A construção da identidade de um povo tem como base sua história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, memória coletiva e fantasias pessoais, aparatos do poder e relações de cunho religioso1. No caso específico da identidade latino-americana, a qual muitas vezes é classificada como parte da cristandade ocidental, desenvolveu-se como um modelo a parte da civilização européia e norte americana. Mesmo que tenhamos de levar em consideração a influência da colonização européia, a identidade criada na América Latina, e especialmente no Brasil, incorpora aspectos das culturas indígenas que não existiam na Europa e foram eliminadas na América anglo-saxônica2.
O aspecto indígena que deveria ser um dos pilares da identidade legitimadora3, ficou relegado à uma forma de identidade de resistência4. Isto porque em apenas 500 anos de história, 40 mil anos de evolução que deram origem a mais de 990 povos, com culturas e línguas distintas, foram reduzidas a quase nada, apenas pequenas peças soltas que outrora formavam o pilar cultural indígena pré-colonial. Dos 990 povos restaram menos de 220, os 6 milhões de índios que habitavam o Brasil foram reduzidos a 350 mil.
Somente no Estado de Pernambuco, cuja área é de 98.000 km2, aproximadamente, entre os séculos XVII e XIX existiam 36 aldeamentos; na segunda metade do século passado, esse número foi reduzido para oito, perfazendo hoje, 09 aldeamentos indígenas, distribuídos em cerca de 25.000 índios, quantitativo irrisório se comparado às estimativas da população da área do Estado no início da colonização portuguesa.
O desaparecimento de tantas tribos é explicado pelas diversas formas de alienação de terras indígenas postas em prática no Nordeste, ou da resolução do governo em determinada época de extinguir os aldeamentos existentes.
Das tribos, algumas não alcançaram nossos dias. Dos povos remanescentes encontramos: os Fulni-ô, em Águas Belas; os Pankararu, em Petrolândia/Tacaratu; os Xucuru, em Pesqueira; os Truká, em Cabrobó; os Atikum, em Floresta; os Kambiwá, em Ibimirim, os Kapinawá, em Buíque e os Tuxá, em Inajá, além dos Pipipã, em Floresta.
Diante desta realidade, o direito e a sociedade não podem permanecer passivos. A lei que garante o direito dos índios deve funcionar como um mecanismo que vá alem da proteção da pessoa humana e da demarcação de terras, devendo ser encara como um dos principais mecanismos pelo qual manteremos nossa identidade nacional singular.
Convém, também, deixar claro que não existem culturas melhores que outras, ou mais avançadas que outras. Há, sim, culturas diferentes. Dessa forma, o que para uma dada cultura poderia ser considerado como barbárie, aos olhos das outras, principalmente aos olhos do Ocidente, poderia ser completamente aceitável. É essencial, primeiramente, transpormos certos preconceitos, para que possamos evidenciar melhor todo o contexto.
Podemos perceber que o índio, hoje, não se mostra tão acuado e distante da realidade globalizacional. Pelo contrário, reivindica seus direitos mais do que nunca. São constantes os conflitos envolvendo o índio e a posse das terras em todo o território nacional. É preciso desistigmatizar os indígenas. Eles não são mais tão indefesos, nem tão ingênuos quanto pensava – e ainda pensa – a maioria das pessoas. Afinal, antes de mais nada, são cidadãos, e merecem respeito. A questão pungente agora é como podemos realmente identificar um índio?
Nas últimas décadas, o critério da auto-identificação étnica vem sendo o mais amplamente aceito pelos estudiosos da temática indígena. Na década de 50, o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro baseou-se na definição elaborada pelos participantes do II Congresso Indigenista Interamericano, no Peru, em 1949, para assim definir, no texto “Culturas e línguas indígenas do Brasil”, o indígena como: “(…) aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato”.
Uma definição muito semelhante foi adotada pelo Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001, de 19.12.1973), que norteou as relações do Estado brasileiro com as populações indígenas até a promulgação da Constituição de 1988.
Em suma, um grupo de pessoas pode ser considerado indígena ou não se estas pessoas se considerarem indígenas, ou se assim forem consideradas pela população que as cerca. Mesmo sendo o critério mais utilizado, ele tem sido colocado em discussão, já que muitas vezes são interesses de ordem política que levam à adoção de tal definição, da mesma forma que acontecia há 500 anos.
Ao longo dos séculos, a população indígena no continente americano vislumbrou cenas de destruição e extermínio. De acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário – CIMI – estima-se que, por volta de 1500, havia 80 milhões de habitantes indígenas falando 2 mil línguas diversas. Desta população, cerca de 70 milhões foram dizimados nos primeiros cem anos de colonização européia. Configurando, segundo Todorov, um dos maiores genocídios da história.
Por sua vez, Bartolomé de Las Casas, no século XVI, defendia o direito pleno dos índios, legitimado pelo direito originário, no seu ensaio histórico intitulado “Princípios para defender a justiça dos índios”. A história dos povos indígenas em Pernambuco, como a dos demais índios brasileiros, é tarefa ainda em construção. São poucos os estudos históricos ou mesmo jurídicos que se dedicam ao tema. O tema mais enfocado é, sem sombra de dúvidas, o atinente ao período colonial. Fora isso, é mínimo também o material dedicado aos direitos dos índios sob o enfoque do mesmo.
Como já evidenciamos, há pouca coisa na legislação nacional que trata dos indígenas e da sua proteção. Além do Código Civil, há disposições na Carta Magna de 1988, o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), a Prestação de Assistência aos Povos Indígenas (Decreto 3.156/99), além da proposta de Estatuto dos Povos Indígenas, que tramita na Câmara dos Deputados.
Os índios merecem respeito e atenção. Afinal, estigmatizados como selvagens, são assassinados, explorados e perseguidos. É uma violência que esconde o preconceito de um país que não assume sua plurietnicidade. Este é o contexto em que se encontram os nossos índios, economicamente escravizados, religiosamente convertidos, massacrados e judicialmente tutelados.
Na tentativa de superar o caráter fragmentário que permeia os estudos dedicados a esta questão, orientamos nosso propósito no direcionamento sinalizado pelo olhar do índio como ponto aglutinador, ao atuar como facilitador para a identificação, análise e compreensão das relações do Judiciário e índios em Pernambuco.
A Constituição de 1988 estabelece no seu Art. 231,
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanentem as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes.
§3º. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§5º. É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§6º. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§7º. Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§3º e 4º.
A este respeito, convém externar o texto do referido art. 174,
Art. 174. (…)
§ 3º. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.
§ 4º. As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando e, naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei.
José Afonso da Silva argumenta que a Constituição Federal de 1988 revela um grande esforço da Constituinte no sentido de preordenar um sistema de normas que pudesse efetivamente proteger os direitos e interesses dos índios. E o conseguiu num limite bem razoável. Não alcançou, porém, num nível de proteção inteiramente satisfatório.
Leite, em eminente artigo, expõe que segundo a Constituição Federal de 1988, o direito de posse e usufruto dos recursos naturais indígenas preexiste de regularização, na medida em que é um direito originário. Sendo terras da União, são indisponíveis e inalienáveis. Segundo o mesmo autor, “a terra indígena é, portanto, um objeto político por excelência, principalmente e à medida que o Estado e outras organizações definem objetivos e programas distintos para o mesmo território ocupado pelos índios, gerando uma série de conflitos”. Além disso, a terra, no que diz respeito aos índios, vai além do seu aspecto meramente patrimonial. Ela se apresenta como condição de existência, de vida desses povos. O território é uma condição inconfundível com a sociedade que os envolve.
Assim sendo, a Constituição de 1988 reconheceu ainda o direito à diferença cultural, fundamento de um Estado pluriétnico, e o caráter multicultural da nação brasileira, bases para uma sociedade mais justa e de um efetivo Estado democrático de direito. Ao fazê-lo, viabilizou as condições para transformações nas políticas de Estado que devem hoje assegurar a superação da desigualdade de direitos também à saúde, à educação, à segurança alimentar, que só podem ser agora remetidos a este quadro de diferença cultural contemplado constitucionalmente. Todos eles mantêm relações intrínsecas com a demarcação e garantia das terras tradicionalmente ocupadas.
Os princípios constitucionais estabelecem a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais em terras indígenas, qualquer ato ou política pública que implique na restrição dessas garantias será nulo de direito. Os atos administrativos que criam unidades de conservação superpostas a terras tradicionalmente ocupadas por índios não só não têm validade, por imperativo constitucional, como também sinalizam para a permanência de um quadro institucional já superado. Mantê-lo significa desconhecer os enormes avanços acontecidos em mais de uma década de articulação política dos povos indígenas com vistas à formulação de políticas públicas.
Assim, a questão da terra se transforma no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois, para eles, ela tem valor de sobrevivência física e cultural. Não se ampararão seus direitos se não se lhes assegurar a posse permanente e a riqueza das terras por eles tradicionalmente ocupadas. Pois, a disputa dessas terras e de sua riqueza, como lembra Manuela Carneiro da Cunha, constitui o núcleo da questão indígena no Brasil de hoje.
É de suma importância externar que a expressão “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não quer dizer terras ocupadas desde tempos imemoriais, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção. Em outras palavras, ao modo como eles se relacionam com a terra.
Notamos, também que, analisando pormenorizadamente, o fascinante campo da questão indígena vem há muito sendo amplamente discutido sob a ótica antropológica, histórica e geográfica, através de estudos que questionam o modo de vida, lingüística, cultura e produção indígena e de suas variantes após o contato com o homem branco e, de certa forma, tem sido estudada de forma pouco exaustiva, sob o recorte do diferencial entre o Direito e o Índio, problemática judiciária que enfoca a questão constitucional dada a essa minoria pelo Estado brasileiro.
Os direitos e interesses indígenas têm natureza de direito coletivo, direito comunitário. Como tal, concerne a toda a comunidade. É por essa razão que a Constituição, em seu art. 232, reconhece legitimação em juízo aos próprios índios, e às comunidades e as organizações antropológicas e pró-índios, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
O Estatuto dos Povos Indígenas, em discussão na Câmara dos Deputados, em seu art. 4º, explicita,
Art. 4º. A política de proteção e assistência aos povos, às comunidades indígenas e aos índios terá como finalidades:
I. assegurar aos índios a proteção das leis do País;
II. prestar assistência aos povos, às comunidades indígenas e aos índios;
III. garantir aos índios o acesso aos conhecimentos da sociedade brasileira e sobre o seu funcionamento;
IV. garantir aos índios e aos povos ou comunidades indígenas meios para sua auto-sustentação, respeitadas as suas diferenças culturais;
V. assegurar aos índios e aos povos ou comunidades indígenas a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e de subsistência;
VI. promover o respeito à organização social, aos usos, costumes, línguas e tradições dos povos e comunidades indígenas, a todos os seus bens, seus modos de viver, criar e fazer, seus valores culturais e artísticos e demais formas de expresão;
VII. executar, com anuência dos povos e das comunidades indígenas, e sempre que possível, com a sua participação, programas e projetos que os beneficiem;
VIII. garantir aos índios e aos povos e às comunidades indígenas a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras que tradicionalmente ocupam;
IX. garantir aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos;
X. proteger os bens de valor artístico, histórico e cultural, os sítios arqueológicos e as demais formas de referência à identidade, à ação e à história dos povos e comunidades indígenas;
XI. assegurar aos povos, comunidades e organizações indígenas o direito de participação em todas as instâncias que lhe digam respeito.
Foi nossa intenção, desde as primeiras linhas deste artigo, evidenciar o quão são rechaçados os direitos e garantias das comunidades indígenas. Não deveria ser assim, na medida em que também são cidadãos e, por isso mesmo, devem ser respeitados.
Esperamos sinceramente que este artigo seja um ponto de partida, um alerta para a necessidade da defesa do direito dos índios. Preservando seus direitos junto com sua cultura, estaremos também preservando uma parte significativa desta mistura singular de culturas e etnias, a qual denominamos identidade nacional brasileira.
Notas:
Informações Sobre os Autores
Fernando F. de Souza Júnior
Estudante do 9º período dos cursos de Direito da UNICAP e Relações Internacionais da FIR, Boa Vista, Recife – PE.
Bárbara Martins
Estudante do 9º período dos cursos de Direito da UNICAP, Boa Viagem, Recife – PE.