As iatrogenias no contexto da responsabilidade civil médica e do direito do consumidor

Resumo: o ato iatrogênico é aquele que, inexoravelmente, causará um dano ao paciente, enquadrando-se no conceito de serviço de periculosidade inerente.Sendo um princípio fundamental do direito do consumidor, o dever de transparência e do consentimento informado é a linha divisória entre a existência, ou não, de defeito no serviço médico.  Outrossim, há situações em que a iatrogenia pode se dar como intercorrência em que não há propriamente uma previsão a respeito, mas há um prévio conhecimento ditado pelo estado da arte, que obriga o facultativo a uma postura proativa e solerte no intuito de minimizar os danos que dela advêm. Neste caso, o ato iatrogênico se aproxima do instituto do fortuito interno, que se caracteriza pelo dever de previsão daquele que se dedica a uma atividade, e traz responsabilidade civil. Se assim não fizer, poderá responder pelo prejuízo ou pela perda da chance de evitar um dano. Já a iatrogenia absolutamente imprevisível, não gerará responsabilidade civil, posto amoldar-se à categoria do fortuito externo.

Palavras-chave: direito do consumidor, responsabilidade civil, ato médico, excludentes da responsabilidade.

Abstract:iatrogenic act is one that inexorably cause a patient harm, framing on the concept of inherent dangerousness service. Being a principle of consumer law, the duty of disclosure and informed consent is the dividing line between the existence or not of defective medical service. Moreover, there are situations where the iatrogenic can occur as complications where there is hardly a prediction about, but there is a prior knowledge dictated by the state of the art, which requires the optional proactive and quickly posture in order to minimize damage that they entail. In this case, the iatrogenic act approaches the internal fortuitous institute, which is characterized by predicting that duty that is dedicated to an activity, and bring civil liability. Failure to do so may account for the loss of chance of avoiding injury. Already absolutely unpredictable iatrogenic, will not generate liability, post conform to the category of external fortuitous.

Keywords:consumerlaw, civil responsability, medical act, exclusive responsibility.

Sumário: 1. Introdução – 2. O ato iatrogênico – 3. Considerações sobre a responsabilidade civil médica e o Direito do Consumidor – 4. O serviço defeituoso no Código de Defesa do Consumidor e o ato iatrogênico – 5. A iatrogenia prevista – 6. A necessidade da transparência e do consentimento informado do paciente – 7. O ato iatrogênico intercorrente não previsto, mas previsível – 7.1. Fortuito interno para fatos previsíveis- 7.2.Fortuito externo para fatos imprevisíveis – Conclusão – 8. Bibliografia.

1. Introdução

Este artigo tem por objetivo analisar o ato iatrogênico no bojo da responsabilidade civil médica. O interesse pelo tema se dá por ser uma situação recorrente e pouco explorada pela doutrina. Para tanto, após algumas considerações gerais, iniciar-se-á com uma explanação do que seja ato iatrogênico, e sua subsunção à disciplina do fato do serviço, abordando a necessidade de se obter o consentimento informado. Após, o trabalho se bifurca para analisar a iatrogenia previsível e imprevisível, bem como se estarão presentes excludentes da responsabilidade civil aplicáveis ao caso.

2. O ato iatrogênico

O ato iatrogênico é o dano que deve ser causado ao paciente. Causa estranheza esta afirmação porque a palavra “dano”,em geral, remete a uma ilicitude, ou a um inexorável dever de reparar. Porém, no caso do ato iatrogênico, não há necessariamente antijuridicidade. Explica-se. Ao se submeter a uma intervenção cirúrgica, ou a um exame invasivo, inevitavelmente, o paciente terá uma iatrogenia, pois esta é qualquer lesão provocada por ato médico durante os procedimentos cirúrgicos ou outros tratamentos.

Assim, o ato iatrogênico é inerente às cirurgias e a alguns exames ou tratamentos médicos. No entanto, a iatrogenia pode ser prevista, previsível ou imprevisível. No primeiro caso já está ínsita ao tipo de intervenção, como ocorre com as incisões necessárias ao acesso a uma cavidade do paciente. No segundo caso, embora já catalogada pela doutrina médica, não foi prevista porque não será uma consequência usual e imperativa do procedimento.Por fim, há as iatrogenias totalmente imprevisíveis. Adiante serão analisadas as três situações e as implicações no campo da responsabilidade civil.

3. Considerações sobre a responsabilidade civil médica e o Direito do Consumidor

As bases legais para a responsabilização médica estão no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Na qualidade de profissional liberal, o médico só responde quando laborar com culpa. Isso decorre de previsão expressa no § 4.º do art. 14[1] da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, bem como do dispositivo do art. 951[2] do Código Civil.

Mesmo quando há a intermediação de uma empresa (clínica ou hospital)  na prestação do serviço, pela qual a contratação se dá entre esta e o consumidor, mantém-se a exigência da prova da culpa do profissional liberal que esteja laborando em regime de subordinação àquela empresa.

É a hipótese em que o consumidor contrata com a pessoa jurídica, cujo serviço é prestado diretamente por um profissional liberal – o médico. Se houver um defeito no serviço prestado, como será a responsabilidade civil? Objetiva ou subjetiva? Instala-se aqui uma situação sui generis que a doutrina tem apelidado de responsabilidade heterogênea, imprópria ou híbrida(FARIAS, ROSENVALD, & BRAGA NETTO, 2015).É imprópria porque há mixagem dos dois tipos de responsabilidade. A empresa responde objetivamente, mas, para tanto, é necessário detectar a culpa do médico que atuou diretamente com o paciente. Faz-se a discussão de culpa no antecedente – ato do médico – para responsabilizar objetivamentea clínica ou hospital.

Assim, embora a empresa prestadora de serviços, com quem o consumidor contratou, responda objetivamente – conforme prevê o art. 14 caput do CDC -, é necessário perpassar pela prova da culpa do profissional liberal que prestara o serviço ao paciente. Neste sentido são dois arestos paradigmáticos do Superior Tribunal de Justiça, com grifos nossos:

“CIVIL. INDENIZAÇÃO. MORTE. CULPA. MÉDICOS. AFASTAMENTO. CONDENAÇÃO. HOSPITAL. RESPONSABILIDADE. OBJETIVA. IMPOSSIBILIDADE. 1 – A responsabilidade dos hospitais, no que tange à atuação técnico-profissional dos médicos que neles atuam ou a eles sejam ligados por convênio, é subjetiva, ou seja, dependente da comprovação de culpa dos prepostos, presumindo-se a dos preponentes. […] 3 – O art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia), etc e não aos serviços técnicos-profissionais dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa). 4 – Recurso especial conhecido e provido para julgar improcedente o pedido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 258389/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2005, DJ 22/08/2005, p. 275)” .

E ainda:

“RECURSO ESPECIAL: 1) RESPONSABILIDADE CIVIL – HOSPITAL – DANOS MATERIAIS E MORAIS – ERRO DE DIAGNÓSTICO DE SEU PLANTONISTA – OMISSÃO DE DILIGÊNCIA DO ATENDENTE – APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR; 2) HOSPITAL –  RESPONSABILIDADE – CULPA DE PLANTONISTA ATENDENTE, INTEGRANTE DO CORPO CLÍNICO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO HOSPITAL ANTE A CULPA DE SEU PROFISSIONAL; 3) MÉDICO – ERRO DE DIAGNÓSTICO EM PLANTÃO – CULPA SUBJETIVA – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA APLICÁVEL – 4) ACÓRDÃO QUE RECONHECE CULPA DIANTE DA ANÁLISE DA PROVA – IMPOSSIBILIDADE DE REAPRECIAÇÃO POR ESTE TRIBUNAL – SÚMULA 7/STJ. 1.- Serviços de atendimento médico-hospitalar em hospital de emergência são sujeitos ao Código de Defesa do Consumidor. 2.- A responsabilidade do hospital é objetiva quanto à atividade de seu profissional plantonista (CDC, art. 14), de modo que dispensada demonstração da culpa do hospital relativamente a atos lesivos decorrentes de culpa de médico integrante de seu corpo clínico no atendimento. 3.- A responsabilidade de médico atendente em hospital é subjetiva, necessitando de demonstração pelo lesado, mas aplicável a regra de inversão do ônus da prova (CDC. art. 6º, VIII). 4.- A verificação da culpa de médico demanda necessariamente o revolvimento do conjunto fático-probatório da causa, de modo que não pode ser objeto de análise por este Tribunal (Súmula 7/STJ). 5.- Recurso Especial do hospital improvido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 696284/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/12/2009, DJe 18/12/2009)”

Malgrado haja quem defenda a objetivação excepcional da responsabilidade civil médica(BENACCHIO, 2009), a culpa é necessária e indispensável, juntamente com o nexo de causalidade e o dano.

Para a apreciação da culpa devem ser verificados dois elementos importantíssimos: a previsibilidade do resultado danoso e a comparação com o “tipo padrão”.

É um ritual que se inicia com a premissa de que o indigitado – aquele a quem se aponta como responsável -, não quer o resultado danoso, mas responderá por ele porque há um dever geral de previsão imposto a todos. Este dever de prever determina que é necessário fazer um prognóstico dos resultados das ações e omissões, para evitar os que causem prejuízos a outrem. Se o resultado danoso era previsível e não foi previsto, haverá indícios de que se tenha agido com culpa. Se não for previsível, estar-se-á diante de um caso fortuito. 

Após a certificação  de que o resultado poderia ter sido antevisto, e não o foi, verifica-se como teria agido, naquela situação e nas mesmas condições, o homem médio, ou homem padrão.

Em se tratando de atividade médica, o tipo padrão a que se recorrerá para cotejar com a atuação do indigitado é a de um “bom médico”. Este é chamado de tipo padrão porque é um ser fictício em que se espelha para determinar a conduta ideal. Esta comparação com o tipo padrão, nos dizeres de Aguiar Dias(1995, p. 116), é chamada de “apreciação da culpa em abstrato”.

Nesta fase da investigação pergunta-se como teria agido, na mesma situação, o “bom médico”. Se a resposta indicar discrepância entre a atitude deste e do indigitado, haverá culpa por parte do facultativo.

Por óbvio que, no mais das vezes, a análise comparativa do indigitado com a do “tipo padrão” não pode ser feita senão por um outro médico, aquele que, normalmente, funcionará como perito em uma ação judicial.

Sendo assim, há que se contextualizar a iatrogenia neste cenário de danos previstos, previsíveis, e imprevistos iniciando pela análise da segurança do serviço.

4. O serviço defeituoso no Código de Defesa do Consumidor e o ato iatrogênico

O Código de Defesa do Consumidor garante, como um direito básico, a proteção da saúde e patrimônio dos consumidores, dispondo, nosarts. 6.º I[3], e 8º.[4] que os produtos e serviços não acarretarão riscos à saúde ou à segurança do consumidor, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição.

Os serviços que ocasionam ou podemtrazer danos à saúde dos consumidores são classificados de perigosos. Porém, nem todos os serviços perigosos serão defeituosos. Neste ponto é necessário fazer uma divisão para a compreensão do tema.

Há dois tipos de periculosidade nos produtos e serviços: a inerente e a adquirida.

A periculosidade inerente é a que faz parte da natureza do produto ou serviço, não há como torná-lo inofensivo, sob pena de não serem adequados aos fins a que se destinam. Estes produtos ou serviços precisam ser perigosos para serem funcionais. Basta pensar nos medicamentos, inseticidas, utilitários cortantes, cirurgias etc.

Todavia, o simples fato de ser perigoso, não significa ser defeituoso. Por este motivo, se alguém se corta com uma faca de cozinha não pode responsabilizar o fabricante. O art. 8.º do CDC diz que os produtos ou serviços não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, mas ressalva: “exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição […]”

A hipótese de responsabilização do fornecedor de produtos ou serviços de periculosidade inerente é bastante restrita, mas existe. Haverá responsabilidade civil quando for constatado um defeito no fornecimento.

Este defeitose dá quando o grau de periculosidade supera a previsibilidade,[5] e por falta ou insuficiência de informações necessárias ao consumidor que os manejará.

O Código de Defesa do Consumidor enfatiza ao máximo o dever de informar. No artigo 8.º faz referência à obrigação de “[…] dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.” Mas não se contenta, e frisa no art. 9.º: “[…]deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.”

A falta, insuficiência, ou inadequação de informações sobre a periculosidade tornam o produto ou serviço defeituosos. O alto grau de nocividade, aquele que supera a previsibilidade do perigo, também evidenciará um defeito. Se houver um acidente de consumo cuja causa tenha sido este defeito, o fornecedor responderá.

Cumpre agora estudarmos a periculosidade adquirida. Trata-se de produtos ou serviços que não poderiam ser nocivos ou apresentar riscos ao consumidor. Deveriam ser inofensivos. Todavia, em razão de um defeito, adquirem periculosidade. Por exemplo: não se espera que os alimentos, os brinquedos, os veículos, possam trazer riscos à saúde ou à segurança do consumidor. Ocorre que, por um problema de fabricação, projeto, construção, montagem, fórmula, manipulação, apresentação, acabam causando danos a quem deles se utiliza. É para casos assim que o Código de Defesa do Consumidor impõe a realização do recall[6] .O fornecedor deverá comunicar o fato às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.

Quando um consumidor sofrer danos ocasionados por um defeito, ocorrerá um acidente de consumo – também chamado de fato do produto ou serviço – que abre ensancha à responsabilização do fornecedor.

Vale lembrar que o defeito pode decorrer da falta ou insuficiência de informações, da periculosidade exacerbada, ou de uma inadequação em seu processo de produção/fornecimento.

Como já visto acima, se o fornecedor for profissional liberal, a responsabilidade pelos defeitos do serviço é subjetiva.

O serviço médico amolda-se à categoria de periculosidade inerente. É impossível dissociar o perigo da cirurgia e de certos exames invasivos. Por mais simples que seja o procedimento, implica riscos que são ínsitos ao serviço.

5. A iatrogenia prevista

As iatrogenias são vistas pela medicina como risco inseparável de todo e qualquer procedimento. Desde a administração de um medicamento até a mais descomplicada  cirurgia pode resultar em lesão iatrogênica. O risco existe, e não há como contorná-lo porque não fazer o procedimento é mais perigoso do que submeter-se a ele.

A princípio, nenhum médico responderá pelo ato iatrogênico previsível e necessário, pois sua conformação se amolda à excludente do estado de necessidade.

Agir em estado de necessidade é sacrificar um interesse, para salvar outro de igual ou superior valor jurídico. No entanto, para que se lhe valha a escusa é necessário que o perigo a que foi exposto o bem tutelado não tenha sido provocado pelo agente.

Assim, aplicando-se tais elementos ao ato iatrogênico previsto, pode-se afirmar que o médico precisa causar um dano para salvaguardar um bem maior, que é a vida, a integridade e a saúde do paciente.

Despiciendo dizer que não foi o médico o causador do perigo que ensejou a lesão iatrogênica. O risco não é imposto pelo profissional, mas sim decorrente do estado de saúde do enfermo. Cabe ao médico tão somente avaliar os riscos da intervenção na contextura das informações clínicas do seu paciente. 

Sobre a lesão iatrogênica, Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 261) traçao seguinte entendimento:

“não acarreta a responsabilidade civil do médico a ‘iatrogenia’,  expressão usada para indicar o dano que é causado pelo médico, ou seja, o prejuízo provocado por ato médico em pessoas sadias ou doentes, cujos transtornos são imprevisíveis ou inesperados”.

Na mesma esteira é Marcelo Benacchio(2009, p. 336)que pontua:

“as consequências danosas oriundas do próprio tratamento preconizado pela ciência médica, apesar da causalidade com a atuação do médico, não podem ser compreendidas como erro médico em virtude de serem decorrências das vicissitudes do próprio corpo humano e dos limites da ciência que persegue seu tratamento, assim as reações ao tratamento, cicatrizes, diminuição ou perda de funções, advindas do ato médico propedêutico ou terapêutico visando ao benefício do paciente, são denominadas lesões iatrogênicas, não gerando responsabilidade civil do médico por serem causadas pela atuação correta do médico do ponto de vista da ciência”.

Daí a natural aplicação da excludente de responsabilidade civil do estado de necessidade.

Neste passo, a iatrogenia somente poderia trazer responsabilidade civil ao médico se este não tivesse cumprido com seu dever de informar o paciente acerca dos riscos próprios a toda cirurgia.

6. A necessidade da transparência e do consentimento informado do paciente

Um dos princípios fundantes do sistema protetivo consumerista é o da transparência. Com espeque na Constituição Federal – matriz do direito do consumidor -, só se obtém a transparência com a ampla informação. A Constituição Federal cuidou de prever o direito fundamental à informação no inciso XIV[7] do art. 5.º, e também no § 5º do art. 150. Qualquer estudioso, que já tenha se dedicado a uma simples leitura do Código de Defesa do Consumidor, deve ter percebido a imensa preocupação com a transparência e informação que devem ser garantidas aos consumidores.

No caso do serviço perigoso, já se abordou neste trabalho, que a informação é o marco divisório entre a existência de defeito, ou não. Ou seja, para os serviços naturalmente perigosos, exige-se que sejam prestadas as informações suficientes e adequadas sobre sua fruição e riscos.

Neste traçado, a atividade médica também passa pelo crivo da informação como garantia da transparência. Tanto assim que Miguel Kfouri Neto(2010, p. 40) observou que têm assumido grande importância as causas associadas ao consentimento informado. O autor define o consentimento informado como sendo:

“o comportamento mediante o qual  se autoriza a alguém determinada atuação. No caso do consentimento para o ato médico, uma atuação na esfera físico-psíquica do paciente, com o propósito de melhoria da saúde do próprio enfermo ou de terceiro”(KFOURI NETO, 2010, p. 41)

Assim, especialmente nos casos em que há alternativas diferenciadas ao paciente, como, por exemplo, um tratamento não cirúrgico, é de suma importância a informação e a coleta de seu assentimento.

Lorenzetti, apud Miguel Kfouri Neto(2010, p. 43), afirma que a ausência do consentimento pode constituir-se em lesão autônoma. Porém, é necessário estabelecer-se o liame entre a omissão no dever de informar com o dano sofrido pelo paciente[8].

“Quanto ao nexo causal, a vítima deve demonstrar que o dano provém de um risco acerca do qual deveria ter sido avisada, a fim de deliberar sobre a aceitação ou não do tratamento. Porém, caso o prejuízo que o paciente sofreria, recusando o tratamento, fosse maior que o dano decorrente da intervenção, a questão da falta de informação resultaria sem importância”.

Por mais que a alguns pareça óbvia a consequência iatrogênica, é importante que o paciente, ou seu responsável, sejam cientificados dos efeitos já conhecidos do procedimento, pois, em última análise, cabe a este, quando possível, exercer autonomamente o direito de submeter-se, ou não, aos danos iatrogênicos ínsitos ao tratamento proposto.

Com isso, o que se conclui é que o ato iatrogênico previsto e cientificado ao paciente não trará responsabilidade civil ao médico, por se amoldar a um fato de estado de necessidade.

Para prosseguir com os estudos, vejamos posicionamento jurisprudencial. No julgado abaixo, do Superior Tribunal de Justiça, a paciente teve rompimento da bexiga durante a cesariana. Extrai-se do Relatório que a perícia constatou a previsibilidade deste tipo de dano, devido à proximidade do útero e da bexiga. No entanto, aquela Corte Superior, em suas decisões, parte do pressuposto genérico de que nenhum médico responderá pelo dano iatrogênico. Há recortes e grifo nosso.

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. CESARIANA. ROMPIMENTO DA BEXIGA. ERRO MÉDICO NÃO CARACTERIZADO. REVISÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.7/STJ. […] 2. A instância de origem, com esteio nas circunstâncias fático-probatórias da causa e nas conclusões da perícia realizada nos autos, entendeu que "nada há nos autos que indique atendimento inadequado ou tardio, ou mesmo falha da equipe médica, seja no diagnóstico, seja no tratamento fornecido. O caso é chamado dano iatrogênico". Acrescentou que o apelante não logrou êxito em caracterizar qualquer erro no tratamento, além de que o resultado da prova pericial lhe é inteiramente desfavorável. A alteração de tal conclusão encontra óbice na Súmula 07/STJ. 3. Agravo regimental não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1323913/ES, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/11/2012, DJe 26/11/2012)”

No item que segue, veremos que nem sempre o ato iatrogênico foi previsto, mas era previsível. A diferença entre o previsto e o previsível é que o primeiro já é certo que ocorrerá, pois é próprio do ato cirúrgico. O segundo é possível que ocorra, mas não há certeza e não é inerente ao procedimento. Utilizando como exemplo o julgado acima compilado, podemos dizer que a incisão para a cesariana é prevista, e o rompimento da bexiga é previsível, conforme pontuou a perícia. Havendo previsibilidade a iatrogenia só será excludente da responsabilidade civil do facultativo se ele for solerte o bastante para evitar outros danos que dela decorrerão.

7. O ato iatrogênico intercorrente não previsto, masprevisível

Agora cabe enfrentar situação ainda mais complexa relacionada à iatrogenia, conjugando-a com os institutos da responsabilidade civil.

Na carona do caso acima ementado, proveniente de julgado do STJ, não podemos ignorar que há casos em que a iatrogeniase ajusta a uma intercorrência, ou seja, um acontecimento variante, mas não necessariamente imprevisível. Em situações como esta, que podem ocorrer durante uma cirurgia ou um exame invasivo, costuma-se apontar o médico como culpado pelo fato. 

Para contextualizar melhor este acontecimento, é forçoso pensar em atos iatrogênicos previsíveis, mas não previstos pelo médico: lesões na área examinada quando é necessário explorar com cânulas e câmeras dentro de cavidades (colonoscopia, endoscopia, cateterismo, etc.);danos a órgãos vizinhos ao que está sendo operado, em razão de sua proximidade; de rompimento acidental de artérias, e assim por diante.

São eventos em que a iatrogenia não é inerente ao procedimento. Mas, se a probabilidade de se provocar o ato iatrogênico já está catalogada pela literatura médica, será considerado previsível. É o que ocorreu no excerto acima citado. Há prévia orientação literária a respeito da proximidade dos órgãos envolvidos, com a possibilidade de se provocar danos na bexiga, quando de procedimento cirúrgico no útero.

Nem todos os pacientes têm a mesma conformação morfológica, o que alerta para o maior risco de lesão iatrogênica descrito na literatura. Então, o que deve fazer o cirurgião quando percebe a presença de iatrogenia?  Da obra de Jorge Isac Filho(2001, p. 342)de literatura médica extrai-se:

“O cirurgião deve estar continuamente atento à possibilidade de que as coisas não ocorram exatamente como o planejado. Complicações podem ocorrer a qualquer momento, sejam ligadas ao procedimento anestésico, ao acesso à cavidade abdominal […]; o importante é que sejam reconhecidas imediatamente e tratadas com eficiência. […] Se o diagnóstico for estabelecido no intra-operatório, o tratamento será imediatamente realizado e o prognóstico será melhor. Infelizmente, não é o que ocorre na maioria das vezes, sendo o diagnóstico feito dentro das duas primeiras semanas após a operação”.

É importante frisar que, por vezes, mesmo previsível, ainda é inevitável.Contudo, embora a lesão seja inevitável, é possível – e por isso exigível – que se tomem providências rápidas para reduzir, ou até mesmo aniquilar, suas consequências danosas. O médico poderá ser responsabilizado por não ter tomado as medidas necessárias à minimização de seu dano. Se é possível detectar durante o procedimento, cabe ao profissional adotar, imediatamente, providências para evitar ou abrandar o dano já efetivadoSe assim não proceder, poderá responder pela perda da chance de evitar um prejuízo maior.

No julgado ementado abaixo, do Tribunal de Justiça de São Paulo, o facultativo respondeu civilmente por dois motivos: a) pela orientação insuficiente anterior à cirurgia; b) por não tomar providências logo que verificou a existência de uma estenose de faringe, possivelmente provocada por retirada excessiva de tecido do palato pelo próprio cirurgião.

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. IMPRUDÊNCIA CONFIGURADA.  AUSÊNCIA DE ORIENTAÇÃO QUANTO À NECESSIDADE DE REDUÇÃO DE PESO NO ATO DA PRIMEIRA INTERVENÇÃO.  ADEMAIS, MÉDICO QUE DEIXOU DE DOCUMENTAR SUFICIENTEMENTE O PRONTUÁRIO DA REQUERENTE REFERENTE AO PRIMEIRO PROCEDIMENTO CIRÚRGICO EFETUADO, QUE PODERIA ELUCIDAR QUAL FOI A CAUSA ESTENOSE DE FARINGE – (ORGÂNICA OU RETIRADA EXCESSIVA DE TECIDO DO PALATO) – AUTORA QUE APRESENTA SEQUELAS CONSISTENTES EM INSUFICIÊNCIA VELOFARÍNGEA (FIBROSE NA PAREDE LATERAL DO PALATO QUE DIFICULTA O FECHAMENTO COMPLETO DA FARINGE, IMPEDINDO DRASTICAMENTE A DEGLUTIÇÃO DE ALIMENTO E PROVOCANDO REFLUXO DE LÍQUIDOS). SENTENÇA MANTIDA. APLICAÇÃO DO ART. 252 DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. RECURSO DESPROVIDO. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Relator(a): Coelho Mendes; Comarca: São Carlos; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 19/02/2013; Data de registro: 19/02/2013; Outros números: 5550904700)”

Colhe-se da ementa que há dúvidas sobre a causa do dano posterior à cirurgia – se morfológico e próprio da paciente, ou por imprudência do médico que excedeu na retirada de tecido do palato. Mas, não há dúvidas de que houve negligência médica a partir do surgimento da estenose.

Conclui-se que há duas chaves para responsabilização, ou não, diante da intercorrência de uma iatrogenia: a previsibilidade, que é a possibilidade de prever um evento, e as atitudes empreendidas e hábeis à aniquilação ou redução dos danos.

Se o fato lesivo é previsível, porque amplamente discutido e catalogado na área médica, conforma-se ao conceito de caso fortuito interno, o qual não exclui responsabilidade.Neste contexto, o ato iatrogênico em si não é antijurídico, mas a reação e as providências do profissional diante deste acontecimento é que deverá passar pelo crivo da culpabilidade, ou não.

O caso fortuito, malgrado não ser previsto expressamente no Código de Defesa do Consumidor, é aceito pela jurisprudência como uma excludente aplicável ao fornecedor de serviços perigosos[9]. Sendo assim, analisar-se-á a excludente do caso fortuito perpassando pela sua bifurcação criada pela doutrina, e amplamente aplicada nas decisões jurisprudenciais.

7.1 Fortuito interno para fatos previsíveis

Tradicionalmente, o caso fortuito é entendido como um fato imprevisível, surpreendente e, por isso mesmo, inevitável. Contudo, no decorrer da evolução jurisprudencial, tornou-se comum subdividi-lo em dois: fortuito interno e fortuito externo.

Segundo Paulo de Tarso Vieira Sanseverino(2002, p. 293) o fortuito interno não rompe o nexo causal entre o fato e o dano, por isso não é considerado excludente da responsabilidade civil.

E por que não rompe o nexo? Porque o fornecedor deve dominar todas as especificidades inerentes à sua atividade. Os fatos, classificados de fortuito interno, sempre fazem parte de um pool de acontecimentos já conhecidos e predeterminados para os experts daquelelabor. O fornecedor, dentro de sua organização, deve dominar todas as variáveispara evitar a produção de danos.

Dominada a expertise da área de atuação, os diversos eventospassam a ser previsíveis a quem se dedica a certa atividade, posto serem inerentes.

O fortuito interno ganhou expressão na jurisprudência brasileira nas decisões relacionadas a acidentes com meios de transporte, em que a responsabilidade é objetiva. Os Tribunais pacificaram o entendimento de que a especialidade na atividade exige mais atenção -mormente com os equipamentos – por parte do prestador de serviço.

Para coroar a utilização do fortuito interno como fato que não isenta a responsabilidade civil, o Superior Tribunal de Justiça, editou a Súmula 479[10] que trata da responsabilidade das instituições bancárias por fraude ou delito, praticado por terceiro e que tenha gerado dano ao consumidor.

Por este caminho, o fortuito interno seria intrínseco à atividade exercida pelo indigitado e perde o qualificativo de imprevisível,[11] posto que exige-se dele um conhecimento prévio tendente a evitartal situação. Vale dizer, mesmo em sede de responsabilidade subjetiva, é possível ter-se fato em que, para outros, o ocorrido seria totalmente imponderável, mas, para o profissional, dominador das técnicas, não é imprevisível.

Em alguns casos de iatrogenia, de tão recorrentes, já encontram relatos massivos na literatura médica. É, por exemplo, o que ocorre quando é feita uma histerectomia (retirada do útero) com lesão à bexiga, por serem órgãos próximos ou até grudados.

Se já houver estudos que apontem a probabilidade de acontecimentos daquela natureza, exige-se do facultativo que, antes mesmo de encerrar seu procedimento, faça um checklist para averiguar se houve uma intercorrência iatrogênica já catalogada. Se não for possível evitar o dano, cabe-lhe fazer tudo o que estiver ao seu alcance para reduzir seus efeitos (um dutytomitigate aplicado ao ofensor)[12], sob pena de ser responsabilizado pela incidência do fortuito interno.

De acordo com Elena I. Highton, et al.(1997, p. 689):

“cuando se meritúa um caso, es fundamental tener em cuenta para juzgarcómo se procedió em materia de responsabilidad médica, que el tribunal debecolocarseex ante y no ex post fato.[…] Quien pretende formarse um juicio debe colocarse en el día y hora en que el médico debió tomar una decisión, ver cuál era entonces el cuadro del enfermo, cuáles eran los elementos con que contaba o podia contar el médico, cuáles los caminos posibles”.

É possível responsabilizar o médico pelo ato iatrogênico intercorrente, se reunidos estes três elementos: a) se o caso já é conhecido, catalogado e relatado na literatura médica, configurando-se evento previsível naquela área de expertise; b) se havia a possibilidade de constatar o ato iatrogênico intercorrente antes de finalizar o procedimento; c) sendo positivas as duas situações anteriores, não foram empreendidas medidas de minimização dos danos ocorridos pela iatrogenia.  Estas premissas de responsabilização podem ser averiguadas por um perito que responderá como o tipo padrão (o “bom médico”) teria agido na situação específica.

Todavia, não se pode olvidar que esta iatrogenia intercorrente, embora previsível, é inevitável, pois nem todos os pacientes apresentam a mesma morfologia. Por isso, entendemos ser cabível a responsabilidade pela perda da chance de evitar um dano, cujo valor indenizatório é sempre inferior ao montante do dano total. Aqui, é válida a lição de Fernando Noronha, (2005, p. 41):“o profissional terá de responder, ainda que a responsabilidade em regra não seja pelo total do dano sofrido pelo paciente: é que nestes casos haverá que descontar a parcela de dano que seja atribuível à própria doença preexistente.”

Então, havendo culpa caracterizada pela negligência em não se verificar rapidamente sua ocorrência, com as medidas eficazes para evitar ou reduzir o dano, o profissional responderá por ter usurpado a chance de evitar o prejuízo que só foi a cabo devido à sua inércia.

7.2. Fortuito externo para fatos imprevisíveis

Há ainda esta hipótese que deve ser examinada no estudo. Deve-se considerar que a medicina, assim como o direito, não é uma ciência exata e, por mais que algumas iatrogenias já estejam catalogadas pela literatura médica, podem ocorrer outras que escapam totalmente ao cuidado e ao estudo do médico. Não é novidade para ninguém que as pessoas podem apresentar morfologias diferenciadas em seus órgãos internos, ou outras especificidades que não são verificáveis com antecedência.

Por mais que, pelo senso comum, o paciente poderia ter feito um ultrassom ou outro exame que apontasse as idiossincrasias, a ciência médica não trabalha com tal premissa. É pacífico, na medicina, que os exames só são realizados quando estritamente necessários. Se as evidências não indicam que aquele paciente pode ter conformação morfológica diferenciada, não haverá investigação específica para isto. Por isso, algumas iatrogenias só são detectadas posteriormente.

Também é importante pontuar que o risco, a que se sujeita o paciente, não é imposto pelo médico, mas é atributo da própria enfermidade.

Nestes casos, não se pode exigir do médico que previsse e informasse o paciente, tampouco que descobrisse a lesão a tempo de evitar maiores danos. Para tanto, há que ficar provada a absoluta imprevisibilidade, e inevitabilidade, aqui entendidas como a impossibilidade de se prever e agir para evitar o mal maior.

Sendo assim, não se pode dizer que o fato esteja no domínio do fornecedor de serviços e que é inerente à sua atividade.É totalmente estranho. Em hipóteses tais, ajusta-se à excludente do fortuito externo, pois não haverá propriamente um defeito na prestação do serviço.

O fortuito externo fortemente pontuado pela imprevisibilidade que também é fator de afastamento da culpa e do nexo de causalidade, isentam o facultativo do dever de indenizar.

Para ilustrar, vejamos julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo que, valendo-se de perícia médica específica, concluiu pela imprevisibilidade do resultado danoso e isentou o cirurgião da responsabilidade.

“RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. LESÃO IATROGÊNICA. PERFURAÇÃO INTESTINAL DECORRENTE DE EXTRAÇÃO DE MIOMAS. Não obstante os males sofridos pela autora tenham decorrido do ato cirúrgico, o perito esclareceu que a condição clínica da autora (relativa à localização dos miomas) favoreceu a ocorrência do aquecimento da parede intestinal, o que causou infecção grave no intestino e, por consequência, os danos referidos na petição inicial. Dano decorrente de acidente imprevisível, que rompeu o nexo de causalidade. Sentença de improcedência do pedido mantida. Recurso não provido. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Relator(a): Carlos Alberto Garbi; Comarca: São Vicente; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado;Data do julgamento: 30/06/2015; Data de registro: 01/07/2015)”

Conclusão

Deste estudo, é certo, surgem muitas outras problemáticas que poderiam ser atacadas. Pelo que se desenvolveu é possívelconcluir que o ato iatrogênico é inerente à maior parte do serviço médico, posto ser impossível dissociar-se o risco da atividade. É um dano que decorre da periculosidade inerente ao serviço. O prejuízo em si não resultará em responsabilidade civil se não presente à espécie o defeito, que se configura com a falta de informação e da obtenção do consentimento informado por parte do profissional. Sendo ínsita a iatrogenia, deve o médico informar previamente seu paciente sobre os danos que ele necessariamente sofrerá para que o procedimento seja feito. A falta no dever de transparência induz à responsabilização civil, não pelo ato iatrogênico em si, mas pela desinformação. A iatrogenia, prevista e informada, se amolda à excludente de responsabilidade civil denominada de estado de necessidade, pois, sacrifica-se um direito (o da integridade física) para salvaguardar outro de maior valor (a vida sadia).

Em outro momento foi estudado o ato iatrogênico intercorrente que seria um fato previsível, mas não necessáriopara aquele procedimento. Previsível porque já catalogada na literatura médica, mas que não ocorre em todos os pacientes. Entende-se que se aplica o instituto do fortuito interno, cuja tônica é justamente a previsibilidade para quem detém o domínio da técnica. No entanto, em se tratando de iatrogenia, em que o risco não é imposto pelo médico, mas sim trazido pelo paciente, o profissionalsó responderá quando ficar patente que os resultados danosos poderiam ter sido previstos e minimizados, ou até evitados, com a devida diligência antes de finalizar sua intervenção. Os danos advindos do ato iatrogênico intercorrente podem levar à responsabilidade civil quando: a) previsível para aquele procedimento;b) se havia a possibilidade de identifica-la ainda durante o procedimento cirúrgico e, se positivas as duas hipóteses anteriores; c) se o médico negligenciou em adotar medidas imediatas para mitigar ou evitar o dano decorrente da iatrogenia. Concluiu-se ainda que, nestes casos, haverá responsabilidade pela perda da chance de se evitar o mal maior.

Por fim, haverá a iatrogenia totalmente imprevisível, decorrente de alguma conformação morfológica absolutamente diferenciada de um paciente, ou outra especificidade ímpar. Neste caso, não haverá prévia descrição na literatura médica e será inexigível do médico que preveja e que evite os resultados danosos da iatrogenia. A excludente da responsabilidade civil será a do fortuito externo, por se tratar de imprevisibilidade absoluta.

Como visto durante o trabalho, embora a figura do fortuito não esteja expressamente descrita no Código de Defesa do Consumidor, é admitida jurisprudencial e doutrinariamente, como excludente da responsabilidade civil.

Referências
BENACCHIO, Marcelo. Responsabilidade civil do médico: algumas reflexões. In: NERY, Rosa Maria & DONNINI, Rogério.Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao Professor Rui Geraldo Camargo Viana São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009,.p. 320-349.
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 5 ed. rev. atual. eampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
BRASIL. LEI 8.078. Código de Defesa do Consumidor de 11 de setembro de 1990. Brasília, Distrito Federal.
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Brasília, Distrito Federal.
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Revista e atualizada. 2v. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
FARIAS, Cristiano Chaves, ROSENVALD, Nelson, & BRAGA NETTO, Felipe Peixoto.  Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. Volume 3.2ª edição revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Atlas, 2015.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
HIGHTON, Elena I. Responsabilidade médica: em pro de la teoria de la culpa. In: BUERES, Alberto Jesús& CARLUCCI, Aida Kemelmajer. Responsabilidad por daños en el tercer milenio – homenaje ao professor doctor Atílio Aníbal Alterini. (pp. 683-689). Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 683-689.
GRINOVER, Ada Pelegrini et. al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ISAC FILHO, Jorge. (2001). Tratamento Cirúrgico da Colecistite Crônica. In: PETROIANU, Andy. Terapêutica Cirúrgica: Indicações – Decisões – Tática – Técnica.Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001, p. 321-347.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 7ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NORONHA, Fernando. (2005). Responsabilidade por perda de chances. Revista de Direito Privado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005,Volume 23, p. 28-46.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002.
SILVA, Rafael Pettefi. Responsabilidade civil pela perda de uma chance: uma análise do direito comparado e brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: Doutrina e Jurisprudência. 7. Ed. rev., atual, e ampl.  São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
STOLZE, Pablo. (23 de outubro de 2010). Duty to mitigate. Novo Direito Civil. Editorial 13.[S.l.]2010. Disponível em < www.pablostolze.com.br >. Acesso em 23 out. 2010.
 
Notas:
[1] Art. 14. […] § 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

[2] Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.

[3] Art. 6.º. São direitos básicos do consumidor: I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos.

[4] Art. 8º. Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.

[5] É o que se extrai do texto do art. 8.º que faz referência aos riscos considerados normais e previsíveis.

[6] Previsto nos §§ 1º e 2º do art. 10 do CDC.

[7] Art. 5.º […] XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

[8] Sobre este assunto, Kfouri Neto (2010, p. 42) cita decisão da Corte de Cassação francesa (1ª  Cam., 25.02.1997) que condenou médico por ter realizado colonoscopia, para retirada de um pólipo, com resultado danoso à paciente, em razão de perfuração intestinal. Segundo narra, a condenação se deu com fundamento na ausência de informações prévias à paciente.

[9]RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. ART. 14 DOCDC. CIRURGIA PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. CASO FORTUITO.EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. 1. Os procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos caracterizam verdadeira obrigação de resultado, pois neles o cirurgião assume verdadeiro compromisso pelo efeito embelezador prometido. 2. Nas obrigações de resultado, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo,demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia. 3. Apesar de não prevista expressamente no CDC, a eximente de caso fortuito possui força liberatória e exclui a responsabilidade do cirurgião plástico, pois rompe o nexo de causalidade entre o dano apontado pelo paciente e o serviço prestado pelo profissional. 4. Age com cautela e conforme os ditames da boa-fé objetiva o médico que colhe a assinatura do paciente em “termo de consentimentoinformado”, de maneira a alertá-lo acerca de eventuais problemas que possam surgir durante o pós-operatório. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. REsp 1180815 / MGRECURSO ESPECIAL 2010/0025531-0 Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) T3 – TERCEIRA TURMA 19/08/2010
[10]Súmula 479: “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.”

[11] Nem tudo que é imprevisto é imprevisível.

[12]Pablo Stolze(2010) explica o surgimento desta figura, que em simples tradução significa o dever de mitigar,  desenvolvida no Direito Norte-Americano e que é resultado do dever de a vítima agir com boa-fé objetiva. A vítima de um dano indenizável torna-se credora do ofensor e deve atuar de modo a não agravar ainda mais seu dano.


Informações Sobre o Autor

Lucíola Fabrete Lopes Nerilo

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professora do Curso de Direito na UNOESC – Universidade do Oeste de Santa Catarina; Coordenadora do Procon Municipal de São Miguel do Oeste


logo Âmbito Jurídico