A família contemporânea e a tutela constitucional

Resumo: Trata-se de um estudo da evolução histórico-social da família, para que, em seguida, seja possível dar uma conceituação pertinente à luz da Constituição de 1988. O conceito de família sofreu considerável modificação ao longo dos anos para atender aos anseios sociais, na busca de maior efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

Palavras-chave: Família. Direitos Fundamentais. Evolução. Conceito Constituição.

Abstract: This is a study of the historical and social evolution of the family, so then it is possible to give a meaningful concept of the 1988 Constitution. The concept of family has undergone substantial change over the years to meet social expectations in the search for greater enforcement of fundamental rights and guarantees

Keywords: Family. Fundamental rights. Evolution. Concept. Constitution 

Sumário: Introdução. 1. Evolução da família e seu conceito contemporâneo. 2. Princípios do direito das famílias.  3. A Tutela Constitucional. Considerações Finais. Referencias.

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como premissa analisar as modificações ocorridas na forma de constituição da família. Nos primórdios, tal instituto era constituído apenas pelo casamento, de forma que só era legítima a família formada por este. 

Face a evolução social tornou-se necessário mudanças no contexto histórico, fazendo com que novos arranjos familiares sejam considerados pelo ordenamento jurídico, como a união estável, união homoafetiva, a família monoparental, a simultânea, dentre outros. 

Toda essa modificação se deu pelo novo conceito de familia eudemonista, que se refere à família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto e respeito mútuos, independente do vínculo biológico, na medida em que simplesmente se preocupa com a felicidade de seus membros.

 Dessa forma, a legislação não pode ficar engessada ante as mudanças sociais, sob pena de se tornar retrograda e, até, discriminatória, tornando relevante a evolução dos institutos jurídicos para uma melhor interação entre lei e sociedade. 

1. Evolução da família e seu conceito contemporâneo

É certo que a família é vista como base da sociedade, como a instituição mais sólida em toda a história da humanidade, porque antecede a todas as demais. 

É um fenômeno biológico e social; elemento essencial para a formação das comunidades, estrutura primordial na qual o ser humano nasce e de onde se começam as moldagens de sua personalidade e de suas potencialidades, com a finalidade de conviver em sociedade e de buscar cada vez mais seus desejos pessoais.

Com isso, fica extremamente difícil conceituar definitivamente o que vem a ser um núcleo familiar, uma vez que a família se adapta às necessidades impostas pela sociedade de acordo com as mudanças que acontecem em seu contexto.

Por isso, é preciso compreendê-la por diversos ângulos, porque apesar de ser uma instituição milenar, que atravessa séculos e mais séculos, a família não deixa em momento algum de se manter atualizada.

De acordo com Caio Mário da Silva Pereira, numa conotação mais biológica e lato sensu,

"considera-se família o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum. Ainda neste plano geral, acrescenta-se o cônjuge, aditam-se os filhos do cônjuge (enteados), os cônjuges dos filhos (genros e noras), os cônjuges dos irmãos e os irmãos do cônjuge (cunhados) (PEREIRA, 2005, p. 19)."

Num sentido mais restrito, “família compreende somente o núcleo formado por pais e filhos que vivem sob o pátrio poder ou poder familiar” (VENOSA, 2006, p. 2). Sob uma ótica sociológica, ainda de acordo com Sílvio de Salvo Venosa, a família também pode ser considerada como um conjunto “integrado pelas pessoas que vivem sob um mesmo teto, sob a autoridade de um titular” (VENOSA, 2006, p. 2).

É na família que vão acontecer atividades de cunho natural, biológico, espiritual, psicológico, filosófico, cultural, tais como as escolhas profissionais, a vivência dos problemas e realizações etc.

Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

"Sem dúvida, então, a família é o fenômeno humano em que se funda a sociedade, sendo impossível compreendê-la senão à luz da interdisciplinaridade máxime na sociedade contemporânea, marcada por relações complexas, plurais, abertas, multifacetárias e (por que não?) globalizadas (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 39)."

A família é o terreno fecundo onde irão acontecer as maiores manifestações de afeto, respeito, escolha de caminhos e orientações, formação de grupos para o desenvolvimento da personalidade, na busca de felicidade plena. Ela é a célula, o fenômeno humano em que se baseia a sociedade e a concretização de um modo de viver as coisas básicas da vida.

 Com a multiplicidade e variedade de fatores – físicos, sociológicos, filosóficos, culturais etc., a família passou a ser vista não mais como um modelo uniforme, pronto e acabado, tradicional, mas que se modifica com as mudanças e relações sociais ao longo da história; história longa, feita de sucessivas rupturas e agregações, já que a família não é uma totalidade homogênea, mas um universo em que diferentes relações estão presentes e que se adaptam às necessidades sociais de cada tempo. 

Dessa forma, chega-se ao consenso de que “as estruturas familiares são guiadas por diferentes modelos, variantes nas perspectivas espaciotemporal, pretendendo atender às expectativas da própria sociedade e às necessidades do próprio homem” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 39).

Isso implica dizer que com o passar do tempo os alicerces familiares foram constituídos por novos arranjos, para que as necessidades de cada membro do seio familiar fossem atendidas.

Inicialmente, as relações sexuais eram realizadas dentro do próprio grupo familiar, conforme entendimento de Sílvio Venosa:

“no estado primitivo das civilizações o grupo familiar não se assentava em relações individuais. As relações sexuais ocorriam entre todos os membros que integravam a tribo (endogamia). Disso decorria que sempre a mãe era conhecida, mas se desconhecia o pai, o que permite afirmar que a família teve de início um caráter matriarcal, porque a criança ficava sempre junto à mãe, que a alimentava e a educava” (VENOSA, 2006, p. 3).

A partir dessa ideia, permite-se afirmar que nos primórdios da humanidade as relações sexuais entre os indivíduos da tribo possuíam cunho endogâmico, uma vez que tais relações ocorriam entre todos os componentes que pertencessem àquela tribo.

Pouco tempo depois, as relações familiares assumiram o caráter poligâmico, de modo que todos os indivíduos daquele grupo se relacionavam entre si. Como ensina Caio Mário,

"na mesma linha de promiscuidade, inscreve-se o tipo familiar “poliândrico”, em que ressalta a presença de vários homens para uma só mulher ou ainda o do matrimônio por grupo, caracterizado pela união coletiva de algumas mulheres com alguns homens” (PEREIRA, 2005, p. 24)."

Dessa forma, existiam vários homens que se relacionavam com uma só mulher, ou o matrimônio realizado por grupo, de modo que algumas mulheres se casavam com alguns homens daquele mesmo grupo.

Em Roma, a família é descrita como uma comunidade de culto dos mortos, uma vez que os membros familiares adoravam seus antepassados. Como ensinam Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior, “em cada grupo, antepassados a serem reverenciados representavam a chamada religião doméstica” (ALMEIDA; JÚNIOR, 2010, p. 3).

Isso significa que a família daquela época era um grupo que formava uma determinada religião doméstica, de forma que seus antepassados pudessem ser adorados.

"Em Roma, o poder do pater exercido sobre a mulher, os filhos e os escravos é absoluto. A família como grupo é essencial para a perpetuação do culto familiar. No Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era elo de ligação entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamento da família romana. […] A instituição funda-se no poder paterno ou poder marital. Essa situação deriva do culto familiar. Os membros da família antiga eram unidos por vínculo mais poderoso que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados. Esse culto era dirigido pelo pater. A mulher, ao se casar, abandonava o culto do lar de seu pai e passava a cultuar os deuses e antepassados do marido, a quem passava a fazer oferendas. Por esse largo período da Antiguidade, família era um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os mesmos antepassados (VENOSA, 2006, p. 4)."

Demonstra-se com isso que a família era uma associação religiosa, na qual o culto era o foco. Destarte, é certa a necessidade de pessoas para o culto dos antepassados, sendo imprescindível a existência de novas gerações para adoração das anteriores.

O casamento veio para servir de assento da família. Ele era uma solenidade, de caráter indissolúvel, na qual a mulher deixava a religião doméstica de seu pai, para então se unir ao seu marido e cultuarem os antepassados da família de seu esposo, já que era impossível a concorrência de religiões domésticas. Era somente através do matrimônio que a mulher se unia ao homem para que fossem gerados outros sujeitos, e assim, continuassem a adoração dos antepassados daquela família.

"O casamento era assim obrigatório. Não tinha por fim o prazer; o seu objeto principal não estava na união de dois seres mutuamente simpatizantes um com o outro e querendo associarem-se para a felicidade e para as canseiras da vida. O efeito do casamento, à face da religião e das leis, estaria na união de dois seres no mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um terceiro, apto para continuador desse culto (COULANGES, 1958, v. 1:69 apud VENOSA, 2006, p. 5)."

A família e o culto eram transmitidos somente aos homens e, também, a autoridade familiar se fundava neles, pois estes eram vistos como superiores, tanto em relação à mulher quanto aos filhos.

Tudo isso colaborou na formação do direito de propriedade, já que as sepulturas dos antepassados se localizavam nas redondezas das residências familiares. A propriedade privada era essencial à preservação religiosa, uma vez que as religiões não se podiam fundir, além de não ser possível a utilização de divisas comuns para que os antepassados não fossem confundidas ou misturadas. “Somente o pater adquiria bens, exercendo a domenica potestas(poder sobre o patrimônio familiar) ao lado e como consequência da pátria potestas (poder sobre a pessoa dos filhos) e da manus (poder sobre a mulher)” (PEREIRA, 2005, p. 26).

Dando um grande salto histórico, uma vez que a estrutura familiar se manteve inalterada, tanto na Idade Moderna como na Idade Média dispensava-se o afeto na constituição da entidade familiar; ele poderia surgir com a convivência decorrente do matrimônio, mas não era visto como fator fundamental para a constituição do núcleo familiar, como bem esclarece Maria Berenice Dias,

"em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. (DIAS, 2010, p. 28)."

Deste modo, o afeto não era visto como prioridade nas relações entre os familiares; ele poderia decorrer da convivência. Importava que a família constituísse um forte meio de produção e procriação, desde que advinda do matrimônio.

A partir da época do Iluminismo, grandes reivindicações de classes populares em desfavor da burguesia e da monarquia contribuíram para que a família se constituísse com o intuito de adquirir patrimônio. 

Não obstante, essas alterações sociais não impediram que a religião continuasse influenciando sua formação, já que agora o cristianismo era legitimador da constituição da família, e essa era oriunda do matrimônio decorrente das relações entre homem e mulher.

Isso implica dizer que o Código Civil de 1916 definia a família como aquela formada exclusivamente pelo casamento, protegendo o instituto familiar apenas se este fosse oriundo do matrimônio.  

O casamento fundava a família e a reprodução ainda era vista como seu objetivo propulsor, mas não como adoração aos antepassados como na época romana, mas como fator essencial para a obtenção de propriedade. A família continuava hierarquizada e patriarcal, pois o homem era a autoridade máxima da família: aquele que trabalhava fora para garantir o sustento material de seus componentes; a mulher tinha o papel reprodutor e de conservação do lar, era considerada relativamente incapaz, necessitando de autorização marital para determinados atos da vida civil, e os filhos eram as mãos-de-obra da família, que deviam obediência extrema ao pai.

"mais ainda compreendia-se a família como unidade de produção, realçados os laços patrimoniais. As pessoas se uniam em família com vistas à formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos. Daí a impossibilidade de dissolução do vínculo, pois a desagregação da família corresponderia à desagregação da própria sociedade. Era o modelo estatal da família, desenhado com os valores dominantes naquele período da revolução industrial. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 40)."

Era uma hegemonia masculina, em que o homem era a autoridade máxima, tanto como pai quanto como esposo. Os filhos oriundos de relações extraconjugais eram considerados ilegítimos, já que para o modelo Codicista a família era constituída somente pelo matrimônio, e este a todo custo, era protegido, mesmo em caso de adultério por parte da esposa.

Não importava a satisfação pessoal dos membros da família, havia harmonia e equilíbrio familiar se cada membro cumprisse com seu papel para a obtenção de propriedade. Em resumo, a família Codicista era hierarquizada, matrimonial e patrimonial.

Seguindo moldes da família Codicista, a sociedade brasileira foi construída sob influência de uma complexa fusão de culturas, tanto na fase colonial como na imperial. Embora o casamento fosse observado sobre o olhar legal, a religião continuava a ditar a formação da família, uma vez que a matrimonialidade, a monogamia e a chefia patriarcal eram impostos. No Brasil-império, a cultura européia influenciava no modo de constituição familiar, com aquele mesmo caráter matrimonial.

Mas essa não era a realidade brasileira, já que outras entidades familiares começaram a aparecer, como, por exemplo, a família chefiada por mulheres, já que os homens se separavam do seu grupo familiar em virtude das grandes expedições, além da viuvez de algumas outras mulheres.

Com o passar dos anos, com o crescente industrialismo e urbanização, a ideia de grande família perdeu espaço, já que o casamento não era mais visto como melhor forma de se adquirir propriedade.

"a industrialização transforma drasticamente a composição da família, restringindo o número de nascimentos nos países mais desenvolvidos. A família deixa de ser uma unidade de produção na qual todos trabalham sob a autoridade de um chefe. O homem vai para a fábrica e a mulher lança-se no mercado de trabalho (VENOSA, 2006, p. 6)."

Deste modo, o processo de industrialização corroborou para que os trabalhos não fossem mais passados de pai para filho em suas casas e corporações, de forma que o homem e a mulher trabalhassem fora de casa e os filhos passariam a receber educação do Estado ou de instituições privadas.

Os filhos havidos fora do casamento passaram a ser reconhecidos com a edição da Lei N° 883 de 1949, desde que a sociedade conjugal fosse dissolvida. Além disso, os filhos começaram a ser aceitos como titulares de seus interesses, e não apenas como mão-de-obra da família. 

A mulher passou a trabalhar nas indústrias, ajudando na mantença de seu lar. A Lei N° 4.121 de 1962, denominada como Estatuto da Mulher Casada, legislou a possibilidade da mulher exercer atividade profissional, aceitar herança ou legado, sem a autorização de seu marido. 

Ainda, com o advento da Lei do Divórcio, apesar de ter sido alvo de fortes críticas, a família não se extinguiu, mas passou a assumir outro papel: o de natureza de respersonalização, antes vista somente como transpessoal.

"o outono daquela compreensão familiar era evidente: a sociedade avançou, passaram a viger novos valores e o desenvolvimento científico atingiu limites nunca antes imaginados, admitindo-se exempli gratia, a concepção artificial do ser humano, sem a presença do elemento sexual. Nessa perspectiva, ganhou evidência a preocupação necessária com a proteção da pessoa humana. Assim, ruiu o império do ter, sobressaindo a tutela do ser (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 40)."

Isso significa que a família passa a ser um modo ao qual a realização pessoal é o foco, sobrepondo o patrimonial. O que importa é o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada membro familiar, a realização dos interesses e direitos da pessoa humana e a formação completa de seus componentes.

Com a Constituição da República de 1988, muitos paradigmas decorrentes do conceito anterior foram quebrados, dentre eles, a igualdade dos filhos havidos fora do casamento, garantindo-lhes direitos igualitários aos dos filhos biológicos e não se admitindo qualquer forma de discriminação.

"[…] não mais comporta a classificação, que se ligava mais intimamente à qualificação dos filhos, e, por metonímia, distinguia a família “legítima”, que tinha por base o casamento; a “ilegítima”, originária das relações extramatrimoniais; e a adotiva, criada pelas relações oriundas da adoção tradicional, pela legitimação adotiva que vigorou até 1990. Com a equiparação dos filhos adotada pela Carta Magna de 1988 (art. 227, § 6º, CF), inclusive dos adotados, proibiu-se, expressamente, designações discriminatórias relativas à filiação (PEREIRA, 2005, p. 20-21)."

Deste modo, todos os filhos passaram a ser tratados de forma igualitária perante o Estado, não importando o vínculo de filiação. Seja por laço genético ou fraternal, todos os filhos são iguais perante a lei.

A partir dessa premissa, pode-se afirmar que o conceito de família mudou: a partir de agora é uma instituição vista como um espaço de preservação dos anseios de seus membros.

Conforme ensinamento de Renata de Almeida e Walsir Rodrigues Júnior, “família é toda formação social que envolva ambiente propício ao livre e pleno desenvolvimento das pessoas que a constituem” (ALMEIDA; JÚNIOR, 2010, p. 22), favorecedor da formação pessoal.

É o ambiente em que seus constituintes se sentem livres e protegidos para lutarem pela sua felicidade, pelos seus desejos, sonhos e realizações, “funda-se, portanto, a família pós-moderna em sua feição jurídica e sociológica, no afeto, na ética, na solidariedade recíproca entre os seus membros e na preservação da dignidade deles” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 41).

Isso implica dizer que a família contemporânea está atrelada à ideia de zelo e felicidade de cada membro que a compõe, através de uma compreensão socioafetiva, na busca da dignidade humana.

2. Princípios do direito das famílias

Princípios constituem-se como fundamento do ordenamento jurídico, já que servem de importante auxílio na resolução de controvérsias em que a lei não consegue por si só resolver.

Os princípios constitucionais, ao abarcar novas entidades familiares e regulamentarem garantias aos direitos do homem, trazem uma característica inovadora ao Direito, já que o ordenamento deve ser visto com dinamicidade, como uma ciência construída e reconstruída a cada dia, que acompanha passo a passo as mudanças em que o homem, sujeito ativo desse campo científico, realiza em si mesmo e na sociedade, na qual os valores humanos de respeito, igualdade, fraternidade e dignidade constituem efetivamente um direito de todos e para todos.

Deste modo, o princípio da dignidade da pessoa humana, com fulcro no artigo 1º, III, da Constituição da República, traz a ideia, de que:

"a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. […] Não se consegue explicar a proteção constitucional às entidades familiares não fundadas no casamento (art. 226, § 3º) e às famílias monoparentais (art. 226, § 4º); a igualdade de direitos entre homem e mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5º); a garantia da possibilidade de dissolução conjugal independentemente de culpa (art. 226, § 6º); o planejamento familiar voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art. 226, § 7º) e a previsão de ostensiva intervenção estatal no núcleo familiar no sentido de proteger seus integrantes e coibir a violência doméstica (art. 226, § 8º) (TEPEDINO apud GONÇALVES, 2012, p. 22)."

Destarte, é inadmissível negar que o princípio da dignidade da pessoa humana está inerente aos direitos das famílias, já que a dignidade está atrelada à ideia proteção, desenvolvimento e satisfação dos interesses dos membros familiares.

Nessa linha, o princípio do livre desenvolvimento da personalidade atribui à pessoa a condição de ser detentora de direitos e de assumir deveres, vista atualmente como sujeito de direitos, e não objeto. Um sujeito que está em contantes mudanças diariamente.

"a pessoa não é um ser, mas um tornar-se. Não é posta, mas constantemente construída. A existência humana consiste numa busca incessante, diante de sua incompletude. Voltada para um horizonte qualquer, a pessoa humana se desenvolve. Apreende fatores sociais. Identifica necessidades e busca satisfazê-las. A partir desse procedimento, forma e conforma sua individualidade (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 40)."

Por ser dotada de liberdade, há que se proteger e tutelar o direito de garantir que o indivíduo possa se desenvolver, já que o ser pessoa se fundamenta num constante agir, modificar-se, construir e reconstruir-se.

Como se pode perceber em tópicos anteriores, o conceito atual de família mudou. Não mais se restringe às estruturas à época do Direito Romano, em que o casamento era quem fundava a família. Nessa linha de raciocínio, o princípio da pluralidade das entidades familiares serve como importante fundamento para que se vejam tutelados os direitos das famílias e seu tratamento isonômico independentemente do modo o qual a família foi constituída.

“há que se compreender a proteção constitucional familiar como a mais abrangente possível. Despiciendo a forma da qual se valha, o único juízo que se admite fazer atine à preservação da dignidade e do livre desenvolvimento das pessoas que compõem o ambiente familiar. Constatado isso, toda e qualquer estrutura, toda e qualquer origem familiar, merece proteção jurídico-constiucional. […]” (ALMEIDA; RODIGUES JÚNIOR, 2012, p. 45).

Desse modo, não importando o modo de constituição, família é família e merece proteção do Estado.

“[…] a família deve ser notada de forma ampla, independentemente do modelo adotado. Seja qual for sua forma, decorrerá especial proteção do Poder Público. Gozam, assim, de proteção tanto as entidades constituídas solenemente (como o casamento) quanto as entidades informais, sem constituição solene (como a união estável)” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 88).

Para que a família possa se constituir, formando um ambiente em que seus membros possam se desenvolver, é necessário que se auto-ajudem. Nessa perspectiva, o princípio da solidariedade ganhou notável importância, pois “ser solidário passa a representar ser responsável pelo outro” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 49).

“se as pessoas não são apenas responsáveis pela formação de si próprias, mas também pela formação dos demais integrantes da sociedade, é preciso impeli-las a ofertar esse auxílio. Permitir que ele falte é admitir que fique maquiado o processo de desenvolvimento da personalidade; o que, para o ordenamento jurídico, é o mesmo que falsear a consecução do compromisso de proteger a pessoa. […]” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 49).

Fato é que além de ser fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88), a Constituição coloca a solidariedade como uma das finalidades do Estado (art. 3º, I, CR/88).

“[…] reiterado o fato de que a sociedade tem por base a família, é de se deduzir ser este o primeiro núcleo no qual a solidariedade deve imperar. Originária e preferencialmente, os familiares hão de ser solidários entre si, a fim de auxiliar a promoção do livre desenvolvimento da personalidade de todos. Aliás, nisso se assenta a própria conceituação de família – formação social que envolva ambiente propício à plena formação pessoal de seus componentes -, o que reforça ainda mais a responsabilidade jurídica que têem seus integrantes, uns perante os outros: “un pour tous, tous pour un” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 51).

Em relação aos filhos, é clara a afirmativa, conforme a CR/88, que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer discriminações relativas à filiação” (CR/88, art. 227, § 6º). Nesse sentido, o princípio da igualdade entre filhos tem o condão de tutelar a isonomia entre os filhos, advindos de laços biológicos ou adotivos. 

"A incidência da isonomia entre os filhos produzirá efeitos no plano patrimonial e no campo existencial. Com isso, pondo fim às discriminações impostas aos filhos adotivos, a igualdade assegura que um filho tenha o mesmo direito hereditário do outro. Ou seja, não há mais a possibilidade de imprimir tratamento diferenciado aos filhos em razão de sua origem (se biológica ou afetiva). Outrossim, sequer são admitidas qualificações indevidas dos filhos, não mais sendo possível juridicamente atribuir a um filho a designação de adulterino ou incestuoso (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 133)."

E concluem:

"A partir dessas ideias, vale afirmar que todo filho gozará dos mesmos direitos e proteção, seja em nível patrimonial, seja mesmo na esfera pessoal. Com isso, todos os dispositivos legais que, de algum modo, direta ou indiretamente, determine tratamento discriminatório entre os filhos terão de ser repelido do sistema jurídico (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 133)."

Como se pode notar, os princípios do direito das famílias são importantes fundamentos constitucionais e legais, com a função de fazer valer a efetiva aplicabilidade das normas, de modo que os interesses individuais e coletivos sejam garantidos.

3. A Tutela Constitucional

Com o advento da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, §8°, a família ganhou uma função protetiva, juntamente com o corroborado Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, sendo visto como fundamento da República.

"a família do novo milênio, ancorada na segurança constitucional, é igualitária, democrática e plural (não mais necessariamente casamentária), protegido todo e qualquer modelo de vivência afetiva e compreendida como estrutura socioafetiva, forjada em laços de solidariedade (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 47)."

Isso significa que foi por meio da Constituição da República de 1988 que a instituição familiar passou a primar pelos valores humanos e sentimentais; que outras formas de composição do núcleo familiar que não o casamento fossem reconhecidas como legítimas. A Carta Magna foi a percussora de trazer para o Direito um pouco da realidade vivida atualmente, na qual se predomina o afeto e não mais aquela visão arcaica romana de paternalismo, patrimonialismo e matrimonialismo.

Hoje o afeto dá os contornos do que seja uma família, e como ensina Paulo Lobo: 

“os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade”.(LOBO, 2009, p.61)

A família contemporânea assume a característica de ser eudemonista, ou seja, aquela em que se preocupa com a felicidade de cada um de seus componentes; uma entidade baseada no amor e nas relações de afeto. “Em suma, reuniões pessoais que se sustentem no afeto, que sejam estáveis e, nessa medida, ostensivas, criam recinto favorável à constituição de identidades; são, portanto, família” (ALMEIDA; JÚNIOR, 2010, p. 23), merecedoras de ampla proteção estatal.

Assim como afirma Maria Berenice Dias:

“o novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado” (DIAS, 2010, p. 43).

Isso significa que a família não é aquela constituída apenas pelo casamento, mas todas aquelas oriundas de relações de afeto, estabilidade e ostensividade.

O afeto se dá por meio das relações de convivência; a estabilidade é o comprometimento dos membros que constituem o núcleo familiar para com os mesmos, baseando-se no respeito, na responsabilidade, na comunhão de interesses da família e na exclusão de relacionamentos casuais; já a ostensividade se caracteriza na publicidade, no reconhecimento da família perante a sociedade.

Nas palavras de Farias e Rosenvald:

“[…] a família existe em razão de seus componentes, e não estes em função daquela, valorizando de forma definitiva e inescondível a pessoa humana. É o que se convencionou chamar de família eudemonista, caracterizada pela busca da felicidade pessoal e solidária de cada um de seus membros. Trata-se de um novo modelo familiar, enfatizando a absorção do deslocamento do eixo fundamental do Direito das Famílias da instituição para a proteção especial da pessoa humana e de sua realização existencial dento da sociedade” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 48).

Dessa forma, relações baseadas no afeto, amor, carinho, cumplicidade, dentre outros sentimentos beneficentes, em que os membros têm entre si a comunhão de vida e interesses semelhantes, importando a felicidade de cada membro, são abarcadas como entidades familiares detentoras de direitos igualitários àquelas que foram construídas apenas pelo matrimônio.

Considerações Finais

O casamento era, antigamente, a união formada apenas entre homem e mulher, mediante uma celebração, seguindo ritos legais e formais para que tenha caráter efetivo. Contudo a evolução do conceito de família propiciou uma tutela de forma a abarcar todas as modalidades de união, inclusive o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o chamado casamento homoafetivo.

A união estável não exige formalidades na sua constituição; é apenas uma união entre homem e mulher, em que também são elementos essenciais a estabilidade, a publicidade, continuidade, ausência de impedimentos matrimoniais e o intuito familiae (ânimo de construir uma família). E atualmente, por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, através de julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de nº. 4277, também é possível o reconhecimento da união estável por pares homoafetivos, desde que cumpram os requisitos anteriormente elencados.

Dessa foram, implica dizer que a Constituição busca uma pluralidade social, na qual aproxima o Direito das novas vertentes familiares, inserindo em seu texto legal outras formas de constituição dos núcleos familiares que não somente o casamento, baseando-se também na dignidade da pessoa humana, que representa o valor próprio de cada um e a garantia dos direitos fundamentais ao ser humano, bem como elenca o artigo 5° da Carta Magna, garantindo a todos o direito à vida, à igualdade, à liberdade, segurança e propriedade, competindo ao Estado fornecer os recursos necessários para o exercício desses direitos.

 

Referencias
ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
______. Direito Civil: famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
BRASIL. Código Civil. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
______. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 29. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
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Informações Sobre os Autores

Lucas Vieira de Queiroz

Bacharel em Direito pela Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira – FUNCESI

Cesar Leandro de Almeida Rabelo

Bacharel em Administração de Empresas e em Direito pela Universidade FUMEC. Especialista em Docência no Ensino Superior pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pelo CEAJUFE – Centro de estudos da área jurídica federal. Mestre em Direito Público pela Universidade FUMEC. Advogado do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade FUMEC. Professor da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira – FUNCESI, Faculdades Del Rey – UNIESP e Policia Militar de Minas Gerais.


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