Resumo: Há intensa polêmica jurídica no que se refere ao interesse em legislar sobre meio ambiente, especialmente sobre a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar. A partir de levantamento bibliográfico e documental, o presente estudo objetivou analisar a competência para legislar sobre a proibição da prática da queima da palha da cana-de-açúcar. A partir das linhas lançadas sobre a evolução do federalismo brasileiro e a exposição dos principais dispositivos que regulamentam a matéria, conclui-se que, dentro da perspectiva imposta pela Constituição da República Federativa do Brasil e de acordo com o princípio da predominância dos interesses, pode ser do Município a competência para legislar sobre proibição da queima da palha da cana-de-açúcar.
Palavras-chave: Direito Constitucional; Organização Federativa; Competências Federativas; Questão Ambiental: Município.
Abstract: There is intense legal controversy regarding the interest in legislating on the environment, especially on banning the burning of cane sugar. From bibliographic and documentary, this study aimed to analyze the competence to legislate a ban on the practice of burning the cane sugar. From the lines laid on the evolution of Brazilian federalism and exposure of the main provisions governing the matter, it is concluded that, from the perspective imposed by the Constitution of the Federative Republic of Brazil and in accordance with the principle of predominance of interests can be the municipality the authority to legislate ban on burning of cane sugar.
Keywords: Constitutional Law, Federal Organization; Skills Federations; Environmental Issue: Municipality.
Sumário: Introdução; 1. Breve apontamento sobre a federação; 2. Concepção histórico-normativa do federalismo no Brasil; 3. O federalismo brasileiro e o meio ambiente; 4. As competências municipais no federalismo brasileiro; 5. Proibição da queima da palha da cana-de-açúcar: qual ente é competente para legislar? 5.1. A prática da queima da palha da cana-de-açúcar; 5.2. Regulamentação do assunto; 5.3. A resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997; 5.4. Interesse Local; 5.5. Casos Específicos; a) Município de Paulínia – São Paulo; b) Município de Mogi Mirim – São Paulo; c) Município de Rio Verde – Goiás; 6. Entendimento do Supremo Tribunal Federal; 7. Conflitos de legislação ambiental; 7.1.Conflitos de legislação ambiental envolvendo a prática da queima da palha da cana-de-açúcar; 7.1.1. Princípio da Predominância do Interesse. 8. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O assunto abordado no presente trabalho refere-se ao estudo de um fenômeno jurídico, cuja ocorrência é verificada no âmbito do Direito Constitucional, do Direito Agrário e do Direito Ambiental.
A inspiração para a análise da questão da proibição da prática da queima da palha da cana-de-açúcar deu-se em virtude das rotineiras leituras sobre o tema, bem como pelo interesse no debate das aulas que abordaram a questão da prática da queima.
De acordo com estudos publicados por diversos órgãos, entre eles o Ministério Público e Associações de Defesa do Meio Ambiente, a poluição atmosférica ocasionada pela queima da cana-de-açúcar causa diversos danos ao bem ambiental, à saúde pública e, logicamente, aos trabalhadores envolvidos diretamente nas queimadas. É por tal motivo que, visando coibir a prática da queima da palha da cana-de-açúcar, os movimentos sociais em geral e a as ações do Poder Público vêm se fortalecendo.
Assim, com o fito de acompanhar a dinâmica que garante o desenvolvimento desse processo, o presente artigo analisa importante problemática que gira sobre a órbita das competências federativas e do direito ambiental: teria o município competência para legislar sobre a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar, quando a norma produzida refletisse maior benefício para o meio ambiente?
Com este propósito, analisar-se-á, a partir de uma análise constitucional-ambiental, o status e a evolução histórico-normativa das competências federativas para, em seguida, compreender se é o município o ente federativo competente para legislar em caso de norma mais benéfica para o meio ambiente.
A fim de delimitação do tema, procedeu-se a um corte metodológico para que o objeto da discussão fosse fixado na seguinte questão: competência constitucional para legislar sobre o meio ambiente.
1. BREVE APONTAMENTO SOBRE A FEDERAÇÃO
De origem latina, a palavra federação significa união, pacto, aliança. Daí decorre a conclusão de que a federação é formada pela união de vários entes.
A federação tem como características essenciais a descentralização político-administrativa fixada pela Constituição; o princípio da participação e o princípio da autonomia.
Enquanto a descentralização político-administrativa engloba a elaboração de leis e a capacidade de autogoverno, o princípio da participação traduz-se na possibilidade das vontades parciais participarem da formação da vontade nacional, ao passo que o princípio da autonomia significa a capacidade de auto-organização dos entes federativos.
Diferentemente das características da federação, há requisitos que são fundamentais para a manutenção de um Estado federativo como a rigidez constitucional; a consagração em cláusula pétrea; e a existência de controle de constitucionalidade.
2. CONCEPÇÃO HISTÓRICO-NORMATIVA DO FEDERALISMO NO BRASIL
De acordo com Paulo José LEITE FARIAS, desde a constituição de 1891, que instituiu o federalismo no ordenamento jurídico constitucional, diferentes modelos de federalismos centrípetos[1] e centrífugos[2] foram adotados. Ocorre que, conforme as palavras do autor, o efetivo equilíbrio entre as partes federativas, em muitos momentos, mostrou-se precário.
É importante assinalar que a Constituição de 1891 optou pelo modelo federal seguido pelos Estados Unidos, Suíça, Argentina e México[3]. Esta filosofia, entretanto, foi modificada com a reforma de 1926, que restringiu a autonomia dos Estados-membros. Oswaldo TRIGUEIRO[4] ensina que tais Estados passaram a sofrer rigoroso controle político e administrativo por parte da União.
Desta forma, a partir de 1926, “reconhece-se que o Estado Federal brasileiro não vence a vocação centralista do poder político”. A Constituição de 1934, por exemplo, alarga a competência privativa da União.
Orlando BITAR[5] ensina que o federalismo brasileiro passou pela fase do Federalismo Segregacionista, de 1889 até 1934, com ênfase na autonomia local; e pela fase do Federalismo Orgânico ou Federalismo de Cooperação, de 1934 até a Constituição de 1967, com ênfase na cooperação, ajuda financeira da União para os Estados-membros. No primeiro, admite-se apenas a ação federal nos Estados-membros para a prestação de socorros. No segundo, os Estados-membros passam à condição de meros departamentos, sob a administração do governo central.
Na Constituição de 1967, bem como na Emenda de 1969, de Paulo José LEITE FARIAS observa que a preocupação principal passa a ser com o desenvolvimento econômico-social e a segurança nacional, em sentido amplo.
O mesmo autor ainda ressalta que esta constante centralização do Estado brasileiro leva inúmeros autores a indagar se o Brasil era, ainda, verdadeiramente um estado Federal, em razão da hegemonia do ente União sobre os demais.
A Constituição de 1988 traz uma nova configuração para o federalismo. Neste ponto, é importante notar o Município antes e depois de 1988. É que houve a verdadeira metamorfose desta pessoa jurídica de direito público. A Constituição de 1988 consagrou a autonomia do Município e sua integração à Federação.
Paulo BONAVIDES ressalta o progresso do texto constitucional ao consagrar a autonomia municipal e diz que “as prescrições do novo estatuto fundamental de 1988 a respeito da autonomia municipal configuram indubitavelmente o mais considerável avanço de proteção e abrangência já recebido por este instituto em todas as épocas constitucionais de nossa história.” [6]
Segundo Raul Machado HORTA, resta claro a reconstrução do federalismo com o lançamento das bases de um federalismo de equilíbrio com a modernização da repartição de competências dos entes federados.
3. O FEDERALISMO BRASILEIRO E O MEIO AMBIENTE
A Constituição Cidadã, na busca de modelos de Estado que efetivassem a garantia dos direitos fundamentais, escolheu o modelo do Estado Federado, como expressão histórica de mecanismo de concretização do respeito às diferenças locais.[7] É por este motivo que a distribuição das competências, problema nuclear do federalismo, como já assinalava Karl LOEWENSTEIN[8], sinaliza a opção de modelo estatal que se preocupa com a unidade do todo e com a diferença da partes.[9]
É assim que a Constituição brasileira de 1988 mantém a tradição republicana e estabelece que a República brasileira compõe-se da união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal.[10]
Gilmar Ferreira MENDES[11], na apresentação da tese de doutorado de Paulo José LEITE FARIAS ensina que o modelo federal presente na Constituição de 1988, conhecido também como “novo federalismo” possibilita a aproximação mais efetiva do poder político com o cidadão e propõe a busca da maior cooperação entre as diferentes esferas de poder estatal e por isso garante maior eficiência do Estado.
Esta mesma constituição, promulgada em 1988 sob forte inspiração democrática e com um novo perfil de federalismo, consagrou o tema meio ambiente e garantiu o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
No esquadro federativo, o meio ambiente, assim denominado pela Constituição de 1988, está previsto como sendo de competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal. Gilmar Ferreira MENDES observa que este tipo de competência adotada pelo Brasil induz ao fortalecimento do federalismo, já que é um potencial fator de equilíbrio entre as esferas locais e nacional.
A Constituição também elenca a competência comum para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios visando à proteção do meio ambiente e o combate à poluição em quaisquer de suas formas.
Paulo Affonso LEME MACHADO[12] antecipa a lição contida no art. 24, §3º da CRFB/88, e ensina que “para atender às peculiaridades próprias, os Estados poderão exercer a competência legislativa plena, desde que não exista ‘lei federal sobre normas gerais”. O autor ainda lembra que a referida competência plena sofre limitação qualitativa e temporal, uma vez que a norma estadual não poderá exorbitar da peculiaridade ou do interesse próprio do Estado e terá que se ajustar ao disposto em norma federal ambiental superveniente.
O mesmo professor[13] ressalta que a Constituição brasileira não conceituou o que seria a norma geral. O professor esclarece que tal tipo de norma tem como objetivo a aplicação da mesma regra em um determinado espaço territorial.
Salienta-se, contudo, que a norma geral federal ambiental possui características próprias, podendo não ser totalmente aplicada em todo o território nacional. O professor mais uma vez esclarece: “Uma norma geral federal ambiental poderá dispor, por exemplo, sobre áreas previstas no art. 225, § 4º – Floresta Amazônica Brasileira, Serra do Mar, Mata Atlântica, Pantanal e Zona Costeira. A norma geral pode abranger somente um ecossistema, uma bacia hidrográfica ou somente uma espécie vegetal ou animal” [14].
No que diz respeito à competência suplementar dos Estados prevista no art. 24 § 2º, da CRFB/88, necessária é a legislação federal para que haja o suplemento. É que “não se suplementa uma regra jurídica simplesmente pela vontade de os Estados inovarem diante da legislação federal” [15]. E mais: “a capacidade de suplementaria está condicionada à necessidade de aperfeiçoar a legislação federal ou diante da constatação de lacunas ou imperfeições da normal geral federal”.[16]
Sobre a competência ambiental comum, verifica-se que o art. 23, CRFB/88, elencou as atividades que devem ser desenvolvidas pelo Poder Público. Paulo Affonso LEME MACHADO observa que o referido dispositivo constitucional deve ser compreendido em consonância com outro: o art. 18, CRFB/88, que determina: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.[17]
Em relação à autonomia, é imperioso observar que ela não pode significar distanciamento entre os entes, mas ao contrário: aglutinamento de esforços em prol do bem comum. É que as normas gerais federais ambientais não podem ferir a autonomia dos estados e dos Municípios, exigindo dos mesmos uma estrutura administrativa ambiental idêntica à praticada no âmbito federal.
Paulo José LEITE FARIAS ainda ensina que a autonomia do Estado-membro pressupõe repartição constitucional de competências para o exercício e o desenvolvimento de sua atividade normativa.[18] É certo que estes dois aspectos são fundamentais para a manutenção da fisionomia escolhida pelo Estado Federal.
Neste sentido, a técnica da repartição de competência exterioriza-se como forma de convivência harmoniosa de vários ordenamentos jurídicos no mesmo território.
5. AS COMPETÊNCIAS MUNICIPAIS NO FEDERALISMO BRASILEIRO
Sobre o tema de divisão de competências, Fernanda Dias Menezes de ALMEIDA[19], assevera que o sistema adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil aproxima-se com o sistema alemão, pois faz previsão das competências legislativas e não legislativas da União em artigos diversos.
Alguns autores, como Raul Machado Horta e José Afonso da Silva, entendem que o Município nada mais é senão a divisão política de Estado-membro, não podendo ser elevado à categoria de ente federativo.
José Afonso da Silva, como tese argumentativa, afirma que o Município não participa da formação da vontade nacional, já que não possui representantes no Congresso, como possuem os Estados. Além disso, o autor argumenta que não existe “federação de municípios”. É que se é considerássemos que o município é ente federativo, em verdade, a natureza dele seria a mesma natureza do Estado-membro, considerando que não há “federação de municípios”.
Ocorre que em entendimento majoritário, outros autores, como Hely Lopes Meirelles e Paulo Bonavides, afirmam que o Município é entidade da federação. Referente a esta tese, o primeiro argumento e principal, citado pela maioria dos autores, que debatem o tema, é o que está contido nos arts. 1º e 18 da CRFB/88, que elenca os Municípios como entes federativos. Ademais, o segundo argumento é de que os Municípios possuem as mesmas autonomias atribuídas à União, aos Estados e ao Distrito Federal, a saber: auto-organização; auto-legislação; auto-governo e auto-administração.
Ainda sobre o assunto, Lucíola Maria de Aquino CABRAL[20] ensina que este ente constitui, em verdade, uma terceira esfera governamental, característica peculiar da federação brasileira, decorrente da opção política do constituinte originário.
Lucíola CABRAL[21] ainda ressalta que a escolha política acima referida “resultou no redesenho do perfil e na ampliação das atribuições conferidas aos municípios, construindo-se uma federação tríplice e não dual como o era reconhecidamente até a data que antecede a promulgação da Constituição da República de 1988”.
Ultrapassada a discussão sobre a natureza do Município e reconhecendo-o como ente federativo, pode-se a partir da leitura atenda da CRFB/88 concluir que, em relação à competência ambiental, os Municípios têm o dever de preservar o meio ambiente para as futuras gerações (art. 225, caput, CRFB/88); têm a incumbência de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (art. 225, § 1º, V, CRFB/88); são competentes para legislar privativamente e para legislar e administrar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, CRFB/88); para suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, II, CRFB/88).
5. PROIBIÇÃO DA QUEIMA DA PALHA DA CANA-DE-AÇÚCAR: QUAL ENTE É COMPETENTE PARA LEGISLAR?
5.1. A prática da queima da palha da cana-de-açúcar
A prática da queima da palha da cana-de-açúcar é apontada como uma das práticas de manejo mais arcaicas da cadeia produtiva do etanol e do açúcar. É considerada arcaica, pois, a sua prática pressupõe a utilização do fogo. Este método pouco onera os cultivadores da cana-de-açúcar, embora cause grandes prejuízos para o meio ambiente, para os trabalhadores que realizam a queima e para a população em geral.
Sobre o assunto, Marcello Ribeiro SILVA[22] esclarece que “a prática de queimar a folha da cana, como preparo para a colheita, foi uma forma encontrada no passado para solucionar o problema do aumento da área plantada de cana, sem o respectivo aumento dos custos com mão-de-obra para a colheita”.
O autor ainda ressalta:
“Paradoxalmente, enquanto a agroindústria da cana tenta transmitir ao mundo a imagem de uma produção ambientalmente correta, em sintonia com a sustentabilidade ambiental global, verifica-se, na prática, a existência de várias mazelas socioambientais relacionadas à cadeia produtiva do etanol, revelando que o desafio da sustentabilidade não se limita apenas à escolha do combustível que alimenta os motores dos automóveis, dependendo, primordialmente, de um padrão de produção socialmente mais justo e ambientalmente mais equilibrado.”
O referido autor, no artigo Aspectos socioambientais da expansão da lavoura canavieira no Brasil, traz a informação de que diversos estudos, alertando para os graves riscos que a queima dos canaviais representam para a saúde humana, foram realizados.
Neste sentido, há pesquisas técnicas realizadas em Espírito Santo do Turvo (SP), por exemplo, que relatam sobre a exposição aos Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA), compostos orgânicos gerados pela combustão da palha, e a ocorrência de câncer. Como agravante das queimadas, há também a questão dos problemas respiratórios causados por elas.[23]
Ademais, a questão é que a prática da queima da palha da cana-de-açúcar caracteriza acentuado prejuízo ao meio ambiente. É que, conforme assevera Daniel Bertoli GONÇALVES, naturalmente, a queima traz problemas ao solo, já que eleva a temperatura da terra, além de além de levar à polimerização de suas substâncias húmicas e à perda de nutrientes, quer pela atmosfera, através da combustão, quer pelas águas, por posterior lavagem e lixiviação. [24] Ademais, as queimadas ainda são capazes de destruir uma variedade incalculável de espécimes da fauna.
Do assunto da prática da queima da palha da cana decorre grande discussão acerca de sua admissibilidade e por isso o assunto congloba tanto defensores quanto opositores.
Se por um lado há argumentos no sentido de melhora no manuseio do caule da planta, além de considerável diminuição da incidência de animais ferozes ou peçonhentos e redução da quantidade de material inservível, de outro, há quem afirme que a prática da queima inevitavelmente lança na atmosfera grandes quantidades de vários poluentes prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente.
5.2. Regulamentação do assunto
Sobre o tema, é importante ressaltar a existência do Decreto 2.661/98 de 8 de julho de 1998, que regulamentou o parágrafo único do art. 27 da Lei nº 4.771/1965 (código florestal), mediante o estabelecimento de normas de precaução relativas ao emprego do fogo em práticas agropastoris e florestais.
O referido decreto em seu art. 16[25] diz que o emprego do fogo, como método despalhador e facilitador do corte de cana-de-açúcar em áreas passíveis de mecanização da colheita, será eliminado de forma gradativa, não podendo a redução ser inferior a um quarto da área mecanizável de cada unidade agroindustrial ou propriedade não vinculada à unidade agroindustrial, a cada período de cinco anos, contados da data de publicação do Decreto.
Por meio de um simples cálculo matemático, verifica-se que a efetiva eliminação da prática ocorrerá apenas em 2018.
No Estado de Goiás, há a Lei nº 15.834/2006, que dispõe sobre redução gradativa da queima da palha de cana-de-açúcar em áreas mecanizáveis, contudo sinaliza que a eliminação desta prática apenas ocorrerá em 2028[26]. Por exorbitar a competência suplementar dos Estados, tal lei foi declarada parcialmente inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Goiás.[27]
No que pese a declaração de inconstitucionalidade da lei pelo tribunal goiano, bem com a declaração de inconstitucionalidade de outras leis estaduais por outros tribunais em nosso país[28], a questão é que o decreto federal que regulamentou a eliminação gradativa continua existindo.
Como bem observa Gisleide da Silva COUTO, o Município, representado pela função legislativa e executiva, é um agente significativo para o direcionamento do setor sucroalcooleiro.[29]
Neste sentido, é de interesse saber se os municípios poderiam legislar proibindo a prática da queima da palha da cana-de-açúcar, com base no direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; no princípio da predominância do interesse; no princípio da subsidiariedade (fortalecimento do poder local); e no princípio do desenvolvimento sustentável, mesmo que contrariando o decreto que prevê a eliminação gradativa.
Sobre o assunto o Tribunal de Justiça de Goiás[30], o Tribunal de Justiça de São Paulo[31], o Superior Tribunal de Justiça[32] e o Supremo Tribunal Federal[33] têm posicionamentos em sentidos diversos. Caberá ao Supremo Tribunal Federal, na análise do Recurso Extraordinário[34] referente à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1267800800,[35] cuja origem é do tribunal paulista, emitir o posicionamento final acerca da possibilidade de o Município legislar de modo favorável ao meio ambiente, mesmo quando contrarie a norma que suplementa.
5.3. A resolução nº 237, de 19 de dezembro de 1997
A Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente nº 237/97, dentre outros assuntos, trata do instituto do licenciamento ambiental e define a abrangência de impacto ambiental. No que pese ser uma resolução voltada quase que especificamente para temas que se referem ao instituto do licenciamento, este instrumento é também um importante subsídio interpretativo para outras ações que envolvam o meio ambiente.
É neste caminho que o art. 1º, V, da referida resolução, traz o conceito de impacto ambiental regional, que é definido como “todo e qualquer impacto ambiental que afete diretamente (área de influência direta do projeto), no todo ou em parte, o território de dois ou mais Estados”.[36]
O art. 4º, por sua vez, atribui ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, IBAMA, órgão executor do SISNAMA, a competência para ações voltadas ao licenciamento ambiental e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional.
Este dispositivo enquadra as atividades de competência do IBAMA. Entre tais atividades, podem ser destacadas aquelas “localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados; cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados; localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados; cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados.”
Por outro lado, o art. 5º, atribui ao órgão ambiental estadual (ou distrital) a competência no licenciamento ambiental dos empreendimentos e atividades, dentre outras situações, daqueles localizados ou desenvolvidos em mais de um Município; ou cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais de um ou mais Municípios.
Após análise dos dispositivos e pela letra fria da resolução, percebe-se que, no caso da regulamentação da queima da palha da cana-de-açúcar, por ser uma atividade que, na maioria dos casos, o seu impacto abrangerá mais de um município e até mesmo mais de um Estado, a competência para regulamentar jamais seria do Município.
Em uma interpretação da resolução à luz da Constituição da República, a competência para legislar sobre o assunto, considerando o impacto ambiental, seria da União ou dos Estados-membros.
A questão é: Como coadunar os interesses dos Municípios, entes mais afetados com as queimas, e as normas constitucionais e infraconstitucionais vigentes?
5.4. Interesse Local
A expressão interesse local está presente tanto na Constituição da República (art. 30, I) como na Constituição do Estado de Goiás (art. 64, I). Sobre a definição da expressão, interesse local poderia ser conceituado como toda ação que seja de forma dominante, preponderante, de interesse municipal.
Regina Maria Macedo Nery FERRARI[37] ensina que interesse local é aquele interesse intimamente relacionado à sociedade municipal, cujo atendimento não pode ficar na dependência de autoridades distantes do grupo que não viveu problemas locais.
Ivana Mussi GABRIEL traz as lições de Andréas Krell[38], que ensina:
“A expressão interesse local é semelhante aquela usada pela Lei Fundamental Alemã, que – diferentemente da situação no Brasil – não atribui competências específicas aos entes locais, mas contém em seu artigo 28, II, uma atribuição global de competências: ‘Aos Municípios deve ser garantido o direito de regular – na moldura das leis e com responsabilidade própria – todos os assuntos da comunidade local.”
Assim, em relação às questões ambientais, Antônio Fernando Pinheiro PEDRO[39] afirma que há apenas um critério para a solução de conflitos de competência implementadora em material ambiental: o do interesse ambiental ameaçado, e no mesmo sentido Paulo José Leite FARIAS observa que nos eventuais conflitos, nos quais a noção de norma gera e norma especial não seja suficiente, tais conflitos devem ser resolvidos pela prevalência da norma que melhor defenda o direito fundamental ao meio ambiente.
5.5. Casos específicos
a) Município de Paulínia – São Paulo[40]
O Município de Paulínia, assim como outros municípios no interior de São Paulo, legislou no sentido de proibir a queima de palha de cana-de-açúcar, visando à proteção ambiental.
A lei, que teve sua constitucionalidade discutida perante o tribunal paulista[41], pretende que o processo de queima seja substituído de forma imediata pelo cultivo mecanizado de cana. É que a população das cidades do interior paulista sofre com os efeitos da queima da cana.
No que pese alguns operadores do direito afirmarem que o Município não pode legislar sobre o assunto, uma vez que a competência para legislar do referido ente não pode conflitar com as normas dos demais mesmo quando mais benéfica, sob risco de diluição da organização do Estado, ousa-se discordar de tais pontos de vista.
Prefere-se adotar o argumento que a própria Constituição da República enuncia no art. 225. É que todos têm o Direito de um ambiente ecologicamente equilibrado e, por tal motivo, os Municípios ao legislarem sobre a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar respeitam os interesses locais.
b) Município de Mogi Mirim – São Paulo[42]
O município de Mogi Mirim, no mesmo caminho trilhado pelo Município de Paulínia, legislou no sentido de proibir a queima da palha da cana de açúcar. Diferentemente do resultado do outro município, o Tribunal paulista declarou a inconstitucionalidade da norma. O tribunal paulista[43], neste julgamento, considerou que as normas municipais não devem violar as normas estaduais, ainda que mais benéficas, mesmo quando o assunto é meio ambiente.
É que a maioria dos desembargadores considera que é competência da União a produção de normas gerais, ao passo que aos Estados é concedida a possibilidade de suplementar tais norma.
c) Município de Rio Verde – Goiás
Caso semelhante às situações acima narradas diz respeito à lei do Município de Rio Verde, que proibiu a prática da queima da palha da cana-de-açúcar. Apesar de ter tido sua constitucionalidade discutida, o tribunal goiano[44], decidiu pela constitucionalidade de tal lei
Contudo, a Lei nº 15.834/2006, que dispõe sobre redução gradativa da queima da palha de cana-de-açúcar em áreas mecanizáveis, foi declarada inconstitucional por exorbitar a competência suplementar dos Estados.
É que, como dito, a lei estadual previu prazo maior para a inutilização da prática da queima da palha do que aquele concedido na lei federal.
6. Entendimento do Supremo Tribunal Federal
O Estado de São Paulo e o Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP recorreram da decisão do tribunal paulista, na ADI 1267800800, que se refere ao Município de Paulínia. Por tal motivo, o assunto foi levado, por meio do Recurso Extraordinário 586224, para julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Pela relevância do tema, o assunto Competência do Município para legislar sobre meio ambiente foi alçado à categoria de Repercussão Geral. Apesar de não haver decisões ainda, já há algumas decisões. O então ministro Erro Roberto Grau, concedeu liminar para suspender os efeitos da lei municipal de Paulínia, que proibia a queima. No mesmo passo, o ministro Gilmar Mendes também concedeu liminar para a suspensão dos efeitos da Lei 3.963/2005, do Município de Limeira.
Apesar de existirem tais pronunciamentos, deve-se ressaltar que eles, ao menos a princípio, não expressam a vontade da corte. É que a matéria ainda está pendente de apreciação pelo colegiado.
7. CONFLITOS DE LEGISLAÇÃO AMBIENTAL
7.1. Conflitos de legislação ambiental envolvendo a prática da queima da palha da cana-de-açúcar
Na análise do presente estudo, pretendeu-se demonstrar a difícil questão acerca dos limites da capacidade legislativa na seara ambiental dos Municípios, especialmente, sobre a queima da palha da cana-de-açúcar.
A problemática se circunscreve na situação de que o meio ambiente traduz-se em assunto de interesse local, mas que, por definição constitucional, é um bem de uso comum do povo, que não tem sua limitação nas bases territoriais de um ente federativo.
Com a existência de uma legislação federal que regulamenta a questão da utilização da prática da queima e, na maioria dos casos, de uma legislação estadual, que tende a suplementar a primeira, a esfera de atuação dos municípios tende a ficar engessada, de modo a não poder legislar contra as outras legislações existentes.
No que pese tais fatos, considera-se que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve prevalecer. Para tanto, deve-se utilizar princípios que fortaleçam este ponto de vista, que está albergado no próprio texto constitucional.
É por isso que a partir de agora, analisar-se-á um importante princípio que servirá de viga mestra para a argumentação no sentido da possibilidade de os Municípios legislarem sobre a proibição. O intérprete deve buscar a interpretação que melhor prestigie o conteúdo da norma no âmbito do sistema normativo da Constituição.[45]
7.1.1. Princípio da Predominância do Interesse
O princípio da Predominância do Interesse vincula-se ao direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que foi prestigiado de maneira expressa no texto constitucional.
É certo que a Constituição da República, a fim de assegurar a preservação do meio ambiente, impõe deveres ao Poder Público, que são comuns a todas as esferas. Como pontua Lucíola Cabral, é no território do Município que são observadas as agressões ao meio ambiente. A autoria ainda ressalta que tal fato já justificaria que o município legislasse sobre meio ambiente. É por isso que arremata afirmando que os municípios possuem as melhores condições de dar cumprimento às normas constitucionais que visam à defesa ambiental.
É neste sentido que o princípio da predominância do interesse se irradia e encontra fundamento de validade na Constituição. Abelha[46] afirma que a aplicação do referido princípio leva em consideração a eficácia da proteção; o custo, a participação e o comprometimento da sociedade.
A proteção do meio ambiente afeta diretamente os interesses da totalidade e a interferência do Município na resolução dos problemas ambientais, que estão mais próximos a ele, faz com o que os comandos constitucionais sejam efetivados.
É nesta linha de raciocínio que se tende a acreditar que é o Município o ente federativo mais interessado em legislar sobre a proteção do meio ambiente, especificamente em casos como a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar.
Ao contrário do que se aparenta não se pretende dilacerar com a organização federativa proposta pela Constituição. O presente estudo serve apenas como incentivo, apenas efetivar, por meio de uma interpretação sistemática, o que o próprio texto constitucional pretende: garantir a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é essencial à sadia qualidade de vida, cuja defesa e preservação leve em conta as presentes e futuras gerações.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Município exerce importante papel dentro do esquadro federativo, notadamente nas questões de interesse local. A partir da análise apurada sobre os assuntos que envolveram o presente estudo, verifica-se que a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar insere-se neste conceito, uma vez que o referido ente é aquele que está mais próximo das mazelas advindas de tal prática.
É que, pelo próprio comando constitucional, pode-se extrair a interpretação de que, em relação ao meio ambiente, a norma mais benéfica deve prevalecer mesmo estando em conflito com outra norma, federal ou estadual.
No que pese haver argumento no sentido de que a organização federativa restaria fracassada se cada um dos municípios pudesse legislar da forma que lhe parecesse mais adequada, a tese compartilhada na presente análise não é esta.
O município, assim como qualquer ente, deve ter condições para ser autônomo e zelar pelo bem ambiental. Na questão da proibição da queima da palha da cana-de-açúcar, que é o específico objeto de estudo, a proibição imposta pelo município visa apenas à proteção do meio ambiente e da população diretamente interessada.
Neste sentido, espera-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal caminhe nesta linha de raciocínio.
Informações Sobre o Autor
Ludmilla Evelin de Faria Sant Ana Cardoso
Promotora de Justiça no Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Graduou-se na Universidade Federal de Goiás; onde também concluiu a pós-graduação em Direito Agrário e em Direito Ambiental. Possui pós-graduação em Direito Público pela Universidade Gama Filho. Aluna do Curso Máster en Proceso Penal y Garantismo da Universidade de Girona