Resumo: Buscar-se-á com este trabalho avaliar a perspectiva da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos de ambos os gêneros, dentro da legalidade e como vetor de quebra de obstáculos e preconceitos quanto à efetividade da prática, auxiliando assim na mitigação da problemática do menor abandonado por ascendentes biológicos, ou que estejam em situações de risco social, afetivo e familiar. Assim sendo, defender-se-á a prática da adoção por casais homoafetivos, como contexto basilar de defesa da dignidade da pessoa humana, conforme os princípios constitucionais da República Federativa do Brasil.
Palavras chave: Adoção, homoafetivos, preconceito, risco social, dignidade.
Abstract: It will seek to evaluate, the prospect of the adoption of children by homosexual couples and adolescents of both genders, within the law and how to break vector obstacles and prejudices about the effectiveness of practice, helping to mitigate the problem of less abandoned by biological ancestors, or who are in situations of social risk, affective and family. Therefore, it will defend itself the practice of adoption by homosexual couples, as a basic context for the defense of human dignity as the constitutional principles of the Federative Republic of Brazil.
Keywords: Adoption, homosexual, prejudice, social risk, dignity.
Sumário: 1. Introdução. 2. Família. 2.1. Conceito. 2.2. A estrutura familiar antes da constituição de 1988. 2.3. A estrutura familiar pós constituição de 1988. 2.4. A função social da família. 3. Adoção. 3.1. Conceito, características e historicidade. 3.2 requisitos legais para adoção. 4. A adoção em núcleo familiar homoafetivo. 4.1. Homossexualidade: um novo contexto social. 4.2 a adoção em núcleo familiar homoafetivo: a juridicidade do processo. 5. Considerações finais. Referências.
“Filho Adotivo
Sérgio Reis
Com sacrifício, Eu criei meus sete filhos, Do meu sangue eram seisE um peguei com quase um mês; Fui viajante, Fui roceiro, fui andante, E pra alimentar meus filhos, Não comi pra mais de vez
Sete crianças, Sete bocas inocentes, Muito pobres, mas contentes, Não deixei nada faltar, Foram crescendo, Foi ficando mais difícil, Trabalhei de sol a sol, Mas eles tinham que estudar
Meu sofrimento, Ah! meu Deus, valeu a pena Quantas lágrimas chorei, Mas tudo foi com muito amor, Sete diplomas, Sendo seis muito importantes, Que as custas de uma enxada, Conseguiram ser doutor
Hoje estou velho, Meus cabelos branquearam, O meu corpo está surrado, Minhas mãos nem mexem mais, Uso bengala, Sei que dou muito trabalho, Sei que às vezes atrapalho, Meus filhos até demais
Passou o tempo, E eu fiquei muito doente, Hoje vivo num asilo, E só um filho vem me ver, Esse meu filho, Coitadinho, muito honesto, Vive apenas do trabalho, Que arranjou para viver
Mas Deus é grande, Vai ouvir as minhas preces, Esse meu filho querido, Vai vencer, eu sei que vai, Faz muito tempo, Que não vejo os outros filhos, Sei que eles estão bem, E não precisam mais do pai
Um belo dia, Me sentindo abandonado, Ouvi uma voz bem do meu lado, Pai, eu vim pra te buscar, Arrume as malas, Vem comigo, pois venci, Comprei casa e tenho esposa, E o seu neto vai chegar
De alegria eu chorei, E olhei pro céu, Obrigado, meu Senhor
A recompensa já chegou, Meu Deus proteja, Os meus seis filhos queridos, Mas foi meu filho adotivo, Que a este velho amparou.”
1. INTRODUÇÃO
Hodiernamente, o preconceito paira sobre a atitude positiva que muitos casais unidos pela homoafetividade tomam para construção e formação de um novo núcleo familiar, através da adoção de crianças, cuja família se desestruturou e foram abandonados em creches e lares que compõe a família substituta.
A transformação evolutiva da sociedade, e a mudança de concepção de família, vêm a contribuir na aceitação dessa nova constituição do núcleo familiar.
O relacionamento dentro do seio familiar ganhou uma nova moldura, onde prima a afetividade, a troca de experiências, a conversa, o aconchego de um lar na concepção literal da palavra. A problemática social gerada pelo abandono de crianças, que ficam à mercê de traficantes e exploradores de mão de obra barata e explorados sexualmente, culminando com a destruição do amor próprio de um ser que ainda está em formação psicossocial, leva a uma nova evolução do Direito de Família, onde a adoção por casais homoafetivos, cuja situação socioeconômica permite que eles sejam um porto seguro para retirar essas crianças da situação de risco em que se encontram.
O nosso ordenamento jurídico precisa também evoluir, atestando a eficácia do processo de adoção por casais homoafetivos, como fomentador da criação de um novo núcleo familiar e a criação de uma nova perspectiva de vida para muitas crianças abandonadas.
A hipocrisia da nossa sociedade, durante longo período da história, não aceitava que um núcleo familiar fosse criado de forma diferente do preconizado pelos usos e costumes – a formação da família composta por um casal heterossexual unido pela constância do casamento e pelos filhos oriundos desse relacionamento, e, raramente, por filhos adotivos.
Conseguiu-se subir um degrau na escala evolutiva da concepção de família, quando, por necessidade da adequação de crianças ao modelo educacional vigente, passou-se a adotar o que já era uma constante fática: a presença cada vez maior no sistema de crianças concebidas fora da estrutura do casamento, como no caso de crianças filhas de pais separados, de crianças que eram filhas de pais desconhecidos ou ausentes, filhos concebidos durante a união de estável – nova estrutura jurídica possível do conviver -, criando dessa forma, novas “entidades” familiares, passando a serem pela sociedade em si.
Assim sendo, nortear-se-á esse trabalho, na busca do esclarecimento sobre a adoção por casais homoafetivos, cuja base jurídica permear-se-á nos princípios basilares da nossa Constituição, que prezam pela igualdade, pela dignidade da pessoa humana, pela não discriminação social, sexual ou de cor, e principalmente pelo melhor interesse da criança.
Destarte, buscar-se-á no desenvolvimento do primeiro capítulo, a concepção da Família em si, sua evolução ao longo dos tempos e o que se tem na Constituição Federal acerca do tema.
Seguidamente, desenvolver-se-á estudos à cerca do instituto da adoção, através da análise de seu conceito e sua evolução histórica no mundo, e principalmente no Brasil, cujo norteador se faz à luz da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispões sobre Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido pela abreviatura de ECA.
Encerrando-se este estudo, analisar-se-á a utilização do mecanismo da adoção como forma de crescimento do núcleo familiar homoafetivo, cujo procedimento cria uma inovação na nova ordem social, através da contraposição da sociedade com as perspectivas da juridicidade do processo, e suas imbricações no Direito de Família.
2 FAMÍLIA
Nem todas as espécies animais constituem conglomerados de membros reunidos pela consanguinidade. Ao procriarem, a criação da prole de algumas espécies se faz isoladamente, com a ausência do fornecedor do gameta masculino. A matriz geradora da descendência realiza todo o trabalho sem a presença do macho, o que não deixa de caracterizar o núcleo formado por ela e seus filhos como uma família.
A formação de um conjunto de indivíduos em torno de um elemento dominante, em geral formado por laços de parentesco e consanguinidade, forma uma família, que faz parte de uma população formada por membros de outros grupos e que, por interação com esses outros contingentes vêm a criar novas famílias.
No caso da espécie humana, a formação de etnias familiares, dentro de sua organização e interação, compõe a estrutura básica da sociedade. Essa chamada “sociedade”, em suas células unitárias – as famílias – dita as normas e os preceitos para que se reconheçam esses grupamentos como entidades familiares e que ao se enquadrarem em seus ditames, sejam aceitas como parte da estrutura social.
Assim sendo, os grupamentos naturais a que se denominam de “famílias”, é composto por indivíduos que nascem, crescem, sobrevivem, reproduzem, realizam-se materialmente, intelectualmente e espiritualmente, estreitando o relacionamento entre si através dos laços não só consanguíneos, mas através da afetividade, do amor, do carinho, da educação e do respeito entre os membros da agregação familiar.
A família é uma instituição norteadora do desenvolvimento do indivíduo, cuja permanente integração, através da vinculação entre eles, eleva-os à categoria de ser integrante da sociedade em que vivemos. Sem essa instituição, a sociedade não existiria.
2.1 CONCEITO
Para que se possa conceituar “família” a partir do vocábulo gramatical, teríamos que escolher entre os diversos significados de acordo com o estudo que dela se fizesse, dentro da sociologia, da antropologia, da economia, ou do direito, e é nesse ponto que se dará ênfase ao trabalho aqui escrito.
A conceituação de família engloba uma série de fatores característicos de agregação de indivíduos em torno de um eixo centralizador de convicções e heterogeneidade, onde se predominam as relações afetivas, comandadas por um núcleo centralizador e dominador, seja ele do gênero masculino ou feminino, para onde se convergem os problemas, as agruras do cotidiano, e por força da autoridade presente no domínio do clã, as soluções e resoluções dos conflitos gerados internamente, ou que extrinsecamente venham a comprometer a unidade do sistema.
Consideremos, pois, a família como um núcleo heterogêneo de pessoas que pensam diferentes, agem diferentes, e embora ímpares, através dos laços de solidariedade e afetividade, conseguem através da reciprocidade nas relações, manter a coesão do grupo, culminando com o seu funcionamento harmônico e blindado contra as ingerências externas que possam vir a desencadear o esfacelamento da entidade familiar.
Basicamente, a agregação de indivíduos em torno de um grupo, advém da necessidade nos primórdios da civilização, da primazia básica de perpetuação da espécie, através da união sexual com vistas à procriação. Dessa organização com vistas à procriação, resultou na agregação em famílias, que formando grupos sociais, e é isso que afirma Taísa Ribeiro Fernandes (2004. p.41):
“Nas sociedades mais primitivas, já as pessoas se reuniam, formando grupos, com vistas à procriação. Aliás, antes de se organizar politicamente para formar os Estados, os homens da antiguidade remota viveram socialmente em famílias. A família, então, é um grupo social elementar, primário, que antecede ao próprio Estado”.[1]
A partir do momento em que se iniciou a interação entre esses indivíduos na formação desse grupo social, os papéis de cada um foram definidos, com qual tendo sua função e obrigação dentro do núcleo familiar. A inserção de indivíduos oriundos de outros grupos sociais, mesmo sem ter o condão reprodutivo, mas apenas pela submissão e respeito ao clã, propiciou a interação através de laços de afinidade, pela intimidade exercida entre os componentes do grupo, com forte afinidade entre eles, respeitando-se e simbioticamente desenvolvendo a estrutura familiar.
A unidade familiar, o ser-estar do modo de viver do homem, a convivência harmônica e fraterna dos indivíduos que convivem dentro do grupo, é que forma a família em si, cuja estrutura hodiernamente vem sendo modificada, transmutacionada pela nova ordem social, na qual a estrutura básica não se faz prisioneira do que se tem como conceito básico de família – homem + mulher + prole própria –, mas que nos novos padrões de formação familiar, encontravam-se objurgados pela sociedade, podendo agora vir a ser formada pela equação mulher + prole; mulher + prole adotada; homem + prole; homem + prole adotada; mulher + mulher + prole própria; mulher + mulher + prole adotada; homem + homem + prole própria; homem + homem + prole adotada – isso em função da opção sexual de cada um dos componentes do núcleo familiar.
Não temos, pois, no nosso ordenamento jurídico, uma definição contextual sobre o termo, mas segundo Maria Helena Diniz (DINIZ.2008. p.9)[2], das significações didáticas do conceito, três destas são destacadas, que são o sentido amplíssimo em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, o sentido lato no qual além dos cônjuges ou companheiros e de seus filhos, abrange os parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro), e o sentido restrito que limita a família à comunidade formada pelos pais (matrimônio ou união estável) e a da filiação.
Em verdade o uso da palavra “família” pelo português, foi incorporado pela inserção da expressão “famulus”, que designa o escravo doméstico legalizado que era trabalhador agrícola, prestando serviço na agricultura das famílias tribais ladinas, na região que hoje compreende a Itália (MIRANDA.2001. p. 57/58).[3]
Segundo Araújo Júnior (2015. p.1)[4], de forma ampla, “o termo “família” indica um conjunto de pessoas unidas por relação de parentesco (v.g., avós, pais, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, etc.), e/ou afinidade (v.g., marido e mulher, companheiros, etc.)”. Mas, para que não se configure apenas a significância ampla do termo, o mesmo autor define o termo de forma mais restrita, ao indicar que “a entidade formada por duas ou mais pessoas, unidas pelo casamento ou em razão de união estável (v.g., marido e mulher, marido, mulher e filho; marido e filho; mulher e filho; companheiros; companheiros e filho, etc.)”.
Um módulo diferenciado do termo “família”, é o denominado de “família pluriparental, que se intitula também como “família mosaico”, onde se cria uma nova entidade familiar pela união de indivíduos que já tem prole formada, e essa união é resultante da união das famílias singulares.
Outro exemplo é o da “família anaparental”, onde se tem a ausência dos genitores, apenas os descendentes do casal que a constituiu, que unidos pelos laços de fraternidade e afetividade formam esse núcleo familiar.
Já a “família sócio-afetiva” é a criada pelos laços de afeto e não de consanguinidade, por ausentes do pai/mãe biológicos, mas constituída por padrasto/madrasta, que vem a suprir a ausência de um deles, e que torna o referencial da figura paterno-materna na vida do infante.
Não obstante, as terminologias utilizadas para conceituar “família”, não contempla, ipsis litteris, a conceituação de família quando o núcleo familiar orbita em torno do mesmo gênero, sendo excludente conceitual quando se trata de indivíduos do mesmo sexo, mas que formam uma família de forma não convencional perante a sociedade, através da singular união homoafetiva.
Assim sendo, a formação da família contemporânea nesses parâmetros e mais essa forma de criação de núcleo familiar, consubstanciará esse estudo, haja vista que, nessa nova concepção de família, o aumento dos componentes do grupo, se não efetivado pelas vias genéticas e naturais, poder-se-á efetuar através da adoção de indivíduos biologicamente gerados por outrem.
2.2 A ESTRUTURA FAMILIAR ANTES DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A família, historicamente, é uma célula muito mais antiga que o Estado. Da sua composição, formação, organização e evolução, deu-se a estruturação basilar para criação da comunidade estatal.
Logicamente, a evolução da família, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, citado por DILL (2011), obedece a três fases históricas, sendo elas: o estado selvagem, barbárie e civilização.
“No estado selvagem, os homens apropriam-se dos produtos da natureza prontos para serem utilizados. Aparece o arco e a flecha e, consequentemente, a caça. É aí que a linguagem começa a ser articulada. Na barbárie, introduz-se a cerâmica, a domesticação de animais, agricultura e aprende-se a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano; na civilização o homem continua aprendendo a elaborar os produtos da natureza: é o período da indústria e da arte.” DILL (2011).[5]
Não obstante, a estrutura familiar brasileira a partir do descobrimento, segue os preceitos da Igreja Católica Apostólica Romana, que influenciava sobremaneira o direito que passou a viger na colônia, cujos ditames estavam organizados nas chamadas Ordenações Afonsinas, uma coleção de leis destinada a regular a vida doméstica dos súditos do Reino de Portugal a partir de 1446, durante o reinado de D. Afonso V, e que foram substituídas pelas Ordenações Manuelinas, que não chegaram a serem publicadas[6] e que por sua vez em 1595, foram trocadas pelas Ordenações Filipinas.
Obedecendo, pois, à Igreja Católica, a formação da entidade familiar no Brasil Colônia era formada pelo casamento religioso combinado com a conjunção carnal do par, e também pela formada por uma modalidade diferenciada, que se dava pelo trato público e pela fama, ou seja, era de conhecimento de todos que o casal constituía uma família, embora não reconhecido pela Igreja e era o denominado “casamento com marido conhecido,” segundo denota-se na página 20 do “O novo Direito de Família” de Wald (WALD.2002. p.30).[7]
Assim sendo, a sociedade vigente na época adotou esse modelo de família, e a família brasileira influenciou historicamente a sua constituição, e em decorrência, do direito, conforme atesta Marise Soares Corrêa (CORRÊA. 2009):
“Assim, deve-se comentar também que a família brasileira guardou as marcas de suas origens: da família romana, a autoridade do chefe de família; e da medieval, o caráter sacramental do casamento. Desta maneira, a submissão da esposa e dos filhos ao marido, ao tornar o homem o chefe de família — que, fincada na tradição, vem resistindo, na prática, a recente igualdade legal que nem a força da Constituição conseguiu sepultar — encontra a sua origem no poder despótico do pater familias romano. Ainda, o caráter sacramental do casamento advém do Concílio de Trento, do século XVI.”[8]
Com a vinda da Família Imperial para o Brasil em 1808, manteve-se no Ordenamento Jurídico da época, o reconhecimento do casamento como entidade única familiar, ainda que, celebrado entre não católicos.
Dessa forma, o padrão vigente de família era fundado no matrimônio, cuja chefia cabia ao homem, e que agregava também ao seu redor, além da esposa, eventuais concubinas (claro que discretamente disfarçadas), filhos, parentes, padrinhos, afilhados, amigos, dependentes e ex-escravos. Era a denominada família patriarcal.
Por não conseguir impor sua autoridade, o governo português cedeu espaço à essa estrutura familiar, conforme cita FERRARINI (2010, p.58):
“Assim, na ausência de um Estado forte, os proprietários de terras foram tomando espaços e detendo o poder. Essa família patriarcal, baseada na autoridade masculina, estendeu-se por toda a sociedade brasileira, centralizada no senhor de engenho nos primeiros séculos, e depois nos políticos.”[9]
Manteve-se essa forma até o ano de 1890, quando, através do Decreto nº 181, cujo autor foi o ilustre Rui Barbosa, que passou a considerar como único casamento com validade reconhecida, o realizado por autoridade civil, garantindo a indissolubilidade do matrimônio, mas que permitia a separação de corpos, não atribuindo valor jurídico ao casamento realizado apenas religiosamente (WALD. 2002. p.21)[10]
Esse Decreto manteve-se em vigência até a promulgação da Lei nº 3.071 de 1º de janeiro de 1916, que instituiu o Código Civil Brasileiro, em cujo teor se manteve a estrutura familiar patriarcal, mas colocando a mulher casada no rol dos indivíduos relativamente incapazes, cuja capacidade só foi lhe devolvida através da promulgação da Lei nº 41.121/62 – Estatuto da Mulher Casada. Considera, pois, esse Código, o casamento como instituto jurídico uno como formador da família, não admitindo que o casamento fosse dissolvido, permitindo apenas o “desquite” e dessa maneira impondo dificuldades para a adoção e não permitindo o reconhecimento de filhos fora do casamento, sejam eles adulterinos ou incestuosos.
Embora a Constituição de 1934, tenha dedicado pioneiramente um capítulo inteiro à família, com o Estado garantindo proteção especial à instituição, as cartas constitucionais subsequentes repetiram esta forma de proteção, mas manteve quase que intocadas as normas herdadas do Código Civil de 1916, permanecendo a estrutura patriarcal da família, o casamento como maneira única de formar uma família, a maneira discriminatória de tratar os filhos havidos fora do casamento e os adotados, sem se referir ao “companheiro (a)”, seja em quaisquer das formas – seja através de união estável ou concubinato, e também não permitindo a dissolução do casamento, mas apenas o chamado “desquite”, mas que sofreu mudanças através da promulgação da Lei nº 6.515 de 1977, que instituiu a separação judicial e criou a instituição do divórcio.
O reconhecimento do adotado como elemento portador de relação de parentesco com o adotante só obteve regulamentação após a promulgação da Lei da Adoção – LEI Nº 3.133 – DE 8 DE MAIO DE 1957, mas, embora tivesse parentesco afetivo, quando se tratava de consanguinidade de fato, até o ano de 1977, o adotado só tinha direito hereditários limitados à metade da legítima, quando entrava no processo de herança concorrendo com os filhos reconhecidos como legítimos.
Depois da promulgação do Código Civil de 1916, a nossa Carta Magna e a legislação infraconstitucional sofreram várias alterações até que culminou com a Constituição Federal promulgada no ano de 1988, em cujo bojo permaneceu inalterável a constituição da entidade familiar através do casamento, continuando o concubinato e a união estável a serem ignorados pelos legisladores. Além disso, os legisladores constitucionais não deram a devida importância que o instituto da adoção requeria, protelando a resolução dos conflitos referentes às diferenças de direitos e de tratamento, que permeavam a relação entre os filhos legítimos e os adotados, haja vista que foi relegado a segundo plano a afetividade das relações familiares, já que não se considerava a afetividade como fator que tivesse relevância jurídica.
Vale ressaltar que todas as constituições brasileiras, excetuando a de 1824 (TAPIA. 2012)[11], até a de 1988 mencionam a família como base da sociedade e que terá a proteção do Estado.
2.3 A ESTRUTURA FAMILIAR PÓS CONSTITUIÇÃO DE 1988
Com a promulgação da Constituição Federal em 1988, a denominada Constituição Cidadã, observa-se um verdadeiro avanço jurídico na conceituação de família em relação às Constituições anteriores. O conceito constitucional de família é ampliado, atribuindo-lhe um novo papel – o de entidade participativa junto ao Estado e a sociedade.
A nossa Constituição, promoveu grandes inovações, por ocasião da sua entrada em vigor – reconheceu a união estável e a família monoparental como entidades familiares, além do casamento civil, realçando a igualdade entre homens e mulheres e no tratamento jurídico dispensado à filiação, cujo reconhecimento era eivado de preconceitos. Isso é o que se denota em artigo 226, aqui transcrito:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (Regulamento)
§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º – Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º – O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL.2001)” [12]
Depreende-se, pois, dos enunciados dos §§ 3º, 4° e 5º, que a nossa Carta Magna foi elaborada a partir de certa pressão de movimentos conservadores da sociedade brasileira da época, ou seja, de acordo com o parágrafo 3°, o avanço alcançado foi apenas o reconhecimento da união estável, mas derrapou quando esse reconhecimento pautou-se apenas entre indivíduos de gêneros diferentes.
Embora tenha dado ênfase à distinção entre indivíduos de sexos diferentes, abriu um precedente no § 4° ao entender como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, mas não faz nenhuma objeção que a essa entidade familiar tenha uma nova formação, com um dos indivíduos aqui denominado como “pais” (grifo nosso), venha a se unir com outro indivíduo que tenha um gênero diferente do seu.
Da mesma maneira que deixa em aberto a interpretação hermenêutica do parágrafo 4º, volta a cercear o direito dos brasileiros ao impor no parágrafo 5°, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (grifo nosso).
O indivíduo evolui, a sociedade evolui, e a nossa Constituição também deve acompanhar o sinal dos tempos, adequando sua estrutura às novas concepções de família criadas desde sua promulgação em 05 de outubro de 1988.
Constitucionalmente, a mudança ou acréscimo de quaisquer dos artigos da Carta Política de 1988, dar-se-á através mecanismos formais previstos nela própria, mas que, sorrateiramente, sofre modificações ou mutações, sem que o texto em si seja alterado, causadas pelo efeito dos costumes ou pelo ambiente político que esteja em voga, conforme PIZARRO (2014), citando Gilmar Mendes:
“[…] as mutações constitucionais são decorrentes- nisto reside sua especificidade – da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica, e indeterminada, com os fatores externos de, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia – intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte”. (PIZARRO. 2014)[13]
Para que se possa adentrar ao tema específico da organização estrutural familiar após a promulgação da Constituição de 1988, busquemos nela própria um artigo que será basilar na defesa desse tema, o artigo 1°, III conforme descrito:
“Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana”; (BRASIL.2001)[14]
Assim sendo, a dignidade da pessoa humana é uma questão de grau maior, cuja interpretação gerou uma série de controvérsias no que diz respeito à possibilidade de união de elementos pertencentes ao mesmo gênero, seja através da união estável, ou através do casamento.
A marca principal é o reconhecimento das relações homoafetivas como uma família constituída por pessoas do mesmo sexo. Ao mundo do direito não interessa o relacionamento sexual entre pessoas do mesmo gênero, mas sim a proteção à dignidade da pessoa humana num verdadeiro estado democrático de direito, tal qual presente na nossa Carta Magna.
Na tentativa de se descomplicar o imbróglio, haja vista que a discriminação de indivíduos pertencentes ao mesmo sexo que pretendiam constituir uma entidade familiar feria o art. 1°, III, da nossa Carta Magna, e também partindo do princípio da mutação constitucional, o Supremo Tribunal Federal tomou uma histórica decisão em 05 de maio de 2011:
“1.ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem de todos. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO FAMÍLIA NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por intimidade e vida privada (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE ENTIDADE FAMILIAR E FAMÍLIA. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia entidade familiar, não pretendeu diferenciá-la da família. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado entidade familiar como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem do regime e dos princípios por ela adotados, verbis: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva”. (STF – ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341) (BRASIL.STF)[15]
Essa Ação Direta de Inconstitucionalidade vem a nortear verdadeiramente o princípio da dignidade humana, na qual a liberdade e o direito de escolha do sexo do companheiro atingem o ápice da liberdade, permitindo dessa forma que se possa construir uma família com base no amor e na afetividade juntamente com o parceiro escolhido, independente do gênero, sendo ambos felizes na constituição de um núcleo familiar, e com a possibilidade de terem filhos reconhecidos, gerados ou adotados.
Há, pois, um novo entendimento quanto ao conceito de dignidade da pessoa humana, haja vista que, segundo PIZARRO (2014, p.84) “antes esse conceito (sic) não abarcava a liberdade sexual, agora, a opção sexual é um dos vetores que compõem a dignidade da pessoa humana” (PIZARRO. 2014. p.84)[16] cuja dimensão é bem maior que o previsto constitucionalmente e “eclodiu pela força interpretativa da sociedade plural, cuja compreensão hermenêutica já não aceitava mais o modelo reducionista previsto da CF/88” (BRASIL.2001)[17].
Veio a norma infraconstitucional acima citada, a corroborar com a Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha[18], que define a família como uma entidade em que existe uma relação de afeto, cuja formação não depende da orientação sexual dos indivíduos que a compõe.
Contudo, torna-se evidente que a existência da relação de afeto, de autenticidade, de amor e pautada no diálogo e na igualdade, para constituição de uma entidade familiar transcende a singularidade do indivíduo. Questões como a necessidade de casamento para construção de uma família e realização pessoal do indivíduo são meramente simplórias.
É o que se denota da afirmação de Paulo Luiz Netto Lôbo:
“Não é mais o indivíduo que existe para a família para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade”. (LÔBO.2007. p.155)[19]
Com a abertura da possibilidade de criação de entidades familiares não adstritas a gêneros diferentes, conforme preceitua a Constituição Federal, nosso trabalho poderá então, ser canalizado para a possibilidade de adoção de crianças e adolescentes por núcleos familiares homoafetivos.
2.4 A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA
Diversas são as funções que caracterizam um grupo familiar. Uma delas é a educativa, tanto que popularmente se diz que a “a educação do indivíduo vem de berço”. Baseia-se essa educação no interior do grupo familiar, centrada no afeto e na intimidade do lar, formado principalmente pela união sacramentada e juridicizada do casamento.
Diferente das famílias de séculos anteriores, formadas pela grandiosidade da prole, a partir da segunda metade do século passado, houve uma drástica redução da quantidade de filhos, pois o excesso prejudicava o crescimento profissional dos pais.
Embora se busque a igualdade entre os sexos, o universo das diferenças sexuais e afetivas passa a ser respeitado, advindo desta forma, novas realidades da formação familiar, o que foge até a moldagem de um conceito definido de “família”.
Outra função na qual se pode enquadrar a família é a função econômica, e eis que a família funciona em torno dos modelos econômicos vigentes, moldando-os e transformando-os, e dessa maneira garantindo sua união e sobrevivência. O cuidado na preservação e conservação do patrimônio da família era grande, buscando-se criar novos núcleos familiares através da agregação de valores e incorporação do patrimônio trazidos pelos “dotes” de casamento.
Uma terceira função da família era a função reprodutiva, principalmente no início do período de colonização do Brasil, haja vista que o território era imenso e havia a necessidade premente de ser povoado. Foi assim descrita por LIMA (2013.p.69):
“Dessa forma a família funcionou para a necessidade de povoamento da colônia: primeiro, dando abrigo moral e religioso – consequentemente também jurídico – às uniões que se formavam espontaneamente entre os portugueses e as índias; em seguida, forjando na ordem de prevalência patriarcal a tolerância às visitas constantes aos leitos da senzala.”[20]
Dentro dessa premissa biorreprodutiva, a família também serviu como mantenedora dos costumes, concentrando o patrimônio e as funções exercidas por cada um no contexto regulador das relações entre seus membros e a sociedade.
Ora, a interação desses três fatores ou funções, seja educativa, econômica ou reprodutiva, direciona a família para outro termo linguístico que é a função social da família, cuja existência como norteador da sociedade é fruto do desenvolvimento de processos econômicos, jurídicos e sociais, cujos direitos e garantias fundamentais sustentam sua formação e consolida sua atuação como base da sociedade.
A função social da família independe da maneira como ela é formada – se de forma tradicional através do casamento – ou através da união estável ou até mesmo pela união informal, mas que tenha por finalidade unir dois seres seja de qual for o gênero, com base no carinho, na afetividade, no amor, e que não fique desamparada da tutela jurisdicional do Estado. É a partir dessa concepção de cunho sociológico que o Estado promove o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, conforme atestado na Constituição Federal, que procura através de ações não discriminatórias, reconhecer os direitos de constituição de núcleos familiares em condições de diversidade de gêneros, fugindo do tradicionalismo habitual de formação de núcleos familiares compostos de elementos de gêneros diferentes.
Ao dar uma interpretação mais ampla ao instituto da “igualdade”, onde se reconhece a união estável entre pessoas do mesmo gênero, o Estado atesta a promoção da dignidade da pessoa humana, ampliando assim a pluralidade de formação de núcleos familiares, buscando soluções para as demandas de filiação, paternidade, maternidade, multiparentalidade, e principalmente para a vocação natural de casais homoafetivo optarem pelo caminho da adoção como maneira de criarem uma entidade familiar, transcendendo a perspectiva biológica de serem pais, e ao serem adotantes, cumprirem mais ainda a função social da família.
A decisão tomada pelos ínclitos julgadores no julgamento da ADI 4.277, (BRASIL.STF.)[21] foi pela superioridade da liberdade individual, da vontade autônoma, do direito à intimidade, à privacidade e liberdade, afirmando a garantia que indivíduos que tenham seu estado de felicidade vinculado ao relacionamento com outros do mesmo gênero, tenham constitucionalmente garantida a alternativa de ter sua vontade concretizada afetivamente e fisicamente, agasalhando-se na legalidade prevista sem distinção a toda e qualquer entidade familiar que porventura venham a serem constituídas em quaisquer das suas formas.
Ressalta-se que a “entidade familiar” não pressupõe um novo tipo de família, ou uma novidade de constituição do núcleo familiar, haja vista que todas as formas de família deverão ser tratadas igualitariamente e ter o mesmo equilíbrio jurídico, e dessa maneira o Ministro Ayres Britto categoriza que:
“[…] a terminologia “entidade familiar” não significa algo diferente de “família”, pois não há hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo núcleo doméstico. Estou a dizer: a expressão “entidade familiar” não foi usada para designar um tipo inferior de unidade doméstica, porque apenas a meio caminho da família que se forma pelo casamento civil. Não foi e não é isso, pois inexiste essa figura da sub-família, família de segunda classe ou família “mais ou menos” (BRASIL.STF.)[22]. (grifos no texto original)
A família constituída com base na afetividade, no cuidado, no carinho, na educação, e na formação psicossocial do indivíduo que se encontra em situação de risco, cria esse novo conceito de família, cujos laços afetivos fortalecem o embasamento do núcleo familiar, exercendo dessa forma a função social da família.
A função social da família é ser o ente aglutinador dos princípios constitucionais a ela relacionados, e que indicam a sua finalidade, não só a dignidade da pessoa humana mas também a igualdade, a solidariedade, a paternidade responsável, a pluralidade das entidades familiares, o dever de convivência, e a proteção integral da criança e do adolescente.
Essa promoção da justiça, através da não discriminação da adoção por pares homoafetivos, possibilitaria socialmente às crianças e adolescentes que vivem em situação de risco, passarem a serem integrantes de um núcleo familiar, dentro qual receberiam amor, carinho, afeto e a segurança que tanto necessitam para poder crescer e se desenvolver emocionalmente e espiritualmente, em perfeito equilíbrio com o mundo ao redor.
3 ADOÇÃO
3.1 CONCEITOS, CARACTERÍSTICAS E HISTORICIDADE
Etimologicamente, a palavra adoção é derivada do latim adoptione, (LEXICO.2015)[23] cujo significativo a ser utilizado neste trabalho é o de “ação de ficar legalmente com uma criança que tem outros pais biológicos com a criação de vínculo jurídico de filiação, semelhante à filiação natural, independente da relação sanguínea”.
Juridicamente, considera-se a adoção como o instituto legal capaz de realizar a transferência de todos os direitos e deveres de pais biológicos, presentes ou não, para outrem, na sua condição singular ou formando um casal pertencente a quaisquer gêneros.
A adoção representa um ato de amor daquele que sem biologicamente ser capaz de gerar descendentes, resolver dedicar toda sua vida a um ser estranho às suas raízes genéticas, por si não fecundado, gerado e dado vida, mas que, através do carinho, da dedicação e do amor, procura dar ao adotando uma nova vida, juridicamente amparado em todos os direitos da vida civil, e que virá sucedê-lo após sua morte.
A opção por tal instituto independe de parentesco ou laços de consanguinidade, e cria uma vinculação filial fictícia, e ao mesmo tempo real, ao trazer para o seio de sua entidade familiar, sob sua tutela, como filho um indivíduo que geralmente é para si um estranho.
Segundo OLIVEIRA (2010. p107 apud MONTEIRO, 1976 p.239), a origem da adoção,
“[…] remonta à era romana, em que o indivíduo sem descendência buscava obter filho a fim de cumprir o dever de perpetuar o nome e de garantir o culto espiritual da família”.[24]
Diverso dos tempos atuais, em tempos remotos a prática da adoção era realizada para atender à crença religiosa, onde as antigas civilizações criam que os que estavam vivos eram protegidos pelos mortos, e que para que essa proteção se fizesse presente, era necessário que os rituais fúnebres fossem praticados pelos seus descendentes, e sem isso não haveria paz para eles no post mortem[25]. A preservação da religião era conseguida se fosse repassada pelo antecessor, que transmitia ao(s) filho(s) a vida, e concomitantemente o seu culto, suas crenças, o direito de manter a coesão da família, de recitar corretamente as orações que recebera de seus antepassados.
Em referência a essa característica da adoção, SZNICK (1993. p.7), nos diz que
“[…] na antiguidade, as pessoas que não tinham filhos utilizavam-se da adoção como solução para que a família não extinguisse, elas adotavam com o objetivo de que as cerimônias fúnebres não cessassem, caso viessem a morrer, sem deixar nenhum filho para que as praticasse.”[26]
Assim sendo, a preservação do culto aos antepassados, e as relações domésticas eram continuadas, pois o filho adotado dava seguimento ao culto do pai adotante, e a adoção nessa época era essa caracterizada por ser permitida apenas àqueles que não possuíam filhos biológicos, para pudessem, os adotados, dar prosseguimento à existência da família, suas crenças e cultos. Não havia, pois, a mínima preocupação com a afetividade – o adotado tinha esse status apenas para servir aos interesses do adotante.
A nova condição de adotado obrigava ao individuo o total desligamento de seu parentesco biológico, o vinculo familiar era rompido e proibido, criando-se agora o vínculo familiar pela adoção, que, contudo poderia sofrer um retrocesso se, segundo GRANATO (2010. p.34), ocorresse a seguinte situação:
“Contudo, a lei lhe permitia que, tendo um filho, e o deixando em seu lugar na família adotante, poderia retornar ao seu lar de origem, rompendo, porém, quaisquer laços entre ele e o próprio filho.”[27]
Ao ocorrer esse fato, o indivíduo que fazia parte dessa família como adotado poderia voltar a introduzir-se na família de seus pais biológicos, retomando o status anterior.
Existem referências ao instituto da adoção na Bíblia, dando direitos à mulher que não pudesse ter filhos, a entregar uma escrava ao marido, para que esta lhe servisse, dando-lhe um filho que dele se regozijasse como se seu filho fosse. Assim o é descrito no Livro de Gênesis, 16, v.1-2:
“1 Ora, Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos. Tinha ela uma serva egípcia, que se chamava Agar.
2 Disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido de ter filhos; toma, pois, a minha serva; porventura terei filhos por meio dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai.” (Gn, 16 1-2)[28]
Patente, pois, o princípio da adoção nessa passagem bíblica: Sara afirma isso ao dizer que “porventura terei filhos por meio dela”.
Outras passagens da Bíblia também revelam a prática da adoção conforme relata SZINICK (1993, p.40):
“Através da leitura de passagens da Bíblia, é possível encontrar vários relatos de adoções, conhecidas pelo nome de levirato, entre os hebreus. Citam-se os casos de Jacó, que adotou Efraim e Manassés, filhos de seu filho José; e de Moisés, adotado por Termulus, filho do Faraó, que o encontrou às margens do rio Nilo”. (A BÍBLIA. 2002)[29]
Um dos mais antigos registros históricos do Direito está expresso no Código de Hamurabi, através do seu Artigo 185, descrito por CHAVES (1983, p.40):
“Enquanto o pai adotivo não criou o adotado, este pode retornar à casa paterna; mas uma vez educado, tendo o adotante despendido dinheiro e zelo, o filho adotivo não pode sem mais deixá-lo e voltar tranquilamente à casa do pai de sangue. Estaria lesando aquele princípio de justiça elementar que estabelece que as prestações recíprocas entre os contratantes devam ser iguais, correspondentes, princípio que constitui um dos fulcros do direito babilonense e assírio”.[30]
Outro dispositivo em que se encontra antigas referências ao instituto da adoção é o Código de Manu, grafado entre os séculos II a.C. e II d.C., que vem a conjecturar e nobilitar a procriação. Se porventura fosse o homem casado com uma mulher, e esta por mais de oito anos não lhe desse herdeiro, todo direito ele tinha de trocá-la. Neste mesmo Código havia a previsão de autorização para a esposa engravidar de um irmão ou outro parente, se ele fosse estéril.
Havia também previsão nesse Código a adoção – e esta era rigorosamente taxativa quanto ao direito sucessório, o que se depreende dos escritos de MONACO (2002, p.19), citando o artigo 558 do Código:
“Um filho dado a uma pessoa não faz mais parte da família de seu pai natural e não deve herdar de seu patrimônio. O bolo fúnebre segue a família e o patrimônio; para aquele que deu seu filho não há mais oblação fúnebre feita a esse filho”.[31]
Além disso, admitia-se a prática da adoção em três situações diversas. Conforme já citado acima, no caso de esterilidade do chefe de família, deveria a esposa gerar um filho com o irmão ou parente deste, outra situação era quando ocorria a união da viúva sem filhos com o parente mais próximo do marido, e quando o chefe de família sem filhos do sexo masculino encarregava uma das filhas de gerar um menino para si, e todas essas situações as crianças assim nascidas eram consideradas filhos legítimos.
No caso do Brasil, havia previsão para o instituto da adoção no período da colonização, através das Ordenações Filipinas[32], mas caiu em desuso, sendo reativada pelo nosso direito com o advento do Código Civil de 1916.
Segundo RODRIGUES (1991.v 6), era admitida a adoção por pessoa que fosse solteira ou casada há mais de cinco anos, pelo enunciado do art. 368 do Código Civil de 1916, mas por concubinas ou atuais companheiros, não havia essa previsão, e dessa forma, assim vivendo, não poderiam adotar conjuntamente, apenas sozinho.
À luz dessa norma, procedia-se a adoção de maiores através de escritura pública, e se fossem menores através de processo judicial tramitado no Juízo da Infância e da Juventude, e, embora os procedimentos fossem diferenciados, os efeitos da medida eram os mesmos, não importando a idade dos adotados, obedecendo-se o princípio da igualdade entre os filhos.
Eis que, juridicamente aconteceram avanços significativos com a promulgação da Lei 3.133/57(BRASIL. Lei Nº 3.133)[33], cuja redação modificou cinco artigos do Código de 1916, desobstaculizando as intenções de quem queria adotar, mormente os mais jovens, cuja idade reduziu-se a trinta anos e o diferencial etário entre adotante e adotado resumiu-se a dezasseis anos.
Nesse sentido RODRIGUES (2007, p. 336 e 337), afirma que
“A primeira importante modificação trazida pelo legislador, no campo da adoção, ocorreu com a Lei n. 3.133, de 8 de maio de 1957. Tal lei, reestruturando o instituto, trouxe transformações tão profundas à matéria que se pode afirmar sem receio de exagero, que o próprio conceito de adoção ficou, de certo modo, alterado. Isso porque, enquanto, dentro de sua estrutura tradicional, o escopo da adoção era atender ao justo interesse do adotante, de trazer para a sua família e na condição de filho uma pessoa estranha, a adoção (cuja difusão o legislador almejava) passou a ater, na forma que lhe deu a lei de 1957, uma finalidade assistencial, ou seja, a de ser, principalmente, um meio de melhorar a condição do adotado.”[34]
Inovando a estrutura infraconstitucional pátria, surgiu em 1979 a Lei nº 6.697, intitulada Código de Menores. Grandes avanços foram gerados com essa lei, mormente na proteção da criança e do adolescente, pela funcionalidade dada à adoção, cuja primazia centrou-se na adoção como proteção integral do menor em situação de risco efetivo, sem uma família para lhe dar guarida.
Essa Lei adotou a adoção plena, mas manteve a denominada adoção simples tradicionalmente sacramentada pelo Código Civil de 1916.
Ambas as adoções, eram distintas entre si. Enquanto adoção simples criava-se um parentesco civil entre as partes comprometidas no processo, mas, poderia ser revogada por vontade das partes, e também não finalizava os direitos e as obrigações herdadas do parentesco natural.
Quanto à adoção plena, DINIZ (2010, p.524) nos diz que
“[…] era a espécie de adoção pela qual o menor adotado passava a ser, irrevogavelmente, para todos os efeitos legais, filho dos adotantes, desligando-se de qualquer vínculo com os pais de sangue e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.”[35]
A adoção simples foi diferençada perfeitamente da adoção plena, segundo as ponderações sobre o tema de GONÇALVES (2010, p. 341), ao afirmar que
“Enquanto a primeira dava origem a um parentesco civil somente entre adotante e adotado sem desvincular o último da sua família de sangue, era revogável pela vontade das partes e não extinguia os direitos e deveres resultantes do parentesco natural, como foi dito, a adoção plena, ao contrário, possibilitava que o adotado ingressasse na família do adotante como se fosse filho de sangue, modificando-se o seu assento de nascimento para esse fim, de modo a apagar o anterior parentesco com a família natural.”[36]
Encerram-se as distinções entre adoção simples e plena com a promulgação da Carta Magna de 1988. Dessa forma, os enunciados constantes sobre o tema no Código civil de 1916, perdem sua eficácia, haja vista que diferenciava enormemente os filhos adotados dos naturais. Assim estão dispostos no Art. 227 da Constituição Federal:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)[…]
§ 5º – A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. (BRASIL. 2001)[37]
Com a edição da Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerada pela Organização das Nações Unidas como a legislação mais eficaz e moderna que trata do assunto, a adoção de menores e adolescentes passou a ser efetivada por este diploma, enquanto a adoção de maiores ficou ainda sob tutela da Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que estabeleceu o Código Civil em vigor.
O Estatuto da Criança e do Adolescente inovou ao tornar obrigatória a expedição de sentença judicial para efetivar a adoção: sai assim de cena a opção de escritura pública para adoção quando o menor estivesse em situação de abandono ou em que a mãe ou os pais desejassem fazer a entrega deste a um casal ou a alguém.
Promulgada em 03 de agosto de 2009, a Lei Nacional de Adoção – Lei 12.010/09 que dispõe sobre adoção – regulamentando o instituto da adoção que passa a ser regido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, salvo as regras referentes à adoção de adultos. Essa Lei vem reforçar a necessidade de se manter a criança e o adolescente dentro de uma estrutura familiar digna, seja essa estrutura natural ou extensa, utilizando-se da adoção apenas como medida secundária, mas que facilite o abrigo de crianças e adolescentes em situação de risco, preservando seus melhores interesses.
A preocupação com o abandono e desamparo de crianças e adolescentes que são colocadas em situação de risco é expressa por SÁ; VITORINO (p.19):
“A falta de um lar faz com que crianças e adolescentes sejam seus próprios guias. Isso gera sérios problemas, uma vez que lançam mão da violência como mecanismo de defesa e de obtenção de tudo o que desejam, já que limites e normas de conduta social não configuram uma realidade para estes menores. Sendo assim, o dia-a-dia destes abandonados e sem afeto, não apresenta perspectiva alguma de futuro, estudo e muitos não têm oportunidade de emprego, sendo levados à marginalidade, prostituição, criminalidade e ao envolvimento com o tráfico de drogas como meio mais fácil e objetivo para aquisição de meios para seu próprio sustento”.[38]
Buscando a minimização desse grave problema social, uma das práticas a serem adotadas é a adoção, possibilitando facilitar esse instituto com a criação de novas entidades familiares, que fogem do tradicionalismo da formação, e abordar-se-á adoção como processo de reforço da unidade da família, seja de qual maneira ela é formada.
Uma questão que não pode deixar de ser abordada é a chamada “adoção à brasileira”, que é a prática de se efetuar o registro de filho de outrem como se próprio fosse, mas que carece de legitimidade. Comumente, o indivíduo do gênero masculino, ao se envolver afetivamente com alguém do gênero feminino, já grávida ou com um filho, registra o filho como se seu fosse, burlando o sistema judicial de adoção, por lei exigida. É um caso específico de simulação de uma adoção – uma adoção não considerada assim tecnicamente, mas que terá seus efeitos jurídicos protegidos pelo sistema – mas que a doutrina brasileira titulou dessa forma, e que na legislação infraconstitucional está previsto como crime, e como tal sujeito às sanções penais.
Outra questão a ser mencionada é a possibilidade ou não de se adotar nascituros ou embriões, tema que provoca uma cisão na doutrina, levando o assunto à área de sombra do Direito, mas que, FARIAS; ROSENVALD (2011, p. 981) diz que quanto ao nascituro, citando o art. 2º do Código Civil de 2002, “a personalidade civil da pessoa humana começa do nascimento; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.[39] A criança nesse caso não teria a completa qualificação civil necessária para constar nos procedimentos de adoção conforme exigidos pela Lei. A mesma norma se aplica aos embriões laboratoriais fecundados, que pertencem ao casal doador de genes, que será mantido em laboratório pelo prazo de três anos, exclusivamente para o casal, e se não utilizados, serão destinados à pesquisa com células tronco (BRASIL. Lei nº 11.105)[40].
3.2 REQUISITOS LEGAIS PARA ADOÇÃO
O principal requisito para adoção dá-se pela garantia que esta só será deferida quando e se apresentar vantagem real para o adotando, e que seja fundamentada em legitimidade motivacional.
Para ser adotado, não importa se a pessoa é maior ou menor de idade. Para ser adotante, sim, de acordo com a Lei nº 12.010/09, que dispõe sobre adoção e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente e outras, em seu artigo 2º diz:
“Art. 2o A Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil”. (BRASIL. Lei nº12.010)[41]
Não existe relevância quanto ao estado civil do adotante segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente: pode sê-lo solteiro, casado, sob união estável, divorciado, separado, viúvo – o que não impede que a adoção seja feita conjuntamente ou isoladamente – mas se o for em conjunto, que exista pelo menos convivência ou qualquer outra espécie de relação familiar entre os adotantes. Aos divorciados ou separados judicialmente, a lei faz apenas duas ressalvas: a primeira de que tenham acordado quanto à guarda e regime de visitas; e a segunda, de que o estágio de convivência tenha se iniciado na constância do matrimônio.
Embora a idade legal mínima seja dezoito anos, exige-se que o adotante seja, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotando. Segundo ALBERGARIA (1996, p.87),
“O que se observa nessa situação é fazer com que a adoção esteja espelhada na natureza da filiação biológica, uma diferença de idade suficiente para que o adotante possa ser pai do adotando, corroborando com a ideia de hierarquia e subordinação, afastando, assim, a viabilidade de um vínculo distinto do paterno-filial.”[42]
Existem dois tipos de adoção – a adoção de forma unilateral – na qual persiste a manutenção do vínculo de filiação com um dos genitores, e nasce o vínculo civil com o companheiro (a) ou cônjuge deste genitor. Neste tipo de adoção, o cadastramento prévio do adotante é suprimido, haja vista que a convivência com o genitor(a) permanece; a outra modalidade é a da adoção bilateral – onde há a quebra do vínculo com os genitores, e esta é a mais praticada no país – denomina-se também por adoção conjunta.
Conforme dicção do artigo 41, § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é autorizada a adoção pelo cônjuge ou pelo companheiro de um dos pais do adotando, em adoção unilateral, mantido, porém os vínculos de filiação do adotando com o pai ou a mãe natural, que deverá manifestar concordância com o pedido; a substituição da filiação acontecerá, apenas, na linha materna ou paterna, não perdendo o cônjuge ou companheiro do adotante o seu poder familiar, que será exercido conjuntamente (SANTINI.1996. p. 66)[43].
Se porventura o adotante, ou adotantes, após manifestação inequívoca de vontade, venha, ou venham, a falecer no curso do processo, antes da prolação da sentença constitutiva, é possível o deferimento da adoção, esta denominada de adoção póstuma.
O regramento a ser seguido para a adoção localiza-se na Lei 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente, e este se encontra em repetição no Código Civil de 2002, englobando regras de direito processual e material, que culminam com o proferimento da sentença judicial. Dessa maneira, por ser exigida a instalação de processo judicial para a adoção, sua efetivação só ocorrerá após a sentença constitutiva, quando se iniciará o vínculo civil da adoção, sendo todo processo assistido pelo Ministério Público.
Há necessidade de se realizar um cadastramento prévio em juízo por parte dos interessados em adotar. Exigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, todas as Comarcas ou Foro Regional, deverá manter um registro atualizado periodicamente de crianças e adolescentes em condições de serem adotados, e também um registro dos que são candidatos a adotantes. Visa esse procedimento a facilitação do processo de alocação dos adotandos em famílias que os acolham, após processo seletivo, haja vista que, o que se acha em prioridade é o interesse da criança e do adolescente.
Pela necessidade de previamente haver um contato pessoal, o Estatuto veda a adoção por procuração, mesmo estando os postulantes representados por advogado. Fundamenta-se a vedação na necessidade de convivência prévia entre os adotandos e adotantes, sejam eles nacionais ou estrangeiros, evitando-se que futuramente os adotantes venham a se arrepender da ação, e dando condição ao juiz conhecer todos os envolvidos, analisando os termos da adoção, e concretizá-la, pois, após proferimento da sentença, a adoção se torna irrevogável.
Entende-se como adoção internacional (por estrangeiros), aquela em que o pleito é formulado por casal ou pessoa que não resida no Brasil, o que, se o processo de adoção for concluído e a sentença conceder a adoção, o adotado se deslocará em definitivo para o país dos adotantes. O estágio de convivência entre o adotado e os adotantes é obrigatório, não podendo ser dispensado pelo juiz, e deve ser cumprido dentro do país, durante o mínimo prazo de trinta dias. Somente após o trânsito em julgado da sentença de adoção é que o juiz poderá expedir o alvará com autorização para viagem e expedição do passaporte.
Além disso, se vivos os pais ou se houver representante legal do adotando, existe a necessidade do consentimento formal. Esse consentimento deverá ser formalizando em presença do juiz e do representante do Ministério Público, na audiência que se decidirá pela adoção. Mesmo que na propositura da ação estejam acostados aos autos, documento extrajudicial de consentimento da adoção, não se exime os pais ou responsáveis pelo adotando de ratificar sua concordância em Juízo.
Além das questões apresentadas anteriormente, há a necessidade da adoção se consubstanciar em motivos legítimos e que apresente reais vantagens para o adotando, o que viabiliza ainda mais a adoção por casais homoafetivos, já equilibrados afetivamente e financeiramente, dispondo o adotante de meios materiais para total proteção da criança e/ou adolescente.
Sobre esta condição temos o comentário de Roberto João Elias:
“A vantagem sempre existirá se aqueles que pretenderem a adoção tiverem uma família bem estruturada, de modo a propiciar ao menor um lar adequado, no qual ele possa desenvolver plenamente a sua personalidade. A família é o habitat natural onde o ser humano encontra a assistência necessária. Quando se fala em motivos legítimos quer-se, naturalmente, evitar que a adoção seja feita com segundas intenções. Se perceber, por exemplo, que há interesses econômicos em casos, talvez raros, de menores com alentada fortuna, não se há de deferi-la”. (ELIAS. 2005. p.71)[44]
Esses motivos legítimos podem ser averiguados através de investigação judicial dos que pretendem adotar, para que se possa confirmar se a adoção pode ou não vir a causar qualquer problema para o adotando ou prejudicar terceiros. Dessa forma, pode-se concluir o entendimento de que foi dada ao Magistrado a possibilidade de realizar a avaliação do processo, assegurando-lhe que é conveniente e oportuno a materialização da adoção.
Após a efetivação do processo de adoção e proferimento da sentença pelo Juízo, a adoção gerará efeitos para ambos os lados do processo, tais como;
“a) O vínculo de parentesco é rompido com a família de origem;
b) Estabelecem-se novos laços de parentesco civil;
c) O poder familiar é transferido definitivamente e de pleno direito para o adotante;
d) Liberdade, dentro dos limites da razoabilidade, em relação à formação do nome patronímico do adotado;
e) Capacidade de se promover a interdição e/ou inabilitação do pai ou mãe adotiva pelo adotado ou inversamente”.
Em relação aos efeitos de cunho patrimonial, as referências são em relação a alimentos e ao direito sucessório. Esse referencial não mais persiste em relação à filiação biológica. Daqui para frente, o que prevalece é o direito e os deveres relacionados com parentes consanguíneos, pela equiparação do adotando ao filho em toda a conjuntura.
Juridicamente, os efeitos patrimoniais decorrentes da adoção são:
“a) Direito do adotante de administração e usufruto dos bens do adotado menor;
b) Responsabilidade civil do adotante pelos atos cometidos pelo adotado menor de idade;
c) Dever do adotante de prestar alimentos ao adotado;
d) Direito à indenização do filho adotivo por acidente de trabalho do adotante;
e) Obrigação do adotante de sustentar o adotado enquanto durar o poder familiar;
f) Direito sucessório do adotado;
g) Reciprocidade nos efeitos sucessórios;
h) Filho adotivo não está compreendido na exceção do Código Civil;
i) Rompimento de testamento se sobreviver filho adotivo;
j) Direito do adotado de recolher bens deixados pelo fiduciário;
l) Superveniência de filho adotivo pode revogar doações feitas pelo adotante;
m) Possibilidade de o adotado propor ação de investigação de paternidade, para obter o reconhecimento de sua verdadeira filiação;”
A criança ou adolescente adotado sempre terá o direito de conhecer sua família biológica, ou pela menos, sua origem, tendo acesso ao processo após completar dezoito anos, irrestritivamente, ou se menor de dezoito anos e assim o pedir, terá assegurado esse direito, desde que assistido e orientado juridicamente e psicologicamente.
Há nesse ponto, o reconhecimento que tem a pessoa direito de obter informações sobre seus vínculos genéticos, mas que, esse conhecimento em nada altera o direito de família e seus efeitos, não se criando assim, com os pais biológicos, direitos sucessórios, a alimentos ou uso do nome, ou qualquer outra disposição encontrada no direito de Família.
4 A ADOÇÃO EM NÚCLEO FAMILIAR HOMOAFETIVO
4.1 HOMOSSEXUALIDADE: UM NOVO CONTEXTO SOCIAL
A prática de desenvolvimento e relacionamento sexual entre indivíduos do mesmo gênero remonta a milhares de anos atrás e não cabe neste trabalho detalhar historicamente como isso se sucedeu, mas se fará um breve comentário a respeito do tema.
No inicio das civilizações, cabia à mulher o papel de criadora da prole e cultivadora dos campos e aos homens a prática de cuidar dos rebanhos e levá-los ao pastoreio, o que implicava em longas ausências do convívio familiar, o que estimula, pelos dois gêneros, a prática de troca de afetos e carinhos, que culminavam com o relacionamento sexual, cessando quando se voltava ao convívio do grupo familiar.
Conforme se apreende dos escritos de FERNANDES (2004, p. 21),
“A união homoafetiva é a existente entre pessoas do mesmo sexo, configurando uma relação homossexual. O termo homossexual se deve a junção do prefixo grego homós, que quer dizer semelhante, com o sufixo latim sexus, que se refere ao sexo, sendo, portanto, a relação existente entre pessoas de mesmo gênero. Isto é, o homossexual é o indivíduo que possui o desejo de se relacionar com outra pessoa que possua o mesmo sexo que o seu, sentindo-se o homem atraído por outro homem e a mulher atraída por outra mulher. Neste caso, a pessoa não nega sua formação biológica, apenas possui seus desejos físicos e amorosos inclinados exclusivamente para a pessoa de mesmo sexo.”[45]
A Bíblia cita a atividade homossexual em diversos de seus livros, tais como Gênesis 19:1-13; Levítico 18:22 – 20:13; Romanos 1:26-27; I Coríntios 6:9, mas que a caracterização da atividade depende muito de quem interpreta os textos, já que não havia uma compreensão muito elaborada da homossexualidade como orientação sexual e forma que quando a “Bíblia menciona comportamentos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, ela o faz tal como estes comportamentos eram compreendidos naquela época.”[46]
A história relata a prática entre gregos e entre romanos, no qual a figura do “mestre” tomava para si “discípulos” a partir da idade de doze anos e com eles viviam uma relação sexual como ativos até que completassem vinte e cinco anos quando eram livres para se casar com mulheres, ou tomar para si “discípulos” mantendo a prática viva.
No decorrer do tempo, o relacionamento homossexual ganha novo contorno, sendo aplicado em instituições militares, conventos, e em locais onde havia o isolamento de indivíduos que pertencessem ao mesmo gênero.
Com a evolução histórico-social, os relacionamentos homossexuais passaram a ser discriminados, em alguns casos até criminalizados, sendo que até os dias de hoje em alguns países a punição para o homossexual é a morte, e conforme nos diz TURKENICZ (2012, p.438) que em suas anotações redige:
“Esse grupo social, os homossexuais, foi histórica e intensamente denegrido pela ordem familiar, que os considerou perversos, invertidos, pederastas, sodomitas, etc. Mas depois de ser excluído da categoria de doentes, passou a reivindicar para si a condição de família, com a mesma legitimidade de outras configurações. Não se pode dizer que, no passado, nunca tivesse havido casais homossexuais com filhos. Mas essa situação era habitualmente clandestina e ativamente escondida. A grande novidade final do século XX é que essa condição passou a ser exposta publicamente, e tem encontrado legitimidade social e também jurídica.”[47]
Encontrando a legitimidade social e jurídica, os ocupantes dos grupos denominados de “homossexuais”, passaram a desejar ter uma família completa, e não uma família que se resumisse apenas ao par: passaram a tomar como “filho de criação” – criavam, educavam, davam amor, carinho e afeto a filhos de outrem e que nessa condição permaneciam – e passaram a reivindicá-los como se filhos seus fossem, na condição de adotivos. A experiência adquirida no processo dava-lhes respaldo para isso e foi atestado que possuíam competência para tal, assim atestado por TURKENICZ (2012, p.439) que ortografa:
“Inúmeras pesquisas indicam que, no que tange às competências quanto ao cuidado dos filhos, à atenção e à qualidade da relação não há diferença significativa entre pessoas hetero e homossexuais”[48]
Assim sendo, tratar-se-á nos escritos em sequencia, da juridicidade do processo de adoção de crianças e adolescentes por componentes de núcleos familiares homoafetivos, tema que vem sendo aceito pela doutrina, e começando a ser pacificado pela jurisprudência.
4.2 A ADOÇÃO EM NÚCLEO FAMILIAR HOMOAFETIVO: A JURIDICIDADE DO PROCESSO
A humanidade sempre se insurge contra o novo. A aceitação do indivíduo homossexual como parte integrante da sociedade atual ainda gera certo desconforto em alguns setores da sociedade, e mais ainda quando o casal pertencente ao mesmo gênero busca seu direito à parentalidade, e isso fica evidente quando TURKENICZ (2012, p.439) traz à luz essa preocupação da sociedade:
‘Desde a despatologização da homossexualidade até o direito à parentalidade em uniões homossexuais gerou-se um mal estar, um temor de que os valores tradicionais da família estejam prestes a desaparecer. Os mesmos argumentos que se opunham à homoparentalidade, ou seja, a quebra de um ordenamento civilizatório e os prejuízos às crianças, foram esgrimidos, um tempo antes, contra a lei do divórcio.”[49]
Destarte, em conformidade com se descreveu no item 2.1, a “família” é um modelo ortográfico cujos conceitos são mutacionais, absorvendo novas conceituações dentro da inexorável marcha do tempo, cabendo, pois, novas concepções e estruturas, abarcando a possibilidade de dois indivíduos pertencentes ao mesmo gênero, ao conviverem em forma de união estável, sejam considerados como uma nova entidade familiar.
Assim, existem as relações ou uniões homoafetivas, fenômeno importante no campo do Direito de Família moderno cuja integração do par constitui ou vem a constituir um novo conceito de construção de um núcleo familiar.
Partindo desse pressuposto de construção de um novo núcleo familiar, posiciona-se Girardi (2005, p.50):
“[…] com base no princípio da dignidade da pessoa humana, que as necessidades humanas no plano da realização da personalidade e, em decorrência disso, da sexualidade, não são isonômicas, e que as uniões homossexuais vão além do simples fato de se constituírem por pares de mesmo sexo, pois são uniões que têm sua gênese no afeto, na mútua assistência e solidariedade entre os pares e, dessa forma, não seria mais possível se deixar de reconhecer efeitos jurídicos para esse tipo de união”. [50]
Depreende-se desse posicionamento, que a união civil é sim, um fato jurídico e não importa que tipo de fato social seja o gerador desses efeitos, reconhecendo-se dessa maneira o quão ímpar é o potencial humano na mesma proporção que os indivíduos são merecedores do mesmo procedimento em relação à liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana.
Essas relações familiares, fruto do novo contexto social – o reconhecimento da homoafetividade como uma forma de união reconhecida juridicamente – temos o Projeto de Lei nº 2285/2007, o Estatuto das Famílias, que visa atribuir direitos a essas uniões conforme expresso no Art. 68:
“Art.68 É reconhecida como entidade familiar a união entre duas pessoas do mesmo sexo, que mantenham convivência pública, contínua, duradoura, com o objetivo de constituição de família, aplicando-se, no que couber às regras concernentes à união estável.
Parágrafo Único. Dentre os direitos assegurados, incluem-se:
I. Guarda e convivência com os filhos;
II. Adoção de filhos;
III. Direito Previdenciário;
IV. Direito a herança.” (IBDFAM. 2007. p. 42)[51]
Embora o Estatuto das Famílias ainda não tenha sido aprovado pelo Legislativo, o Supremo Tribunal Federal não se fez omisso nessa questão fazendo o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, desse modo concedendo aos parceiros direitos e deveres semelhantes ao casamento. Segundo o Supremo Tribunal Federal (2011, [s.p.]), “[…] O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica […]”. (BRASIL.SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.2011)[52]
Com o advento da Resolução 175 de 14 de maio de 2013, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo, uma lacuna foi preenchida na nossa legislação infraconstitucional. A negativa aos casais do mesmo sexo ao acesso ao matrimônio e a todos os seus benefícios legais conexos vem a representar uma profunda discriminação com base na orientação/opção sexual do indivíduo. (BUENO. O casamento homoafetivo e a Resolução nº 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça: efetivação dos direitos da pessoa humana.)[53]
Pacificada a questão do matrimônio, a questão que vem à baila é sobre a possibilidade do casal homoafetivo exerça o direito de constituir uma família homoparental.
A família homoparental é mais uma das vertentes de constituição de uma família atualmente, capaz de viver em sociedade. Explica-se melhor ainda esse contexto nas palavras de Farias e Maia (2009, p.68): “O conceito de homoparentalidade diz respeito à capacidade de pessoas com orientação sexual homossexual exercerem a parentalidade”.[54]
Zambrano (2006, p.10), nos traz em sua obra que a homoparentalidade é um neologismo criado em 1996 pela associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL), em Paris, nomeando a situação na qual pelo menos um dos adultos que auto designe homossexual, é (ou pretende ser) pai ou mãe de, pelo mínimo uma criança.[55] O termo homoparentalidade deriva-se no que diz respeito à orientação sexual (homoerotismo) dos pais, associando-o com os cuidados com os filhos (parentalidade).
Afirmações anteriores já foram feitas para desentenebrecer as questões relativas à afetividade e competência de um par homossexual no trato dos filhos – e mais – a diferenciação entre as relações homossexuais e heterossexuais afetivas, não são de grande monta, haja vista que o que está presente em uma relação também se faz presente na outra. Não existe uma maneira de se mensurar o nível de afeto, carinho, amor, mutualismo e cooperação entre os parceiros (KAYSER; CAMPOS. 2013. p. 455-459)[56], e se não se pode medi-las, também não se pode discriminá-las nem tratá-las de maneira diferenciada.
O que deve prevalecer é o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e o desrespeito a esse princípio fere a aplicação do Direito e que nas palavras da Desembargadora Maria Berenice Dias,
“[…] o respeito à dignidade humana é a verdadeira pedra de toque de todo o sistema jurídico nacional, e esse valor implica dotar os princípios de igualdade e da isonomia, de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas”. (DIAS.2001. p. 81)[57]
Isso está claro na ADI nº 4.277 citada neste trabalho. Seus julgadores foram unânimes ao reconhecer a união dos casais homoafetivos como estrutura familiar, uma página já escrita há muito tempo na nossa história, e que a partir desta ADI as entidades familiares formadas por pares homossexuais, passam a ter, conforme o disposto no art. 226 da Constituição Federal, a real proteção do Estado.
De início, no julgamento desta Ação, o Ministro Relator Ayres Britto afirmou que o pedido das ações merecia o amparo jurídico da Corte Suprema e, em seu voto, valeu-se do termo homoafetividade para se referir às relações existentes entre pessoas de mesmo sexo, esclarecendo que o termo busca:
“[…] dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. União, aclare-se, com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico, tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais. Logo, vínculo de caráter privado, mas sem o viés do propósito empresarial, econômico, ou, por qualquer forma, patrimonial, pois não se trata de uma mera sociedade de fato ou interesseira parceria mercantil. Trata-se, isto sim, de uma união essencialmente afetiva ou amorosa, a implicar um voluntário navegar emparceirado por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a confiante entrega de um coração aberto a outro” (BRASIL.STF. p.8,9).[58]
Concluídos os entendimentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, em consonância com a argumentação do Relator, deu-se às já existentes e futuras uniões homoafetivas o prestígio de entidade familiar, da mesma maneira ao que o casamento civil a família monoparental e a união estável possuem.
Dessa forma, atribuiu-se aos indivíduos que mantinham uma relação entre si do mesmo gênero, o mesmo tratamento dado às uniões heteroafetivas, de acordo com o voto do Relator:
“Pelo que dou ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (BRASIL.STF. p.48).[59]
Dúvidas dissipadas quanto o tratamento a ser dado aos unidos homoafetivamente diante da lei, haja vista que daqui para frente, as uniões homoafetivas adquirem o escopo de entidades familiares, garantidos pela alteração da legislação infraconstitucional, aplicando-se aos casos em que se envolvam pessoas do mesmo gênero, o que prevalece e se aplica às uniões estáveis heteroafetivas, inclusive nos casos de adoção.
As questões pertinentes sobre o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo tramitavam na Vara cível, mas no Rio Grande do Sul, essas questões foram transferidas para a Vara de Família, destacando o pioneirismo deste Estado na elucidação das questões relacionadas às uniões homossexuais, conforme atesta a Desembargadora Maria Berenice Dias:
“Essas peculiaridades evidenciam o enorme significado decorrente do deslocamento das ações tendo por objeto as uniões de pessoas do mesmo sexo das varas cíveis para os juízos de família. Esse, com certeza, foi o primeiro grande marco que ensejou a mudança de orientação da jurisprudência rio-grandense. Perante uma vara de família da Capital, foi intentada uma ação buscando o reconhecimento de direitos decorrentes da separação de duas mulheres. Em face da alegação constante da inicial da existência de uma sociedade de fato, o magistrado determinou sua redistribuição a uma vara cível. A decisão deu ensejo à interposição de agravo de instrumento que foi distribuído à 8ª Câmara Cível. O Relator, Desembargador Breno Moreira Mussi, ao apreciar o pedido de liminar, manteve a ação no juízo de família. O julgamento colegiado confirmou, por unanimidade de votos, a decisão liminar, determinando que a ação prosseguisse no juizado especializado que havia sido eleito pela autora. (…) O resultado já é conhecido: a Justiça gaúcha foi pioneira em reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar e a inseri-las no âmbito do Direito de Família” (DIAS.2001.p.46).[60]
A adoção de crianças e adolescentes por casal homoafetivo teve seu marco histórico no Brasil através da decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que julgou o Recurso de Apelação nº 70013801592, interposto pelo Ministério Público, irresignado com sentença que deferiu a adoção de menores por um casal homossexual, no qual o relator foi o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, em cuja ementa diz:
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE.
Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME”. (BRASIL. Estado do Rio Grande do Sul. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça. Apelação Cível. Adoção. Casal formado por duas pessoas de mesmo sexo. Possibilidade.)[61]
Acompanhando o voto do relator, a Desembargadora Maria Berenice Dias, acresceu seu voto e afirmou também que,
“É chegada a hora de acabar com a hipocrisia e atender ao comando constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes. Como há enorme resistência de admitir a adoção por um par homossexual, mas não há impedimento a que uma pessoa sozinha adote alguém, resolvendo o casal constituir família, somente um busca a adoção. Não revela sua identidade sexual e no estudo social que é levado a efeito, não são feitos questionamentos a respeito disso. A companheira ou o companheiro não é submetido à avaliação e a casa não é visitada. Via de consequência, o estudo social não é bem feito. Para a habilitação deveria atentar-se a tudo isso, para assegurar a conveniência da adoção” (BRASIL. Estado do Rio Grande do Sul. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça. Apelação Cível. Adoção. Casal formado por duas pessoas de mesmo sexo. Possibilidade).[62]
A esse acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Ministério Público insatisfeito com a decisão acima descrita, interpôs Recurso Especial, que recebeu o nº 889.852/RS, cujo teor do acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi endossado pelo Ministro Relator Luis Felipe Salomão, que em seu voto consubstanciou ainda mais os argumentos favoráveis ao deferimento do Recurso:
“DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL. SITUAÇÃO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI 12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DEFERIMENTO DA MEDIDA. 1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por parte de requerente que vive em união homoafetiva com companheira que antes já adotara os mesmos filhos, circunstância a particularizar o caso em julgamento. 2. Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal. 3. O artigo 1º da Lei 12.010/09 prevê a "garantia do direito à convivência familiar a todas e crianças e adolescentes". Por sua vez, o artigo 43 do ECA estabelece que "a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos". 4. Mister observar a imprescindibilidade da prevalência dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo o próprio direito de filiação, do qual decorrem as mais diversas consequências que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo. 5. A matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das crianças, pois são questões indissociáveis entre si. 6. Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema, fundados em fortes bases científicas (realizados na Universidade de Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de Pediatria), "não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga a seus cuidadores". 7. Existência de consistente relatório social elaborado por assistente social favorável ao pedido da requerente, ante a constatação da estabilidade da família. Acórdão que se posiciona a favor do pedido, bem como parecer do Ministério Público Federal pelo acolhimento da tese autoral. 8. É incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a recorrida e os menores – sendo a afetividade o aspecto preponderante a ser sopesado numa situação como a que ora se coloca em julgamento. 9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe. 10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica. Vale dizer, no plano da realidade, são ambas, a requerente e sua companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes, de modo que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade. 11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada, pois as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das crianças, e não houve qualquer prejuízo em suas criações. 12. Com o deferimento da adoção, fica preservado o direito de convívio dos filhos com a requerente no caso de separação ou falecimento de sua companheira. Asseguram-se os direitos relativos a alimentos e sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotandos em convênios de saúde da requerente e no ensino básico e superior, por ela ser professora universitária. 13. A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento. Quando efetivada com o objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto de humanidade. Hipótese em que ainda se foi além, pretendendo-se a adoção de dois menores, irmãos biológicos, quando, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção, 86% das pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a apenas uma criança. 14. Por qualquer ângulo que se analise a questão, seja em relação à situação fática consolidada, seja no tocante à expressa previsão legal de primazia à proteção integral das crianças, chega-se à conclusão de que, no caso dos autos, há mais do que reais vantagens para os adotandos, conforme preceitua o artigo 43 do ECA. Na verdade, ocorrerá verdadeiro prejuízo aos menores caso não deferida a medida. 15. Recurso especial improvido.” (STJ – RECURSO ESPECIAL: REsp 889.852 RS 2006/0209137-4 Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 27/04/2010, T4 – QUARTA TURMA) (BRASIL. STJ. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: REsp 889852 RS 2006/0209137-4.).[63]
A singularidade dessa decisão foi enriquecedora jurisprudencial do nosso Direito, norteando-o ainda mais a sua adequação ao novo contexto social: a adoção em núcleo familiar homoafetivo.
Com essa possibilidade de transformação da formação dos núcleos familiares, através da adoção por pares homoafetivos, TURKENICZ (2012, p.445) chama atenção para possibilidade de inseminação artificial para casais do gênero feminino:
“Mas a grande transformação está no fato de que alguns casais gays e lésbicas tenham sido autorizados a criar uma família, seja por adoção para os gays, seja também por adoção ou por inseminação (por doadores anônimos ou não) para as lésbicas. Isso tem sido possível na medida em que vem diminuindo a homofobia na sociedade ocidental”.[64]
A finalidade da adoção é puramente assistencial, pautada sempre no interesse do adotando, e só será admitida se para este se constituir em efetivo benefício. Se não houver esse efetivo benefício, não adianta os adotantes ou pais biológicos quererem concretizar o instituto, pois ao Juízo não o é permitido concedê-la.
Ora, se o que está em jogo é o princípio do melhor interesse do menor, por que lhes tirar a oportunidade de viver em um núcleo familiar que lhe proporcione melhores condições de vida se o Conselho Nacional de Justiça informa que, segundo levantamento estatístico, 5.502 crianças e adolescentes estão na fila de espera para adoção (relatório gerado em 10-06-2014)?
Pelos números apurados 32,55% destas crianças e adolescentes são de cor branca, 18,68% de cor negra e 47,86%, pardas, temos assim um panorama geral étnico do problema. Do total dessas crianças e adolescentes à espera de uma família, 48,75% são da região Sudeste, seguida da Região Sul, 28,79%.
Na avaliação da distribuição por idade das crianças/adolescentes disponíveis para adoção, destaca-se que a maioria abrange a faixa etária que vai de 12 a 17 anos, ou seja, 3.452 adolescentes (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Dados Estatísticos de Crianças/Adolescentes.).[65] No Brasil, o tempo médio para conclusão de um processo de adoção é de um ano. Um ano que a criança pode ficar privada da afetividade, do amor e do carinho de seus adotantes.
Quando a adoção for de indivíduo que tenha mais de dezoito anos de idade, o processo correrá na Vara de Família do domicílio do adotando, ou pertencente à Comarca mais próxima.
Se o processo de adoção referir-se a indivíduo infanto-juvenil, compete à Vara da Infância e juventude. Infelizmente, no Brasil, não existem muitas varas especializadas no processo, cabendo em muitos casos, à Vara Criminal e da Infância, o que trava sobremaneira a análise do processo pelo magistrado, que não dispõe de dados concretos para seu livre conhecimento, haja vista que, por estar respondendo também pela Vara Crime, não agasalha uma equipe multidisciplinar formada por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos que possuam atuar nessas questões referentes à adoção, e outros pontos que interessam às crianças e adolescentes.
Há previsão legal para tanto na dicção do art. 148 da Lei 8.069 que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente:
“Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:
I – conhecer de representações promovidas pelo Ministério Público, para apuração de ato infracional atribuído a adolescente, aplicando as medidas cabíveis;
II – conceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo;
III – conhecer de pedidos de adoção e seus incidentes;
IV – conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209;
V – conhecer de ações decorrentes de irregularidades em entidades de atendimento, aplicando as medidas cabíveis;
VI – aplicar penalidades administrativas nos casos de infrações contra norma de proteção à criança ou adolescente;
VII – conhecer de casos encaminhados pelo Conselho Tutelar, aplicando as medidas cabíveis.
Parágrafo único. Quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98, é também competente a Justiça da Infância e da Juventude para o fim de:
a) conhecer de pedidos de guarda e tutela;
b) conhecer de ações de destituição poder familiar, perda ou modificação da tutela ou guarda;
c) suprir a capacidade ou o consentimento para o casamento;
d) conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna, em relação ao exercício do poder familiar;
e) conceder a emancipação, nos termos da lei civil, quando faltarem os pais;
f) designar curador especial em casos de apresentação de queixa ou representação, ou de outros procedimentos judiciais ou extrajudiciais em que haja interesses de criança ou adolescente;
g) conhecer de ações de alimentos;
h) determinar o cancelamento, a retificação e o suprimento dos registros de nascimento e óbito” (BRASIL. Lei nº 8069) (grifos nosso).[66]
Já não é no Brasil, a adoção de uma criança ou adolescente por indivíduo homossexual, transgênero (pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos e/ou papéis esperados do sexo biológico, determinado no seu nascimento) transexual (indivíduo que possui uma identidade de gênero oposta ao sexo designado normalmente no nascimento), uma novidade. Está se tornando fato comum nas Comarcas que possuem Varas de Infância e Juventude no nosso país, tendo em conta que inexiste a obrigatoriedade de assunção da opção/orientação sexual quando do momento de preenchimento do questionário (ficha de inscrição no cadastro de adotantes) de informações psicossociais.
Na entrevista e no preenchimento da ficha (ficha de inscrição no cadastro de adotantes) não há o questionamento quanto à orientação sexual do indivíduo que pleiteia a adoção, não há exigência formal desta declaração. Como não há exigência, muitos homossexuais omitem essa informação.
Em Lei, no Brasil não há nenhum impedimento à possibilidade jurídica do pedido de adoção por homossexuais. Pelo contrário, existe uma gama de jurisprudências favoráveis à adoção por indivíduos homossexuais no Rio de Janeiro, em especial, na 1ª Vara da Infância e da Juventude, e também no pioneiro Estado do Rio Grande do Sul nos julgados das Varas de Família de várias Comarcas.
Para dirimir quaisquer dúvidas em relação ao assunto, essa questão da negação de adoção por parte de casais homoafetivos ganha novo escopo com a decisão da Ministra Carmem Lúcia do Supremo Tribunal Federal, que em seu voto pronunciou que não existe qualquer razão legal na Constituição para que a adoção por casais homoafetivos venha a ser negada pela Justiça, e considerou como homofóbica qualquer forma de interpretação jurídica que obstem os direitos de um casal homoafetivo.
A partir do instante em que, o Supremo legalizou a união homoafetiva no País, e essa união homoafetiva tem o caráter de integrar os casais homoafetivos no novo contexto social – uma nova concepção de família – e como família devem abrigar menores sem lar, e não deixá-los ao abrigo de orfanatos, onde não se sabe se, e quando serão adotados, não há como negar a adoção de crianças e/ou adolescentes por parte dessas novas famílias.
Novos rumos deverão ser tomados pelo Judiciário, pois, com a omissão do Poder Legislativo, o Supremo Tribunal Federal tem como uma das suas funções criar normas jurídicas, e essas decisões transformadas em normas deverão ser seguidas pelos outros tribunais, em conformidade com a interpretação dada à Constituição e dessa maneira, as decisões após publicação tem peso de lei, por decisão vinculante.
Assim, a decisão proferida no julgamento do RECURSO EXTRAORDINÁRIO 846.102 (722), em 05 de março de 2014, põe fim a um impasse criado pela tentativa de adoção de uma criança de 12 anos de idade, por parte de um casal homoafetivo do Estado do Paraná, que se arrasta desde 2005, em função dos diversos recursos interpostos pela Procuradoria da Infância do Ministério Público, cuja decisão resumiu:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO 846.102 (722) ORIGEM: AC – 529976101 – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. PROCED.: PARANÁ.RELATORA:MIN. CÁRMEN LÚCIA. RECTE.(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ. PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. RECDO.(A/S): A L M DOS R. RECDO.(A/S): D I H. ADV.(A/S): GIANNA CARLA ANDREATTA ROSSI. DECISÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. Relatório
1. Recurso extraordinário interposto com base na al. A do inc. III do art. 102 da Constituição da República contra o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO. HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO.
1. Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê.
2. Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento” (doc. 6).
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados.[…]
Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade”. O acórdão recorrido harmoniza-se com esse entendimento jurisprudencial. Nada há, pois, a prover quanto às alegações do Recorrente.
5. Pelo exposto, nego seguimento a este recurso extraordinário (art. 557, caput, do Código de Processo Civil e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Publique-se. Brasília, 5 de março de 2015.Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora”. (BRASIL. STF. Supremo Tribunal Federal. Reconhecimento de união estável homoafetiva e respectivas consequências jurídicas. Adoção )[67]
Concretizando-se, pois, a adoção de criança ou adolescente por casal homoafetivo, procede-se de imediato a ruptura dos lações familiares com a família natural, se ela existir; falecidos os adotantes, não existe reestabelecimento de vínculo com a família natural. Os impedimentos previstos no Código Civil Brasileiro (BRASIL. Lei nº 10.406)[68] quanto ao casamento do adotado com os elencados nesse código em seu Artigo 1.521, I, III, IV e V, assim aproveita o casal homoafetivo adotante e em regresso a família biológica.
No assentamento do registro civil, não constará o nome do pai ou mãe, apenas a filiação. Assim, não será mencionada a paternidade/maternidade, nesses casos de adoção, mas constará os nomes dos adotantes seja qual for a formação da união homoafetiva: poderá constar dois nomes do gênero masculino, ou dois nomes do gênero feminino.
O exemplo dessa situação foi descrito por RAZAKI (2007, s.p):
“Os cabeleireiros paulistas Vasco Pedro da Gama Filho, de 35 anos, e Júnior de Carvalho, de 43, são pais de Theodora, de 5 anos. Eles conseguiram adotar a garota no ano passado. Foi o primeiro caso de adoção por um casal gay no Brasil. "O que nos ajudou foi a mudança na mentalidade das pessoas, sentimos que o preconceito contra a homossexualidade diminuiu muito", diz Gama Filho, que, junto com seu companheiro, vai à reunião de pais e mestres e frequenta festas na escola da filha. No espaço destinado à filiação da certidão de nascimento de Theodora […], ambos aparecem como pais.”[69]
No caso descrito acima, conferiu-se o direito da adotada de acrescer ao seu nome o patronímico de ambos os adotantes, mas no seu registro não consta paternidade/maternidade decorrente da adoção; ao adotado será assegurado todos os direitos e deveres de filho como se biológico o fosse, estabelecendo-se a obrigação de prestação de alimentos em relação aos adotantes e vice-versa. A troca do prenome do adotado poderá ser efetuada – se o adotado tiver discernimento suficiente, deverá ser consultado pela pretensão.
Advindo bens com a adoção, de propriedade do adotado, a administração desses bens caberá aos adotantes, por força de lei. A administração desses bens deverá ser feita sempre buscando conservar e/ou acrescer, nunca o contrário. Poderá os pais, no exercício do poder familiar usufruir dos frutos da administração desses bens, mas, valores que venham a serem percebidos pelo adotado ou filho biológico que tenha mais de dezasseis anos e esses valores venham a ser fruto de atividade profissional e os bens adquiridos com tais recursos, não são passíveis de sua tutela.
Ocorrendo a dissolução da união, o adotado poderá ter sua guarda compartilhada, em comum acordo com os adotantes, e se vir o adotante a falecer, o adotado faz parte da cadeia sucessória conforme previsto em legislação. A configuração da adoção por casal homoafetivo torna-se mais seguro para o adotado, pois se adoção fosse feita apenas por um deles, isoladamente, ao outro não caberia responsabilidades legais, no caso de morte do adotante.
Caso venha a ocorrer a morte do adotante no curso da adoção, depois de manifestar formalmente a sua vontade, a sentença produzirá efeitos retroativos à data do óbito, beneficiando dessa maneira o adotado, que passará a ter a sua condição de filho reconhecida, bem como estará apto a participar da sucessão e de qualquer outro benefício que venha a ter direito na sucessão que se dealvar.
Fundamenta-se a aprovação dos pedidos de adoção no respeito à dignidade da pessoa humana e na não discriminação do indivíduo quanto à sua opção/orientação sexual, e, portanto, concedendo às crianças e adolescentes um novo rumo na vida, guarnecendo-os com afeto, carinho, amor e proteção no seio de um núcleo familiar formado por um casal homoafetivo casal esse que já têm uma relação estável, duradoura e condições materiais e afetivas para assumir totalmente os anseios dos adotandos, concedendo dessa forma, ao magistrado, a solidez necessária à concessão da adoção.
Existem situações em que, formado o casal homossexual, os mesmos já tendo tomado para si os cuidados de uma criança desde os primeiros dias de vida, por livre e espontânea vontade da mãe da criança, ficando sob sua guarda ainda que ilegitimamente, mas que pelo tempo transcorrido cria-se os laços afetivos. Assim, fugindo à regra de exigibilidade de inscrição prévia em cadastro de adotantes, existe a possibilidade de flexibilização dessa exigência, permitindo o magistrado, após análise do caso, escapar dos formalismos legais e atentar para o melhor interesse da criança ou adolescente, concedendo o alvará de adoção, claro, ouvido o Ministério Público, fiscal da lei.
Concedida a adoção, não existe a possibilidade de desistência do ato, não cabendo, portanto a revogação, tal como previsto no Artigo 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mesmo que o adotante venha a constituir prole própria após a adoção, não se poderá revogar o ato.
Após o proferimento da sentença que defere a adoção, esta deverá ser levada ao Cartório de Registro Civil para que se possa atribuir a sua eficácia erga omnes. Não sendo levado o registro a sentença, embora já tenha estabelecido o vínculo, não tem a publicidade esperada para que possa gerar a oponibilidade contra todos do estado familiar que passou a ter o adotado na condição de filho. É vedada qualquer menção no registro à adoção – a sentença que determinou o registro do adotado ficará arquivado no cartório, sob sigilo.
Muitos casais homoafetivos estrangeiros demonstram seu interesse em adotar crianças brasileiras, e quando deparado com essa situação deverá o magistrado utilizar-se do período de convivência previsto na Lei 12.010 de 2009, que altera o Estatuto da Criança e do adolescente, em seu Art. 46 § 3º:
“§ 3o Em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do País, o estágio de convivência, cumprido no território nacional, será de, no mínimo, 30 (trinta) dias” (BRASIL. Lei nº 12.010).[70]
Esse estágio de pré-adoção, sendo feito seja por brasileiro ou estrangeiro, deverá ser acompanhado por uma equipe multidisciplinar, que subsidiará o magistrado, através de relatórios de acompanhamento da convivência, no seu livre convencimento à respeito do deferimento do pedido.
A adoção é objeto de regras internacionais, conforme nos ensina Silvio de Salvo Venosa (2008, p.284):
“A adoção é objeto de regras internacionais. O Brasil é signatário da Convenção sobre Cooperação Internacional e Proteção de Crianças e Adolescentes em Matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia, em 29-5-93. Essa convenção foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 3.087/99. Essa norma internacional tem disposições que devem ainda ser adaptadas à legislação interna, como por exemplo, a designação “autoridade central” no país, encarregada de dar cumprimento às obrigações impostas pela convenção, algo que ainda não está suficientemente claro”. (VENOSA. 2008, p.284)[71]
Seja por brasileiro, seja por estrangeiro, seja por casal heterossexual, ou homossexual, o que realmente importa nesse novo contexto jurídico-político-social, é que seja dada a oportunidade a uma criança ou adolescente a vir ter um lar, uma família que o abrigue, e lhe dê as condições necessárias à sobrevivência, com amor, carinho e afeto o mais humanamente possível.
Se, por causa de questões de preconceito em função da parentalidade dos adotantes, dificultar-se a chance de integração de uma criança ou adolescente que se encontra em situação de risco, em um ambiente aconchegante, em que o sentido de família é intenso, estará sendo privado o direito de se ter uma família, deixando que eles continuem a viver em uma instituição de amparo à criança e ao adolescente, muitas vezes expostos à violência, discriminação, exploração, crueldade e opressão sociais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parafraseando Lavoisier, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.
No Direito, nada é imutável. Na medida em que evoluímos, também se evolui as concepções de vida, o próprio modo de viver em sociedade, de se relacionar uns com os outros. O ser muda, o seu viver socialmente também, e a base da formação do Estado e da sociedade também sofre transformações – a família.
Hodiernamente, as mudanças que vem ocorrendo na composição da família, transformam-na e modificam os conceitos que se tem semanticamente de grupamento familiar. Remota e recentemente, a estrutura familiar era concebida como um núcleo cuja formação era composta pela união de um homem e uma mulher, que objetivando a perpetuação da espécie, uniam-se pelo instituto do casamento.
Mudanças ocorreram, evoluindo-se as composições dos núcleos familiares, e as famílias atuais são também compostas pela união de indivíduos, que possuindo o mesmo gênero, são ligados afetivamente, cujo relacionamento é baseado no amor, no carinho, na afetividade, constituindo assim, um vínculo solidificado nos mútuos interesses de união.
Busca-se hoje, a formação de uma família em que seus membros se sintam realizados em toda sua plenitude, comungando-se afetivamente e mutuamente, alicerçados no respeito e no amor entre eles, e que essa interligação não se resuma apenas biologicamente.
Assim, fugindo ao estereótipo de formação da família baseado na união entre o um homem e uma mulher, com essa finalidade de procriação, existem nessa sociedade contemporânea, as ditas “famílias alternativas”, cuja estrutura basilar é fincada na afetividade, permitindo assim, a formação familiar composta de indivíduos do mesmo gênero. Surge então, a família composta por casais homossexuais.
Esses indivíduos, que se relacionam com outros do mesmo sexo, não são doentes, são apenas seres que estão em uma situação de sexualidade diferenciada da convencionada pela sociedade como dentro dos padrões de aceitabilidade e normalidade.
No nosso Estado Democrático de Direito, constitucionalmente, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e é calcado nesse princípio que os indivíduos que tem orientação/opção sexual diferente do convencional, deverão ser tratados como igual em nossa sociedade.
Indivíduos que tem uma orientação/opção sexual diferente estão exercendo o seu livre direito à liberdade, direito esse que é inalienável, intransmissível, irrenunciável, e imprescritível. A sociedade pressiona e oprime a homossexualidade, marginalizando-os, estigmatizando-os e obrigando-os a se enclausurar, vivendo uma mendacidade que os faz sofrer, negando a possibilidade de viver plenamente não só sua sexualidade, mas também sua afetividade e capacidade de constituir uma família independente de sua condição de homossexual.
Nessa condição, o constituir uma “família”, é uma tarefa difícil. Muitos pela incapacidade biológica de procriar, sejam por meios naturais ou artificiais; outros pela ignorância e preconceito por sua capacidade de adotar.
O ordenamento jurídico pátrio assegura aos brasileiros o instituto da adoção, sejam eles adotantes ou adotados, pois, ser adotado e ter uma família são um direito de qualquer um, como nos diz TURKENICZ (2012, p.472): “Uma pequena variação na máxima espanhola do século XVI continua atual: não há excluído mais excluído do que aquele que não tem família.”[72]
Criaram-se diversas justificativas contrárias à adoção de crianças e adolescentes por pessoas que tinham um relacionamento afetivo e sexual, e eram do mesmo sexo; a desculpa mais inconsequente que existia era a da discriminação que o adotado sofreria no ambiente escolar, que era o primeiro a ser frequentado, ou qualquer outro ambiente.
Psicologicamente preparado o adotado, componente dessa nova estrutura familiar, hoje já não sofre mais discriminação, sendo aceito na sociedade, importando mesmo para sua formação psicossocial, que seu(s) pai(s) ou sua(s) mãe(s), lhe conceda amparo, amor, carinho, afeto, educação e segurança.
Os que discriminavam e negavam a adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos, na crença que haveria danos ao seu desenvolvimento psicossocial, não devem mais utilizar-se de tais subterfúgios, haja vista que, não existem comprovação que danos existem, e, a contrario sensu, muitos estudos vem a corroborar com a afirmação que não existem desigualdades no desenvolvimento de crianças e adolescentes criados por casais que vivem em homoafetividade, em relação às que o são por casais heterossexuais.
Impossível obliterar que a condição de união homoafetiva é relativamente semelhante com o instituto da união estável, e que ambas são originárias de relações de afeto que objetivam a constituição de um núcleo familiar.
Dessarte, existindo a possibilidade de se converter a união estável em casamento, e estando a união estável prevista no Art. 226, §3º da magna carta, a interpretação de tal dispositivo deverá levar em conta que a possibilidade de aceitação da conversão de união estável em casamento por quem já vive uma relação homoafetiva, confere-lhe além do princípio da razoabilidade, os princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Isto posto, não acomete inadssimibilidade a submissão à união homoafetiva das mesmas consequências jurídicas aplicáveis à união estável pela norma acima citada, posto que, a um e outro lhe são característicos o relacionamento socioafetivo.
Dentro das atuais características político-sociais do país, nas quais vê-se uma grande quantidade de crianças e adolescentes vivendo em condições de risco afetivo-social, a oferta de uma oportunidade de se reverter esse quadro choca-se com a intransigência de alguns operadores do direito, que ainda relutam em colocar em um lar substituto, que lhes dê carinho amor e proteção, mas por terem uma convivência fora dos padrões aceitáveis pela dita sociedade, e por seu relacionamento sexual não obedecer, o que segundo eles, as leis naturais da vida.
Juridicamente, esquecem o escopo do Art. 5º, § 2º da Magna Carta, cuja redação nos remete a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e que os direitos e garantias expressos nela não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e assim, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente aqui está incluso.
Obedecer a nossa Constituição é um dever de todo brasileiro, e seguindo a sua orientação, tal como o Art. 227, “a família, a sociedade e o Estado deve assegurar à criança ao adolescente e ao jovem” os meios de lhes assegurar a proteção, evitando a discriminação, a exploração sob quaisquer formas, colocá-los a salvo da violência, da opressão e dar-lhe condições de ter direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, à liberdade e evidentemente à convivência familiar, não determinando como essa convivência familiar deverá ser feita, nem qual tipo de família deverá ser formada para que isso aconteça.
Verificou-se no desenvolver deste trabalho, que a adoção pode ser perfeitamente realizada por casais que mantenham uma relação homoafetiva, que podem cumprir perfeitamente essa finalidade, e não há por que se indeferir a pretensão, pois o Juízo não deve se ater a preconceitos morais e/ou religiosos para proferir a sentença declaratória de adoção por casais homoafetivos.
Dentro das justificativas jurisprudenciais apresentadas, nada impede, pois, que a consagração de um núcleo familiar formado por um casal homoafetivo e seu(s) filho(s) adotados, seja levada a termo, abarcando assim os princípios da igualdade e da liberdade, estabelecendo um novo panorama jurídico, com o total reconhecimento do instituto da adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos como uma nova entidade familiar, com total proteção do Estado.
Novos tempos, novas vidas beneficiadas pelas novas leis, novo Direito positivado, novos rumos a serem seguidos pela sociedade. A adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos agora faz parte de nosso ordenamento jurídico, e isso diz respeito à valoração da dignidade humana, sintetizada no princípio da igualdade, o que implica em negativar toda e qualquer forma de discriminação.
Dois iguais amam, acolhem e adotam o que dois diferentes irresponsáveis rejeitaram.
Informações Sobre o Autor
Jodelse Dias Duarte
Advogado Pedagogo Especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior e Direito de Família