diversidade sócio-cultural dos grupos sociais que afeta diretamente as relações jurídicas, haja vista a pluralidade do Direito. Nesse sentido, não se pode prescindir do arguto entendimento de Antonio Carlos Wolkmer, cujas palavras lançam luz ao lecionar que “a compreensão filosófica do pluralismo reconhece que a vida humana é constituída por seres, objetos, valores, verdades, interesses e aspirações marcadas pela essência da diversidade, fragmentação, circunstancialidade, temporalidade, fluidez e conflituosidade”. [5]


Seguindo a mesma linha de raciocínio, Pierre Ansart complementa quando aduz que “o pluralismo, enquanto ‘multiplicidade dos possíveis’, provém não só da extensão dos conteúdos ideológicos, dos horizontes sociais e econômicos, mas, sobretudo, das situações de vida e da diversidade de culturas”. [6]


Como se pode perceber a partir das lições apontadas, as necessidades de cada grupo social determinam a essencialidade dos serviços públicos, tendo em análise critérios temporais, espaciais, costumeiros, entre outros. A vida social é caracterizada pelo estado de tensão e harmonia entre os grupos que integram o meio social. À título de exemplificação, observa-se que os serviços de fornecimento de água para quem vive no meio urbano são indispensáveis para o bem-estar, em contrapartida, os ribeirinhos da Amazônia que vivem à margem dos rios, prescindem de tais serviços, principalmente por um determinismo espacial.


Além do mais, a descontinuidade dos serviços essenciais está em posição diametralmente oposta à consecução do bem comum, erigido na Constituição da República como princípio fundamental. Com efeito, torna-se inelutável a plena prestação dessa modalidade de serviços a fim de efetivarem-se os denominados direitos de terceira geração ou direitos de fraternidade que envolve o direito ao meio ambiente harmônico e em equilíbrio que proporcione qualidade de vida, bem-estar e o progresso ao homem.


3. Classificação dos serviços públicos


Quanto à classificação dos serviços públicos, Hely Lopes Meirelles subdivide-os em públicos; de utilidade pública; próprios e impróprios do Estado; administrativos e industriais; e “uti universi” e “uti singuli”, levando-se em consideração a essencialidade, a adequação, a finalidade e os destinatários dos serviços.


Assim, segundo a classificação do renomado autor, serviço público propriamente dito “visa satisfazer necessidades gerais e essenciais da sociedade, para que ela possa subsistir e desenvolver-se como tal”; e serviço de utilidade pública “objetiva facilitar a vida do indivíduo na coletividade, pondo à sua disposição utilidades que lhe proporcionarão mais conforto e bem-estar”. [7]


Entretanto, quanto a primeira e segunda subdivisão é preciso, data venia, discordar desta classificação. Não se vê necessidade em diferenciar serviços públicos e de utilidade pública, haja vista que ambos atendem necessidades gerais e essenciais da sociedade. Não se pode conceber que serviços como transporte coletivo e energia elétrica apenas facilitem a vida do indivíduo na coletividade, como se depreender das lições de Meirelles. Imagine-se o caos que seria nas grandes cidades brasileiras se se considerasse energia elétrica meramente um conforto a mais. Inadmissível é, portanto, tal classificação.


Como já foi analisado alhures, os serviços reconhecidos como essenciais não possuem uma enumeração exaustiva e, conseqüentemente, a classificação dessa espécie de serviços é oscilante, admitindo-se apenas vaga classificação e exemplificação dos serviços assim reconhecidos, sob o fulcro da essencialidade que lhe são inerentes para o bem-estar do homem.


4. A constitucionalidade do art. 5º, § 3º da Lei de Concessões de Serviços Públicos


Faz-se oportuno discorrer sobre a constitucionalidade da lei de Concessões de Serviços Públicos, mais precisamente o art. 5º, § 3º da Lei 8.987/95. Isso se deve ao fato de que há entendimentos que apregoam a inconstitucionalidade do referido parágrafo do artigo desta lei. Dentre os expoentes de tal corrente está Amadeu dos Anjos Vidonho Júnior e Mário Antônio de Paiva que veementemente afirmam:


“A norma em questão quer dizer que a interrupção não se caracteriza como descontinuidade, o que traz flagrante contradição, que após ponderados os interesses coletivos em jogo, pende para a assertiva de que qualquer interrupção rompe com a solução de continuidade do serviço.”


No caso em exame, contudo, com a devida venia, não se pode compreender a coerência desse raciocínio, de modo que não podemos coadunar com tal posicionamento, pois razão não os assiste. A ciência jurídica, enquanto conjunto de regras de convivência, precisa estar em harmonia com os princípios erigidos na Constituição, tendo em vista uma perspectiva unitária, de tal modo que os princípios devem trazer luz à compreensão e positivação da lei, cuja finalidade é zelar pela coesão do ordenamento jurídico. A compreensão das normas jurídicas sem concatená-las harmonicamente com os princípios que as corroboram, é como sobressair à individualidade em prejuízo ao conjunto. Nesse diapasão, Norberto Bobbio assevera que “as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si”. [8] Diante de tais considerações, vê-se que o princípio do interesse público não está dissociado dos demais princípios do direito administrativo.


Em sendo assim, Celso Antônio Bandeira de Melo preleciona com brilhantismo que lhe é peculiar:


“O interesse público – como o interesse do todo, nada mais é do que uma forma, um aspecto, uma função qualificada do interesse das partes, ou seja, não há como se conceber que o interesse público seja contraposto e antinômico ao interesse privado, caso assim fosse, teríamos que rever imediatamente nossa concepção do que seja a função administrativa.” [9]


Por essa razão, não existe separação absoluta entre interesse público e interesse privado, mas sim, a reciprocidade entre ambos. O interesse público não está em posição diametralmente oposta aos interesses dos membros da sociedade. Esclarecido esse ponto, faz-se oportuno trazer à baila o conceito de interesse público segundo preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello que consiste no “interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelos simples fato de o serem.”. [10] Dessarte, o interesse público corresponde aos interesses de natureza individual dimensionados sob uma perspectiva coletiva. Portanto, tem-se por ilação que o interesse público não é o interesse privativo do Estado. O princípio do interesse público convive harmonicamente com os direitos individuais.


No caso em exame, no que tange à interrupção do serviço em situação de emergência ou após prévio aviso quando por inadimplemento do usuário, considerando-se o interesse da coletividade, é preciso redimensioná-la sob o prisma da harmonização entre o interesse da coletividade e os direitos individuais. A consideração do interesse da coletividade que nada mais é do que os interesses pessoais dos indivíduos enquanto membros da sociedade é que deve nortear tal interrupção, não se configurando descontinuidade do serviço. Não há o que se falar em justiça com as próprias mãos, isto é, aplicação da justiça privada. A referida norma jurídica não se encontra em desarmonia com o ordenamento jurídico e tampouco pode se cogitar acerca da inconstitucionalidade do artigo da lei supracitada.


5. A ilegitimidade da interrupção dos serviços públicos essenciais


Indubitavelmente, o inadimplemento de obrigação é e sempre foi, com efeito, reprovável pelo Direito. A legislação consumerista tem como substrato basilar os tradicionais conceitos do direito obrigacional. Nesse sentido, parte da doutrina e jurisprudência se posicionou no sentido de ser legítima a suspensão do serviço público essencial em virtude da falta de pagamento, desde que haja prévia notificação ao consumidor. Assim, a empresa que responde pelo serviço interromperia seu fornecimento após um prazo médio de trinta dias. É, portanto, imprescindível que a prestadora de serviço público essencial notifique o consumidor em momento anterior para tomar qualquer decisão no sentido de suspender o fornecimento. Os que se filiam a corrente doutrinária que defende o corte no fornecimento do serviço essencial na hipótese de inadimplemento sustentam que a gratuidade não é presumível, não havendo obrigação por parte do Poder Público em prestar serviços de forma contínua se o utente não efetua o pagamento do que é devido.


Defende-se, por esta linha doutrinária, que se trata de uma questão de igualdade entre consumidores perante a lei, não sendo legítimo que o usuário que cumpre todas as obrigações usufrua do mesmo tratamento daquele que é inadimplente, salientando-se ainda, o prejuízo que a empresa a que foi outorgada uma concessão do serviço público deverá arcar, gerando efeitos sobre toda a sociedade, servindo de estímulo para que outros cidadãos prossigam com este hábito. Outrossim, argumentam que a mera interrupção do fornecimento dos serviços não expõe ao ridículo, nem submete o consumidor a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça, não havendo contradição com o artigo 42 da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990.


Por outro lado, há a corrente doutrinária que adota uma posição oblíqua à interrupção do serviço público essencial por inadimplemento da obrigação. Para estes, o tolhimento de serviço público essencial em virtude de inadimplemento deverá ser executado mediante ordem judicial e por intermédio de uma ação de cobrança em juízo. De modo geral, os usuários destes serviços sofrerão cortes no fornecimento quando se tratar de autorização judicial concedida à concessionária responsável pela prestação do serviço. Denota-se que a simples inocorrência de pagamento não gera legalidade para suspender a prestação do serviço essencial, senão quando se efetuar através de meios judiciais.


Sopesando-se os direitos do consumidor que se beneficia do serviço essencial, cujos direitos são protegidos constitucionalmente, e, por outro viés, o direito de crédito da concessionária, vê-se que este último é um bem de menor importância em relação ao primeiro, devido ao caráter de essencialidade ínsito naqueles serviços públicos. Não ocorre, porém, exoneração do inadimplente da sua dívida, pois o que se protege é a continuidade do serviço público essencial. A lei não pode servir de escudo para práticas reprováveis no direito como é a hipótese de inadimplemento de obrigações, sobretudo, face àqueles que não pagam seus débitos por agirem de má-fé, em detrimento daqueles que realmente não dispõem de condições financeiras para quitar suas contas. Mas também não se pode dar azo ao exercício arbitrário das próprias razões como forma de justiça privada ao anuir que as concessionárias arbitrariamente suspendam o fornecimento destes serviços. Deve-se, portanto, zelar pelo senso de justiça e cuidado ao apreciar de forma pormenorizada questões de tão grande monta.


Sob o lume das idéias expostas, faz-se oportuno trazer à baila decisão do Tribunal de Justiça de Rondônia respeitante ao corte no fornecimento de energia elétrica:


DANO MORAL. CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA. DÉBITO EM ATRASO.


Responde pelos danos gerados pela sua conduta a concessionária de serviço público que efetua corte no fornecimento de energia como meio de coagir o consumidor a pagar débito em atraso, visto que existem outros meios para buscar, legitimamente, o adimplemento do eventual débito. (Apelação Cível nº. 100.019.2003.001236-6. 1ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça de RO, Relator: Des. Gabriel Marques de Carvalho, julgado em 21/02/2006).


6. Relação de serviços essenciais à luz da Lei. 7.783/89


Faz-se importante trazer à colação alguns serviços públicos admitidos pela Lei 7.783/89 como de natureza essencial. Saliente-se, pois, que tal enumeração não é peremptória, sendo apenas um rol exemplificativo.


6.1. Água


É flagrante que a água é um bem exaurível e que a manutenção da vida humana está condicionada a sua preservação. Faz-se mister, portanto, a classificação deste bem dentre os serviços públicos essenciais, regulamentando-se o seu uso correto para a manutenção do bem-estar social.


A água está juridicamente regulada pelo Código de Águas, Decreto nº. 24.643, de 1934. A competência privativa para legislar sobre água é da União conforme artigo 22, IV da Constituição Federal. É de competência privativa da União legislar sobre a água, conforme aduz o art. 22, IV da Constituição Federal de 1988. Outrossim, também está presente na enumeração do art. 10, I da Lei 7.783/89 e portarias ministeriais. Ao analisar essa questão, Sílvio de Salvo Venosa observa com a argúcia que lhe é peculiar:


“A água deve ser vista como bem de domínio público e recurso natural de valor econômico, segundo o art. 1º da Lei nº. 9.433/97. A captação, tratamento e distribuição devem ser remunerados. (…) Há todo um aparato jurídico que deve ser levado em conta no exame do direito das águas, não só privatístico, nosso campo de estudo, como também administrativo e penal de amplo aspecto.” [11]


Nesse ínterim, avulta de importância transcrever acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, acerca da suspensão no fornecimento de água, in verbis:


132011651. ­ MANDADO DE SEGURANÇA. ­ CORTE DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. ­ ABUSIVIDADE. ­ SERVIÇO ESSENCIAL. ­ O fornecimento de água é serviço essencial que deve ser contínuo e não pode sofrer corte, ainda que haja falta de pagamento. O débito deve ser cobrado pelas vias judiciais, impondo-se reconhecer o direito líquido e certo do impetrante em receber o fornecimento de água, posto ser-lhe necessário à própria vida. Apelação não provida. Unânime. (TJDF ­ APC 19990110461302 ­ DF ­ 1ª T.Cív. ­ Relª Desª Maria Beatriz Parrilha ­ DJU 14.08.2002 ­ p. 40).


6.2. Energia elétrica


A exploração direta ou mediante autorização, concessão ou permissão dos serviços e instalações de energia elétrica é de competência da União, consoante o art. 21, XII, alínea b da Constituição Federal e está presente no rol do art. 10 da Lei 7.783/89 e também em portarias ministeriais.


Há diversos doutrinadores que argúem em favor da legitimidade do corte de energia elétrica sob o fundamento de que a continuidade deste serviço prevista na legislação consumerista não é absoluta. Nesse diapasão, existem posicionamentos jurisprudenciais que admitem o corte por atraso de pagamento, in verbis:


FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INADIMPLEMENTO DO USUÁRIO. POSSIBILIDADE DE INTERRUPÇÃO. O posicionamento predominante em nosso Tribunal, acorde com a orientação firmada pela 1ª Seção do E. STJ, fixa-se no sentido da admissibilidade do corte do fornecimento de serviço público essencial por inadimplemento do usuário, na forma do inciso II do § 3º do artigo 6º da Lei nº. 8.987/95. Verbete 83 da Súmula do TJERJ. A privação de energia elétrica ocorreu em decorrência do atraso sistemático no pagamento, levando à conclusão de que a própria apelante foi a responsável pela produção do evento danoso. Aplicação do art. 557, caput, do CPC. Recurso a que se nega seguimento. (Apelação Cível nº. 2008.001.20376, 5ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RJ, Relator: Des. Suimei Meira Cavalieri, julgado em 15/05/2008).


Neste mesmo sentido, posiciona-se o STJ, no sentido de ser lícita a interrupção de energia elétrica em caso de inadimplência:


ADMINISTRATIVO – FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA – FALTA DE PAGAMENTO – CORTE – MUNICÍPIO COMO CONSUMIDOR. 1. A Primeira Seção e o STJ, pela sua Corte Especial têm posição firmada em múltiplos precedentes, entendendo que é legal a suspensão do serviço de fornecimento de energia elétrica em decorrência do inadimplemento do consumidor. 2. O mesmo entendimento se estende à hipótese de figurar como consumidor pessoa jurídica de direito público, com a preservação apenas das unidades e serviços públicos cuja paralisação é inadmissível. 3. Legalidade do corte para as praças, ruas, ginásios de esporte, repartições públicas, etc. 4. Embargos de divergência providos. – STJ; EREsp nº. 721119 / RS; 1ª Seção; Min. Eliana Calmon.
Em sentido contrário, há o posicionamento que considera ilegítima a interrupção de energia elétrica por ausência de quitação:

SERVIÇO PÚBLICO – ENERGIA ELÉTRICA – SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO A USUÁRIO INADIMPLENTE – Abusividade, pois trata-se de serviço essencial – Ordenamento jurídico pátrio que coloca à disposição da concessionária outros meios para a cobrança de seu débito – Voto vencido. EMENTA DA REDAÇÃO: A utilização de energia elétrica é essencial à vida humana, razão pela qual tem-se como abusivo o corte do fornecimento a usuário inadimplente, pois o ordenamento jurídico coloca à disposição da concessionária do serviço público, outros meios para cobrança de seu crédito. (TACivSP – 1ª Câm. – Rel. designado Plínio Tadeu do Amaral – j. 29.05.2001 – RT – 784/275).


DANO MORAL. CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA. DÉBITO EM ATRASO.


Responde pelos danos gerados pela sua conduta a concessionária de serviço público que efetua corte no fornecimento de energia como meio de coagir o consumidor a pagar débito em atraso, visto que existem outros meios para buscar, legitimamente, o adimplemento do eventual débito. (Apelação Cível nº. 100.019.2003.001236-6. 1ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça de RO, Relator: Des. Gabriel Marques de Carvalho, julgado em 21/02/2006).


6.3. Telecomunicações


É de competência privativa da União a atividade legislativa e a exploração direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, dos serviços de telecomunicações, conforme dispõe o art. 21, XI e 22, IV da Constituição Federal. Há previsão legal no art. 10 da Lei 7.783/89 e portarias ministeriais. A Lei 9.472/97 que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, criou a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL como órgão regulador das telecomunicações.


Ademais, por se inserir na categoria de serviços considerados essenciais, deve ser prestada de forma contínua e ininterrupta. Faz-se necessário transcrever jurisprudência pertinente à interrupção da prestação de serviço de telefonia fixa cujo teor veda a interrupção do serviço sob a alegação de inadimplemento:


ADMINISTRATIVO. TELECOMUNICAÇÃO. INTERRUPÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TELEFONIA FIXA DE ÓRGÃO DO SERVIÇO PÚBLICO. INADIMPLÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. LEI 8.987/95, ART. 6º, CAPUT E § 3º, II. INTERESSE DA COLETIVIDADE. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. RESOLUÇÃO DA ANATEL 85/98, ART. 25. – LEI 8.987/1995, ART. 6º.


Em face do disposto na parte final do inc. II do § 3º do art. 6º da Lei 8.987/95, que manda considerar o interesse da coletividade, não se legitima a interrupção do serviço de telefonia fixa na sede de órgão do serviço público (Delegacia de Polícia Federal), em razão de inadimplência do usuário. Ademais, a Res. 85/98, da ANATEL, que regulamenta o Serviço Telefônico Fixo Comutado, em seu art. 25, prevê, expressamente, que é vedado à prestadora interromper a execução do serviço alegando o inadimplemento de qualquer obrigação por parte da Agência ou da União. (TRF 1ª REGIÃO – Ag. de Inst. 3.178/02-8 – BA – 5ª T.  Rel.: Des. Feder Antônio Ezequiel da Silva. J. em 24/02/2003 – 07/04/2003


7. Conclusão


Inobstante não se alcance o conceito de serviços públicos essenciais, irresistível é que tais serviços devem ser prestados de forma contínua e ininterrupta. A Carta Política brasileira proclamou em seu texto a valoração da figura do consumidor enquanto titular de direitos e garantias constitucionais fundamentais.


Em face das considerações esposadas, tem-se por ilação que a consecução da cidadania e dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, III/CF) está umbilicalmente ligada a continuidade destes serviços, afigurando-se como um alicerce inatacável. Merece ser repisado que os serviços públicos satisfazem diretamente aos anseios da sociedade, constituindo na pedra angular para a consecução do pleno desenvolvimento da sociedade contemporânea, fomentando o bem comum e a justiça social.


Portanto, deve ficar claro que as empresas responsáveis pela prestação dos serviços essenciais possuem a fumaça do bom direito de cobrar os valores que lhes são devidos, haja vista que é reprovável para o direito o inadimplemento de obrigações. Entretanto, o que não se pode condescender é que este exercício regular de direito seja realizado de forma arbitrária sem o uso dos meios legais disponíveis. É inadmissível o retrocesso à justiça pelas próprias mãos, ferindo a letra e o espírito da Constituição da República.


O serviço público essencial tem a finalidade primária de servir o público e, apenas em segundo plano, o objetivo de produzir rendimentos financeiros para o fornecedor. Assim, depreende-se que o corte por inadimplemento é ilegal. Assim, devem ser reprimidos todos os abusos praticados contra os cidadãos que muitas vezes vêem tolhidos os seus direitos. O exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça devem ser assegurados como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social como preconiza o preâmbulo da Constituição.


 


Bibliografia

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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa – Omega. 3. ed. 2001, p. 172.

 

Notas:

[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 21. ed. 2007, p. 16.

[2] SARDI JUNIOR, João. Dos serviços públicos essenciais quanto à continuidade de sua prestação frente à legislação vigente. Disponível na internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 24 de março de 2008. 

[3] SILVA, Vinícius de Oliveira e. A continuidade dos serviços públicos essenciais e a ilegalidade da sua suspensão. Disponível em: http://www.geocities.com/osmarlopes/InterrupServPub.html.

[4] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 33ª ed. 2007, p. 330. 

[5] WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa – Omega. 3. ed. 2001, p. 172.

[6] Apud WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico… Op. cit., p. 172.

[7] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 33ª ed. 2007, p. 332.

[8] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 9ª ed., Brasília, UNB, 1997, p. 19.

[9] Apud BERCLAZ, Márcio Soares. Algumas considerações sobre o princípio do interesse público no âmbito do Direito Administrativo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3545>. Acesso em: 23 maio 2008.

[10] Apud BERCLAZ, Márcio Soares. Algumas considerações sobre o princípio do interesse público no âmbito do Direito Administrativo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3545>. Acesso em: 23 maio 2008.

[11] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 287.


Informações Sobre o Autor

Wesley de Lima

Acadêmico do curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia – UNIR


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