Sumário: 1. Juros: o papel exercido pelo fruto civil ao longo da evolução da política financeira. 1.1. O conceito de crédito e sua cobrança nos tempos primórdios. 1.2. A contextualização contemporânea da cobrança do crédito. 1.2.1. O conceito moderno de juros. 1.2.2. Classificação dos juros. 1.2.3. As práticas condenáveis de cobrança do crédito: Do Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner ao Welfare State. 2. Abusividade na cobrança do crédito no direito pátrio: os paradigmas contemporâneos. 2.1. O direito Brasileiro. 2.1.1. Histórico da legislação no Brasil. 2.1.2. Os princípios correlatos. 2.1.3. A Constituição Federal. 2.1.4. O Código Civil de 2002. 2.1.5. O Código de Defesa do consumidor. 2.2. A temática no Direito estrangeiro.
1. JUROS: O PAPEL EXERCIDO PELO FRUTO CIVIL AO LONGO DA EVOLUÇÃO DA POLÍTICA FINANCEIRA
Apesar de constituir-se em conceito abstrato, o átomo da ciência econômica segue presente em quase todas as operações de caráter monetário as quais nos vemos submetidos no mundo atual, regido pelas diretrizes norteadas pelo capital. Partindo de tal pressuposto, este irrefutável, perseguimos os dizeres de um mestre de matemática, ao concluir que o juro não é apenas uma das nossas mais antigas aplicações da matemática financeira e economia, mas também seus usos sofreram poucas mudanças através dos tempos (GONÇALVES, 2005).
Logo, ao intentar aprofundar o estudo presente na problemática da abusividade na prática da cobrança do crédito e suas nuances no universo jurídico, importante se faz percorrer a linha de evolução do método desenvolvido para tal cobrança, a fim de se estabelecer um elo linear de entendimento que possibilite-nos vislumbrar o surgimento, suas transformações ao longo dos tempos e assim, concluir o por quê de revestir-se na roupagem como a conhecemos hoje.
Para tanto, partiremos do ponto precípuo: a origem da cobrança do crédito.
1.1. O conceito de crédito e sua cobrança nos tempos primórdios.
Os primeiros registros encontrados a respeito datam da era de apogeu do povo Sumério, datados por volta do ano 3000 a.C..
“Documentos históricos redigidos pela civilização Suméria, por volta de 3000 A.C., revelam que o mundo antigo desenvolveu um sistema formalizado de crédito baseado em dois principais produtos, o grão e a prata. (WIKIPEDIA, 2010)
Os juros e os impostos existem desde a época dos primeiros registros de civilizações existentes na terra. Um dos primeiros indícios apareceu na já Babilônia no ano 2000 A.C. Nas citações mais antigas, os juros eram pagos sob a forma de sementes ou de outros bens. Muitas das práticas existentes originaram-se dos antigos costumes de empréstimo e devolução de sementes e de outros produtos agrícolas”. (GONÇALVES, 2005)
À época, pouco restara do escambo, corroborando a idéia de que o homem tem em seu âmago a sede de lucro. Isto porque, não bastando o conceito de troca, idealizou-se já naquele tempo um sistema financista que permitiria o auferimento de certa vantagem para o detentor do bem necessário.
“A história também revela que a idéia se tinha tornado tão bem estabelecida que já existia uma firma de banqueiros internacionais em 475 A.C., com escritórios centrais na Babilônia. Sua renda era proveniente das altas taxas de juros cobradas pelo uso de seu dinheiro para o financiamento do comércio internacional”. (Gonçalves, 2005)
É importante lembrar, contudo, que os juros não foram criados, assim como os bancos, para conseguir vantagens maliciosas sobre o devedor, assim como ainda hoje não seria o fim basilar – ou não deveria ser -. Ao passo que os bancos foram primeiramente fundados por sacerdotes que condenavam a usura e que visavam reunir num só lugar e de forma sistemática todas as operações de crédito, os juros também pressupõem um sistema de escambo mais justo, pois a troca seria baseada num crédito que poderia ser ou não adimplido, ou ainda que perdesse o valor real monetário na época do adimplemento (desvalorização da moeda ou do bem). Aristóteles há muito observou o fenômeno que acontecia diante de seus olhos, por volta de 350 a.C.:
“O objeto original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentavam a quantidade do próprio dinheiro (esta é a verdadeira origem da palavra: a prole se assemelha aos progenitores, e os juros são dinheiro nascido do próprio dinheiro); logo, esta forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza.” (ARISTÓTELES, Apud ALENCAR, 2006)
Sylvio Rodrigues lecionou no mesmo sentido: “Ele [o juro] a um tempo remunera o credor por ficar privado de seu capital e paga-lhe o risco em que incorre de o não receber de volta” (Rodrigues, Sylvio Apud ALENCAR, 2006)
Aliás, este ainda é o dogma preceitual que reveste os juros, posto que possuem caráter remuneratório e também compensatório, como na lição supra citada.
No entanto, deturpou-se o conceito inicial, ou, no entendimento de estudiosos liberais, encontrou-se o verdadeiro estigma dos juros enquanto componente da economia de crédito: o detentor do capital deveria auferir certa vantagem, ao passo que detém o bem necessário, no caso, o capital em si mesmo. Seria então, o caminho lógico que o capitalismo percorria, como fez o comércio, o crédito adquiriria, mais cedo ou mais tarde, ares capitalistas.
“Os juros surgiram, entre os povos da antigüidade, como uma compensação pelo uso do capital alheio. A cobrança dos juros, condenada pelos Concílios de acordo com a doutrina da Igreja, não foi admitida na maioria das legislações européias anteriores à Revolução Francesa. Em reação, inspirando-se na lição de Calvino, os autores protestantes, de um lado, e os economistas e filósofos franceses do século XVIII, liderados por Montesquieu, por outro lado, consideraram cabível a compensação pela utilização do capital alheio, desde que estabelecida em bases moderadas e não configurando a usura. (ALENCAR, 2006)
A cobrança dos juros sempre foi alvo de debates, desde a Idade Média. A Igreja Católica repelia sua cobrança ao argumento de que a cobrança de juros constituía um pecado, uma vez que não se concebia a ‘remuneração do ócio’, como os cristãos denominavam”. (CARDOSO, 2010)
E não demorou muito para a “evolução” acontecer. Ainda na Babilônia, encontramos práticas bem parecidas com a realidade de mercado atual. Vejamos:
“É bastante antigo o conceito de juros, tendo sido amplamente divulgado e utilizado ao longo da história. Esse conceito surgiu naturalmente quando o homem percebeu existir uma estreita relação entre o dinheiro e o tempo. Processos de acumulação de capital e a desvalorização da moeda levariam naturalmente a idéia de juros, pois se realizavam basicamente devidos ao valor temporal do dinheiro. (…)
As tábuas mais antigas mostram um alto grau de habilidade computacional e deixam claro que o sistema sexagesimal posicional já estava de longa data estabelecida. Há muitos textos desses primeiros tempos que tratam da distribuição de produtos agrícolas e de cálculos aritméticos baseados nessas transações. As tábuas mostram que os sumérios antigos familiarizados com todos os tipos de contratos legais e usuais, como faturas, recibos, notas promissórias, créditos, juros simples e compostos, hipotecas, escrituras de vendas e endossos.” (Grifo acrescentado) (GONÇALVES, 2005)
Tem-se ainda relatos contidos nas mais antigas Leis, a saber: Lei das doze tábuas (Tábua VII), Código de Hamurabi (Capítulo VII – empréstimos e juros), Código de Manu (Arts. 138, 139, 150 e 151), Bíblia ( In Deutoronômio, 23), Alcorão (Capítulos II, III e XXX)
A partir dessa evolução, os juros e a cobrança de crédito passaram a ser uma coisa só, e conseqüentemente os primeiros vieram a alcançar status de imprescindibilidade na redação de qualquer acordo do gênero.
Pedro Frederico Caldas explica sucintamente:
“O conceito econômico do juro se completa com critérios objetivos e subjetivos que, respectivamente, consistiam na escassez de capital e renúncia à liquidez monetária, aliada à oferta e procura da moeda em investimentos. A partir dessa concepção Keynesiana, os juros passaram a ser instrumento de políticas de desenvolvimento econômico com manipulação da oferta monetária disponível.” ( CALDAS, 1996)
Pudemos perceber, até então, que a figura conceitual dos juros é quase tão antiga quanto a própria civilização. Rousseau disse certa vez que a propriedade privada surgira quando alguém suficientemente esperto pegou algo e disse “isto é meu” e encontrou alguém suficientemente tolo para acreditá-lo; pois bem, acreditamos que, num raciocínio linear, os juros surgiram no mesmo momento em que alguém percebera que poderia ir além da troca por si só e que, tendo algo que outra pessoa quisesse bastante, poderia utilizar essa necessidade em seu favor.
Destarte, os percalços da história cuidaram de moldar a prática da cobrança do crédito, fazendo emergir as particularidades de cada época.
Em comum, está a constante preocupação, a qualquer tempo, com a prática da usura e demais limitações à mercantilização do crédito, que serão objeto de análise especial ainda neste capítulo.
1.2. A contextualização contemporânea da cobrança do crédito.
No tópico anterior, percorremos a cronologia evolutiva dos juros, principal forma de cobrança de crédito que conhecemos hoje.
Está breve análise histórica permitiu a compreensão lógica sobre o tema, de modo que conhecemos a origem do conceito e o caminho que o mesmo talhou para chegar a contextualização hodierna.
Assim, pudemos entender com mais clareza tanto a aplicação prática do instituto, quanto a preocupação dos moderadores econômicos e governos para com as delimitações sobre a mesma.
No entanto, é preciso ir além, permeando as peculiaridades de nosso tempo, desta vez.
Seguiremos então o curso cronológico já delineado, no sentido de afigurar a contemporaneidade dos juros, partindo das premissas históricas outrora estabelecidas.
1.2.1. O conceito moderno de juros.
Inicialmente, vejamos a citação doutrinária de Martsung Alencar, a título de nota introdutória:
“A principio, podemos perquirir o conteúdo dos juros sob variados prismas, econômicos, políticos e jurídicos. (…) nesse contexto, a economia conceitua juros como sendo a remuneração paga pelo tomador de um empréstimo junto ao detentor do capital emprestado.
A ciência jurídica, apoiando-se nas conceituações econômicas, qualifica os juros como sendo o preço do uso do capital. Fruto produzido pelo dinheiro, daí a expressão fruto civil, corriqueira na doutrina”. (ALENCAR, 2006)
Preferimos tomar como nota introdutória a lição supracitada no intuito de introduzir o pensamento num prisma global, pois o conceito de juros possui diversas facetas.
Embora o conceito econômico seja de ampla utilização na construção do pensamento objetivado neste estudo, ele possui alcance apenas secundário, ao passo que o conceito jurídico – filosófico constituirá o cerne da questão ora abraçada.
A maior parte da Doutrina civilista, ramo do Direito que se preocupa com as relações privadas, mesmo que estas envolvam o Poder Público, pois o capital privado constitui o pólo hipossuficiente, cuida dos juros como sendo verdadeiros frutos civis; isto porque são provenientes de transações financeiras anteriores que foram plantadas e que renderam lucros a serem colhidos com vantagens para o credor.
Senão, vejamos alguns doutrinadores que adotaram o termo:
De acordo com Sílvio Rodrigues (2002, p.257) os juros são o fruto produzido pelo dinheiro, pois é como fruto civil que a doutrina o define. Ele a um tempo remunera o credor por ficar privado de seu capital e paga-lhe o risco em que incorre de os não receber de volta.
ALENCAR (2006) dessa forma conceitua: “Assim, os juros são ditos frutos civis do capital, remuneração pela disponibilidade de uma importância em dinheiro por determinado tempo”.
Ademais, o mesmo autor, ao citar Caio Mário e Plácido e Silva, respectivamente:
“Temos, portanto, os juros como remuneração pela disponibilidade de um capital por determinado tempo, “frutos” a serem colhidos pelo credor, pelo uso que o devedor fez do capital, e em razão de cobertura dos sacrifícios de abstinência e riscos sofridos pelo credor. (Grifo acrescentado) (Ob. Cit.)
Aplicado notadamente no plural, juros quer exprimir propriamente os interesses ou lucros, que a pessoa tira da inversão de seus capitais ou dinheiros, ou que recebe do devedor, como paga ou compensação, pela demora no pagamento que lhe é devido. Neste sentido, pois, possui significado equivalente a ganhos, usuras, interesses, lucros. Tecnicamente, dizem-se os frutos do capital, representado pelos proventos ou resultados, que ele rende ou produz”. (Grifo acrescentado) (Ob. Cit.)
No mesmo sentido, outros autores seguem utilizando o referido termo:
“Podemos conceituar os juros como sendo os rendimentos ou frutos civis do capital emprestado, ou seja, um custo financeiro (preço) pela sua utilização. Sob determinada ótica, refere-se à recompensa a ser paga ao credor em razão deste se privar de determinado bem em benefício do devedor. Carvalho de Mendonça definiu juro como sendo ‘o preço do uso do capital e um prêmio do risco que corre o credor.”’(CARDOSO, 2010)
Insta salientar ainda que a doutrina, ao conceituar juros no sentido jurídico-filosófico do termo, cuida de destacar que o mesmo não se aplica tão somente a transações pecuniárias, ou seja, envolvendo capital em si mesmo (dinheiro em espécie). A cobrança de crédito com juros pode se dar em qualquer tipo de acordo de empréstimo, a titulo oneroso, obviamente. Na antiguidade, à falta de moeda, a prática era realizada tão somente com artigos de natureza agrícola ou por meio de escambo mascarado de metais preciosos.
Neste prisma:
“Importante destacar que, muito embora a expressão “juro” seja utilizada como referência ao débito em dinheiro, a ele não se restringe, sendo perfeitamente aplicável às relações obrigacionais que tenham por objeto coisas fungíveis (substituíveis) que não a pecúnia. (CARDOSO, 2010)
Chamam-se juros as coisas fungíveis que o devedor paga ao credor, pela utilização de coisas da mesma espécie a este devidas. Pode, portanto, consistir em qualquer coisa fungível, embora freqüentemente a palavra juro venha mais ligada ao débito de dinheiro, como acessório de uma obrigação principal pecuniária. Pressupõe uma obrigação de capital, de que o juro representa o respectivo rendimento, distinguindo-se com toda nitidez das cotas de amortização. Na idéia do juro integram-se dois elementos: um que implica a remuneração pelo uso da coisa ou quantia pelo devedor, e outro que é a de cobertura do risco que sofre o credor. (…)
Depreende-se, ainda, do conceito acima, que não apenas a dinheiro, mas também a outras coisas fungíveis podem se referir os juros, embora mais usuais naquele caso”. (CAIO MÁRIO Apud ALENCAR, 2006)
Neste diapasão, podemos entender os juros, na concepção moderna, como sendo entes de natureza econômica, precipuamente, mas de colocação prática intrinsecamente jurídica, pois rege muitas das relações privadas, além de possuir natureza umbilicalmente filosófica, pois abrange todo um comportamento humano particular de cada época. Não podemos esquecer, no entanto, a preocupação basilar da política para com a sua prática, nos moldes do desenvolvimento das economias, nas diretrizes governamentais e na interdição Estatal nas relações financeiras privadas, de modo a proteger o Estado de Direito.
Ademais, a partir da estruturação da forma como conhecemos o Estado hoje, em moldes de Estado de Direito, notou-se alteração significativa nos ditames jurídicos correspondentes ao direito privado, pois ocorre desde então o fenômeno intitulado constitucionalização do direito privado.
Neste prisma, o patrimônio passa a servir o proprietário, e a sociedade começa a abandonar a concepção patrimonialista de outrora. Sendo assim, o Direito civil segue à luz dos ditames constitucionais atuais, sedimentados primordialmente na dignidade da pessoa humana, o que nos faz perceber o por que de as legislações esparsas a respeito dos juros serem compostas de tamanho protecionismo para com a parte hipossuficiente contratante.
Como explica Dallagnol (2002), a Constituição Federal de 1.988 rompeu com a noção do contrato das obsoletas codificações privadas, operando uma transmutação do significado do comportamento contratual, do individual para o coletivo.
No mesmo sentido, a doutrina, na tentativa de explicar o tal fenômeno:
“Os fenômenos tão propagados por civilistas de vanguarda, da fragmentação e constitucionalização do Direito Civil, alcançam todo o direito privado, embora nos ramos comercial e bancário os autores não tenham dado tanto relevo ao assunto. O Direito Privado hoje está fragmentado, e a sua unidade e coerência conduzem à Constituição, base de sua validade e fundamento de sua interpretação. A Constituição Federal de 1.988 operou uma inversão ao erigir como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, impondo ao Direito Privado o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX e na qual se inspirou o Código Civil pátrio. Submete-se o patrimônio à pessoa: aquele se legitima enquanto meio de realização desta. (Grifo acrescentado) (DALLAGNOL, 2002)
Há de se perseguir um mais amplo favorecimento da pessoa humana nas relações jurídicas e, especialmente, nas contratuais; conforme reafirmado nesta tese, a vontade contratual deixou de ser o núcleo do contrato, cedendo espaço a outros valores jurídicos, institutos, fundados na Carta. O paradigma da autonomia da vontade, em detrimento da tutela da pessoa na sua dimensão contratante, talvez até possa encontrar legitimidade no espaço do Código Civil, pois do homem em si não se ocupa, mas sempre estará em descompasso com a Constituição. Isso é observado com grande destaque nas relações jurídicas contratuais, em que a vontade surge como mero papel de impulso, quando não, completamente inexistente, no âmbito das relações de adesão e do contrato obrigatório, ambas conseqüências da massificação negocial”. (Grifo acrescentado) (NALIN, 2000)
1.2.2. Classificação dos juros.
No que se refere à classificação, os juros podem ser simples e compostos, conforme o cálculo do percentual a ser cobrado sobre o valor emprestado. Seguem alguns conceitos a respeito:
“Nos juros simples a remuneração é calculada sobre um valor do principal que não varia, por não capitalizar os juros calculados ao final de cada período de apuração),Nos juros compostos a remuneração é calculada sobre um valor do principal que varia, incluindo os juros contados ao final de cada período de apuração. Identifica-se, neste caso, a capitalização, prática de incorporar os juros de um empréstimo ou de um financiamento à dívida principal com o anatocismo ou a cobrança de juros sobre juros.” (ALENCAR, 2006)
Os juros podem ser ainda convencionais ou legais, a critério das partes envolvidas no contrato, que estabelecem a taxa que irá servir de parâmetro. Alencar (2006), em citação de Plácido e Silva, explica que os primeiros são a denominação dada aos juros que se estabelecem ou se estipulam em contratos, para que sejam cumpridos pelo devedor, enquanto vigente a obrigação. (Destaque original). Já os últimos, exprime a expressão: os juros que podem ser exigidos em virtude da imposição ou determinação legal, embora não convencionados ou contratados.
“Também podem ser classificados os juros como legais ou convencionais. Como se infere pelas próprias denominações empregadas, esses requerem a expressa manifestação da vontade das partes, enquanto aqueles, ao reverso, se produzem em virtude de regra jurídica previamente estabelecida’. (CARDOSO, 2010)
Fala-se ainda, em corrente doutrinária menor, em juros nominais (na qual na taxa está embutida a variação da inflação naquele período) e juros reais (que revelam o ganho efetivo, excluindo a inflação) (COSER, 2000, 20:21). Dentre os adeptos desta corrente encontram-se Martsung Alencar e José Reinaldo Coser.
Finalmente, podem ser ordinários, moratórios e compensatórios ou remuneratórios.
Os ordinários podem ser entendidos como os juros simples, pois não se acumulam ou se capitalizam. Os moratórios designam da mora do devedor, em virtude do retardamento no cumprimento da obrigação. Alencar (2006) explica com clareza:
“[Moratórios] São os juros ditos de propter moram, fundados numa demora imputável ao devedor de dívida exigível. Nesta razão, os juros moratórios se fundam em dois elementos dominantes:
a) a existência de uma dívida exigível;
b) a demora do não-pagamento dela, imputável ao devedor.
Os juros moratórios podem ser convencionados ou não. Quando não estipulados e devidos, dizem-se legais e se cobram pela taxa legal.” (Ob. Cit.)
Os compensatórios ou remuneratórios representam de forma única o atual estágio histórico no qual estamos inseridos, quando tratamos dos juros. O Welfare State[1], no qual se há a sensação de “liberdade vigiada”, o Estado observa as relações financeiras de forma coibir práticas abusivas sem interferir de forma abusiva também na vida privada de seus súditos.
Neste diapasão, os juros remuneratórios adquirem a roupagem de compensação pelo valor despendido no empréstimo, uma vez que este valor será privado de uso pelo seu proprietário, que ainda correrá o risco de ver o montante sofrer desvalorização cambial ou ainda não ser adimplido nos moldes e tempo combinados. Tolentino (2007) conclui que, dessa forma, todo aquele que empresta determinada soma em dinheiro pode pactuar juros com o objetivo de ser compensado pela indisponibilidade temporária do capital cedido. Seguem outras conceituações doutrinárias:
“Os juros compensatórios ou remuneratórios como aqueles que representam uma compensação pelo uso que o devedor faz do capital, em razão de cobertura dos sacrifícios de abstinência e riscos sofridos pelo credor. (ALENCAR, 2006)
Os juros são moratórios ou compensatórios (também chamados de remuneratórios). Os primeiros constituem pena imposta ao devedor pelo atraso no adimplemento de determinada prestação, são aplicados, nos termos da lei, pelo simples fato da inobservância do termo para o pagamento, ou, inexistindo prazo, da constituição do devedor em mora (o que se faz por intermédio de notificação, interpelação, protesto ou citação – esta apenas se a obrigação for ilíquida). Os últimos, diferentemente, têm por escopo remunerar o capital mutuado, equiparando-se aos frutos que dele poderiam advir. São, por assim dizer, aqueles pagos como compensação por ficar o credor impossibilitado de dispor do seu bem, e defluem desde o momento da cessão da respectiva posse ou uso.(CARDOSO,2010)
Os juros compensatórios ou remuneratórios são os juros que objetivam remunerar ou recompensar o mutuante pelo uso do capital, sejam contratualmente estabelecidos (convencionais) ou decorrentes de lei (legais). Estes juros têm natureza distinta da natureza dos juros moratórios, devidos a título de perdas e danos pela mora no cumprimento da obrigação, que também podem ser fixados em contrato (convencionais) ou decorrentes de lei (legais). (DALLAGNOL, 2002)
Os juros remuneratórios, também chamados compensatórios, têm por fim remunerar o mutuante pelo uso do capital emprestado. Sua natureza é distinta dos juros moratórios, estes devidos em caso de inadimplência, com o objetivo de ressarcir o mutuante pela mora no cumprimento da obrigação. (BARROS, 2005)
Os juros remuneratórios, também denominados de compensatórios, podem ser definidos como o preço pago pela utilização do capital alheio, ou seja, todo aquele que empresta determinada soma em dinheiro a outrem pode pactuar juros com o objetivo de ser compensado pela indisponibilidade temporária docapitalcedido.” (CHIGANÇA,2009)
A importância de ser classificar os juros está umbilicalmente ligada a temática proposta neste estudo, ao passo que o comportamento jurisprudencial segue raciocínios distintos para cada classificação, e o conceito de abusividade pode mudar conforme a espécie que se tratar o caso em tela.
“Tal distinção se faz particularmente importante em virtude de haver, inclusive, tratamento jurisprudencial diverso quanto a cada uma dessas modalidades de juros, sendo os mesmos diferenciados e tratados com regras próprias pela jurisprudência pátria; o que, deve ser observado, decorre da evidente dessemelhança quanto à sua natureza e fundamento de exigência.” (ALENCAR, 2006)
Deste modo, uma vez conceituados e classificados os juros, na roupagem contemporânea, mister se faz a análise acerca das suas limitações, dentro dos moldes principiológicos atuais.
1.2.3. As práticas condenáveis de cobrança do crédito: Do Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner[2] ao Welfare State.
Desde a “invenção” dos juros, se nota uma constante preocupação dos detentores dos nortes sociais (Reis, Clero, Concílios, Estados e, mais recentemente, representantes sociais como sindicatos e órgãos de classe como a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil – , por exemplo) para com a abusividade decorrente da prática desenfreada da cobrança desses juros.
Isto porque, um instrumento que teria a missão de equilibrar as formas elaboradas do escambo e promover, mais tarde, o desenvolvimento das economias por meio do financiamento do comércio exterior e da própria política mercantil interna, se não monitorado, acabaria por se transformar numa arma capitalista das mais selvagens, em alusão à expressão pejorativa.
Juros abusivos, como todos sabemos, são verdadeiras bolas de neve, capazes de provocar avalanches que arrasariam qualquer equilíbrio econômico.
Assim, embora em meio a protestos ao longo dos tempos, principalmente no apogeu da luzes, na época em que o liberalismo era o remédio para todos os males que tolhiam a liberdade, os juros sempre seguiram sob forte intervenção Estatal, qualquer que fosse a sua forma, na tentativa de frear os abusos e a catástrofe que se anunciava.
Aliás, antes mesmo de Lutero, dos fisiocratas e de seus simpatizantes, já se notava a preocupação com a abusividade na cobrança de crédito. Senão, vejamos:
“Os juros surgiram, entre os povos da antigüidade, como uma compensação pelo uso do capital alheio. A cobrança dos juros, condenada pelos Concílios de acordo com a doutrina da Igreja, não foi admitida na maioria das legislações européias anteriores à Revolução Francesa”.( ALENCAR, 2006)
O autor supracitado faz menção a Arnoldo Wald, que escreveu síntese histórica a respeito, a qual reproduzimos:
Sobre o apogeu do liberalismo, quando os fisiocratas determinavam a tendência de pensamento:
“Os fisiocratas entendiam que o Estado não devia interferir nas relações comerciais entre os indivíduos, fixando o princípio do `Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner`, e assim, numerosas legislações do século XIX e algumas do início do século XX não fixaram limites máximos para os juros.” (Ob. Cit.)
Sobre o Estado Moderno, numa conceituação mais próxima da nossa:
“O Estado moderno, na sua feição social, inspirada na Constituição de Weimar, afirmou todavia sua intervenção ampla tanto no plano econômico como no campo social, só admitindo a cobrança de juros até determinado teto e combatendo todas as formas de agiotagem e de usura, considerando-as até como figuras típicas de direito penal.” (Ob. Cit.)
Finalmente, compilando, o próprio autor:
“O Direito, no decorrer dos tempos, variou, desde a proibição dos pactos nesse sentido, passando por tentativas de controle com estabelecimento de taxas máximas, conhecendo ainda, sob a batuta dos fisiocratas e liberais do século XVIII, período de libertação, ausentes quaisquer limitações às taxas, na conhecida máxima do “Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner’, e retornando historicamente para uma “liberdade vigiada”, típica do modelo preconizado na constituição Weimariana, batizado de “welfare State”, em que se permite a estipulação dos juros, porém, atraindo atuação do Estado que intervém e disponibiliza mecanismos jurídicos para coibir eventuais abusos”. (ALENCAR, 2006)
Nesta seara de entendimento, vê-se latente a intolerância diante da abusividade ao se tratar de crédito e da cobrança do mesmo com juros, intolerância esta que invade a fronteira da “boa vizinhança” ou da simples e pura preocupação com o devedor; é o medo do desequilíbrio econômico e a conseqüente falência das instituições político-econômicas que fazem com que haja a intolerância, ao menos era esta a motivação antes da instituição do chamado Estado de Direito, que, este sim, tem por preceito basilar a proteção do individuo súdito.
Dentre as práticas condenáveis relacionadas aos juros, encontram-se limites astronômicos para as prestações, alcançadas com fórmulas complexas que resultam quase sempre na desigualdade das relações financeiras e em conseqüentes taxas abusivas e usura. As mais comuns são provenientes de cálculos de cobranças de juros compostos, que culminam no anatocismo ou capitalização.
A usura, que vem a ser cobrança de remuneração abusiva pelo uso do capital, repudiada e até considerada crime por diversas legislações (ALENCAR, 2006), vem sendo combatida desde os primórdios, e só foi liberada uma vez em toda a história, justamente na época dos fisiocratas. Contudo, passando a euforia daquele tempo, foi novamente subjugada e até hoje persiste como prática condenável.
Vejamos algumas notas históricas a respeito:
Aristóteles se mostrava contra a abusividade, principalmente a usura, e proclamou: “pecunia nom parit pecuniam”[3]. Aliás, há relatos de que ele seria contra até mesmo os juros compensatórios, pois certa vez teria dito que “a moeda, ao contrário dos seres vivos, não se reproduz” (CARDOSO, 2010)
Jesus Cristo seguiu o mesmo raciocínio, deixando a seguinte mensagem no evangelho segundo Lucas: “mutum date, nihil sperantes”[4]).
O código de Hamurabi estabelecia sanção para o que denominava gananciosos, desde o abatimento da mercadoria até a sua restituição em dobro. O código ainda refere-se aquele que almejava locupletar-se – a pena era a perda de todo o capital emprestado:
“Se um mercador emprestou a juros grãos ou prata e não recebeu o capital, mas, recebeu os juros do grão ou da prata, e, ou não descontou o grão ou prata que recebeu e não redigiu um novo contrato ou adicionou os juros ao capital, esse mercador restituirá em dobro todo grão ou prata que tomou. (Art. O)
Se um mercador emprestou a juros grão ou prata e quando emprestou a juros ele deu a prata em peso pequeno ou grão em medida pequena e quando o recebeu ele quis receber a prata em peso grande ou grão em medida grande, esse mercador perderá tudo quanto houver emprestado’. (Art. P)
Outro códex antigo, o de Manu, também cuidou do tema, não proibindo a prática, mas limitando as taxas cobradas:
“Um mutuante de dinheiro, se ele tem um penhor, deve receber, além de seu capital, o juro fixado por Vasistha, isto é, a octogésima parte de cem por mês ou em um quarto. (Art. 138)
Muito clara a idéia de nulidade das estipulações de juros usurários, bem como a intenção de traçar limites aos juros, estabelecendo parâmetros para legalidade das taxas cobradas, e afastando os abusos. O código inclusive diferenciava a dívida garantida por penhor da que não gozasse de tal garantia, sendo justos juros maiores para esta em detrimento daquela; aqui vemos a idéia de juros para cobertura dos riscos, sendo variáveis proporcionalmente vinculadas”. (Grifo acrescentado) (ALENCAR, 2006)
A Lei das Doze Tábuas, por sua vez, estipulou expressamente as taxas que poderiam ser cobrada, estabelecendo por vez o valor de uma onça, por outra o valor não superior a 8% do montante concedido em empréstimo ( GAVAZZONI, 2002, p.73) , refutando veementemente a usura e a agiotagem:
“Os juros de dinheiro não podem exceder de uma onça, isto é, 1/12 do capital por ano (unciariu foenus), o que dá 8 1/3 por cento por ano; se calcula sobre o ano solar de 12 meses, segundo o calendário já introduzido por Numa (a pena contra o usuário que ultrapassa o limite é do quádruplo) (Tábua VIII – Dos Delitos)
A Lei das XII Tábuas não só estabeleceu limites expressos aos juros, como ainda, deles tratou em tábua dedicada aos delitos. Isso é mais que suficiente para percebemos a valoração dada à usura e ao traço de indesejabilidade que já maculava tal prática. (…)
E o código não tinha a menor consideração com a agiotagem, ou com o agiota, que abominava explicitamente, quando afirmava: ‘Improbum foenus exercentibus et usurarum illicite exigentibus, infamiae macula irroganda est’ (Cod. L. 2, t. 12, fr. 20). Aos que exercem a agiotagem desonesta e que exigem ilicitamente juros de juros, deve ser lançada a mácula de infâmia. (…)
Aqui está clara, desde aqueles remotos tempos, a percepção do malefício das pratica usurária, bem ainda a repulsa ao anatocismo, uma das modalidades de cobrança mais maléfica, que potencializa os efeitos das taxas de juros, qual seja a cobrança destes pelo sistema composto, ou simplesmente juros sobre juros, que conduziria o usuário, segundo o texto citado, à macula da infâmia.” (Grifo acrescentado). (ALENCAR, 2006)
O tratamento da Bíblia não foi diferente, quando se procede à leitura de Deuteronômio, 23, versículos 19 e 20, respectivamente:
“A teu irmão não emprestarás à usura, nem à usura de dinheiro, nem à usura de comida, nem à usura de qualquer coisa que se empresta à usura. (Ob. Cit.)
Ao estranho emprestarás à usura, porém a teu irmão não emprestarás à usura.”(Ob. Cit.)
Martsung Alencar discorre sobre o texto:
“Percebemos que a Bíblia está se referindo à usura como sinônimo de juros, e vedando, portanto, a cobrança destes aos irmãos (não apenas irmãos na acepção estrita de família que adotamos hoje, mas irmãos no sentido de co-cidadãos, membros de um mesmo povo). E a passagem traduzida, como se permitindo usura ao estranho, não deve receber literal interpretação, pois na expressão usura aqui referida (fruto de sucessivas traduções) está implícita a idéia de juros, remuneração pelo uso do capital, mas não de usura como cobrança de juros abusivos (compreensão técnica do termo); estes, mesmo aos estranhos, pelo interpretação sistemática do texto Sagrado em comento, eram também proibidos”. (ALENCAR, 2006)
O código de Justiniano ( Corpus iuri civillis[5]), imperador do império romano do oriente, editado em 531 d.C., admitiu os juros, mas limitados a 33% ao ano (ATALLI, 2003, 150).
Na idade média, em frente contrária ao crescente liberalismo e ao protestantismo, a Igreja Católica se posicionava contra a usura, nos moldes Bíblicos supracitados, mas vendia indulgências a quem cometesse tal “pecado”.
O alcorão, livro sagrado do islã, tratou de estabelecer a diferença que considera crucial nas relações de empréstimo. Como é próprio da cultura Árabe, a vantagem auferida com justiça, como uma verdadeira compensação pelo préstimo ao irmão, não é renegada e se denomina riba. A usura, no entanto é condenada a tal ponto que não se limita a um mero delito, mas consiste em um grave pecado, conforme os trechos que seguem:
“Deus permitiu a venda, proibiu a usura. Aqueles que voltarem para a usura serão entregues ao fogo, onde ficarão eternamente (Capítulo II, v. 276)
O dinheiro que dais a juros para o aumentardes com o bem dos outros, não aumentará perante Deus “(Capítulo XXX, v. 38)
Há ainda um provérbio que, dizem, foi dizeres do profeta, e que ilustram a repulsa à usura: “ Um dirham[6] proveniente da usura é mais grave aos olhos de Deus que trinta adultérios cometidos entre os muçulmanos”.
Diante de todos estes preceitos, não há como duvidar que a abusividade, no que toca os juros, sempre foi condenada, com uma curta e efêmera exceção na história, e que, perante o Estado de Direito no qual vivemos hoje, não existe justificativa plausível para que se tolere abusos neste sentido.
“De nossa verificação histórica, notamos que os fragmentos das mais antigas legislações trazem referências ao histórico repúdio à usura. (…) O mundo civilizado combatia e combate a usura, por reconhecer que o lucro exagerado do capital impedia o desenvolvimento dos demais setores.(Grifo acrescentado)” (ALENCAR, 2006)
Na atual conjuntura, vê-se semelhanças, ou talvez seriam legítimas evoluções, entre as legislações atuais e as que neste tópico foram abordadas, corroborando a tese de que a abusividade é prática que continua sendo condenável. Senão, vejamos alguns exemplos disto:
O Código de Hamurabi fala em restituição em dobro do valor recebido em vantagem injusta. Neste ponto, em muito se assemelha ao que dispõe o Nosso Código Civil:
“Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição”. (Art. 940)
O Código de Defesa do Consumidor também segue a mesma linha:
“O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.” (Art. 42, parágrafo único)
Já o Código de Manu aludiu à revisão contratual, figura jurídica muito comum nos tempos atuais.
“Os parâmetros para afastar abuso, como que o mutuante não receba juros desaprovado, ou juro de juro (anatocismo), nem um juro que acabe por exceder o capital, nem um juro extorquido de um devedor em momento de aflição, permanecem perfeitamente autuais, sendo tais as mesmas idéias que informam nossa legislação de combate à usura. (…)
Ressalte-se que a idéia de anulação de negócio jurídico defeituoso, seja no elemento subjetivo, quanto aos contraentes, seja quanto ao objeto, ou ainda quanto à forma da avença, tem, portanto, raízes históricas bastante remotas. E os juros ilegalmente fixados são clara contaminação do objeto do contrato de financiamento”. (Grifo acrescentado) (ALENCAR, 2006)
No entanto, são as limitações expressas às taxas de juros cobradas que compõem o grande elo entre as constituições mais recentes (a despeito de que muitas já haviam tratado desta limitação no mundo antigo, como já tratado neste tópico), e que constituem o cerne deste estudo, pois através da fixação expressa a abusividade pode ser melhor combatida, por ser verificada com mais clareza.
É partindo deste ponto, o da abusividade das taxas de juros cobradas nos contratos envolvendo crédito, especialmente naqueles realizados com instituições bancárias, que o presente estudo se desenvolve, adentrando, por conseguinte, nas nuances jurídicas acerca do tema.
2. ABUSIVIDADE NA COBRANÇA DO CRÉDITO NO DIREITO PÁTRIO: OS PARADIGMAS CONTEMPORÂNEOS
No capítulo que se seguiu conferimos a evolução do conceito de juros ao longo dos tempos; percebemos que a liberdade negocial mudou bastante, conforme a época e o pensamento de cada tempo.
Notamos também que, com exceção dos tempos correspondentes a euforia do capitalismo recém argüido, um paradigma seguiu quase que intacto durante toda a história da humanidade: o de que é repudiável a conduta da usura.
“Após o surgimento do Protestantismo com Martin Lutero, os juros passaram a não constituir pecado, mas a maioria dos Estados sempre teve uma tendência em limitar sua cobrança, a fim de evitar abusos do mercado e a concentração de renda. A preocupação deveria estar na pauta do dia.” (CARDOSO, 2010)
Praticamente todos os pensadores acordam que ela – a usura -, representa perigo para as instituições civis, porque mais cedo ou mais tarde leva ao desequilíbrio das mesmas e, na pior das hipóteses, mas não rara, à falência do Estado.
Na contemporaneidade, esse conceito ainda se faz atual; o pejorativamente denominado capitalismo selvagem resta ultrapassado e a pessoa humana é o epicentro de quase todas as constituições.
Neste prisma, é a pessoa humana que se faz como o norte das relações jurídicas hoje, e ela não poderá jamais ser subjugada em nome de ditames patrimonialistas; “a interpretação constitucional do contrato transita do ter para o ser.” (NALIN, 2000, p.262)
“A Constituição não é mera diretiva ao legislador, mas norma vinculante que se aplica diretamente nas relações interprivadas e cujo destinatário é também o juiz. E os primeiros artigos da Carta Magna, sem dúvida, elegeram a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a erradicação da pobreza como valores fundamentais a serem perseguidos. (…)
Não se derrogam os valores patrimoniais. Mas são submetidos aos existenciais. (…)
A aplicação do comando constitucional não está a depender desta ou daquela localização do contrato, neste ou naquele ordenamento infraconstitucional. Seja de consumo, civil ou comercial, a relação de crédito sempre estará nucleada no seu titular e não no crédito. O homem , ao menos enquanto perdurar o comando expresso do art. 1°, inc. III, associado ao art. 170, caput , todos da Carta, se posiciona no centro das atenções. (…)
O limite aos abusivos juros remuneratórios praticados hoje no mercado financeiro tem fundamento constitucional e infraconstitucional. A sede constitucional do limite não se encontra apenas no art. 192, § 3°, da Carta Magna, que o Supremo Tribunal reputou dispositivo de eficácia limitada, mas principalmente na dignidade da pessoa humana, função social do contrato e da ordem econômica, bem como na busca do desenvolvimento social e diminuição de desigualdades”. (Grifo acrescentado) (DALLAGNOL, 2002)
Este é o cerne do Direito Brasileiro nos dias de hoje. Nos dizeres de Dallagnol (2002), submete-se o patrimônio a pessoa, e não o contrário.
Assim sendo, trataremos neste capítulo da concepção moderna de juros, inseridos estes na legislação vigente, no Brasil e no mundo, a título de direito comparado.
2.1. O direito Brasileiro.
O Estado Brasileiro, enquanto legislador, não se afastou dos moldes já vislumbrados no decorrer da história em outros povos. Perseguindo a tendência de cada época, o País deixou-se levar pelo pensamento então vigente, ora afrouxando as rédeas para alavancar a política liberalista, ora intervindo fortemente nas relações contratuais privadas, de modo primeiro a proteger a sociedade liberal da falência que se anunciava, segundo a deter os desmandos que a negociabilidade sem limites traz junto com seu adocicado sabor de liberdade contratual.
Dessa forma, evoluímos para o hoje, para o que agora costuma-se denominar welfore state, ou liberdade vigiada, em termos tupiniquins.
Iniciaremos aqui um breve histórico da nossa legislação, no que concerne aos juros e ao conceito de abusividade dos mesmos, para que possamos mais tarde entender melhor o imbróglio jurídico que se desenrola a respeito do tema, e que é enfim o objeto central deste estudo.
2.1.1. Histórico da legislação no Brasil.
Ainda no período colonial, tem-se registros de escritos que levam a crer que a usura seria prática condenável. Outrossim, em 1832 autorizou-se a livre negociação dos juros nos contratos (ALENCAR, 2006).
“A limitação dos juros remuneratórios no direito brasileiro infraconstitucional é antiga. Remotamente o ordenamento pátrio decorre do direito português, ou melhor, por muito tempo “foi” o direito português, o qual desde muito vedava a usura, que era tratada como prática criminosa.
Foi uma lei da Regência Trina brasileira, de 24 de outubro de 1.832, que, invertendo a inspiração legislativa tradicional, estatuiu a liberdade para os juros no país, sem qualquer restrição quanto ao valor ou ao tempo. Essa nova inspiração legislativa proveio da influência e doutrina de José da Silva Lisboa, que lecionava a utilidade econômica do dinheiro, na dupla função de estimulador de poupança e produtor de novas riquezas. Essa inspiração seria tempo depois acolhida em parte pelo Código Comercial Brasileiro de 1.850, em seu artigo 248.” (DALLAGNOL, 2002)
Contudo, a legislação pátria retornou ao primeiro paradigma, ao estipular taxas de juros com teto máximo, quando da edição do Código Civil de 1916.
“Art. 1063. Serão também de seis por cento ao ano os juros devidos por força da lei, ou quando as partes os convencionarem sem taxa estipulada.
Mister se faz observar, porém, que o referido códex fora editado numa atmosfera liberal e, mesmo impondo certos limites, deixara os indivíduos livres para pactuarem. É o que lê no dispositivo 1262:
“É permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. (…)
Esses juros podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (artigo 1062), com ou sem capitalização”
A necessidade de regulamentação logo se fez latente:
“O Código Civil pátrio de 1.916, em seu artigo 1.262, refletindo sua postura reconhecidamente calcada no liberalismo e individualismo, acolheu a liberdade de pactuar juros remuneratórios, que vinha do Código Comercial, permitindo a fixação de juros em taxa inferior ou superior à legal, com ou sem capitalização. Contudo, a livre pactuação dos juros não demoraria muito para ser disciplinada por lei, para “regular, impedir e reprimir os excessos praticados pela usura” (conforme se lê dos consideranda do diploma que se seguiu em 1.933). (DALLAGNOL, 2002)
O nosso Código Civil, na esteira das legislações mais modernas, não cuidou do regramento dos juros convencionais, limitando-se a disciplinar os juros legais e os juros moratórios, adotando posição não-intervencionista, afinada com a ideologia central do código, que imbicava na direção da mais ampla da autonomia contratual, deixando que as partes dispusessem sobre o conteúdo e a economia dos contratos. Quanto ao mútuo feneratício (de foenus, palavra que designava juros, em Roma), i.e., mútuo de dinheiro a juros, as partes eram livres para fixar a taxa abaixo ou acima da taxa legal, nos termos do art. 1.262. Mais tarde, cedendo a uma tendência de intervenção do Estado na economia, entre nós acentuada a partir da chamada Revolução de Trinta, leis emergenciais e restritivas da liberdade contratual vieram a estabelecer uma severa política de juros e restrições quanto ao pagamento em moeda estrangeira, como será visto”. (CALDAS, 1996)
Dezessete anos mais tarde, por meio do Decreto nº 22.626/33, denominada Lei da usura, seguiu-se o combate a mesma, no intento de equilibrar as disposições do códex civilista. Vejamos trecho do preâmbulo, que traz justificativa:
“Considerando que todas legislações modernas adotam normas severas para regular, impedir e reprimir os excessos praticados pela usura;
Considerando que é de interesse superior da economia do País não tenha o capital remuneração exagerada impedindo o desenvolvimento das classes produtoras. “
Deltan Dallagnol explica a conjuntura da época:
“A chamada Lei da Usura (LU), decreto n° 22.626, de 07 de abril de 1933, editada pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas entronizado pela Revolução de 1.930, no contexto do reordenamento econômico em face da crise de 1.929, estabeleceu em seu art. 1° que é vedado “estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. n. 1.062 [15])”. Ou seja, o decreto proibiu a fixação de taxas de juros superiores a 12% ao ano (ou 1% ao mês). O art. 2° da LU vedou o recebimento de taxas maiores à prevista na lei a pretexto de comissão. E o art. 11 estabeleceu que “O contrato celebrado com infração desta lei é nulo de pleno direito, ficando assegurado ao devedor a repetição do que houver pago a mais.” Entendeu a doutrina e a jurisprudência que a nulidade atinge somente a cláusula ilegal, sem compreender a nulidade do contrato todo”. (DALLAGNOL, 2002)
Simões Tolentino também traz à baila explanação, citando Scavone para tanto:
“Este regime calcado no liberalismo teve breve duração, eis que diante dos excessos praticados pela usura, foi editado em 07 de abril de 1933, por Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, o Decreto nº 22.626.’
A respeito deste diploma, leciona Luiz Antônio Scavone Júnior que:
“(…) em virtude da crise econômica do café, sob o argumento de que a remuneração exacerbada do capital implicava em impedimento do desenvolvimento da produção e do emprego – o que é verdade -, contrariando os interesses do país, seguindo tendência das legislações alienígenas, que passavam a afastar o liberalismo econômico do século XIX, surgiu o Decreto 22.626, de 07.04.1933, também denominado ‘Lei de Usura’, que limitou os juros a 1% e vedou o anatocismo com periodicidade inferior à anual.” (TOLENTINO, 2007)
E segue, desta vez, citando Caio Mário:
“Sentindo, porém, o legislador que os abusos, especialmente nos períodos de crise, são levados ao extremo de asfixiarem toda a iniciativa honesta, baixou o Decreto 22.626, de 7 de abril de 1933.De fato, o liberalismo não logrou êxito em acabar com as injustiças sociais, de tal sorte que houve um retorno ao intervencionismo e à regulamentação dos juros.” (MÁRIO, Caio Apud TOLENTINO, 2007)
A Lei da usura condenava a prática daquele que viesse a cobrar valor superior a 20% do montante contratado, em seu art. 13. O dispositivo, porém, fora revogado pelo Decreto-Lei nº 869/38, que definiria os crimes contra a economia popular.
Em 1951, o País deu um passo a diante em seu combate a abusividade na cobrança do crédito, alçando a usura à crime contra a economia popular, a partir da edição da Lei nº 1521.
Na prática, a redação pouco mudara desde o Decreto-lei anterior, atendo-se o legislador a aumentar a pena correspondente a conduta delituosa. Assim então seguiu o texto:
“Art. 4° Constitui crime da mesma natureza [contra a economia popular a usura pecuniária ou real, assim se considerando:
a) cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida em lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito;
b) obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.
Pena: detenção de seis meses a dois anos e multa de cinco mil a vinte mil cruzeiros. (…)
§ 3° A estipulação de juros ou lucros usurários será nula, devendo o Juiz ajustá-los à medida legal, ou, caso já tenha sido cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em excesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido”. (grifo acrescentado)
Dallagnol traz à baila os conceitos de usura real e usura pecuniária:
“Deste modo, ficavam definidas a usura real e a pecuniária. A usura pecuniária, nos termos do que interessa a este trabalho, é aquela em que ocorre cobrança de juros excessiva, que ultrapassa os limites legais. A usura real é aquela em que ocorre estipulação contratual de vantagem desproporcional, que ultrapasse um quinto do valor da prestação feita ou prometida, abusando de necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte.” (DALLAGNOL, 2002)
A Lei 4595/64, a Lei da reforma bancária, que rege a Política Monetária Nacional, abrandou as normas no que se refere às instituições financeiras, estabelecendo a competência sobre a limitação das taxas de juros ao Conselho Monetário Nacional, excetuando os bancos das restrições sobre a cobrança de crédito. Mais tarde, o Superior Tribunal Federal fixou o entendimento sumular 596, panorama que causou e ainda causa protestos:
“Sob a ótica de que o artigo 4.º, IX, da Lei nº 4.595/64 dispor que cabe ao Conselho Monetário Nacional limitar as taxas de juros, notadamente em razão daquele órgão ser dado impor limitações,concluindo que as instituições financeiras inexiste a tarifação codificada na Lei de Usura, merecendo prevalecer o entendimento consagrado na Sumula 596 do STF, desde que não se ultrapasse, abusivamente, à taxa média de mercado.(…) Parece fácil entender que as elevadíssimas taxas de juros praticadas no Brasil atentam contra a essencial dignidade da pessoa humana. (Grifo acrescentado) (CARDOSO, 2010)
Arnaldo Rizzardo, em feliz artigo, é enfático ao afirmar que a Lei nº 4.595 em nenhum momento permitiu a graduação de juros acima da taxa legal. Autorizou, sim, a referida Lei, ao Conselho Monetário Nacional delimitar as taxas de juros e outros encargos, mas não elevá-los a quaisquer níveis, ficando os bancos liberados dos percentuais ordenados pelo CCB e pelo Decreto-Lei nº 22.626.
Arremata o referido autor, com muita proficiência, dizendo que:
‘É importante a conscientização em massa do meio jurídico para a interpretação justa do disposto no art. 4º, inc. IX, da Lei nº 4.595/64. Ao autorizar o Conselho Monetário Nacional a limitar juros, além de não ter rompido o limite de 12% a.a, o fez expressamente visando taxas favorecidas para financiamento de finalidade desenvolvimentista e ecológica, que enumera (recuperação e fertilização do solo, etc.), e não para colaborar no aumento dos ganhos das instituições financeiras.’ (Grifo acrescentado) (RIZZARDO Apud TOLENTINO, 2007)
Conclui-se, portanto, que o Conselho Monetário Nacional não dispõe de poderes legislativos para inovar a ordem jurídica, dispondo, tão-somente, do poder regulamentar referido no art. 49, inciso V da Constituição Federal atual. Conseqüentemente, inconstitucional a Súmula n. 596 do STF, prevalecendo a tese da limitação dos juros.( BARROS, 2005)
O simples fato de a entidade creditícia classificar-se como banco não lhe outorga o direito de situar-se num plano superior e privilegiado, a descoberto de leis que não tiveram limitado o campo de aplicação, malgrado entendimentos distorcidos e nocivos à economia nacional, criados numa época em que jazia sepultada a democracia no país” (Grifo acrescentado) (POZZA, Pedro Luis Apud DALLAGNOL, 2002)
Interessante destacar a opinião de corrente minoritária na jurisprudência hoje, mas que existe e não deve ser ignorada, ao passo que já foi amplamente demonstrado que a consciência sobre a questão muda conforme a conjuntura socioeconômica do momento. Com a palavra, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Pádua Ribeiro, em seção:
“Não se trata de criticar o lucro em si, mas o desvirtuamento de um sistema que privilegia o capital em detrimento da produção, com a colaboração, certamente involuntária, bom que se diga, do Poder Judiciário.”[7]
No mais, assim dispõe a súmula supracitada: “As disposições do Decreto n. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema financeiro nacional.”
A referida súmula resultou do entendimento jurisprudencial alcançado no RE 78953 /SP publicado no DJ em 09.04.75, cuja ementa segue:
“MÚTUO. JUROS E CONDIÇÕES. II. A CAIXA ECONÔMICA FAZ PARTE DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – ART. 1, INCISO V, DA LEI 4.595/64, E, EM CONSEQÜÊNCIA, ESTÁ SUJEITA ÀS LIMITAÇÕES E À DISCIPLINA DO BANCO CENTRAL, INCLUSIVE QUANTO ÀS TAXAS DE JUROS E MAIS ENCARGOS AUTORIZADOS. III – O ART. 1 DO DECRETO 22.626/33 ESTÁ REVOGADO “NÃO PELO DESUSO OU PELA INFLAÇÃO, MAS PELA LEI 4.595/64, PELO MENOS AO PERTINENTE ÀS OPERAÇÕES COM AS INSTITUIÇÕES DE CRÉIDTO, PÚBLICAS OU PRIVADAS, QUE FUNCIONAM SOB O ESTRITO CONTROLE DO CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL”. IV – RE CONHECIDO E PROVIDO.[8]
Hoje, as decisões judiciais, em sua maioria, se baseiam na súmula oriunda do acórdão, seja o julgador simpatizante ou não da tese sedimentada, havendo relativização em algumas situações. Senão, vejamos:
“De um lado, a doutrina desenvolveu variada e consistente argumentação no sentido da limitação da taxa de juros, com base na Lei dos Crimes contra a Economia Popular, na Lei da Usura, no princípio da Igualdade, na limitação constitucional da competência do Conselho Monetário Nacional, podendo também ser aplicados o Código de Defesa do Consumidor e os princípios contratuais contemporâneos. (…)
De outro lado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, órgão máximo de competência infraconstitucional em nosso sistema, tem relativizado o teor da súmula n° 596 do STF, e tem admitido excepcionalmente a redução da taxa de juros com finco na justiça e equidade contratuais”. (DALLAGNOL, 2002)
Assim, ela – a limitação dos juros com restrições aos bancos – segue como base para este estudo, no que toca a discussão sobre a existência ou não de abusividade, à luz do Direito, nos contratos firmados com as instituições bancárias. No mesmo sentido:
“A citada súmula n° 596, que resultou da posição firmada nessa decisão, ainda hoje é lembrada pelo Superior Tribunal de Justiça em suas decisões. Ainda é a orientação dela que prevalece na jurisprudência nacional, sobretudo em função da posição da Corte Especial, que é o órgão que em última análise examina a questão após a Constituição Federal de 1.988. Esta Corte entende que nos contratos firmados por instituições financeiras não há, de modo geral (afora quando há legislação especial de regência), limite para a fixação dos juros”. (DALLAGNOL, 2002)
Em 1988, com a constituinte, ficou estabelecida a limitação dos chamados juros reais, por meio do §3º do art. 192. Quinze anos depois, porém, o texto concernente aquela limitação foi retirado do corpo da constituição, com a Emenda nº 40/03. Mas ainda há vedação à usura (leia-se hoje juros abusivos), principalmente quando se alude aos princípios basilares na Constituição inseridos, os quais trataremos de forma especial tópico específico.
As Constituições (1934, 1937 e 1946) anteriores, interessante frisar, já haviam se pronunciado contra a prática da usura, cedendo à legislação complementar a competência para fixação dos limites das taxas de juros.
Importante então frisar que a usura pecuniária nunca fora revogada, restando excetuadas tão somente as instituições financeiras, e que a usura real se aplica a todos, sem exceção.
“A lei de 1.951 foi severa na disciplina dos crimes contra a economia popular, dentre eles a usura. Note-se que nunca, jamais, o crime de usura da lei n° 1.521/51 fora revogado. Permanece a tipificação da usura pecuniária, a qual, em tese, não se aplicaria às instituições financeiras (partindo do princípio que estas não se subordinam à Lei da Usura), mas também permanece a tipificação da usura real, que se aplica a todos, inclusive aos bancos, vedando um lucro superior a 20% nas operações de crédito. (…)
Nem mesmo a Lei de Reforma Bancária posterior, que logo será abordada, atingiu a usura real, bem pelo contrário, passou longe dela, só dispondo quanto a juros, só tendo potencialidade de repercutir na usura pecuniária. Ademais, para de resto configurar a usura real, é patente a inexperiência da grande maioria dos clientes quando contratam com os bancos, ou mesmo a sua necessidade de contratar que se estampa em face da opção pelo empréstimo, não obstante as taxas absurdas que o banco unilateralmente predispõe no contrato de adesão. (DALLAGNOL, 2002)
Com a devida e máxima vênia aos que contrário pensam, a Lei nº 4595 jamais revogou a Lei de Usura, pois quando em seu art. 4º, inciso IX, concede poderes ao Conselho Monetário Nacional para limitar a taxa de juros a ser praticada no mercado financeiro, não dispõe e nem cogita a possibilidade de a limitação ser superior aos 12% ao ano, imposto como referido teto na referida lei.” (TOLENTINO, 2007)
Isto significa que, embora a limitação – pecuniária – tenha sido revogada, ainda há parâmetros jurisdicionais a serem obedecidos. Senão, vejamos:
“Modernamente não é correto dizer que após a revogação do § 3º do art. 192 da Constituição Federal de 1988, pela Emenda Constitucional nº 40, de 29.05.2003, as taxas de juros remuneratórios e moratórios não podem mais ser objeto de controle jurisdicional, já que não existiria um percentual fixado em lei e, conseqüentemente, valeria o que estivesse inserto nos contratos de mutuo, ou melhor, os bancos estão cavalheiros para a cobrança de juros…. (Grifo acrescentado) (CARDOSO, 2010)
A oportunidade criada pelo §3º do art. 192 da Constituição Federal de 1988 para regulamentar a limitação dos juros no país foi dissipada no momento em que este foi revogado pela Emenda nº 40/2003, pois, ainda que consubstanciado em norma de aplicabilidade restrita, como quis fazer prevalecer o Supremo Tribunal Federal, seria a forma mais acertada de o Estado agir em prol da sociedade brasileira, há muito entregue ao poderio econômico das instituições financeiras. (…)
Com efeito, embora se tenha um Legislativo inerte, o Judiciário, ao menos em parte e dentro de suas limitações, vem intervindo com maior vigor nas relações contratuais, amenizando, dessa forma, o grande desequilíbrio ainda existente entre consumidor e fornecedor. (Grifo acrescentado)(TOLENTINO,2007)
Diante dos fatos ora expostos, conclui-se ser permitida a fixação da taxa de juros remuneratórios pela própria Instituição Financeira, de acordo com parâmetros que melhor lhe aprouver, sendo facultado ao consumidor, outrossim, a possibilidade de revisão e modificação dessa citada taxa nas situações de comprovada abusividade, a ser verificada de acordo com os critérios apontados pelo Superior Tribunal de Justiça. (…)
Veja-se, portanto, que é possível a revisão dos referidos juros remuneratórios pelo Poder Judiciário em situações comprovadamente excepcionais, de flagrante abusividade, caracterizada quando a taxa utilizada pela instituição financeira esteja substancialmente discrepante dataxamédiademercado. (Grifo acrescentado) (CHIGANÇA, 2009)
O Código de Defesa do Consumidor – Lei 8078/90, veio corroborar os ditames Constitucionais, merecendo análise mais profunda no decorrer deste capítulo. Segue, a título de nota introdutória, síntese acerca da sua contribuição no combate a abusividade:
“O Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/1990, ao estabelecer os ditos princípios sociais do contrato (especialmente no art. 4.º, III e art. 51), como o princípio da boa-fé objetiva, o princípio da equivalência material do contrato (eqüidade ou equilíbrio contratual), vedando práticas e cláusulas contratuais abusivas, e prevendo expressamente a possibilidade de sua anulação ou mesmo revisão em busca do aludido equilíbrio, pode ser entendido como forte instrumento de limitação aos juros.” (ALENCAR, 2006)
Finalmente, o Código Civil editado em 2002 perseguiu a linha adotada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código de Defesa do consumidor de 1990, armando uma trama jurídica elaborada e dedicada a exterminar toda a abusividade inerente às relações negociais de uma sociedade livre.
“O Novo Código Civil (CC/2002) trouxe toda uma sistemática, conquanto mais moderada que a anterior (CC/1916 combinado com o decreto 22.626/33 – lei da usura), de limitação expressa aos juros. Isso sem se falar na sua adoção dos princípios sociais do contrato, como já o fizera o CDC, com destaque para a expressa menção ao princípio da função social do contrato (art. 421) e ao da boa-fé objetiva, exigível tanto na conclusão quanto na execução do contrato (art. 422). (ALENCAR, 2006)
As alterações introduzidas pelo Novo Código Civil (NCC), acerca dos juros, apresentam significativas repercussões no âmbito dos direitos e interesses da sociedade brasileira.” (CARDOSO, 2010)
Nota-se, diante da exposição histórica da legislação pertinente, que o corpo legislativo do País vem cada vez mais se preocupando não mais com a cobrança dos juros em si, mas sim com a cobrança ilegal ou abusiva dos mesmos (DALLAGNOL, 2002).
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, por sua vez, se preocupam em analisar o caso em tela por uma ótica global, indo além da letra da Lei, na tentativa de alcançar os objetivos impostos nos ditames Constitucionais; objetivos tais que em sua maioria nem se encontram de forma expressa, mas embutidos em princípios norteadores.
Passaremos a tratar então do arcabouço princiológico que regem as relações contratuais do Brasil nos tempos atuais, no que toca o crédito e a sua cobrança com juros.
2.1.2. Os princípios correlatos.
É certo que a legislação Pátria, principalmente a de natureza infraconstitucional, abraça a causa do combate a cobrança dos juros excessivos. Contudo, é certa também a presença intrínseca na letra da Lei de princípios norteadores, que têm a função nobre de velar por todo e qualquer abuso que venha a surgir por uma fresta naquela.
Partindo desta premissa, destacaremos a seguir alguns destes nortes guardiões do equilíbrio contratual, em especial aos que se envolvem diretamente com os contratos formados com as instituições bancárias.
O primeiro a ser destacado não poderia ser outro senão o pilar mestre da Constituição Federal vigente: a dignidade da pessoa humana. Este pode ser o princípio mais importante quando tratamos de juros abusivos ou excessivos, pois toda a discussão se voltará para o cerne do Estado de Direito, que a pessoa humana e sua dignidade, que deve permanecer intocável, uma vez sendo esta a concepção hoje abarcada no universo jurídico da maioria dos estados, em especial o Brasil.
Neste prisma, dispõe a Constituição Federal de 1988:
Art. 1º. A Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I- A soberania;
II- A cidadania;
III- A dignidade da pessoa humana;
IV- Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V- O pluralismo político”. (Grifo acrescentado)
Dessa forma, tanto o legislador quanto o julgador se preocupam em criar leis e analisá-las, respectivamente, de modo a preservar a figura da pessoa humana, impedindo que a sede de lucro macule o epicentro norteador da nossa Carta constitucional, norma maior de Nosso Estado de Direito.
Por outro lado, no mesmo dispositivo, no inciso IV, nota-se que está inserido outro fundamento importante da nossa época: a livre iniciativa.
Este princípio deveria somar-se aos outros, de modo a forma uma cadeia elaborada com o fim de alavancar o desenvolvimento sadio da Nação. Porém, quando se trata de juros, a história parece sofrer outra espécie de influência.
Especialistas em Direito Bancário, principalmente aqueles mais apegados ao liberalismo econômico, na tentativa de justificar as condutas praticadas pelas instituições financeiras, não demoram a aludir à livre iniciativa, ou livre concorrência, como também é conhecido o princípio.
Presente também no capítulo dedicado a atividade econômica (art. 170, IV), não seria surpresa se fosse reconhecido o fato de que a livre iniciativa servira de escopo para a supressão do revogado §3º do art. 192 da Constituição Federal, que limitava a taxa de juros a 12% ao ano.
Contudo, parece os defensores da ausência de limitação não atentarem para o fato de no mesmo dispositivo o seu princípio pupilo dividir espaço com outros – frisa-se que entre princípios constitucionais não há hierarquia – , a saber: a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito no art. 1º e a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica no art. 170.
Neste impasse, dever-se-ia interpretar o texto como um todo, onde um princípio complementaria o outro, e não o suprimiria em detrimento do indivíduo súdito ou do crescimento de toda a nação de forma conjunta.
Aliás, no art. 3º a Constituição elenca os objetivos fundamentais do Estado, estando dentre eles justamente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária – em uma só frase mesmo – , além da busca do desenvolvimento Nacional e da erradicação da pobreza – já provamos ser inviável o crescimento sadio de outros setores da produção quando há onerosidade excessiva na cobrança do crédito – .
Ademais, encontramos na legislação infraconstitucional a concretização dos mandamentos constitucionais de defesa do consumidor (art. 5º, XXXII e art 170, V) e da função social do contrato, respectivamente amparados pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, que merecem análise especial em momento oportuno.
Como instrumentos de defesa do consumidor, pode-se destacar o princípio da hipossuficiência e da onerosidade excessiva de prestações. já no Código Civil estão presentes as figuras da onerosidade excessiva, função social do contrato e a possibilidade de revisão contratual.
Importante salientar que ambas se complementam e que, ao contrário do que dispõe a lei sobre a limitação dos juros, as instituições financeiras estão submetidas a legislação consumeirista, não podendo as mesmas abster-se de observar os princípios até então destacados.
Desta feita, passemos às especificidades de cada norma, no intuito de construirmos um panorama sistemático que permita a reflexão proposta na introdução deste estudo.
2.1.3. A Constituição Federal.
O já relatado episódio da revogação do §3º do artigo 192 da Constituição Federal, que limitava a taxa de juros a 12% ao ano, acarretou protestos afins, de juristas que não se conformaram com a autorização de um liberalismo sem restrições.
Isto porque, na visão dos que condenavam a decisão, os tempos de Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner que quase levou à bancarrota vários Estados na época de auge do protestantismo, já se anunciava no horizonte.
Contudo, conseguiu-se – ao menos se tenta, até hoje – estabelecer um certo equilíbrio entre a liberdade de contratar, inerente a um Estado de Direito fundado na economia de mercado moderada como o nosso, onde propriedade privada e livre concorrência são ditames basilares da ordem econômica, e a proteção a princípios não menos importantes como a dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento pleno da Nação. Neste prisma:
“Desenvolvimento do sistema financeiro, ou simplesmente desenvolvimento financeiro, refere-se aqui à capacidade de as instituições financeiras de um país ou região colocarem à disposição dos agentes econômicos serviços que facilitem e intensifiquem as transações econômicas destes.” (MATOS, 2002, P. 5)
Percebe-se isto quando da leitura, por exemplo, do disposto no artigo 170 da Constituição Federal, em especial o inciso V, que alude à defesa do consumidor como princípio mantenedor da ordem econômica.
Ademais, a defesa e proteção ao consumidor também segue expresso como cláusula pétrea, disposta no art. 5º, XXXII, compondo o corpo de princípios referentes aos direitos e garantias fundamentais.
Deste modo, embora tenha suprimido um importante instrumento no combate a abusividade na cobrança de crédito, a Carta Constitucional não deixou o súdito à margem de proteção, devendo prevalecer, na interpretação dos contratos, os princípios, como fonte de Direito que são.
Conclusiva é a explicação de Martinazzo Dallagnol, que segue, sobre a incoerência da abusividade de juros frente à Constitucionalidade:
“O patamar dos juros fere assim o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido a nível constitucional no art. 1°, III, da CF. Representa inversão dos valores constitucionais, massacrando o homem existencial em prol do homem econômico, pois os juros no atual patamar estão longe de funcionar como um mecanismo econômico para o desenvolvimento existencial do homem. Fere, por igual, o art. 170 da Constituição Federal, o qual subordina a livre iniciativa à justiça social, conferindo o aspecto finalístico da ordem econômica, a qual só ganha sentido na realização da existência humana digna”. (DALLAGNOL, 2002)
2.1.4. O Código Civil de 2002.
Dallagnol (2002) afirma que Os desmesurados abusos na prática de juros remuneratórios, contrários ao fim social do contrato de empréstimo, e que valoriza demasiadamente o aspecto patrimonial, em detrimento do aspecto existencial, bem como do desenvolvimento humano e social, encontram combate na legislação pátria infraconstitucional.
O referido auto afirma ainda que ordenamento jurídico infraconstitucional, que recebe todo o influxo da inversão valorativa efetuada pela Constituição, em prol da dignidade da pessoa humana e em detrimento do patrimônio, apresenta topois[9] argumentativos que permitem levar a cabo o ideal constitucional de limitação da taxa de juros.
Partindo de tal premissa, discorreremos acerca das duas principais legislações infraconstitucionais que tratam do tema de forma concreta: o Código Civil e o código de Defesa do Consumidor.
O Código Civil de 2002, foi na contramão do que dispunha o Código de 1916. Isso porque o legislador se direcionou numa nova tendência, que ia de encontro ao liberalismo exacerbado outrora difundido, pelo próprio contexto da época. Com a publicação do novo Código civil, adotou a idéia já patenteada pelo constituinte de 1988, que elevou a função social ao status constitucional. Da mesma forma que a propriedade, os contratos devem atender à função social. É o que dispõe o art. 421 do referido codéx, que segue, in verbis:
“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”
Mas a concepção dada à função social, enquanto dogma, é bastante subjetiva, pouco tangível. Sedimentada, porém, é a idéia de que deve haver equilíbrio, principalmente para proteger o coletivo, o bem comum da sociedade. Isto se aplica, sem dúvida alguma, às relações de consumo. Senão, vejamos:
“A função social do contrato, de acordo com a tendência apontada, revelar-se-ia na idéia de relativo equilíbrio das prestações devidas por cada um dos contratantes, pois, se esse equilíbrio inexiste na constituição do contrato, permitida é a rescisão da avença por meio da lesão (CC, art. 157); se o desequilíbrio advém da superveniência de fatores subseqüentes, admite-se sua resolução por onerosidade excessiva (CC, arts. 478 a 480)”. (RODRIGUES, 2003, p. 61)
O referido civilista aponta ainda, oportunamente, o elo de ligação entre o Código civil e o CDC, o que harmoniza a legislação e corrobora a idéia sobre função social nos contratos e nas relações de consumo:
“Para dar-lhe um entendimento mais de acordo com o intuito do legislador de 2002, tive de buscar uma tendência. Encontrei-a no art. 4°, III, do Código de defesa do consumidor. Esse item determina que nas relações de consumo se atenderá ao principio da harmonização dos interesses dos participantes, sempre com base na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”. (Ob. Cit., p. 60)
No que se refere à onerosidade excessiva, o Código Civil dispõe acerca da resolução contratual, no sentido de preservar a equidade entre as partes. O referido Códex traz tal previsão nos artigos 478 e 479, quando a situação fática contratual demonstrar excessiva onerosidade para uma das partes, auferindo por conseqüência extrema vantagem para outra.
Assim, uma vez identificado o desequilíbrio contratual, é possível evitar a resolução, modificando as cláusulas que culminaram naquele.
No que tange à limitação de juros, há previsão de limitação, nos moldes do artigo 406 e 591, referentes aos juros de caráter moratórios e remuneratórios ou compensatórios, respectivamente. O artigo 591 admite ainda a capitalização anual dos juros.
Contudo, há que se lembrar que as instituições financeiras obedecem à limitação de mercado imposta pelo Conselho Monetário nacional, por determinação de lei especifica (Lei nº 6595/64) em respeito ao princípio da especialidade.
Seria, então, irrestrita a fixação da taxa de juros? Apesar de, numa primeira leitura parecer que o liberalismo sem limites vencera a batalha, tecendo uma rede complexa de leis e resoluções que sempre deixariam em desvantagem o devedor hipossuficiente, surgem frestas que permitem os princípios do Direito Democrático respirar, e é com base nestas frestas que as ações intentas conseguem lograr êxito, e as alterações contratuais se perfazem, bem como as diminuições de taxas exorbitantes seguem sendo perquiridas nos Tribunais do País.
Neste ponto, acalentadora é a explanação que segue:
“Haveria irrestrita liberdade legal na fixação da taxa dos juros? Entendemos que não. Com efeito, a liberdade desmedida na fixação dos juros propiciaria arbitrariedades e excessos que não se coadunam com os princípios norteadores do Código Civil de 2002. Alguns dos quais, por sinal, foram explicitamente notabilizados em seu bojo, como os referentes à onerosidade excessiva, à probidade e boa-fé e à função social do contrato (arts. 421, 422 e 480). Podemos apontar, inclusive, que infringiria preceitos éticos, visto que se estaria incentivando, ainda mais, que o uso do capital obtenha gratificações superiores aos da produção, o que não parece, para sermos eufemistas, sensato. Aliás, no encalço desse raciocínio, não seria sequer razoável admitir que um assunto de tamanha repercussão econômica e social seja desregrado, deixando que as partes hipossuficientes das relações jurídico-econômicas sejam prejudicadas com a livre fixação dos juros, sem esquecer que na quase totalidade dos casos os contratos bancários são do tipo adesão, estando ausente a figura do debate entre as partes envolvidas no contrato, verdadeira fragilidade para a parte hipossuficiente, que apenas assinada o contrato”. (CARDOSO, 2010)
Ademais, o mesmo autor, acrescentando, reforça a corrente que tem esperança numa mudança legislativa mais firme:
“Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, frente às obscuridades e/ou lacunas da legislação, não firmaram, ainda, o critério claro e definido a ser devidamente utilizado pelos destinatários da norma. Por conta disso e em vias de conclusão, em que pesem as inclinações ora defendidas, ainda não se pode buscar terra firme em tão movediço tema, de maneira que seria por demais arriscado atestar, com inabalável convicção, qual o parâmetro ideal que os leitores deverão empregar sem que corram o risco de verem seus cálculos e/ou contratos impugnados e revisados em sede jurisdicional. Resta-nos, portanto, recomendar que as relações jurídico-econômicas havidas sejam muito bem estruturadas, orientadas e reduzidas a termo, no sentido de fixar as regras e penalidades incidentes em todo o seu universo, qual seja, a determinação de limites mínimos e máximos aos juros, assim como qual a sua extinção e função”. (Ob. Cit.)
Nesta seara de entendimento, segue o Código Civil a tendência humanista de interpretação dos contratos, indo na contramão da concepção patrimonialista de outrora.
2.1.5. O Código de Defesa do consumidor.
Antes de qualquer análise, mister se faz esclarecer que, a partir da edição da súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça, as instituições financeiras estão definitivamente sujeitas as regras contidas nas disposições do Código de Defesa do Consumidor.
A partir de tal pressuposto, é perfeitamente possível que as disposições consumeiristas possam servir de balize para a interpretação contratual. Diante desta possibilidade amparada pela referida súmula, é cabível a aplicação, à interpretação contratual, os princípios que norteiam a relação fornecedor-consumidor ( no caso em tela, o prestador de serviço – consumidor), tais como a hipossuficiência do consumidor, a inversão do ônus da prova, a revisão do contrato frente à onerosidade excessiva.
Salienta-se, porém, que as regras inerentes aos contratos constantes no Código civil não deverão ser suprimidas, sendo utilizadas subsidiariamente, no que couber.
Importante também é identificar se há no caso em tela a relação de consumo, essencial para a aplicação do CDC. Deste modo, estando a situação fática do contrato inserida no contexto do art. 3º do CDC, não há o que se discutir sobre a interpretação de suas cláusulas à luz do referido Código.
Atentando para a especialidade do tema, colacionamos disposição expressa:
“Art. 3º. (…)
§2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. (Grifo acrescentado)
No que se refere à hipossuficiência, o art. 4º do Códex alude à deficiência na informação do consumidor.
“O Código entende que o consumidor (aquela que está do lado de fora do balcão) é a parte mais fraca em relação ao fornecedor. Porque? Porque o fornecedor é especialista naquilo que faz e, por isso, detém as informações técnicas e estratégicas na fabricação dos produtos ou na organização dos serviços que oferece no mercado. Por exemplo, um contrato que o consumidor vai assinar – antes disso, o fornecedor já teve tempo de consultar especialista e de preparar o contrato de modo a atender às suas expectativas. E o consumidor? Na prática, além de não poder sequer discutir as clausulas do contrato, não tem as informações que orientaram a elaboração dele e, muitas vezes, nem entende o que está escrito ali.” (RIOS, 2002, p. 389)
Segue, in verbis, o referido dispositivo, em trecho correspondente:
“Art. 4º . (….)
I- Reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (…)
III- Harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV – Educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo.”
Conclui-se, portanto, que o CDC preocupa-se não só com a proteção ao elo mais “fraco”, carente de informação, da relação contratual, mas também com a imposição de medidas que visem a minimizar a discrepância entre as partes, objetivando o equilíbrio.
E é em busca desse equilíbrio que há a possibilidade também de se recorrer à revisão contratual.
“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
V-A modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; (…)
VIII- A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor” (…)
Silvio Rodrigues atenta para o fato de a proteção à onerosidade excessiva é tamanha na concepção consumeirista, que vai além da teoria da imprevisão, prevista pelo Direito Civil:
“Em um parênteses convém lembrar que a solução mais audaz se encontra no Código de Defesa do Consumidor, que admite a revisão do contrato pelo juiz ainda quando os fatos supervenientes eram previsíveis”(RODRIGUES, 2003, p. 134)
Quando da leitura do artigo supracitado, vislumbra-se outras duas figuras especiais à questão: a revisão contratual em busca do restabelecimento do equilíbrio contratual e a possibilidade de inversão do ônus da prova, instrumento processual umbilicalmente ligado a concepção de hipossuficiência.
O artigo 51 trata das cláusulas abusivas, decidindo como nulas aquelas que, entre outras situações, estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou ainda que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (inciso IV).
Presume ainda como sendo vantagem exagerada aquela que ofenda os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence ou que se mostre excessivamente onerosa para o devedor (§1º, I e III, respectivamente).
Neste diapasão, o CDC ganha área de legítimo guardião dos ditames constitucionais, no que diz respeito à proteção da dignidade da pessoa humana quando tratar-se o contrato de crédito a ser cobrado com juros, em especial aos realizados com as instituições financeiras. Todo o seu corpo estrutural foi elaborado sobre a idéia de proteção ao equilíbrio contratual.
Finalmente, importante destacar há ainda o chamado Código de Defesa do Consumidor Bancário, representado pela Resolução editada pelo Conselho Monetário Nacional (órgão responsável por fixar taxas de juros de mercado, por força da lei 4595/64) , de nº 2878/01, alterada pela resolução 28/92/01.
Tal resolução também preza pelo equilíbrio contratual e repudia a abusividade, ao dispor:
“Art. 1º. Estabelecer que as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, na contratação de operações e na prestação de serviços aos clientes e ao publico em geral, sem prejuízo da observância das demais disposições legais e regulamentares vigentes e aplicáveis ao Sistema Financeiro Nacional, devem adotar medidas que objetivem assegurar
I – transparência nas relações contratuais, preservando os clientes e o publico usuário de práticasnãoeqüitativas,mediante prévio e integral conhecimento das clausulas contratuais, evidenciando, inclusive, os dispositivos que imputem responsabilidades e penalidades”. (Grifo acrescentado)
Desse modo, conclui-se que o consumidor tomador do serviço de empréstimo não estará tão desamparado legalmente, na falta de limitações rígidas e da sucumbência do legislador a pressões políticas.
2.2. A temática no Direito estrangeiro.
O Brasil, como já vislumbrado, segue a tendência mundial do Direito das gentes, isto é, costuma se posicionar com harmonia ao pensamento de seu tempo. A legislação, assim, se encaixa na conjuntura predominante de cada época, possibilitando interação com o mercado internacional.
Pôde ser concluído, por tudo o que até então se seguiu, que a taxa de juros no País pode ser livremente fixada entre as partes, respeitando os limites legais, se no contrato não houver qualquer convenção a respeito.
Em se tratando de contratos firmado com instituições bancárias, em atenção à especificidade do tema deste estudo, sedimentou-se a idéia de que as mesmas não estão sujeitas à limitação da chamada Lei da usura, mas estão subordinada aos princípios basilares do estado Democrático de Direito e as diretrizes do Códex consumeirista, o que confere maior justiça na celebração dos contratos e na interpretação das cláusulas respectivas.
Partindo de tais pressupostos, estabeleceremos a seguir um panorama no Direito comparado, de modo a enxergar de forma global como a questão dos juros vem sendo tratada na atual conjuntura mundial.
No Direito Francês os juros fluem de pleno direito e independem de estipulação expressa das partes. Eles, na prática, obedecem à taxa média bancária, e, como são flutuantes, podem ser alterados ao longo da continuidade do contrato. Contudo, há limitação legal, fixada por uma Lei datada de 1966. Esse limite não pode exceder, no momento da concessão do crédito, o dobro da taxa média do rendimento efetivo das debêntures emitidas no curso do semestre precedente.
A limitação tendo como margem a taxa média em muito se assemelha com a nossa realidade. Senão, vejamos reflexão a respeito, reflexão esta que, se não destacada que se refere ao Direito Francês, não rara seria a interpretação como se pátria fosse:
“Límpido que a taxa máxima de juros permitida é regulada pela taxa média efetivamente praticada pelas instituições financeiras, isto é, pelo que é de praxis no mercado financeiro, podendo superar esta taxa em até um quarto de seu respectivo valor. Apenas nos casos de a autoridade creditícia entender de fixar um limite é que este vigerá para as operações da espécie; não sendo assim, o índice de referência será a taxa média, não podendo os juros serem superiores a um outro parâmetro, relativo ao rendimento médio das debêntures no último semestre, ressalvadas determinadas despesas e recebimentos.” (Grifo acrescentado) (WEDY, 2008)
Na Itália, o Código Civil de 1942 estipula o limite de 5% ao ano, na ausência de fixação convencional nos contratos, mesmo na abertura de crédito bancário. Aceita-se porém, a concepção do chamado juro integrativo, que funciona como uma espécie de comissão pela cessão do crédito, mas desde que o devedor acorde em contrato. Gabriel Wedy explica, citando o jurista Italiano Adriano Fiorentino:
“Segundo FIORENTINO, ao se questionar a abertura de crédito bancário se pode verificar que se aplica a regra geral sobre taxa de juros (saggio degli interessi) do art.1284, segundo o qual os juros superiores à taxa legal devem ser determinados por escrito, em assim não ocorrendo prevalece a taxa legal; na antecipação bancária admite-se juro variável, de regra determinado em relação à taxa oficial do Instituto de Emissão, fixando-se um coeficiente de majoração sobre ela e sendo freqüentemente estabelecido não poder o montante dos juros ser inferior a um determinado mínimo, o qual, quando não atingido, dá lugar a um acréscimo a título de comissão ou juro integrativo” (FIORENTINO Apud WEDY, 2008)
A Lei Alemã defende a tese de que, para que sejam declarados como sendo abusivos os juros é preciso não só que os mesmo sejam considerados altos, mas que procedam à espoliação do economicamente mais fraco. Wedy (2008) ensina que os detentores do capital, para o direito alemão, só terão seus contratos anulados se estes tiverem caráter de contratos adesivos ou leoninos, não deixando opção de escolha ao mutuário que se obriga a tomar o capital necessário com os respectivos juros já fixados. Assim, é mister que ocorra o estado de necessidade, leviandade ou inexperiência por quem toma o empréstimo, e o aproveitamento deste estado por quem detém o capital.
E completa ainda:
“Dessa forma, para saber se a estipulação de juros é nula, por manifesta
desproporção entre a prestação e a contraprestação, exploração do devedor, aproveitamento consciente de seu estado de necessidade, sua leviandade ou inexperiência, ou por motivo de ofensa aos bons costumes, o momento competente a ser considerado é o da conclusão do negócio jurídico”. (Ob. Cit)
No Sistema Norte Americano, nos Estados Unidos, 39 estados estabelecem por legislação o limite máximo que as taxas de juros podem atingir. O curioso é o fato de que, em nenhum deles, se admite que essas taxas possam flutuar de acordo com a mão invisível do mercado, teoria do liberal Adam Smith.
Percebe-se assim que mesmo a potência capitalista retém a guarda quando se trata de taxas de juros, corroborando a tese de que a irrestrita cobrança das mesmas colocariam em risco a harmonia das instituições Estatais.
Dessa forma, a comunidade internacional protege seu corpo de Estado da selvageria liberal, na tentativa de equilibrar as duas vertentes essencial para a realidade contemporânea: o desenvolvimento e crescimento econômico aliado ao fortalecimento das instituições.
O Welfare State, no entanto, ao se preocupar justamente com esse equilíbrio, possui a difícil tarefa de manter afastados os abusos, sem impedir nem tolher a prosperidade do capital.
O Brasil, enquanto Estado-Providência, não deve abster-se de tal desafio e, como já visto, construiu todo um sistema jurídico para tanto, possibilitando a negociabilidade por um lado e, por outro lado, monitorando a abusividade proveniente da consciência fisiocracista tardia.
Informações Sobre o Autor
Olívia Ricarte
Advogada, pós – graduanda em Direito Constitucional.