A Luta Pelo Reconhecimento, Igualdade De Gênero E Direitos Das Mulheres Pescadoras Da Amazônia E A Importância Conclamativa Do Reverberar Científico-acadêmico

Autor:  Samuel Moreira Soares, acadêmico de Direito na Universidade do Estado do Amazonas – UEA, e servidor efetivo do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. (email: [email protected])

Orientadora: Jane Silva da Silveira, Advogada, Professora da Universidade do Estado do Amazonas – UEA e Especialista em Direito Processo Civil.

Resumo: Este artigo é uma breve análise crítica acerca do processo de luta pelo reconhecimento, igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras da Amazônia, bem como da importância conclamativa do reverberar acadêmico-jurídico para essa luta, revelando que, ao longo da história, as mulheres têm passado por um processo de inferiorizarão e dominação por parte dos homens que ecoa, hodiernamente, nesse grupo social, sendo assim, indaga-se até que ponto essa evolução histórica está relacionada com a luta por igualdade e direitos dessas mulheres. Além disso, é uma reflexão social, legal e constitucional sobre o grau em que estamos nesse processo, expondo a dívida acadêmica do Direito, consubstancia-se, assim, em uma verdadeira conclamação científico-acadêmica, mormente para os estudiosos e pesquisadores das ciências jurídicas.

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Palavras-chave: Reconhecimento. Igualdade. Mulheres pescadoras amazônicas.

 

Abstract: This article is a brief critical analysis of the struggle for recognition, gender equality and the rights of women fishermen in the Amazon, as well as the critical importance of the academic and legal reverberation for this struggle, revealing that, throughout history, women they have gone through a process of inferiorization and domination on the part of men that echoes, today, in this social group, therefore, it is asked to what extent this historical evolution is related to the struggle for equality and rights of these women. In addition, it is a social, legal and constitutional reflection on the degree to which we are in this process, exposing the academic debt of Law, thus constituting a true scientific-academic claim, especially for scholars and researchers in the legal sciences.

Keywords: Recognition. Equality. Amazonian fishing women.

 

Sumário: Introdução. 1. A evolução histórica que ocupa a mulher na sociedade à luz do viés da igualdade de gênero e direitos. 2. O empoderamento e a visibilidade: os dois pressupostos imprescindíveis no lutar por reconhecimento e igualdade de gênero na pesca. 3. O reflexo da legislação brasileira em uma realidade prática Amazônica. 4. Em que grau estamos: a luta por igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras amazônicas e a importância conclamativa do reverberar científico-acadêmico. Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Tratar de um tema que envolve uma realidade interdisciplinar complexa é um tanto quanto desafiador, pois é necessário expor o todo, sem ser vago demais. Nesse sentir, por escopo geral, tencionamos trazer uma breve análise crítica, porém, relativamente completa, acerca da luta pelo reconhecimento, igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras da Amazônia e a importância conclamativa do reverberar científico-acadêmico.

Antes de tratar especificamente dessas mulheres pescadoras amazônicas, é forçosa a exposição de um estudo sobre a posição feminina, de forma geral, ao longo da história, verificando-se, assim, que historicamente as mulheres têm passado por um processo de inferiorizarão e dominação por parte dos homens, que ecoa hodiernamente nesse grupo social que estudamos, sendo assim, indaga-se até que ponto essa evolução histórica está relacionada com a luta por igualdade e direitos dessas mulheres pescadoras.

Uma vez  realizado esse estudo histórico, direcionamos os nossos esforços a analisar especificamente as mulheres pescadoras da Amazônia, sobretudo, os dois pressupostos imprescindíveis do processo de luta dessas mulheres no que tange à busca por reconhecimento e direitos, bem como explicitar qual a importância desses pressupostos para esse fenômeno social, compreendendo melhor o significante de cada um deles, fazendo isso à luz do método científico dialético- fenomenológico, de grande valia para os estudos sejam eles sociais ou jurídicos.

Em seguida, por derradeira, objetivamos empreender uma análise acerca do grau em que estamos nesse processo de luta por igualdade de gênero e direitos dessas mulheres pescadoras da Amazônia, expondo algumas das possíveis reverberações desse conquistar, trazendo à discussão as nossas possíveis dívidas existentes para com essas mulheres, posicionando-se, então, de forma crítica e embasada, reverberando e conclamando, assim, os olhares de toda a comunidade cientifica para esse existir feminino na pesca, sobretudo o olhar das ciências jurídicas.

 

  1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA QUE OCUPA A MULHER NA SOCIEDADE À LUZ DO VIÉS DA IGUALDADE DE GÊNERO E DIREITOS.

Antes de quaisquer comentários acerca das mulheres pescadoras amazônicas, é indeclinável que se empreenda um estudo, em linhas gerais, acerca da evolução da situação ocupada pela mulher na sociedade, bem como da conquista dos seus direitos ao longo das décadas, a fim de constatarmos o fosso expressivo entre o trabalho e direito da mulher em comparação com os homens. Esse estudo histórico, se faz necessário porque não se pode olvidar que o lutar pelos direitos é produto da história e, conforme entende Martins (2000), somente a partir de estudos histórico-culturais é que compreendemos com mais acuidade os problemas atuais.

O trabalho distinto de homens e mulheres não é coisa das sociedades modernas, podemos entender isso a partir de Barbugiani e Barbugiani (2014), que ao discorrerem sobre a mulher e a posição por ela ocupada, define que essa distinção de gênero vem desde os tempos primórdios da humanidade, isto é, essa configuração social hodierna é herança de um longo processo de seccionamento. Para a mulher caberia as funções domésticas, zelando pelo bem-estar de sua família ou cultivo de alimentos, no exercício da agricultura, ao passo que aos homens competiam a realização das funções públicas, políticas e econômicas para o sustento da família ou desempenho da caça e da pesca, no âmbito do campo.

Pode-se verificar, então, que desde as sociedades mais primitivas já havia divisão por gênero, contudo, podemos dizer, antagonicamente, que na Antiguidade, existiram civilizações com mais direitos e igualdade para as mulheres em relação aos homens, do que em sociedades mais modernas e “evoluídas” (entre aspas, pois devemos questionar qual seria realmente o critério para definir uma sociedade como mais evoluída).

Nesse diapasão, não obstante haverem muitos casos em que a mulher estava em posição inferior ao homem como na sociedade ateniense da Grécia Antiga, também há registros de situações em que as mulheres tinham uma situação bastante equitativa para a época, como, por exemplo, no caso das espartanas verificava-se presentes direitos relativos à educação e acerca da posse e administração de seus bens. No que tange à Antiga Roma, fica nítido que a mulher tinha uma posição relativamente boa em relação ao homem se comparada a outras civilizações da época ou mesmo a civilizações que vieram posteriormente. Acerca desse assunto, assim se manifesta João Arruda:

“conseguiram as mulheres romanas a isenção de qualquer trabalho servil, e, particularmente, não eram obrigadas, no serviço doméstico, aos trabalhos da cozinha e da moagem. Façamos o paralelo da mulher romana com a mulher grega: enquanto a romana, na deductio in domun mariti, levava consigo a roca e o fuso, porque ela só se dedicava aos trabalhos de fiar e aos trabalhos domésticos elevados, e não servis, — a mulher grega, quando ia para a casa do esposo, levava consigo um utensílio de cozinha, para mostrar que ela iria trabalhar em todos os serviços da casa, e, particularmente, no serviço da cozinha, que era julgado vil pela mulher romana. A obrigação das romanas era fiar e tecer no atrium, criar os filhos, e dirigir, na qualidade de senhora, todos os serviços domésticos” (ARRUDA, 1941, p. 196).

 

Prosseguindo na História, temos as sociedades medievais, que têm como marco inicial de sua Era a queda do Império Romano do Ocidente, no século V, e como marco final a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. Além desses importantes marcos históricos, é preciso expor que, antes de quaisquer considerações acerca do papel da mulher nesse período, é crucial enfatizar que a partir de diversas leituras, pode-se perceber que os estudiosos e historiadores desse tema se dividem; uns possuem uma visão mais negativista sobre a posição da mulher medieval, outros possuem um prisma mais positivo quanto a essa posição ocupada.

Dito isto, dentre outros autores da área, podemos fazer uso de Silva (2014), que analisou importantes estudiosos da Idade Média como Le Goff e Georges Duby, a fim de entender melhor o papel da mulher medieval, ficando evidente que Le Goff, defendia que a Era Média compreendeu um período conhecido como Idade das Trevas, e também, ao mesmo tempo, a Idade da Luz. Já para Georges Duby, essa Idade Média era uma idade dos homens, isso porque o contar a História era coisa do sexo masculino, seja pelos seus testemunhos, seja nas páginas dos textos literários.

A leitura de Silva (2014) é de grande valia exatamente por essa ampla análise que ele faz da história da mulher na idade média a partir da visão de importantes historiadores como os citados. Nesse proceder, pode-se constatar que a mulher medieval, em determinado tempo, ocupa uma posição de extrema inferioridade em relação ao homem, sendo apenas tradicionalmente esposas, mães e filhas submissas, e em outro tempo, mormente a partir do século XII e XIII, ocupa uma posição mais de igualdade, pois há registros documentais da Paris do século XIII, nos quais mulheres são retratadas como exercendo profissões como professoras, médicas, boticárias, tintureiras, copistas, miniaturistas, encadernadoras, arquitetas, e até alguns papéis de liderança importantes, tais como abadessas e rainhas.

Sucedendo a Idade Média, tem-se a chamada Idade Moderna que se prolonga até a Revolução Francesa em 1789, nesse período, observa-se o detrimento do feudalismo e o surgimento do capitalismo e da burguesia. Essa transição de sistemas econômicos fundamenta grandes mudanças na situação ocupada pela mulher na sociedade, nesse sentir, o que se observa é que a posição da mulher moderna na sociedade e em sua família estava diretamente associado sua classe social.

Nesse norte, os historiadores, a partir da análise de documentos da época, qualificam as mulheres da Idade Moderna, de modo geral, em quatro estamentos sociais, a saber: as princesas, as burguesas, as nobres e as camponesas.

As princesas eram submissas, e basicamente serviam como meio de alianças entre reinos. Já as mulheres burguesas ajudavam na economia familiar e trabalhavam nas oficinas têxteis. E as mulheres pobres eram as chamadas camponesas que faziam o trabalho doméstico e trabalhavam na agricultura e não possuíam basicamente nenhum direito. Diferentemente das nobres e aristocratas que administravam as suas casas, além de frequentar as cortes.

Diante das mudanças significativas ocorridas nesse período moderno, mormente a decadência do feudalismo, o surgimento da produção capitalista, o crescimento das cidades e da atividade comercial, pode-se constatar que a situação da mulher pobre camponesa se agravou, pois ela, só possuía sua mão de obra para ofertar. Nesse entender Campagnoli et al (2003), afirma que “a valorização do homem e das ciências aumentou a exclusão social da mulher. Nesse contexto, as mulheres no mercado de trabalho tiveram oportunidades restritas. A necessidade de sobrevivência que as mulheres pobres enfrentaram não permitiu que estas deixassem de participar do mercado de trabalho. Em outras palavras, o trabalho da mulher, valorizado ou não, não deixou de existir. O quadro de desvalorização do trabalho da mulher agravou-se com o capitalismo, que submeteu a exploração da força de trabalho feminina ao processo de acumulação capitalista.” (COMPAGNOLI et al, 2003, p. 140).

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Corroborando o argumento de que as mudanças citadas anteriormente causaram uma verdadeira conflagração na vida da mulher contemporânea, pode-se dizer, sem medo de errar, que a Revolução Industrial é uma das grandes culpadas por essa conflagração. As mulheres passaram, junto com as crianças, a serem usadas massivamente como mão de obra disponível e barata para as fábricas, ficando mais evidente a diferenciação por gênero, assim, a luta da mulher não é só pelo direito de poder trabalhar em postos antes só ocupados por homens, mas, sobretudo, de poder trabalhar e ter os mesmo direitos dos homens.

Nesse proceder, a contemporaneidade é marcada pela luta da mulher por essa igualdade de gênero, seja no âmbito do direito do trabalho, seja nos demais campos como a política e o direito de votar e ser votada. Nas informações trazidas por Souza (2009) em seu artigo “Os direitos humanos das mulheres sob o olhar das Nações Unidas e o Estado Brasileiro”, podemos concluir que, com o advento das Nações Unidas, no pós- guerras, e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, o labor em prol dos direitos das mulheres ganharam dimensão e força mundial, conquistando uma relativa igualdade nunca antes vista, sobretudo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, aprovada pela ONU em 1979.

Observa-se que até agora não se fez distinção de direitos em gerações (ou dimensões), não se deixou claro qual grupo de direitos as mulheres mais almejavam nesse processo histórico de luta, isso ocorre, porque essa discussão de Direitos de Primeira que são os ligados à liberdade, de Segunda que são os associados à igualdade e os de Terceira geração que são os ligados à fraternidade, é uma discussão realizada, sobretudo, a partir da criação da ONU em 1945.

Além disso, verifica-se que os direitos estão, direta ou indiretamente, uns ligados aos outros, isso, no nosso entender, significa que quando se tem os direitos de uma categoria resguardados, normalmente se busca os de outra, ou seja, se a pessoa já é livre, não faz sentido ela lutar por liberdade, mas, se sendo livre, não é tratada de forma equânime, ela irá pleitear não mais a liberdade, mas sim a igualdade, da mesma forma podemos dizer que se uma pessoa é livre e é tratada de forma simétrica, ela irá não mais reivindicar a igualdade, mas sim a fraternidade.

Nessa direção, podemos dizer que, historicamente, a mulher tem buscado todos os direitos, pois com uma história dominadora masculina, até os direitos mais básicos como o uso do próprio corpo, não raras vezes, lhe foi ceifado. O que teremos, então, é, dependendo do momento histórico, a preponderância na luta por alguns direitos, e em outros momentos, por outros direitos.

No caso do nosso País, desde o seu “descobrimento”, a luta em prol dos direitos das mulheres reflete o que estava ocorrendo no mundo, até porque foi o Reino de Portugal, uma nação do continente europeu, que aqui chegou em 1500. É imperativo que se esclareça que as aspas revelam nossa posição no inclinar do pensar da Escola Ibérica da Paz, que conforme exposto por Loureiro (2015) enxerga as terras e os povos indígenas do Novo Mundo como autônomos e em igualdade de direitos com os europeus.

Contudo, não podemos esquecer que as lutas das mulheres brasileiras tinham um certo atraso se comparadas com as mulheres europeias, por exemplo, na questão do sufrágio, as origens do movimento sufragista feminino encontram-se na França do século XVIII, sendo que em 1893, a Nova Zelândia se tornou o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, graças ao movimento liderado por Kate Sheppard (Mulher ativista e maior destaque desse movimento na Nova Zelândia). Em comparação, em nossa sociedade brasileira, as mulheres só passaram a votar, em âmbito nacional, em 1932. Sendo que, até em relação a outras sociedade americanas, temos um atraso e a título de exemplo, citamos os Estados Unidos que já em 1919 garantia o direito de voto para as mulheres, através da Emenda Dezenove.

É forçoso destacar ainda, que correlacionando com a evolução histórica exposta, é perceptível que a luta por direitos femininos, no que se refere aos específicos direitos sociais e trabalhistas, bem como a conquista desses direitos específicos, não são hegemônicas, em outras palavras, as conquistas de direitos sociais e trabalhistas das mulheres urbanas empregadas andam em ritmo diferente das conquistas da mulheres rurais e ribeirinhas.

Isso ocorre porque as mulheres rurais e ribeirinhas se encontram mais afastadas dos centros de decisão, de pensamento, conscientização e educação como as universidades, sendo que tal fato reflete diretamente no processo de luta, tornando-o mais espinhoso e árduo. Podemos constatar, então, que as trabalhadoras da indústria de São Paulo e do Polo Industrial de Manaus têm muito mais dos seus direitos resguardados do que mulheres pescadoras do interior da Amazônia e as quebradeiras de coco de babaçu dos Estados do Pará, Tocantins, Maranhão e Piauí.

Não podemos olvidar também do importante papel dos órgãos de imprensa e das Organizações Não Governamentais (ONGs), no sentido de divulgação das lutas femininas por direitos e igualdade de gênero. E, como exemplo, no que se refere às mulheres quebradeiras de coco de babaçu, mencionadas acima, vale a leitura da interessante matéria sobre a vida e o labor dessas mulheres, publicada pela ONG Repórter Brasil, disponível https://reporterbrasil.org.br/comunidadestradicionais/quebradeiras-de-coco-babacu/).

 

  1. O EMPODERAMENTO E A VISIBILIDADE: OS DOIS PRESSUPOSTOS IMPRESCINDÍVEIS NO LUTAR POR RECONHECIMENTO E IGUALDADE DE GÊNERO NA PESCA.

Antes de adentrarmos em um estudo mais aprofundado, para evitar interpretações antagônicas e não condizente com o real sentido por detrás de cada termo, é irrefutável a necessidade de alguns esclarecimentos, isso porque não existem palavras em vão, isto é, as palavras não são apenas justapostas para,  no contexto, coadunar com a sonoridade ou algo do tipo, cada uma delas, ao ser colocada ao lado da outra, em um título de uma dissertação, de um artigo, ou outro estudo acadêmico-científico, carrega uma força significante avassaladora, quer seja para o bem, quer para o mal.

Não se estar aqui querendo atiçar ou defender uma visão tacanha e maniqueísta do mundo cientifico, dividindo-o no que é certo ou errado, muito pelo contrário, as pluralidades do pensamento devem ser respeitadas e estudas, pois só uma visão geral do assunto, a partir de uma ponderação multisciente, pode-nos levar a conhecer e entender a importância e força das palavras no processo do conhecimento ao qual se estar estudando.

E assim, trazemos mais informações acerca do método científico usado, pois a presença do método, em qualquer trabalho que ambicione o status científico, é crucial. Isso porque, mesmo ao tratar de ciências humanas, sociais e jurídicas, o método científico é indispensável e sobre o assunto, podemos citar Zago (2013), que define o método dialético:

“Atingir o concreto pelo pensamento, através da mediação, não significa aderir ao idealismo. O método materialista histórico dialético postula que apesar de o conhecimento ser construído pelo pensamento ele ainda assim é social […] O método dialético irá justamente buscar as relações concretas e efetivas por trás dos fenômenos. Sobre esta posição marxiana escreveu Walhens (apud Kosik 1976 p.17): “O marxismo é o esforço para ler, por trás da pseudoimediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra” (ZAGO, 2013, p. 117 e 115).

Essa busca das relações concretas e efetivas por detrás dos fenômenos sociais que é a base do método dialético, em nosso estudo, é inegável, contudo, o método dialético, per si, não é suficiente para conferir a metodologia cientifica necessária, por isso, destacamos também a exigência de aplicação do método científico fenomenológico, que nos dizeres de Tourinho (2017),  é definido como o método científico que dar a necessária importância aos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos, pois o saber do mundo resume-se, também, a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na nossa mente, sendo que cada um é representado por uma palavra que traz a sua essência, a sua significação. Ele afirma que “Conforme Husserl destaca, nas suas primeiras considerações a respeito do método fenomenológico, com a redução fenomenológica, passamos do fato individual para o que há nele de genérico. O exercício da redução fenomenológica assegura-nos a possibilidade de falarmos de uma eidética (ou de uma “doutrina de essências”). A redução fenomenológica exige-nos, como vimos, que tudo o que é transcendente possa ser submetido a um índice de nulidade, forçando-nos à abstenção de considerações sobre toda e qualquer posição de existência. Com isso, encontramo-nos em condições de exercer uma espécie de técnica de variação imaginária dos objetos” (TOURINHO, 2017, p. 114 e 115).

Uma vez realizada as devidas considerações acerca dos métodos científicos empregados, nos concentramos, agora, no sentido de entender a importância do termo visibilidade para a temática do gênero na atividade pesqueira, ou seja, qual a importância da visibilidade da existência das mulheres pescadoras para a sua luta pela conquista de seus direitos sociais ou até mesmo de outras dimensões de direitos.

A visibilidade é de uma inexorável significância, porque traz a dimensão da existência, em outras palavras, o existir de fato, por si só, não é garantia de reconhecimento e conquista de direitos, pois é preciso que haja, antes, o fenômeno da visibilidade. Existe um jargão que, mesmo sem aspirações cientificas, construído a partir de uma sabedoria popular, exprime de forma ilustrativa e alegórica, como fez Platão no Mito da Caverna, a informação de que a falta de visibilidade causa prejuízos imensuráveis no processo de luta por direitos, esse jargão é “quem não é visto, não é lembrado”.

Isso é um dos maiores prejuízo causados pela falta de visibilidade, que é não ser lembrado, ou melhor, que é não ter representatividade, seja na construção de políticas públicas, seja na criação de leis especificas para a categoria ou que a englobe, respeitando suas peculiaridades. Nesse sentir, Soares (2012) deixar claro que: “Observamos que a luta pela existência civil das pescadoras no que tange à conquista de direitos não é algo específico do mundo da pesca. É inerente à própria organização histórica da sociedade, que engendra a exclusão e as desigualdades, excluindo não só as pescadoras, mas inúmeros outros segmentos, quer por etnia, cor ou gênero.”  (SOARES, 2012, p. 91).

Diante disso, somos levamos a constatar que a existência civil para as pescadoras estudadas por Soares, têm, basicamente, dois planos: um formal de existência enquanto pessoa natural, por meio de registro civil de nascimento (o que a todos são garantidos), e outros por meio de registros profissional e demais documentos associados a categoria de pescadora (que muitas vezes são lhes negados).

Nesse direcionamento, trazermos à discussão que o plano da existência e visibilidade implicam, sobretudo, em como as pescadoras se veem, pois como elas irão se manifestar, tornando-se visíveis e pleiteando direitos, se elas mesmas não se veem como pescadoras ou permitem que lhes tirem seu título de existência enquanto pescadoras, marginalizando-as como meras ajudadeiras. Corroborando essa argumentação Brasil (2015) e Almeida (2001), expõem que ainda que exercendo o papel principal ou atuando diretamente na pesca, o trabalho da mulher não é reconhecido, como o do homem. Para Almeida, geralmente por essas trabalhadoras serem esposas ou filhas de pescadores, seus trabalhos na limpeza e evisceração, na salga e comercialização do pescado, ou mesmo efetivamente pescando, é visto como ajuda, não como trabalho.

Para entendermos melhor essa dinâmica de invisibilidade é importante não olvidar que é um processo histórico e cultural, e conforme citado por Soares (2012), envolve, no entender de Simonian (1995), nos espaços dominantemente masculinos (como na pesca e seringal), a negação e o silêncio da participação feminina, ocorrendo um verdadeiro consenso de invisibilidade social realizado por parte tanto de atores locais.

Ficamos espantados com tanta negação de direitos que sofrem as mulheres ribeirinhas amazônicas, e, pasmem, essa negação é feita até mesmo por estudiosos da área científica. Isso nos leva a considerar que, antes do processo de busca pela visibilidade, as mulheres pescadoras devem empreender um verdadeiro processo de empoderamento, autoreconhecimento e afirmação.

Adentrando mais detidamente nessa questão do empoderamente feminino, pode-se constatar que empoderamento é também um fenômeno social, sendo parte constitutiva de qualquer luta por igualdade seja de gênero ou não. É como uma espécie de embrião da visibilidade e luta, pois, para que as pessoas e sociedade, de um modo geral, prestem atenção em determinado fenômeno social existencial, é preciso VOZ, que seria a manifestação da existência, e  as mulheres, ou qualquer outra categoria de atores sociais, só passam a ter essa voz, a partir do momento em que acreditam em si mesmos, em sua existência e se empoderam, sendo assim, a mulher pescadora amazônica de fato, só passa a ser ouvida quando ela mesma se reconhece como personagem principal trabalhadora da pesca.

Em um primeiro momento, esse autoreconhecimento pode aparentar ser um processo fácil, afinal, podem alguns argumentarem que, se elas de fato pescam, é normal que elas se definam como pescadoras. Contudo, os fenômenos sociais não são simples, como os nossos estudos teóricos e práticos almejam demonstrar, são dinâmicos e complexos e englobam uma série de variantes que não podem ser deixadas de lado na matemática social, daí a importância irrefutável dos citados métodos científicos dialético e fenomenológico.

Nesse proceder, dentre outros pontos, devemos ponderar que a mulher, como se demostrou em outro momento, vem sofrendo um processo histórico de dominação do gênero masculino, o que torna mais difícil o autoreconhecimento feminino e a consequente quebra com estigmas embasados em afirmações como a mulher não pode ser a principal provedora da família, ou, a pesca não é trabalho para a mulher.

Isso ocorre porque o sexismo, infelizmente, ainda é forte e não deixa de ser cultural, tornando o processo de rompimento e quebra de paradigmas mais árduo e prolongado. Até porque existem contrafenômenos ou movimentos opostos ao empoderamento feminino, podemos, nesse assunto, citar Pinto (2011), que assim se manifesta:

“Uma última noção antes de chegar ao reconhecimento: a de discriminação. Essa noção, em uma escala, é o ápice do desempoderamento – ou seja, a pessoa com menos poder é aquela mais discriminada. Ela é discriminada porque ela é mulher, porque é negra, porque é velha, porque é criança, porque é estrangeira. E o discriminado é exatamente aquele para quem o outro é que define a verdade sobre ele. Esse é o discriminado.” (PINTO, 2011, p. 185).

Da leitura, podemos inferir que a discriminação é o ápice desse DESEMPODERAMENTO, ou seja, diante de argumentos e estudos como de Pinto (2011), podemos afirmar que há um movimento contrário a luta das mulheres por igualdade de gênero e direitos. Devemos ainda, ir além, no sentido de constatarmos que, diante da atual política governamental federal do Presidente Bolsonaro, esse processo de desempoderamento feminino nunca esteve tão forte em nosso País desde a promulgação de nossa Constituição Cidadão de 1988, ou seja, esse sexismo tem ganhado espaço e colocando em perigo as lutas já dificultosas de grupos sociais como as mulheres pescadoras da Amazônia; seja por serem mulheres, seja por envolve questões socioambientais, que, como mundialmente se alerta, vive um período obscuro no Brasil, tendo em vista a política governamental federal hodierna que está em um processo de esvaziamento dos órgãos e consciência socioambiental.

Deixando, por hora, o triste cenário governamental federal, que não é nosso objeto, devemos aclarar que o empoderamento feminino, no caso das mulheres pescadoras da Amazônia, é também um verdadeiro empoderamente das próprias comunidades ribeirinhas, e isso é tratado por Manesch et al. (2012), que afirma que:

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“As reivindicações de mulheres por reconhecimento de seus vários papéis – econômicos, sociais, políticos – tendem a significar empoderamento das comunidades no tocante ao controle dos recursos de que dependem. Isso porque tratam de trazer a gestão pesqueira para o nível local […] em grande parte, esse reconhecimento depende de se explicitarem as desigualdades internas e externas às comunidades. Assim, quando as mulheres se dão conta de sua relevância como agentes econômicos e se constituem em agentes políticos, também criam ou reforçam as identidades de suas comunidades.” (MANESCH et al., 2012, p. 722).

Diante dessas constatações, é nítido que a luta das mulheres pescadoras da Amazônia por direitos, reflete diretamente no desenvolvimento sustentável das próprias comunidades ribeirinhas da Amazônia. Isso ocorre, porque mulheres empoderadas que se impõem e explicitam a sua relevância para a comunidade local, bem como para economia do País, conquistam, inclusive, a ocupação dos espaços políticos de ampla dominação masculina. Fica claro que esse nosso entendimento coaduna com o pensar de Maneschy et al. (2012).

 

  1. O REFLEXO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA EM UMA REALIDADE PRÁTICA AMAZÔNICA.

Os nossos estudos teóricos sobre as pescadoras não são o bastante para responder as necessárias indagações, por isso, precisou-se expandir esses estudos para além do conhecimentos de livros e leis, buscando um conhecer prático do reflexo positivado (escrito) no viver da pesca, tendo como parâmetro uma realidade amazônica, que nos fornecesse subsídios para uma resposta mais concreta e próxima da realidade.

É indeclinável que quando atividade é a pesqueira, o Estado do Amazonas tem grande expressividade, não só no pescar como também no consumo de pescado, pois segundo o IBGE (http://seafoodbrasil.com.br/regiao-amazonica-tem-maior-proporcao-de-consumo-de-peixe-pais-diz-ibge), o Estado do Amazonas tem a maior proporção de consumo de pescado do Brasil. Por isso, analisar uma realidade local nesse Estado é de grande valia para compreender melhor o processo pesqueiro na Amazônia.  Nesse proceder, elegemos como ponto de referência de comparação e parâmetro a Colônia dos Pescadores de Itacoatiara-Amazonas, conhecida como Z-13.

Em entrevista realizada em março de 2020, com Irailton Vieira Nunes, presidente da Colônia dos Pescadores de Itacoatiara e também vereador do mesmo Município (com sede distante 269 km da Capital Manaus), pudemos verificar se a legislação tem atendido às necessidades da trabalhadora pescadora itacoatiarense.

Segundo o presidente, a Colônia tem atualmente três mil pescadores associados, sendo que apenas 30% por cento desse total são pescadoras e, no que se refere aos associados que recebem o seguro defeso, esse ano de 2020, são dois mil cento e cinquenta pescadores, sendo que 30% são pescadoras. Diante dessa informação, pudemos constatar que há um conflito, pois segundo a ONU, do total de pescadores do Brasil cerca de 45% por cento são mulheres (https://nacoesunidas.org/pescadoras-do-mundo-buscam-visibilidade-e-garantia-de-direitos/), e assim sendo, porque na colônia apenas 30% por cento são mulheres. Esses dados evidenciam que, de fato, muitas pescadoras não têm seus direitos reconhecidos e, nesse entender, indagamos ao presidente da colônia o porquê de um percentual tão baixo de pescadoras, ele nos informou que existem muitas mulheres que pescam, mas que não buscam seus direitos, por diversos motivos como falta de documentos, de interesse, etc.

Mas será que essas mulheres não estão tendo dificuldade exatamente porque a legislação vigente como, por exemplo, a Lei do Seguro Defeso (Lei nº 10.779, de 25 de novembro de 2003) e a Lei que dispõe sobre a Política Nacional da Pesca e as atividades pesqueiras (Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009) são voltadas massivamente para os homens, sem mecanismo que incluam essas pescadoras. Será se não são necessários instrumentos de conscientização da própria sociedade.

Entendemos que essas indagações são pertinentes porque quando realizamos a entrevista com Irailton Nunes, tivemos acesso a situações que demonstram uma desinformação por parte da sociedade ou uma discriminação, como no caso em que ele nos relatou uma situação de uma pescadora que tomou banho, se arrumou como qualquer mulher e, quando foi sacar o seguro defeso no banco da Cidade, foi humilhada e constrangida por populares que diziam que ela não era pescadora, pois mulher pescadora não andava arrumada e bem perfumada, ou seja, para muitos, a mulher pescadora tem que cheirar a peixe e está suja de escama.

Exemplos como esse são um reflexo do impacto das nossas leis machistas no campo da pesca, que não respeitam a peculiaridade “mulher” na atividade pesqueira, isto é, o direito de ser mulher, de ser arrumada, vaidosa, não exclui a trabalhadora pescadora, e exatamente para coibir essas atitudes bárbaras de discriminação fazem-se necessários instrumentos legais de combate a essas práticas discriminatórias. Sem olvidar que não são raros os casos em que familiares da mulher pescadora têm maior dificuldade de conseguir benefícios como a pensão por morte, e como exemplo, Nunes cita uma pescadora que foi morta por um jacaré (réptil crocodiliano encontrado nos rios e pântanos das Américas do Norte e do Sul), quando pescava, sendo que os familiares até hoje não conseguiram a pensão por morte, ou seja, o não reconhecimento ou subreconhecimento dessa pescadora é uma comprovação no impacto social nocivo também causado nas famílias ribeirinhas da Amazônia.

Contudo, o que exatamente as leis brasileiras referente às pescadoras deixam a desejar. Em resposta, numa leitura da legislação pátria acerca da pesca, pode-se constatar que não há seções direcionadas diretamente as mulheres, ou que as enalteçam ou respeitem suas necessidades, e essa falta de previsão que abarque a mulher pescadora dificulta ainda mais a vida dessa trabalhadora , e por isso, precisa de uma lei mais incisiva no reconhecer de seus direitos, não bastando, como no caso do racismo, apenas  de uma postura não racista, mas também é preciso existir uma postura antirracista e inclusiva.

Em outras palavras, é necessário ter uma postura antissexista, no sentido de positivar que toda pescadora não poderá sofrer qualquer forma de discriminação, e não basta dizer que todo aquele que pesca é pescador, é preciso ser claro no sentido de afirmar que a mulher ainda que exerça a função de dona de casa, ou outras atividades acessórias para complementar a renda como costureira, como artesã ou agricultora, mas que tenha como a principal atividade de subsistência o pescar, é pescadora em igualdade de direito com o homem que pesca. Sendo que essa igualdade não pode ser apenas a que vemos hoje em dia em nossas leis referente à pesca, que trazem a igualdade formal como bandeira.

Entendemos, assim, que se faz necessária uma igualdade material no sentido de integrar a mulher pescadoras, isso porque algumas situações femininas devem ser trazidas à discussão, como por exemplo, as burocracias exigidas para se filiar: a mulher pescadora deve atender exatamente as mesmas exigências que um pescador homem precisa, isso quer dizer que, para um homem que trabalha na pesca seja reconhecido como pescador artesanal ele deve comprovar que somente pesca, ser dono dos materiais pesqueiros e, em alguns casos, ter testemunhas que atestem que ele pesca efetivamente.

Ora, para o homem é mais fácil ser dono dos instrumentos da pesca, já para as mulheres é mais complicado, pois, muitas vezes, elas pescam com os instrumentos do pai, do irmão ou mesmo do marido. Além disso, a mulher pescadora, como já explicitado, se ver, muitas vezes, obrigada, além de pescar, a costurar, por exemplo, para completar a renda e sustentar sua família. E no caso das testemunhas, já esclarecemos amiúde que a sociedade ainda não reconhece como deveria a mulher pescadora, muitos ainda veem a mulher como mera ajudante da pesca, sendo assim, a mulher pescadora tem mais dificuldade de conseguir testemunhas que confirmem a sua pesca, pois muitas pessoas entendem que essa mulher que pesca na verdade só está ajudando o pai, o irmão ou o marido.

Diante disso, nós podemos a fim de uma melhor compreensão, fazer uma alegoria com um ônibus normal, sem qualquer adaptação para cadeirante, se duas pessoas, uma cadeirante e outra não tem qualquer deficiência limitativa, possuem o mesmo direito garantido de pegar esse ônibus normal, o que veremos é que ao cadeirante foi lhe negado esse direito, pois ele é diferente, em igualdade formal ele é discriminado pois ele precisa de um ônibus adaptado. Isso ocorre com a mulher pescadora que necessita que seus direitos enquanto mulher que pesca sejam efetivamente respeitados pelas leis.

Essa definição em uma lei é crucial para trazer a pescadora mais força e autoridade, porque a pescadora tem uma realidade diferente do pescador, ela tem uma maior necessidade de proteção devido ao processo histórico de sexismo que a tornou mais vulnerável a atitudes discriminatórios, pois o homem, que geralmente apenas pesca, não reconhece a pescadora como tal, negando sua participação, enquanto que a mulher, além do pescar efetivamente, cuida dos filhos, costura, faz artesanato e busca formas de completar a renda no intuito de sustentar seus filhos, mas a atividade principal é sempre a pesca.

Nesse rumo, é de relevância impar citarmos Goes (2008, p. 60) que, ao estudar algumas legislações acerca da pesca, assim se manifesta sobre a mais importante Lei que regulamenta o seguro defeso: “a condição de pescador apontada pela legislação é condicionada a documentos probatórios e a instituições que atestam a profissionalização deste. Sem estes, é difícil ter acesso a esse benefício e outros.”  Da mesma forma Brasil (2015) esclarecer questões importantes como quando as pescadoras buscam seus direitos junto às instituições ligadas ao setor primário, não raras vezes, elas encontram obstáculos burocráticos como, por exemplo, dificuldades mais onerosas para o seu ingresso nas colônias de pescadores ou para o acesso ao financiamento bancário.

Das leituras dos autores citados logo acima, apreende-se que, para se ter os direitos é necessário o reconhecimento por entidades profissionais como a colônia de pescadores, ocorre que, como vimos, no caso da colônia dos pescadores de Itacoatiara, muitas pescadoras não são registradas na instituição apesar de pescarem, logo, muitas não vão ter acesso aos direitos. Sendo que, no caso dessa colônia itacoatiarense Z-13, usada como parâmetro, a sua instituição é legalmente formalizada desde 1975, mas as mulheres pescadoras apenas passaram a ter direito a se associar em 2008, e, mesmo hodiernamente, tem um percentual de apenas 30% por cento de mulheres do total de associados.

Isto é, enquanto as leis e os meios fiscalizatórios não forem mais incisivos no sentido integrar as mulheres pescadoras ao direito, muitas delas irão fatalmente ficar à margem desses direitos. Além disso, a lei deve contribuir para incluir a mulher pescadora numa realidade de poder e representação, combatendo a cultura machista de forma a integrar essa mulher na estrutura do poder, ou seja, assim como existe as cotas para negros (Lei n.12.990 de 2014), ou para uma quantidade X de mulheres na composição dos partidos políticos, conforme determina a Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), deveriam existir, nos órgão de representação da pesca, uma obrigatoriedade de percentual não inferior a 45% de mulheres tendo em vista que do total de pescadores 45% são mulheres.

 

  1. EM QUE GRAU ESTAMOS: A LUTA POR IGUALDADE DE GÊNERO E DIREITOS DAS MULHERES PESCADORAS AMAZÔNICAS E A IMPORTÂNCIA CONCLAMATIVA DO REVERBERAR CIENTÍFICO-ACADÊMICO.

Em linhas gerais, constata-se que as mulheres, sobretudo as ocidentais, a partir da instituição de organismo internacionais como a ONU e OMT, têm, aos poucos, diminuído as desigualdade entre mulheres e homens. Sendo que CRFB de 1988 tornou-se um exemplo mundial na igualdade e direitos das mulheres. Pelo menos em tese, as mulheres encontrar-se-iam inseridas no progresso pátrio em igualdade com os homens, contudo, a prática não está efetivamente seguindo os ditames constitucionais, pois, não obstante a conquista de alguns direitos e avanços, ainda existe uma longa jornada a ser percorrida, isso porque, como já expusemos, o grau de empoderamento, visibilidade, luta e conquista de direitos não são homogêneos.

Isso significa que alguns grupos sociais têm mais acesso a informações de conscientização de seus direitos e do exercício desses direitos, bem como os caminhos para alcançá-los. Outros grupos são mais frágeis e, muitas vezes, sucumbem as pressões internas e externas, ficando às margens do reconhecimento com pouca ou sem qualquer representação.

O grupo social das pescadoras, mormente das pescadoras da Amazônia, são um desses grupos, pois tanto nas leis como nos anais acadêmicos, segundo Soares (2012):“Não encontramos no Amazonas muitas pesquisas que tivessem por objeto de estudo as mulheres pescadoras. Pode-se perceber o quanto o próprio tema é invisível no estado. De fato, encontramos inúmeros trabalhos relacionados à pesca: Fraxe et al. (2007), Cruz (2007), Maia (2009), Raposo (2010), entre muitos outros, mas a maioria com o enfoque na figura do pescador, e não da pescadora. Tem-se uma dívida da academia para com as pescadoras, pois, com a omissão das pesquisas sobre o assunto, tem-se contribuído para a ocultação do trabalho feminino na pesca.” (SOARES, 2012, p. 76).

Verifica-se ainda, até mesmo uma disparidade dentro da própria categoria das trabalhadoras, isto porque há inúmeros trabalhos acerca das trabalhadoras urbanas, como as trabalhadoras da indústria, sendo que essa disparidade não acaba aí, pois, as trabalhadoras camponesas (ou rurais) nordestinas, ainda gozam de uma maior atenção acadêmica do que as mulheres pescadoras amazônicas, mesmo a Amazônia ocupando, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 49,3% do território do nosso País[1].

Sobre esse assunto, é importante citar Brasil (2015) que deixa claro alguns dos diversos prejuízo sofridos pelas pescadoras, isso em pleno século XXI, trazendo à tona importantes considerações de Siqueira (2006, p. 272-273) que constatou que “as mulheres, embora sejam parte significativa da economia regional e nacional, são afetadas por sistemas costumeiros e legais que tendem a favorecer o gênero masculino”.

Podemos verificar, que além das questões burocráticas, as mulheres pescadoras ainda enfrentam problemas mais sérios, pois tanto as leis infraconstitucionais como já mencionado, quanto a CRFB de 1988, marginalizam essas trabalhadoras de grande relevância para a sociedade e economia brasileira. E corroborando essa afirmação vale, além da leitura de Brasil (2015), e também a leitura de Scherer (2013), como fica demonstrado com o trecho seguir transcrito da Dissertação de Brasil (2015):

“Apesar de atuarem diretamente em uma das mais antigas atividades socioeconômicas que se conhece, as mulheres continuam no anonimato passando despercebidas pelas visões masculinas e das leis constituídas. A própria Constituição de 1988 em seu art. 195, parágrafo 8º, deixou de reconhecer o trabalho que as mulheres realizam na pesca, ao outorgar a profissão apenas para os homens (SCHERER, 2013), concedendo os direitos trabalhista e previdenciário somente para os que se encontravam devidamente vinculados a colônias, sindicatos ou cooperativas de pescadores.” (BRASIL, 2015, p. 71).

Em nossas análises hodiernas das leis e da nossa própria Carta Magna, somos levados a concordar com os dois autores, pois, de fato, a nossa Constituição Cidadão ao prever os direitos trabalhistas e previdenciários somente para os que se encontravam devidamente vinculados a colônias, sindicatos ou cooperativas de pescadores, sem colocar na balança a burocracia machista que exclui as pescadoras, está cerceando direitos fundamentais, sendo assim, a nossa Constituição Federal está em contradição com suas próprias bases fundamentais, pois ela carrega consigo o poder-dever de observância a princípios como a dignidade da pessoa humana e a isonomia.

Nesse entender, negar os direitos das mulheres pescadoras brasileiras, amazônicas, por meio de uma aparente legalidade que se consubstancia em uma burocracia machista e excludente, constitui uma das piores facetas da discriminação e sexismo, pois é a faceta que veste uma capa de boas intenções quando, na verdade, constitui verdadeira negação da dignidade e a isonomia feminina na pesca.

Podemos ainda, explicitar que qualquer instituto ou definição seja claro ou velado que ceife direitos e favoreça a discriminação, seja na Constituição ou em legislação infraconstitucional, é viciado e deve ser refutado, combatido e amoldado à luz da essência fundante do estado democrático de direito, bem como dos mecanismo de proteção dos direitos humanos internacionais cujo nosso País é signatário.

Nesse norte, a Constituição deve ser entendida como um verdadeiro Bloco de Constitucionalidade como definido por Louis Favoreu.[2], assim, nossa Constituição deve ser aperfeiçoada e promover a necessária ampliação dos direitos e garantias, amparando as arestas e contradições aparentes[3].

Ou seja, a nossa Constituição de 1988 deve ser emendada ou interpretada no sentido de ampliação dos diretos das mulheres pescadoras do Brasil e da Amazônia, trazendo a deliberação as peculiaridades dessas mulheres tão dignas e merecedoras, sem esquecer que a igualdade, deve ser entendida como definido pelo jurista Rui Barbosa, no discurso escrito para os formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, SP, intitulado “Oração aos Moços”, com trecho a seguir transcrito:

A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.” (BARBOSA, Discurso Oração aos Moços, 1920).

Nesse sentir, as mulheres pescadoras encontram-se em desigualdade nos ditames da Constituição e devem ter sobre elas um olhar diferenciado sim no sentido de ampliar e resguardar seus direitos e nessa direção, podemos destacar Maneschy et al.(2012), que esclarece que “em povoações litorâneas no Norte e no Nordeste do Brasil, as mulheres geralmente tecem redes, beneficiam o pescado, coletam mariscos e algas e pescam nas proximidades, atividades instáveis e descontínuas. Suas comunidades enfrentam, de ordinário, concorrência na ocupação das zonas costeiras, mais acirrada onde o turismo é mais intenso, poluição e impactos de eventos climáticos amplificados devido a desmatamentos e ocupações irregulares. Em suma, o quadro geral aponta que vulnerabilidades vêm se acentuando.” (MANESCHY et al., 2012, p.724).

Além dos direitos associados à seguridade social brasileira, à previdência social, como o auxílio-maternidade, à aposentadoria e especialmente à Política do Seguro-Desemprego ao Pescador Artesanal (PSDPA), as mulheres pescadoras lutam atualmente também por outros direitos como os ligados à representatividade, sendo que na busca por essa imprescindível representação, associam-se junto a movimentos sociais e profissionais como os da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), Conselho Pastoral dos Pescadores e Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPPA).

Assim, elas lutam também por maior reconhecimento junto à Política local, estadual e federal, pois somente a partir do reconhecimento de sua existência e importância, pelos detentores do poder, é que elas poderão ter maiores chances de materializar as suas bandeiras em direitos e políticas públicas que de fato impactem o fenômeno social do viver da pesca para essas trabalhadores. Sendo que os movimentos como os citados dão voz a elas, e nos dizeres de Brasil (2015, p. 72), “exerceram fortes pressões junto à classe política nacional.”

Também não podemos esquecer a importância irrefutável da academia seja no sentido de estudar esses fenômenos sociais, auxiliando no processo de visibilidade da existência de grupos e comunidades sociais, seja no sentido de informar e conscientizar esses grupos e comunidades, ampliando, assim, o empoderamento e luta, e, consequentemente, a pressão feitas nas classes políticas, no intuito de mais direitos e inclusão de todos os tipos sociais, mormente aqueles mais vulneráveis e marginalizados como é o caso das mulheres  pescadoras da Amazônia.

Contudo, infelizmente, a produção cientifica estudando e pesquisando as mulheres pescadoras, mormente as da Amazônia ainda é exígua e carece de mais entusiastas nessa área, de mais produção, a fim de diminuir um pouco a dívida acadêmica para com as mulheres pescadoras. Nesse assunto, é de relevante importância as percepções de Soares (2012), que assim se posiciona: “Tem-se uma dívida da academia para com as pescadoras, pois, com a omissão das pesquisas sobre o assunto, tem-se contribuído para a ocultação do trabalho feminino na pesca” (SOARES, 2012, p. 76).

Diante dessa notória dívida acadêmica, é inquestionável, a contribuição dos estudo produzidos, empreendidos e elaborados por Soares (2012), Brasil (2015), Motta-maués (1999), Maneschy et al. (2012) e outros.  Sendo que acerca desse tema, podemos fazer observações além, e dizer que se nas ciências sociais como a sociologia, a assistência social, a antropologia, a história e a geografia, já existe uma dívida, imagine em outras ciências, como o Direito e a Economia, essa dívida passa a triplicar, pois os programas de graduação e pós-graduação em direito e economia, em pouquíssimas e raríssimas vezes tratam acerca de assuntos pesqueiros tradicionais sobre o enfoque da presença feminina na pesca.

Acerca do assunto Souza et al. (2017) se engajou em uma expressiva pesquisa e análise crítica sobre uma temática que tem relação com o nosso tema, mas que não se confunde com nossos estudos, isso porque ela se debruçou em uma análise das produções bibliográficas acerca das relações de gênero no universo da pesca artesanal das mulheres pescadoras, logo, é assaz diferente de nossos esforços, que não consiste em estudar as produções bibliográficas, mas sim em analisar de forma crítica a luta pelo reconhecimento, igualdade de gênero e direitos das mulheres pescadoras da Amazônia.

Contudo, Souza et al. (2017), é de valor inestimável para nossa pesquisa, pois corrobora nosso argumentar, isso porque, nos leva a ter a certeza que as ciências sociais, como a assistência social, a antropologia, a sociologia, a geografia e a história, são praticamente a totalidade das produções científicas acerca dos direitos das mulheres pescadoras da Amazônia. Com as devidas vênias, precisamos reverberar para além, conclamando novos cientistas e pesquisadores, sobretudo de outras áreas como a do Direito. Pois cada ciência tem um papel especifico com esses fenômenos sociais que não pode ser suprido por outra ciência, isto é, o papel das ciências jurídicas no auxílio das mulheres pescadoras não pode ser realizado, por exemplo, pela sociologia ou assistência social.

Assim, fica evidente que muitos dos direitos das mulheres pescadoras ainda são fracos, justamente, e, também pela falta de maior expressividade jurídica para essa luta. Salienta-se que essa expressividade jurídica pode ser alcançada com mais facilidade a partir da academia do Direito, ou seja, se mais estudantes e pesquisadores das ciências jurídicas se direcionarem para essa temática, teremos maior visibilidade jurídica para essa luta, sendo isso de grande valia, pois o Direito se dedica ao estudar das normas jurídicas, inclusive as do processo de elaboração das leis e políticas públicas que impactam diretamente não só nas pescadoras, mas em todos os setores da sociedade, até porque as Ciências Políticas andam na ilharga das Ciências do Direito.

Deixamos claro que nosso objetivo é impoluto, em nenhum momento nega-se a relevância das ciências sociais, muito pelo contrário, o que argumentamos e defendemos é que as ciências se completam e não se excluem ou se substituem e, nesse pensar, deixamos ainda as reverberações para que outros colegas se empenhem nessa bandeira, contribuindo, assim, no processo de luta, visibilidade e reconhecimento de grupos e comunidades marginalizados como as mulheres pescadoras da Amazônia.

 

Considerações Finais

A partir do estudo realizado sobre o fenômeno social que se materializa na existência das mulheres pescadoras da Amazônia e na sua luta pelo reconhecimento do seu trabalho e igualdade de gênero e direitos, passamos a ter a consciência da importância inegável desse movimento para a construção de uma sociedade mais justa, com leis que conjeturem a real essência da isonomia constitucional.

Passamos ainda, a ter noção de que o labor pelos direitos é produto da história e somente a partir de estudos histórico-culturais é que compreendemos com mais acuidade os problemas atuais, verificando-se, assim, que historicamente as mulheres têm passado por um processo de inferiorizarão e dominação por parte dos homens, que ecoa diretamente na luta hodierna das mulheres pescadoras da Amazônia.

Compreendemos também que a visibilidade é de uma inexorável significância, porque traz a dimensão da existência, em outras palavras, o existir de fato, per si , não é garantia de reconhecimento e conquista de direitos, pois é necessária a visibilidade social, jurídica e política, conferindo voz a mulher da pesca, porém, o rompimento dessa barreira da invisibilidade na busca por reconhecimento e igualdade de gênero e direitos, só é possível a partir do empoderamento feminino, ou seja, essas mulheres precisam, antes de tudo, se conscientizar e empreender um verdadeiro processo de empoderamento, autoreconhecimento e afirmação.

Por fim, chegamos a constatação de que a luta por reconhecimento, igualdade de gênero e direitos das pescadoras amazônicas reflete a luta da própria mulher contemporânea que conquistou alguns degraus, porém, ainda existem muitos a serem subidos, assim, devemos fazer nossa parte enquanto academia do Direito, diminuindo nossa parcela da dívida, e nesse ponto, ficamos felizes em contribuir e temos a esperança que esse nosso trabalho reverbere seja na sociedade e nas leis, seja em outros colegas, no sentido de estudar e pesquisar não só as mulheres pescadoras da Amazônia, mas os demais grupos marginalizados social, política e juridicamente, que necessitam de nossa cooperação acadêmico-científica, promovendo, assim, a dignidade da pessoa humana conforme preconiza a nossa Constituição cidadão de 1988.

 

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[1] Dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em:  https://brasilemsintese.ibge.gov.br/territorio.html

[2] O ilustre constitucionalista francês Louis Favoreu alcunhou o conceito de bloco de constitucionalidade, para ele abarca tudo aquilo que tenha status de constitucional, em sua essência, quer dizer que a constituição não é só aquela de 1988, mas sim um amplo bloco formado pela de um país e uma série de outros instututos, entendimentos e mecanismo.

[3] A constituição, em sua essência, não admite antinomias (contradições reais), pois todas as normas estão sempre a serviço dos seus pilares constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a isonomia.

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