“Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito. O “direito” à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o “direito”, acima de todas as opressões ou “alienações”, de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse direito tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também não fazem parte do direito tradicional da soberania” (FOUCAULT).
Sumário: Considerações iniciais; 1. A pluralidade dos modelos familiares e o papel jurídico do afeto; 2. As uniões estáveis homoafetivas a partir da perspectiva constitucional; 3. O reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas pela jurisprudência; Considerações finais; Referências bibliográficas
Considerações iniciais
A sexualidade, enquanto fato social tornou-se objeto de estudos e especulações, críticas e afirmações em diversas searas. E assim foram sendo construídas verdades em torno dessa esfera do comportamento humano. No século XVIII, uma das grandes novidades foi o surgimento da “população” enquanto problema econômico e político. E no cerne desse problema situava-se o sexo. A conduta sexual da população passou a ser tomada, ao mesmo tempo, como objeto de análise e alvo de intervenção. Entre o Estado e o indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa, perpassando às esferas econômica, pedagógica, médica e jurídica[1].
Somente num segundo momento, a sexualidade, que antes se desenvolveu às margens das instituições familiares, vai se re-centrar pouco a pouco na família: “uma família reorganizada, com laços mais estreitos, intensificada com relação às antigas funções que exercia no dispositivo de aliança”[2].
As práticas homoeróticas serão compreendidas a partir das ideologias jurídico-médico-psiquiátricas do século XIX, quando, inicialmente, a homossexualidade seria definida “como uma perversão do instinto sexual causada pela degenerescência de seus portadores e, depois, como um atraso evolutivo ou retardamento psíquico, manifestos no funcionamento mental feminino do homem.” [3]
Existiriam “quatro grandes concepções acerca da homossexualidade ao longo da história. Para a primeira delas, a orientação sexual a uma pessoa do mesmo sexo é vista como pecado e algo moralmente reprovável. Na segunda concepção os atos homossexuais são vistos como sintomas de uma doença que acomete o indivíduo, retirando-lhe sua condição de pessoa normal e saudável. Já a terceira concepção atribui à homossexualidade um “critério neutro de diferenciação”, incapaz de justificar as desigualdades existentes e os tratamentos diferenciados. E, por fim, a quarta concepção concebe a homossexualidade como construção social, destacando que a designação da condição homossexual como desviante pressupõe a definição de padrões de conduta a partir da “normalidade heterossexual”[4] atribuída aos gêneros[5] como pretensiosamente superior e hegemônica.”
Na esfera das relações interindividuais reguladas pelo Direito, a sexualidade suscita grandes polêmicas. Especialmente nas últimas décadas, a necessidade de adaptação das soluções para as rupturas enfrentadas nas relações familiares e afetivas exige uma constante adaptação do Direito, na tentativa de compor os conflitos surgidos no cotidiano da vida social e familiar. A reivindicação de efeitos jurídicos e do reconhecimento das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar vem estimulando reflexões e revisões conceituais, sobretudo no âmbito jurídico. No entanto, no direito brasileiro o tema carece de maior aprofundamento e elaboração teórica.
Se reavivarmos nossa memória seria possível lembrar que as uniões estáveis heterossexuais sofreram idêntica resistência imposta atualmente às uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. As relações antes denominadas de “concubinato” foram reconhecidas como entidade familiar por meio do texto constitucional. E, mesmo depois de reconhecidas expressamente pela Constituição de 1988, havia grande resistência e mesmo quem defendesse que “as uniões estáveis geravam apenas efeitos previdenciários e obrigacionais, mas não familiares”.[6]
O processo de reconhecimento das uniões estáveis, à época, já rompia com a exclusividade do casamento como entidade familiar. Reconheceu-se, paulatinamente, menor importância à forma pela qual determinada entidade familiar constituía-se, que ao papel que o ente familiar efetivamente desempenhava naquela célula da sociedade. Em outras palavras, a valorização do conteúdo da relação, a formação de família, sobrepôs-se às formalidades sociais e legais.
A demanda pelo reconhecimento de efeitos jurídicos e do reconhecimento das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar deve ser analisada a partir da previsão constitucional dos objetivos fundamentais da República em construir uma sociedade pluralista, justa e solidária (artigo 3o, inciso I), dos direitos e garantias fundamentais, bem como dos novos contornos atribuídos ao Direito de Família pela concepção constitucional. A interpretação do novo Código Civil de 2002 deverá se pautar na visão plural de entidades familiares, inscrita na ordem constitucional e na doutrina e jurisprudência, recentemente produzidas.
1. A pluralidade dos modelos familiares e o papel jurídico do afeto
A identificação da noção de família com a noção de casamento heterossexual, advém da influência judaico-cristã marcante na formação da cultura latino-americana. Inicialmente, o Código Civil brasileiro de 1916 apenas reconhecia a família originada do matrimônio, enquanto indissolúvel, e os filhos desde que nascidos na constância do casamento. O Direito de Família apresentava uma concepção patriarcal, com fundamento no matrimônio, e nos interesses patrimoniais, foi marcado pela excessiva valorização dos aspectos formais da relação, definidos na discriminação do status da mulher e dos filhos.
No Brasil, apenas em 1977 o casamento deixa de ser indissolúvel, por meio da implantação do divórcio. Entretanto, somente em 1988 o ordenamento jurídico reconhece a igualdade entre os cônjuges e aceita outras formas de constituir família. Em seu artigo 226 e parágrafos, a Constituição faz menção expressa à união estável e à família monoparental, além do casamento. Até aquele momento, os casos envolvendo uniões estáveis, antes definidas por concubinato, eram tratados como sociedades de fato pelo Judiciário, tendo reflexos apenas patrimoniais, nos termos do artigo 1.363 do Código Civil de 1916[7] e da Súmula 380 do STF[8].
O Código Civil brasileiro que entrou em vigor em 2003, ao contrário do que se esperava, pouco inovou no que concerne ao Direito de Família, incorporando necessariamente as inovações implementadas pela Constituição de 1988, mas desconhecendo diversas conquistas emergidas da formulação doutrinária e jurisprudencial posterior. Já o aspecto positivo refere-se à inserção dos direitos de personalidade no Código Civil, em seus artigos 11 a 21 (conforme veremos adiante).
Impulsionado pela normativa constitucional de 1988, o reconhecimento do afeto nas relações familiares, enquanto elemento nuclear, conduziu o Direito de Família ao fenômeno da “repersonalização”[9]. É importante perceber que o espaço conquistado pela dimensão afetiva no Direito de Família representou um divisor de águas. Quando o afeto era presumido, o ordenamento jurídico valorizava, sobretudo os aspectos formais das relações familiares. Atualmente, com o caráter da essencialidade do afeto para as relações familiares, o direito passou a considerá-lo elemento imprescindível para tais relações[10].
Nesse sentido já observamos que “os objetivos inerentes à formação de uma família não se resumem na exclusiva função de dar a vida (reprodução), criar e educar os filhos. (…) Os esposos, cônjuges ou companheiros se devem reciprocamente, antes de tudo, afeição, dedicação e assistência mútua. (…) no presente, um casal se une para buscar a felicidade por meio de relações de afeição e solidariedade, que significam os pilares de base para a existência da família moderna.”[11]
O desafio lançado ao novo Direito de Família consiste em aceitar o princípio democrático do pluralismo na formação das entidades familiares e, respeitar as diferenças intrínsecas de cada uma delas, efetivando a proteção e provendo os meios para resguardar o interesse das partes, conciliando o respeito à dignidade humana, o direito à intimidade e à liberdade com os interesses sociais e, somente quando indispensável, recorrer à intervenção estatal para coibir abusos.
Constituindo o afeto a base das relações familiares, é necessário reconhecer efeitos jurídicos a outras uniões, quando se constituem de relações duradouras, estabelecem patrimônio comum por esforço mútuo e criam laços de responsabilidade e assistência, devendo, portanto, ser tuteladas pelo Direito. Os interesses a serem protegidos são aqueles que permitem a pessoa realizar-se íntima e afetivamente no pequeno grupo social familiar[12]. No mesmo sentido, Perlingieri afirma que,
(…) o perfil consensual e a affectio constante e espontânea exercem cada vez mais o papel de denominador comum de qualquer núcleo familiar. (…) Cada forma familiar tem uma própria relevância jurídica, dentro da comum função de serviço ao desenvolvimento da pessoa (…).[13]
Se o modelo de família nuclear permanece dominante, já não há um único modelo ocidental de família, posto que o plural se impõe e essa pluralidade enseja, paradoxalmente, o exercício de igualar e diferenciar. Com efeito, o reconhecimento da pluralidade de formas de constituição de família é uma realidade, da mesma forma que o reconhecimento de direitos de igualdade, respeito à liberdade e à intimidade de homens e mulheres, assegurando a toda a pessoa o direito de constituir vínculos familiares e de manter relações afetivas com outras pessoas, sem qualquer discriminação.[14]
O reconhecimento da pluralidade de constituição de família guarda sua identidade com o princípio ético da diversidade habitacional[15]. Este princípio compõe, juntamente com outros, os fundamentos dos direitos sexuais e reprodutivos[16], os quais estão, ainda que implicitamente, constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 226, § 7o quando da previsão do direito ao planejamento familiar e à paternidade responsável.
A laicização do Estado, a democratização – não apenas enquanto regime de governo, mas enquanto conceito jurídico também – e as mudanças culturais e axiológicas estimularam, de um modo geral, a ampliação da autonomia do indivíduo e, especificamente, sua autonomia no interior das relações de casamento e de família. Assim, as pessoas se emancipam da sociedade e do Estado, da mesma forma que o casamento se emancipa da família[17].
Esse é um dos avanços mais festejados, ainda que tal previsão não inclua expressamente a possibilidade de a união de casais homossexuais ser reconhecida como entidade familiar. No entanto, a partir de uma interpretação sistemática, temos que não há óbice jurídico para desamparar tais uniões enquanto entidades familiares, quando constituídas com esse desiderato.
Ora, as características comuns das entidades familiares são: afetividade, estabilidade com comunhão de vida e ostensibilidade. Logo, as uniões estáveis homossexuais também estão inseridas no conceito de família, desde que preenchidos os requisitos, uma vez não haver nenhuma norma de exclusão. A ausência de lei não é impedimento, pois o art. 226 da Constituição Federal é auto-aplicável. A impossibilidade de filhos também não, pois a procriação não é finalidade indeclinável, famílias sem filhos também são protegidas e a adoção não depende do estado civil dos adotantes[18].
Todos os tipos de famílias e associações sexuais, sem qualquer hierarquia entre elas, merecem proteção do Estado[19]. Seguindo esse princípio, o Documento de Cairo reconheceu que as pessoas coabitam, educam crianças e mantêm relações afetivas em vários tipos de combinações, deixando implícito que o tipo familiar patriarcal, conjugal e heterossexual não é exclusivo, nem superior[20].
É necessário evitar que persista uma hierarquia entre os modelos familiares, de modo a retomar, novamente, como paradigma o casamento e, assim, ajustar arbitrariamente todas as outras entidades familiares aos seus pressupostos. A Constituição prevê a pluralidade de formas de constituir família e não estabelece qualquer hierarquia entre as mesmas. Além disso, os tipos familiares explicitados são meramente exemplificativos, uma vez que “o caput do artigo 226 da Constituição tem uma previsão aberta e genérica a partir do termo “família”.[21]
2. As uniões estáveis homoafetivas a partir da perspectiva constitucional
Como já referimos, a homossexualidade foi vista como pecado, depois como doença e, nos últimos tempos, alguns ainda insistem em considerá-la uma conseqüência da falha no desenvolvimento psicológico da pessoa. Conforme Rios, “a homossexualidade há que ser vista a partir de um pluralismo sexual, estruturada pela escolha individual. Sendo essa escolha, mais um elemento no estilo de vida da pessoa, que deve ser respeitado pelo simples fato de integrar a pessoalidade daquele indivíduo determinado”[22]. Até porque a “descoberta” científica da “causa” homossexual não auxilia a superar os preconceitos, que são de ordem moral, política e ideológica.
Com a Constituição de 1988 as transformações de ordem sociológica, econômica, afetiva, entre outras, ocorridas no âmbito das relações familiares passaram a ser consideradas pelo ordenamento jurídico positivo brasileiro. Nesse sentido, há alguns princípios/normas constitucionais[23] que devem ser levados em consideração quando se está diante da questão acerca do reconhecimento das uniões estáveis homossexuais ou homoafetivas como entidades familiares: dignidade humana, liberdade, igualdade e proibição de discriminação. Todos esses princípios devem ser interpretados conjuntamente, de forma sistemática e extensiva (por serem princípios), possibilitando uma adaptação jurídica mais próxima ao caso concreto.
O processo histórico de consolidação das dimensões dos direitos humanos coincidiu, no mundo ocidental, com a ampliação das liberdades individuais da sociedade capitalista burguesa e com a laicização do Estado. Com isso, algumas esferas – corpo, sexualidade, vida e morte, por exemplo – que sempre foram manipuladas por padres, médicos ou juízes, passaram a ser controladas pelos próprios indivíduos. É o que se pode chamar de auto-gestão, decorrente de um processo que estimulou a ampliação dos direitos e liberdades individuais e, conseqüentemente, acarretou em uma maior autonomia do indivíduo sobre a sua intimidade, o seu corpo e seu sistema de valores.
É essa concepção que a Constituição ampara na medida em que exige o respeito à dignidade humana no artigo 1.º, inciso III, a qual é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito[24] e tem como núcleo essencial a idéia de que a pessoa é um fim em si mesma, não podendo ser instrumentalizada ou descartada em função da características que lhe conferem individualidade, devendo o indivíduo ter sua liberdade preservada, já que são escolhas que se referem à sua intimidade.
Segundo Ingo Sarlet, “a dignidade humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano; que lhe garantam as condições existenciais mínimas para uma vida saudável e que promovam a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”[25].
O princípio da igualdade (artigo 5º, caput) visa, no âmbito formal, à superação da desigualdade entre as pessoas, mediante a sua universalização. Mas somente a igualdade material é que permitirá a superação das diferenciações, quando consideradas a partir de padrões pretensiosamente hegemônicos e imutáveis, como o heterossexual. A igualdade de tratamento, portanto, se satisfaz com a inexistência de uma fundamentação razoável que permita a diferenciação.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem colhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação[26].
Segundo Joaquim José Gomes Canotilho, a igualdade é um dos princípios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais. É um pressuposto para a uniformização do regime das liberdades individuais a favor de todos os sujeitos de um ordenamento jurídico. Esse princípio traz duas implicações básicas: igualdade na aplicação do direito e igualdade na criação de direitos. E nesse ponto o autor destaca que, diferentemente da estrutura lógica de identidades, a igualdade pressupõe diferenciações e designa uma relação entre pessoas e coisas, caracterizando-se, portanto, numa igualdade relacional[27]. Desse modo, impõe-se ao Estado uma atuação política e social de promoção de direitos àqueles que estão desamparados juridicamente, ainda que isso importe um tratamento diferenciado.
Além disso, a Constituição proíbe a discriminação (artigo 3º, inciso IV) por raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas, não sendo, portanto, seu elenco taxativo, mas meramente exemplificativo. Nesse sentido, o caminho para a aceitação das uniões afetivas entre iguais no âmbito do Direito de Família representa uma nova face do conceito de cidadania, transpondo a barreira do interdito, buscando a afirmação da diferença a partir da manifestação da liberdade de expressão e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. A eliminação das discriminações inscritas nas normas jurídicas encaminha a busca da universalidade do Direito.
Argumentos em sentido contrário devem ser mencionados, por exemplo, que afirmam que o legislador constitucional não buscou proteger a mera união livre de pessoas de sexos diferentes, ou de pessoas de sexos iguais, como pretendem alguns juristas, pois a família não é apenas um pacto de relação amorosa. Não é o afeto que, segundo o autor, produz seqüelas jurídicas. Assim, não há núcleo familiar na união de dois homens ou duas mulheres apenas pelo fato de que, entre eles, exista afeto ou por decidirem residir sob o mesmo teto. Para o mesmo autor, tais relações merecem um tratamento diferenciado das demais sociedades de fato, ultrapassando o caráter exclusivamente patrimonial, mas não constituem entidades familiares, não merecendo, portanto, a especial proteção do Estado[28].
Por outro lado, Luiz Edson Fachin refere que temos no texto constitucional – o qual assegura a liberdade, a igualdade sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade da vida privada e da intimidade – a base jurídica para a construção do direito à orientação sexual como um direito personalíssimo, atributo inerente e inegável de toda pessoa[29].
Arnoldo Wald refere que a categoria dos direitos da personalidade é bastante recente e os define como sendo:
[…] direitos absolutos aos quais correspondem deveres jurídicos de todos os membros da comunidade, cujo objeto está na própria pessoa do titular, distinguindo-se assim dos direitos reais que recaem sobre coisas ou bens exteriores ao sujeito ativo da relação jurídica. São direitos da personalidade os direitos à liberdade, à privacidade, à vida, à saúde, ao nome, à própria imagem. São direitos que fazem parte da personalidade do titular[30].
Os direitos de personalidade podem ser definidos, portanto, como integrantes da própria essência da pessoa, podendo ser de ordem física, psíquica ou moral. “São os direitos que incidem sobre bens concernentes à individualidade de cada pessoa e, sendo insuscetíveis de gozo por outra, não comportam nenhuma forma de transmissão. Os direitos de personalidade são inatos, não porque a sua existência independa, ou seja, anterior ao ordenamento jurídico, mas porque para a sua aquisição basta o pressuposto da personalidade jurídica”[31].
Muitos dos direitos fundamentais são direitos de personalidade, como por exemplo, os direitos de estado (cidadania), os direitos sobre a própria pessoa (vida, integridade moral e física, privacidade), os direitos distintivos da personalidade (identidade pessoal) e muitos dos direitos de liberdade[32]. Nesta esteira, o Código Civil inseriu um capítulo específico para os Direitos da Personalidade, composto de 10 artigos, dentre os quais destacamos os artigos 11, 12 e 21.
A orientação sexual é a “identidade atribuída a alguém em função da direção do seu desejo e/ou condutas sexuais, seja para outra pessoa do mesmo sexo (homossexualidade), do sexo oposto (heterossexualidade) ou de ambos os sexos (bissexualidade)”.[33] De fato, o direito à livre orientação sexual compreende os chamados direitos sexuais[34] e é um direito de personalidade, especificamente, à livre expressão no que se refere à identidade pessoal, bem como à integridade física e psíquica, na medida em que a sexualidade está presente em todas as manifestações da personalidade do sujeito e constitui a própria identidade subjetiva.
Assim, o direito à orientação sexual, enquanto atributo inerente à pessoa, é um direito de personalidade e insere-se, pois, no “minimum necessário e imprescindível ao conteúdo do indivíduo. De maneira que o aniquilamento de um direito de personalidade ofusca a pessoa como tal”.[35]
Ocorre que, “o Estado, para opor-se ao reconhecimento das relações não vincadas pela diversidade de gênero dos parceiros, alega que a família heterossexual é a base da sociedade moderna. Nega sua proteção à união homossexual sob o fundamento de que desvalorizaria o sentido social do sexo, tido como o fim da vida familiar”[36].
De todo modo, alguns argumentos formulados pelos movimentos feministas e homossexuais refutam a idéia de um casamento homossexual, na medida em que eles consideram que a homossexualidade conduz o indivíduo a estar à margem e que o casamento seria uma forma de “normalizar” a diferença homossexual. Entretanto, não sendo esse argumento partilhado por uma parcela dos grupos homossexuais, não haveria impeditivo no sentido de que se pudesse autorizar o casamento daqueles casais que o desejassem.
Outra solução seria a de não reproduzir o modelo tradicional do casamento heterossexual, mas de criar outro caminho para tutelar esta relação, protegendo-se o interesse das partes, através da proposta do modelo dos Pacs: os pactos de associação civil ou de parceria civil, ou, ainda, pacto civil de solidariedade, nos moldes europeus.
Dentre as críticas esboçadas a essa proposta, cumpre referir que a solução inserida na proposta dos pactos de parceria civil define a previsão jurídica, apenas, dos efeitos patrimoniais da relação afetiva homossexual, desviando, ou melhor, postergando o verdadeiro debate e enfrentamento político e cultural que representa a aceitação da união entre pessoas do mesmo sexo como sendo uma relação familiar.
Eis o impasse: se a escolha fosse a de reconhecer o status familiar das uniões estáveis homoafetivas, portanto, como consectário, estaria diretamente compreendido o direito de constituir vínculos de filiação, seja através da adoção, ou por meio do recurso às modernas tecnologias reprodutivas, denominadas técnicas heterólogas, quando se recorre à participação de uma terceira pessoa como doadora de gametas ou de uma mulher que aceite ceder o útero para a geração do filho.[37]
O enfrentamento da questão dos filhos do casal homossexual anunciaria a possibilidade de revisão das bases das relações de parentesco, fato este que se revela, em países como o Brasil, como o maior obstáculo para o reconhecimento do caráter familiar dessas relações. Não obstante já havendo recentes manifestações de juristas e magistrados sobre a possibilidade de guarda ou de adoção por pessoa que não omite ser homossexual e viver em união estável.
No contexto atual, é preciso verificar que a elaboração de leis no âmbito global protegendo as uniões homoafetivas constitui o resultado de reivindicações relacionadas diretamente com os movimentos emancipatórios que envolveram a discussão pela igualdade e pela não-discriminação em função do sexo, idade e orientação sexual. Isso ocorreu a partir da ruptura com os dogmas religiosos sobre o casamento e a sexualidade. De modo que, a gradual aceitação dessas relações por parte da sociedade demonstra a observância do princípio da tolerância, do respeito ao direito de liberdade e à intimidade dos indivíduos.
No que tange ao reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis homossexuais, também denominadas de relações homoeróticas ou homoafetivas, observa-se que esse fato emerge nos anos noventa[38], com maior expressão e visibilidade a partir dos movimentos mundiais defensores da causa homossexual. De certo modo, o impulso a essa reivindicação pode ter se dado em decorrência da propagação da AIDS, que abriu espaço para pensar em proteger essas relações consideradas “fora da lei e contra a natureza”, evitando-se, deste modo, a precariedade das uniões.
A inserção recente das uniões entre iguais teve maior expressão em alguns países europeus. Entre aqueles que editaram lei especial para as referidas uniões, destacam-se: Dinamarca, Lei n.º 372, de 27 de junho de 1989; Noruega, Lei n.º 32, de abril de 1993; Suécia, Lei n.º 1994.1117, de 23 de junho de 1994; Islândia, Lei n.º 87, de 1996; França, Lei n.º 99-944, de 15 de novembro de 1999; e Holanda, Lei n.º 26.672, de 21 de dezembro de 2000.
No Brasil a regulamentação dessa questão ainda não existe, a reivindicação de efeitos jurídicos a essas relações é muito recente e gera grande controvérsia no que se refere ao seu tratamento no âmbito do Direito de Família. O tema requer maior atenção e, frente ao preconceito ainda existente em relação à homossexualidade, impõe-se maior reflexão e elaboração teórica com vistas à tutela jurídica dessas relações.
No Brasil, em decorrência de ausência de lei especial, embora existindo projeto de lei[39] que visa a regulamentar a parceria civil entre pessoas de mesmo sexo, uma parcela de decisões jurisprudenciais tem enfrentado essa questão de forma corajosa e criativa.
3. O reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas pela jurisprudência
Referiu-se anteriormente que mesmo havendo grande resistência ao reconhecimento destas uniões no meio jurídico, alguns juízes têm enfrentado de maneira inovadora essa questão e vêm atribuindo efeitos jurídicos a tais relações. O primeiro passo no sentido de reconhecer o status de entidade familiar à união estável homossexual, fixando a competência das Varas de Família, foi do Tribunal de Justiça gaúcho, em 17.06.99.
EMENTA: RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO.
Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das Varas de Família, a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido[40].
Atualmente, no Rio Grande do Sul a discussão está definitivamente inserida na esfera do Direito de Família, ainda que muitos julgadores não reconheçam as uniões estáveis homossexuais como entidades familiares. Veja-se:
EMENTA: JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL. CONVIVÊNCIA HOMOSSEXUAL. COMPETÊNCIA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. 1. É competente a justiça estadual para julgar a justificação de convivência entre homossexuais pois o efeitos pretendidos não são meramente previdenciários, mas também patrimoniais. 2. São competentes as Varas de Família, e também as Câmaras Especializadas em Direito de Família, para o exame das questões jurídicas decorrentes da convivência homossexual pois, ainda que não constituam entidade familiar, mas mera sociedade de fato, reclamam, pela natureza da relação, permeada pelo afeto e peculiar carga de confiança entre o par, um tratamento diferenciado daquele próprio do direito das obrigações. Essas relações encontram espaço próprio dentro do Direito de Família, na parte assistencial, ao lado da tutela, curatela e ausência, que são relações de cunho protetivo, ainda que também com conteúdo patrimonial. 3. É viável juridicamente a justificação pretendida pois a sua finalidade e comprovar o fato da convivência entre duas pessoas homossexuais, seja para documentá-la, seja para uso futuro em processo judicial, onde poderá ser buscado efeito patrimonial ou ate previdenciário. Inteligência do art. 861 do CPC. Recurso conhecido e provido[41].
Em relação ao reconhecimento da união homoafetiva equiparada à união estável e partilha dos bens, o Tribunal de Justiça gaúcho também já se pronunciou:
EMENTA: UNIAO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMONIO. MEACAO PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes as que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do Direito, relevando sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros[42].
Recentemente o Quarto Grupo Cível reconheceu o relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo como união estável, ainda que o tenha feito por maioria dos votos. Veja a ementa:
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRO. ANALOGIA.
Incontrovertida a convivência duradoura, pública e continua entre parceiros do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos, por maioria[43].
Além dessas decisões importantes no âmbito do Direito de Família, o Estado gaúcho destaca-se, igualmente, pelo pioneirismo na esfera da Justiça Federal. Em 2000, o Tribunal Regional Federal da Quarta Região confirmou liminar em Ação Civil Pública destinada a reconhecer, em todo o território nacional, direitos previdenciários aos companheiros homossexuais[44]. Além disso, o mesmo Tribunal reconheceu eficácia jurídica ao princípio da igualdade no que se refere ao tratamento de homossexuais e heterossexuais em hipótese de pensão estatutária.
Essas decisões pioneiras nos levam a repensar os fundamentos do casamento e, principalmente do parentesco, representado certamente, enquanto maior desafio a ser enfrentado pela sociedade brasileira, a aceitação das transformações das relações humanas, quebrando-se as barreiras homofóbicas ainda persistentes e que esbarram na noção de cidadania, pilar das sociedades democráticas.
Lembremos que o liberalismo jurídico consagrou, no século XIX, completude e unicidade ao sistema jurídico, o qual privilegiava a lógica, a generalidade, a abstração[45], a segurança e a ordem, em detrimento da experiência, dos fatos sociais e das subjetividades. Esse sistema sempre teve como fonte única o Estado, com seu poder ideologicamente emanado do povo; a neutralidade das normas com relação ao seu conteúdo; a concepção do homem, burguês, proprietário, branco, adulto, como sujeito abstrato; normas taxativas, ao invés de cláusulas gerais[46], e ainda a separação bem nítida entre direito público (referente à relação de verticalidade entre Estado e cidadãos) e direito privado (referente à relação entre os próprios cidadãos)[47].
“Essa ideologia de completude jurídica pressupõe um legislador iluminista, onisciente, capaz de tudo regular detalhadamente, antecipadamente, de forma clara e sem contradições, transformando o jurista em simples técnico, operador de atividade meramente cognitiva e não prático-valorativa, que utiliza métodos lógico-formais, sem nenhuma responsabilidade política”[48].
A superação desse modelo, ideologicamente baseado no individualismo-capitalista, é intensificada pelo reconhecimento de sua historicidade, da vinculação que se há de fazer com o momento sócio-político-econômico[49], ou seja, com os fatos sociais, bem como da crescente edição de estatutos especiais[50], elaborados a partir das previsões constitucionais, até então subjugados exclusivamente ao âmbito privado. Essa mudança é nítida quando se percebe o intervencionismo estatal sobre as áreas do direito de família, contratos e propriedade, tradicionalmente considerados os pilares do direito privado. Nessa ótica, os direitos de personalidade flexibilizam, desestabilizam e despatrimonializam a codificação civil, trazendo à discussão os limites do direito privado[51] e a proteção da dignidade humana.
Assim, a atual concepção de direitos fundamentais impõe ao Estado não apenas abster-se de interferir na esfera privada dos indivíduos, em respeito aos seus direitos subjetivos, mas principalmente implementar os direitos fundamentais, na condição de Estado provedor, mediante a adoção de políticas públicas. Quanto ao legislador não basta deixar de editar leis inconstitucionais, sendo necessário regulamentar as previsões constitucionais.
A construção dos direitos fundamentais, nesse sentido, relativiza a racionalidade que informa o chamado “modelo de relações jurídicas”[52], em que os direitos subjetivos emanam do modelo previsto. Assim, quem não se insere em um dado modelo de relação jurídica, não possui direitos subjetivos. Nesse sentido, os direitos fundamentais revelam que, nessa racionalidade, a proteção jurídica não surge da existência concreta da pessoa dotada de dignidade, mas sim pela sua inserção em um modelo de relação jurídica. O desafio, segundo Fachin e Ruzyk, consiste em,
tendo na mão um código de racionalidade conceitualista e predominantemente patrimonialista, assegurar a promoção da dignidade daqueles que, ou não se inserem nos modelos, ou cujo atendimento das necessidades existenciais pode contrariar o modelo[53].
Urge a mudança de um paradigma científico e regulatório para outro paradigma social e emancipatório, transformador, fundado na solidariedade e não na ordem, que reconheça o multiculturalismo e a diferença – mais do que a simples igualdade[54] – pela busca da efetivação dos direitos humanos.
Considerações finais
A discussão acerca do reconhecimento jurídico das uniões estáveis homoafetivas está aberta e exigirá um maior aprofundamento dos debates e amadurecimento nos posicionamentos, reconhecendo-se que nem mesmo a forte tradição católica latino-americana impediu que alguns tribunais, notadamente do Rio Grande do Sul, tenham demonstrado ousadia e originalidade no enfrentamento da questão.
As uniões estáveis homoafetivas lograram receber guarida em nossa jurisprudência e doutrina mais recentes, fato que nos conduz a sustentar que a edição do novo Código Civil em 2002, embora não comporte previsões que reconheçam tais relações como relações familiares, não deverá constituir impedimento para que a interpretação constitucional, aqui referida permita a possibilidade de concretização dos direitos de todas as entidades familiares, independentemente da diferença de sexos. A analogia coma união estável heterossexual parece ser o caminho a ser adotado para reconhecer e tutelar os direitos dos companheiros de mesmo sexo.
Retomar a diferenciação de sexos para excluir o sujeito de proteção de seus direitos, e justificar a impossibilidade de mudança das regras do Direito de família, implica em recorrer à analogia em reconhecer que as diferenças raciais de uma população podem justificar o apartheid.
Nossa contribuição consiste, finalmente, em relembrar que constitui direito humano inalienável a vida, a liberdade, à busca do livre desenvolvimento da personalidade que compreende o direito à felicidade afetiva e familiar. Um Direito vivo reflete a realidade do seu tempo e prepara o caminho do futuro.
Informações Sobre os Autores
Maria Claudia Crespo Brauner
Doutora em Direito pela Université de Rennes I, França.
Professora e Pesquisadora em Direito de Família, Bioética e Biodireito. Professora nos Cursos de Graduação, Mestrado da Universidade de Caxias do Sul – UCS – RS. Presidente da ADiBiS – Associação Direito, Bioética e Solidariedade. Professora do Curso de Mestrado em Direito da FURG
Taysa Schiocchet
Mestranda em Direito pela UNISINOS. Doutoranda em Direito pela PUCPR. Professora de Direito no Centro Universitário Jaraguá do sul – UNERJ e Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE – SC