O direito de punir, em termos penais, pertence ao Estado. Historicamente tido como fundamento majoritário do Direito Penal[[i]], o direito de punir decorreu da própria evolução do Estado, tendo como ponto de partida a Revolução Francesa, onde o Estado passou a sofrer limitações por parte da sociedade, principalmente na seara jurídica, como forma de coibir os abusos praticados pela monarquia estabelecida à época. Neste período de expiação e transição, o Direito Penal passou então a ser considerado como instrumento de defesa dos valores inerentes à sociedade, protegendo-a de ataques graves à seus interesses, de forma coordenada e limitada por leis específicas, codificadas, que regiam o comportamento mínimo exigido para a época.
Hoje, se tem que o direito de punir do Estado encontra limitações na preservação da soberania, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, havendo por imprescindível o respeito às garantias fundamentais para a atuação estatal no exercício do seu direito de punir. Assim se estabelece porque, como assevera Marco Antonio Marques da Silva[[ii]]: “dignidade da pessoa humana é o reconhecimento constitucional dos limites da esfera de intervenção do Estado na vida do cidadão e por esta razão os direitos fundamentais, no âmbito do poder de punir do Estado, dela decorrem, determinando que a função judicial seja um fator relevante para reconhecer-se o alcance real destes direitos. Desta forma, a concretização e a eficácia jurídica de um direito ocorrem com a manifestação dos órgãos do poder judiciário que lhe dão eficácia.”
O direito de punir do Estado então passou a ser entendido como instrumento de preservação do Estado Democrático de Direito, na medida em que se passou a exigir a preservação do interesse comum, ou seja, do interesse social, contudo, resguardando as garantias e liberdades asseguradas pelas garantias fundamentais aos indivíduo.
Entendendo-se por limites do direito de punir, temos que são limites impostos pela própria lei como forma de controle e prevenção do arbítrio, preconizando, primordialmente a Constituição Federal que “nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário”(ex vi artigo 5º, inciso XXXV da CF/88). Passa-se então a preconizar limitações de ordem constitucional e de direito material para o Direito de punir imbuído ao Estado.
No entanto, muito embora o Estado seja o titular do Direito de punir, muito comum o fato de que muitos indivíduos, após a prática de condutas delitivas ou de infringir a Lei Penal de um determinado Estado, se evada para fugir da aplicação da lei ou do processo penal, deparando-se com uma pseudo-segurança ao adentrar na circunscrição da soberania de um determinado Estado. Até bem pouco tempo atrás, adentrar às dependências de um determinado país poderia significar a impunidade de um criminoso. Mas diante desta real possibilidade do indivíduo adentrar outro Estado soberano, e à guisa da necessidade de não se banalizar o território, homiziando estrangeiros, bem como de se preservar o bom relacionamento entre Estados soberanos e a reciprocidade de condutas, além de se coibir a impunidade, imprescindível a criação de um instituto que assegurasse a eficácia da persecução ou da punição do indivíduo que debandou do território onde cometera o crime, originando-se o instituto da extradição.
A extradição, em apertada síntese, consiste no “ato de entrega que um Estado faz de um indivíduo procurado pela justiça para ser processado ou para a execução da pena, por crime cometido fora de seu território, a outro Estado que o reclama e que é competente para promover o julgamento e aplicar a punição[[iii]].”
No Brasil, a Extradição é preconizada na Lei n.o 6.815 de 19 de agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, que estabelece as regras e procedimentos para a Extradição do estrangeiro, podendo ser requerida mesmo sem a celebração de acordos ou tratados entre os países.
Mas, inobstante à possibilidade da extradição, por certo que devemos pensar na hipótese do estrangeiro ter cometido crime também em território nacional. Neste caso, muito embora absolutamente crível a possibilidade da prática delitiva em território nacional, por certo que a doutrina não colaciona o procedimento a ser adotado nestes casos.
Ao nos depararmos com o disposto no Estatuto do Estrangeiro, a regra geral encartada no bojo do artigo 89, determina que “Quando o extraditando estiver sendo processado, ou tiver sido condenado, no Brasil, por crime punível com pena privativa de liberdade, a extradição será executada somente depois da conclusão do processo ou do cumprimento da pena, ressalvado, entretanto, o disposto no artigo 67”.
Neste ínterim, somente em casos excepcionais, diante da conveniência e do interesse nacional, é que pode ser olvidada a regra do artigo 89 do Estatuto do Estrangeiro, determinando-se a expulsão do estrangeiro[[iv]], ficando a critério do Presidente da República a determinação do envio imediato do estrangeiro para o Governo Requerente.
Todavia, a questão que exsurge da remessa imediata ou antecipada do extraditando, decorre do andamento dos processos que o extraditando respondia, do qual a Lei 6.815/80 não apresentava qualquer solução acerca do seu destino ou solução. Unicamente estabelece que seria possível e admissível a entrega do estrangeiro, lastreando-se a decisão em critérios de conveniência e interesse nacional.
Mas o que ocorreria com o processo ao qual o extraditando responde em território nacional? Poderia o extraditado ser julgado à sua revelia? Se houvera a sua extradição, como lhe poderia ser assegurado os basilares do contraditório e da amplitude de defesa como meio de se lhe assegurar o devido processo legal como instrumental da preservação da dignidade da pessoa humana, fundamento apriorístico do nosso Estado Democrático de Direito?
Evidentemente, ainda que não esteja no país para responder às acusações que se lhe foram indigitadas, imprescindível sejam asseguradas as suas garantias constitucionais, mormente porque o verbete constitucional agrega valor de forma genérica ao preconizar que aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, não estabelecendo o basilar constitucional nenhuma digressão ou exceção ao fato de ser o acusado estrangeiro, extraditando ou extraditado.
Sob outro enfoque, também jamais se poderia julgar o extraditado à revelia, porquanto necessário que seja intimado pessoalmente para responder à ação penal e assim não o faça de forma espontânea.
Analisando as hipóteses previstas no nosso ordenamento jurídico pátrio, a solução que nos parece mais viável seria a sua extinção da punibilidade pela concessão de graça, pela interpretação extensiva do decreto presidencial que determinou a remessa do estrangeiro para o país solicitante.
Isso porque, como estabelece o Estatuto do Estrangeiro, e pelo que se denota dos episódios atuais ocorridos no Brasil na atualidade, ainda que seja do Supremo Tribunal Federal a competência para julgar a legalidade e a admissibilidade do processo de extradição[[v]], o extraditando somente será entregue mediante Decreto Presidencial[[vi]], resultando na assinatura do Decreto em renúncia tácita ao direito de ação penal, abrindo mão da punição pelo eventual delito praticado quando o estrangeiro permaneceu em território nacional.
Analogicamente, se por critério de conveniência ou de interesse nacional pode o extraditando ser enviado ao solicitante tão logo se dê a decisão de extradição, da mesma forma, pelo critério de conveniência e interesse, se dá a perda do interesse de agir na ação penal que respondia o extraditando em território nacional.
Analisando a questão pelo seu enfoque constitucional, mormente no que trata da dignidade da pessoa humana, de forma brilhante colaciona o eminente Ministro Gilmar Ferreira Mendes[[vii]], ao aduzir que “No mundo hodierno, o Estado incorpora, em certo sentido, a defesa dos direitos humanos em seu próprio poder, ao definir-se o poder do Estado como poder defensor dos direitos humanos. Não há negar, portanto, o significado que os direitos fundamentais e, especialmente, os direitos fundamentais de caráter processual assumem para a ordem constitucional como um todo. […] Não se pode perder de vista, portanto, que a boa aplicação dessas garantias constitucionais configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade da pessoa humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido, esse princípio impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A submissão do homem a processos judiciais indefinidos atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva, além de ferir o princípio da dignidade humana. Assim, não se afigura admissível o uso do processo penal como substitutivo de uma pena que se revela tecnicamente inaplicável ou a preservação de ações penais ou de investigações criminais cuja inviabilidade já se divisa de plano.”
Por conseguinte, se realizada a extradição imediata, fundada em critérios de conveniência, não há como subsistir ações penais em curso em território nacional, por inequívoca renúncia tácita do direito de ação, atribuída por analogia ao decreto presidencial que determinou a remessa do estrangeiro ao país solicitante, interpretando-se como evidente desistência do Brasil na punição do Suplicante pelos crimes supostamente cometidos em território nacional, pela necessidade e interesse que este fosse remetido ao país solicitante para o início imediato da pena que ali recebera pelos crimes cometidos. Neste sentido, colaciona Mirtô Fraga[[viii]]: “O art. 90 faculta ao governo proceder à entrega do extraditando, ainda que esteja respondendo a processou já esteja condenado pela prática de contravenção. É o Poder Executivo o juiz da oportunidade e conveniência da medida. Muitas vezes, visando à imediata apuração de crimes graves, o estado pode renunciar ao direito-dever de punir o extraditando por infrações menos graves como a contravenção. Tudo depende do exame de cada caso concreto.”
Neste viés, em sendo a graça forma de clemência soberana, uma modalidade de perdão concedido pelo Presidente da República, destinada a pessoa determinada e não a fato, sendo irrecusável pelo agraciado e irrecorrível, constitui causa de extinção da punibilidade (art. 107, II, do CP). Por tal desiderato, tendo-se por certo que a extradição se dá por decreto presidencial, irrecorrível, pautado pela discricionariedade e pela análise parcimoniosa da conveniência e do interesse internacional, evidentemente que o Estado abre mão do direito de punir o indivíduo, razão pela qual nos leva a crer na concessão da graça de forma tácita, pela assinatura do decreto de extradição.
Leva-nos a tal entendimento a consideração de outra vertente, porquanto ainda que se queira deliberar por continuar com a ação penal contra o estrangeiro, entendemos não se pode dar continuidade a um processo sem que se possibilite ao acusado o direito de comparecer aos atos processuais, de efetuar a sua ampla defesa, seu direito intangível ao contraditório, como forma de constituição do devido processo legal;
E eventual continuidade do processado violaria os direitos e garantias constitucionais do ora acusado, fato constatável, prima facie, sem necessidade de maiores aprofundamentos.
Até mesmo pelo que se amealha no Pacto de São José da Costa Rica, ao qual o Brasil é signatário, no seu artigo 8º se colaciona o direito do acusado de comparecer aos atos processuais, de ser ouvido, e de ser-lhe asseguradas todas as garantias processuais inerentes ao devido processo legal, verbis: “1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”. Dessa regra insculpida, na qual se denota a necessidade de se preservar os basilares do contraditório, da ampla defesa, mormente no que concerne ao direito à autodefesa, e do devido processo legal, garantias máximas da dignidade da pessoa humana, devem ser observadas a todos os acusados, mormente se tratar de processo penal. Da lição de Antonio Scarance Fernandes[[ix]], destaca-se:“….Na evolução do relacionamento indivíduo-Estado, houve necessidade de normas que garantissem os direitos fundamentais do ser humano contra o forte poder estatal intervencionista. Para isso, os países inseriram em suas Constituições regras de cunho garantista, que impõem ao Estado e à própria sociedade o respeito aos direitos individuais, tendo o Brasil, segundo José Afonso da Silva, sido o primeiro a introduzir em seu texto normas desse teor. Além disso, principalmente após as guerras mundiais, os países firmaram declarações conjuntas, plenas de normas garantidoras, visando justamente a que seus signatários assumissem o compromisso de, em seus territórios, respeitarem os direitos básicos do indivíduo. […] Entre nós, as Constituições, desde o Império, contemplaram normas de garantia individual, sendo nesse aspecto pródiga a Constituição atual, que, em seu art. 5.°, apresenta extenso rol de regras destinadas a assegurar os direitos individuais e coletivos.”
E Alexandre de Moraes[[x]], bem conceitua estas garantias constitucionais: “Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-lhe ou dar-lhe a versão que lhe convenha, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor. A tutela judicial efetiva supõe o estrito cumprimento pelos órgãos judiciários dos princípios processuais previstos no ordenamento jurídico, em especial o contraditório e a ampla defesa, pois não são mero conjunto de trâmites burocráticos, mas um rígido sistema de garantias para as partes visando ao asseguramento de justa e imparcial decisão.”
E alerte-se ao fato de que mesmo que haja a defesa técnica, mister a efetivação da autodefesa como forma de se integrar a vivência e o conhecimento da acusação ao Acusado, como forma de se permitir o pleno exercício de defesa que resulta da coesão entre defesa técnica e autodefesa. Vale a citação do que o douto Fernando da Costa Tourinho Filho[[xi]], aduz: “Defesa, em sentido amplo, é toda atividade das partes no sentido de fazer valer, no Processo Penal, seus direitos e interesses, não só quanto à atuação da pretensão punitiva, como também para impedi-la, conforme sua posição processual.(…)A defesa é, pois, necessária. Como bem diz Tornaghi, o Estado procura fazer justiça, e ele não poderá estar certo de tê-la feito e, portanto, não tranqüilizará o homem de bem, se não der ao acusado a mais ampla defesa”.
Na acepção das palavras que compõem a expressão ampla defesa, teríamos segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio, conceituado como: “Ato ou forma de repelir um ataque; resistência: Contestação de uma acusação; refutação, impugnação: advogado de defesa. Justificação, alegação”. Não se trata apenas de uma formal defesa, mas da conceituação e garantia da ampla defesa. A adjetivação tem significado e propósito certo, não podendo ser negada em qualquer que seja o âmbito. Judicial e ou Administrativo, sob pena de nulidade[[xii]].
Além disso, é direito do acusado comparecer perante o Juízo do qual tramita a ação penal em seu desfavor e ali, contrariar as acusações que lhe são dirigidas, não apenas participando como mero espectador, mas atuando diretamente em sua defesa, opinando, questionando e ouvindo o que as testemunhas têm contra si ou com relação ao suposto delito que cometeu[[xiii]]. Privá-lo de participar do curso do processo seria restringir, podar seus direitos fundamentais, culminando na temerosa e repudiada admissão de julgamento de exceção, que somente em distante tempo de guerra se admitiu, e do qual não se ousa “desengavetar”.
Desta forma, não havendo qualquer forma legal e admissível para a punição do extraditando, e ainda se tendo em conta que assinado o Decreto Presidencial de extradição, se tendo por certo que o Estado, por critérios de interesse e conveniência abre mão do seu Direito-dever de punir, há de se conceder graça ao extraditado, não podendo vir a ser punido por aquele fato ao qual fôra acusado, mesmo que cumprida a sua pena no exterior e volte a ingressar em território nacional, constituindo tal hipótese em modalidade de extinção da punibilidade, por interpretação ao que estabelece o artigo 107 do Código Penal, bem como pelo teor do que dispõem os artigos 89 e 90, c.c. artigo 67, todos da Lei 6.815/80, que trata do Estatuto do Estrangeiro.
Informações Sobre o Autor
Guilherme Pereira Gonzalez Ruiz Martins
Advogado criminal, membro do Escritório Bialski Advogados Associados, Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (UniFMU), pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).