Resumo: A arbitragem é um meio de soluções heterônoma de conflito extremamente avançado e célere, difundido, há muito tempo, por diversos países desenvolvidos, na busca por uma prestação jurisdicional mais justa e efetiva. No Brasil, entretanto, essa atividade só veio a ser regulamentada através da chamada “Lei Marco Maciel”, em 1996, Lei n° 9.307, a qual foi benéfica na tentativa de conceder novas alternativas de composição com o intuito de evitar diversas e longas demandas no Judiciário, mas foi omissa em alguns pontos onde permite demasiadamente a atuação de profissionais que nem sempre atuam com boa-fé e em outros deixam dúvidas quanto à verdadeira intenção do legislador. Nessa seara, é que desenvolvi o presente estudo na tentativa de instigar o leitor a se posicionar sobre o exercício da atividade arbitral nas relações de consumo brasileiras, em face do exposto nas redações da legislação consumerista e arbitral.
Sumário: 1. Institutos da Arbitragem e o CDC- 1.1 Cláusula Compromissória- 1.2 Compromisso Arbitral- 1.3 Conclusão do Tema
Palavras-chave: Arbitragem- Consumidor- Impossibilidade Contrato- Compromisso Arbitral- Possibilidade.
1. Institutos da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor
1.1 Cláusula Compromissória
Inicialmente, é interessante observar que o Código de Defesa do Consumidor trouxe na denominada Política Nacional das Relações de Consumo a necessidade da “criação de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo” (art. 4º, V/ CBDC), já ciente das dificuldades enfrentadas pelos cidadãos em pleitear seus direitos no Poder Judiciário brasileiro. Nessa perspectiva, começa a se inserir a discussão se a arbitragem, regulada pelo direito pátrio na Lei nº 9.307/1996, seria um desses meios de resolução de litígios.
O tema é bastante polêmico, como veremos adiante, entretanto o artigo 51, VII da lei consumerista parece induvidoso ao dispor o seguinte sobre a cláusula contratual da arbitragem: no pleito dos direitos dos cidadadas a ‘eu art
“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem”;
Analisando a literalidade do dispositivo, parece ser a intenção do legislador impossibilitar a celebração da cláusula compromissória inseridas nos contratos de consumo, tendo em vista que a citada cláusula tem efeito de submeter às partes a arbitragem sem a faculdade de, depois de assinada a avença, qualquer das partes procurarem a jurisdição estatal para solucionar o litígio advindo da relação estabelecida, salvo nos casos de nulidade da sentença arbitral ou suprimento de vontade para instauração do procedimento arbitral.
Como se pode observar, a natureza da cláusula compromissória é determinar a utilização compulsória da arbitragem, não deixando escolha para o aderente após o acordo. Se este não concordar, conforme acima mencionado, o fornecedor poderá buscar via judicial o suprimento da vontade, art. 7º da Lei nº 9.307/96. Exatamente, o que veda o diploma consumerista: “a utilização compulsória de arbitragem”.
Cláudia Lima Marques corrobora com tal posicionamento:
“As cláusulas contratuais que imponham a arbitragem no processo criado pela nova lei devem ser consideradas abusivas, forte no art. 4º, I e V, e art. 51, IV e VII, do CDC, uma vez que a arbitragem não-estatal implica privilégio intolerável que permite a indicação do julgador, consolidando um desequilíbrio, uma unilateralidade abusiva ante um indivíduo tutelado especialmente justamente por sua vulnerabilidade presumida em lei. No sistema da nova lei (arts. 6º e 7º da Lei nº 9.307/1996), a cláusula compromissória prescinde do ato subseqüente do compromisso arbitral. Logo, por si só, é apta a instituir o juízo arbitral, via sentença judicial, com um só árbitro (que pode ser da confiança do contratante mais forte, ou por este remunerado); logo, se imposta em contrato de adesão ao consumidor, esta cláusula transforma a arbitragem “voluntária” em compulsória, por força da aplicação do processo arbitral previsto na lei.” (MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pg. 635)
Fazendo uma rápida exegese da Lei nº 8.078/1990, logo se percebe que as cláusulas abusivas são enumeradas como aquelas que são nulas de pleno direito, ou seja, não produzindo efeito algum no mundo jurídico. Esmiuçando, não adianta sequer ter um contrato assinado pelo consumidor com uma determinada cláusula, que esta será considerada inexistente juridicamente. Diante de um evento dessa natureza, Nelson Nery Jr. esclarece qual procedimento a ser tomado pelo julgador:
“No regime jurídico do CDC, as cláusulas abusivas são nulas de pleno direito porque contrariam a ordem pública de proteção ao consumidor. Isso quer dizer que as nulidades podem ser reconhecidas a qualquer tempo e grau de jurisdição, devendo o juiz ou tribunal pronunciá-las de ex officio, porque normas de ordem pública insuscetível de preclusão.” (GRINOVER, Ada Pellegrini (org.). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004, pg. 521)
Essa nos parece à atitude mais sensata a ser reconhecida por qualquer autoridade a quem a lei delege a competência de dirimir conflitos, diante de uma cláusula compromissória no contrato de consumo. O árbitro, no caso concreto, não pode agir como se valida fosse essa cláusula contratual, sob pena de induzir o consumidor a erro.
Contudo, o artigo 4º, § 2º da Lei de Arbitragem é utilizado por alguns estudiosos como a fonte permissiva da possibilidade da cláusula em tela na avença consumerista, desde que atendidos os requisitos desse dispositivo legal, quando dispõe:
“Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
§ 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.”
Nesse sentido, o doutrinador Zelmo Denari entende que:
“Esse dispositivo da lei de arbitragem não é incompatível com o CDC, art. 51, VII, razão pela qual ambos os dispositivos legais permanecem vigorando plenamente. Com isso queremos dizer que é possível, nos contratos de consumo, a instituição da cláusula de arbitragem, desde que obedecida, efetivamente, a bilateralidade na contratação e a forma da manifestação da vontade, ou seja, de comum acordo.” (GRINOVER, Ada Pellegrini (org.). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004, Pg. 582)
Pedimos, data máxima vênia, mas não concordamos com tal posicionamento, tendo em vista a clareza da lei consumerista, a qual nos parece ter vedado a comentada cláusula, em razão da sua compulsoriedade e da posição privilegiada do fornecedor que, na maioria dos casos, impõe sua vontade sobre o vulnerável consumidor a quem apenas pergunta: “Doutor, onde é que eu assino?”.
Cumpre mencionar, outrossim, que muitos fornecedores condicionam, inclusive, a assinatura da cláusula a celebração do negócio jurídico principal, fato que aumenta, sobremaneira, o grau de obrigatoriedade da utilização do procedimento arbitral.
Imaginemos o exemplo de uma pessoa que está realizando a compra da sua casa própria, sonho de anos de trabalho. Quando chega na hora de assinar, a imobiliária diz que o negócio só é celebrado com a assinatura da cláusula compromissória. Com certeza, o consumidor não iria retroagir no seu desejo de adquirir o lugar onde repousar, em virtude da possível renúncia ao Poder Judiciário na resolução de um litígio.
É esse procedimento corriqueiro que levam milhares de consumidores a conhecer a arbitragem, verdadeiramente, apenas quando pensam em começar o litígio e restam coagidos a assinar o compromisso arbitral (art. 9º da Lei nº 9.307/1996), por força do disposto na cláusula compromissória.
Ademais, não se pode olvidar que no processo legislativo que culminou na promulgação da Lei de Arbitragem, havia a previsão no projeto de lei de revogar o art. 51, VII, do Código de Defesa do Consumidor, entretanto a Comissão de Constituição e Justiça propôs subemenda com vistas a suprimir essa revogação (artigo 44 do projeto) e o Senado Federal aprovou o projeto com a retirada do dispositivo que revogaria o citado artigo consumerista, o que confirma a intenção do legislador em vedar a utilização da cláusula compromissória nos contratos de consumo.
Afora essa discussão, cumpre mencionar que o supra mencionado artigo da Lei de Arbitragem dispõe apenas sobre a inserção da cláusula compromissória no contrato de adesão, não autorizando de forma expressa o mesmo procedimento no caso de outros contratos. Assim, numa interpretação sistêmica e a contrario sensu, chegamos facilmente a conclusão de que a inserção da polêmica cláusula nas demais modalidades contratuais é vedada, sem qualquer controvérsia, em razão de inexistir qualquer dispositivo legal que pudesse permitir tal inserção.
Nelson Nery Júnior coloca com propriedade: “O fato de cláusulas abusivas serem mais freqüentes nos contratos de adesão não significa que a proteção do consumidor deva dar-se somente nessa forma de conclusão de contrato” (GRINOVER, Ada Pellegrini (org.). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2004, pg. 518)
Nesses termos, observando o art. 51, VII do CBDC c/c art. 4º, § 2º da Lei nº 9.3007/1996, não resta dúvida quanto a vedação legal da utilização da cláusula compromissória nos contratos de consumo, os que não são de adesão (por total falta de disposição legal) e os de adesão (pela prevalência da vedação do dispositivo consumerista, em face da norma geral arbitral).
Ainda, mesmo se fosse reconhecida a validade da discutida cláusula, esta diante das práticas consumeristas atuais, não obrigaria o consumidor, em razão da dificuldade para se interpretar o contrato de consumo, observando a desinformação do consumidor brasileiro e os instrumentos contratuais obscuros feitos para confundir a vontade do consumidor, tanto pelo tamanho das letras quanto pelas infindáveis e ininteligíveis cláusulas. Protegendo o mais vulnerável na relação, o artigo 46 do CBDC dispõe:
“Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.” (grifo nosso)
1.2.Compromisso Arbitral
Expostos os argumentos quanto a nulidade da cláusula compromissória, é indispensável salientar que, mesmo sendo vedada a utilização de cláusula compulsória de arbitragem nas avenças consumeristas, o ordenamento pátrio não veda a celebração do compromisso arbitral entre consumidor e fornecedor.
Não há qualquer proibição na Lei nº 8.078/90 sobre o exercício da arbitragem nas relações de consumo, pelo contrário o artigo 4º, V do CBDC até incentiva novos meios de resolução de conflito, todavia o referido código foi claro em não permitir a cláusula contratual da arbitragem, considerando-a nula, tendo em vista que a voluntariedade da escolha da arbitragem na celebração do acordo é bastante prejudicada pela vulnerabilidade do consumidor e dos costumeiros abusos cometidos pelos fornecedores, os quais impõem suas vontades sobre um desinformado contratante.
O ponto principal desse entendimento é simples e se baseia na premissa de que, no momento da assinatura do contrato, existem duas partes desiguais na relação e a mais forte, no caso o fornecedor, como é parcial na relação, vai, intuitivamente, tentar tirar vantagem do acordo, induzindo o consumidor a aceitar a cláusula que concede poderes para a instituição de arbitragem de sua confiança, obrigatoriamente, dirimir o conflito. Entretanto, no caso de não assinada ou considerada nula a cláusula, o consumidor fica desobrigado a anuir com o procedimento arbitral e escolher o melhor caminho para a resolução do litígio. A partir desse instante, desde que obedecidos os direitos básicos do consumidor, a explanação de um árbitro esclarecendo o procedimento, de forma imparcial, pode o consumidor validamente aderir ao compromisso arbitral sem se sentir coagido a fazê-lo.
Antônio Junqueira de Azevedo, em artigo intitulado A Arbitragem e o Direito do Consumidor, quando se propõe a solucionar a questão desse aparente conflito entre a Lei de Arbitragem que permite a inserção de cláusula compromissória nos contratos de adesão e o Art. 51 inc. VII, do CDC, concorda com tal entendimento:
“Como adiantamos, a Lei de Arbitragem nada alterou no Código de Defesa do Consumidor, sobre os direitos do consumidor. Perante a lei protetiva, o quadro era, e é, pois, o seguinte: o compromisso entre consumidor e fornecedor, desde que sem abuso deste sobre aquele, é permitido; a cláusula compromissória, inversamente, tem presunção absoluta de abusividade e é proibida (art. 51, VII).” (Antônio Junqueira de AZEVEDO. A Arbitragem e o Direito do Consumidor. In Revista de Direito do Consumidor, 23-24, 1997, p. 38.)
Nessa perspectiva, concluímos pela possibilidade da celebração do compromisso arbitral nas relações de consumo, desde que respeitados os mais basilares princípios consumeristas, dispostos nos artigos 4° e 6° do Código de Defesa do Consumidor.
1.3 Conclusão do tema
Diante dos argumentos expostos, no que tange ao exercício da atividade arbitral nas relações de consumo, resta clara a impossibilidade da utilização da cláusula compromissória nos contratos de consumo, em razão da clara redação do artigo 51, VII Código de Defesa do Consumidor. Entretanto, a Lei n° 8.078/1990 não veda a possibilidade da adesão das partes envolvidas na relação em comento ao procedimento arbitral, o que nos permite dizer que a celebração do compromisso arbitral é plenamente legal, desde respeitando os princípios inseridos pelo moderno código consumerista.
Informações Sobre o Autor
Thiago Figueiredo Fujita
Advogado, membro da Comissão de Defesa do Consumidor, graduado pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR, cursando especialização de responsabilidade civil e direito do consumidor na Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro