Poder de polícia nas unidades de conservação federais

Resumo: As Unidades de Conservação instituídas pela União são fiscalizadas pelo IBAMA e pelo ICMBio, sendo primária a competência deste e supletiva daquele. A supletividade deverá ser analisada caso a caso e sopesada quando em confronto com os princípios da prevenção e precaução. A competência fiscalizatória do IBAMA para a proteção das Unidades de Conservação Federais e respectivas Zonas de Amortecimento está condicionada a que a autarquia federal primariamente competente (ICMBio), por qualquer razão injustificada, deixe de atuar quando deveria. É possível também que o IBAMA atue em regime de cooperação com o ICMBio, desde que lhe seja solicitada tal colaboração. As autarquias deverão exercer suas atribuições legais em estreita cooperação, sendo que toda e qualquer fiscalização a ser efetivada em favor de unidade de conservação federal deverá ocorrer, sempre que possível, mediante o conhecimento do ICMBio. Ocorrendo dupla autuação em face do mesmo infrator e sobre os mesmos fatos, prevalecerá o auto de infração lavrado em primeiro lugar.


Palavras-chave: Poder de Polícia; IBAMA; ICMBio; competência.


Sumário: 1. Introdução.  2.Poder de Polícia do IBAMA e do ICMBio no que tange às Unidades de Conservação instituídas pela União. 3. A fiscalização exercida pelo ICMbio abrange o entorno das Unidades de Conservação. 4. Conclusão.


1.Introdução;


As unidades de conservação são espaços territoriais e respectivos recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, legalmente instituídas pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (art. 2°, I, da Lei 9.985/2000).


O Sistema Nacional de Unidade de Conservação é, conforme determina a Lei do SNUC, gerido pelos seguintes órgãos (art. 6°, L. 9.985/2000):


I – Órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, com as atribuições de acompanhar a implementação do Sistema;


II – Órgão central: o Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de coordenar o Sistema; e


III – órgãos executores: o Instituto Chico Mendes e o Ibama, em caráter supletivo, os órgãos estaduais e municipais, com a função de implementar o SNUC, subsidiar as propostas de criação e administrar as unidades de conservação federais, estaduais e municipais, nas respectivas esferas de atuação. (Redação dada pela Lei nº 11.516, 2007)


Na área federal, os órgãos executores do SNUC são o Instituto Chico Mendes e, supletivamente, o IBAMA. Cabe a eles fiscalizar as unidades de conservação, na medida de suas competências. 


Em 2007, o Governo Federal interveio no IBAMA e retirou algumas de suas principais atribuições, repassando-as ao ICMBio, que “recebeu a missão de cuidar do patrimônio ambiental natural, especialmente das florestas (com ênfase na Floresta Amazônica), tendo como alvo principal a biodiversidade e o patrimônio genético.” (MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente, 2009).


A Lei que criou o ICMBio direcionou sua atuação para a execução das políticas traçadas para o SNUC, restringindo sua função normativa aos aspectos técnicos que o interessam (Lei 11.516/2007, art. 1°, I, II e III). O IBAMA centrou-se no licenciamento ambiental, inclusive em Unidades de Conservação, e na normatização relativa aos recursos naturais que ficaram fora da competência do ICMBio.


2. Poder de Polícia do IBAMA e do ICMBio no que tange às Unidades de Conservação instituídas pela União;


Poder de polícia ambiental é a atividade da Administração Pública que limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato em razão de interesse público concernente à saúde da população, à conservação dos ecossistemas, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas ou de outras atividades potencialmente poluidoras dependentes de concessão, autorização/permissão ou licença do Poder Público.


Conforme ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, o “poder de polícia age através de ordens e proibições, mas, sobretudo, por meio de normas limitadoras e sancionadoras”, “pela ordem de polícia, pelo consentimento de polícia, pela fiscalização de polícia e pela sanção de polícia.” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 34ªed, p. 141).


O Poder de Polícia do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade está descrito e delimitado pela Lei n.º 11.516/2007, nos seguintes termos:


Art. 1o  Fica criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – Instituto Chico Mendes, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de:


I – executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento das unidades de conservação instituídas pela União;


II – executar as políticas relativas ao uso sustentável dos recursos naturais renováveis e ao apoio ao extrativismo e às populações tradicionais nas unidades de conservação de uso sustentável instituídas pela União;


III – fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação ambiental;


 IV – exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das unidades de conservação instituídas pela União; e


V – promover e executar, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, programas recreacionais, de uso público e de ecoturismo nas unidades de conservação, onde estas atividades sejam permitidas.


 Parágrafo único.  O disposto no inciso IV do caput deste artigo não exclui o exercício supletivo do poder de polícia ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA. (g.n)(…)


spacerArt. 5o  O art. 2o da Lei no 7.735, de 22 de fevereiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação:


Art. 2o  É criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de:


I – exercer o poder de polícia ambiental;


II – executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente; e


III – executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente.”


É possível se extrair da citada legislação que o poder de polícia ambiental será exercido primariamente pelo ICMBio e apenas supletivamente pelo IBAMA.


Ponto de extrema relevância é a delimitação da competência do ICMBio para a proteção das Unidades de Conservação, uma vez que determinadas condutas, a despeito de não praticadas dentro de Unidades de Proteção Integral ou de Unidades de Uso Sustentável, podem afetá-las diretamente. É o caso, por exemplo, de uma indústria que emite efluentes num rio situado fora da Unidade de Conservação, mas que a jusante ingressa na área protegida.


Entende-se que a competência material atribuída ao ICMBio é ampla no que tange à proteção das Unidades de Conservação. O Instituto não pode se omitir diante de fato ocorrido fora da UC, mas que vá atingi-la direta ou indiretamente, pois que a Lei n.º 11.516/2007 não restringiu a competência deste órgão executor ao exercício da fiscalização de atos praticados dentro da Unidade, mas, ao revés, incumbiu-lhe de defender, proteger, fiscalizar e monitorar as Unidades de Conservação, seja em face de atividades nocivas internas, seja externas.


Importante ainda salientar que a competência material é comum a todos os entes federados, que devem proteger o meio ambiente independentemente da verificação da predominância do interesse. Cabe aos órgãos executores do SNUC, diante de situações de perigo concreto ou abstrato, decidir o momento de atuar.


O conceito de atuação supletiva deve ser analisado com parcimônia, uma vez que o dano não aguarda a chegada do órgão ambiental competente. Supletivo, segundo o novo Dicionário Aurélio, é o “que supre ou se destina a suprir”. Se há perigo iminente de dano a uma Unidade de Conservação, está autorizada a atuação supletiva do IBAMA, podendo-se concluir que as medidas de precaução não foram aplicadas a contento. 


Diante da iminência de dano, o IBAMA não pode aguardar que o ICMBio seja chamado a atuar para, só então, diante da inércia deste, vir a agir. Raciocínio assim vai de encontro aos Princípios Constitucionais do Meio Ambiente e pode ensejar a responsabilidade civil do ente omisso. É que, ressalte-se, a responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva e pode decorrer de atos ilícitos e lícitos, bastando apenas que sejam comprovados os seguintes elementos: ação/omissão, nexo causal e dano.


A Constituição Federal garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, portanto, se malferido, deve ser reparado integralmente. E como se repara a extinção de uma espécie? O corte de uma árvore centenária? A secagem de um rio?


Entende-se, assim, que se estiver ao alcance do IBAMA evitar ou minimizar a degradação ambiental, mormente em se tratando de danos irreversíveis, cumpre-lhe atuar de pronto, independentemente de caracterizada a desídia do órgão ambiental originalmente competente.


Em suma, embora a omissão do ICMBio não possa ser identificada em abstrato, mas apenas no caso concreto, é possível concluir que os Princípios Constitucionais da Prevenção, em casos de danos concretos, e da Precaução, na hipótese de perigos eventuais, impõem o dever de agir para evitar qualquer lesão ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. O interesse é que haja a proteção ambiental e a mitigação de danos.


Com a aplicação do princípio da prevenção é possível prever as conseqüências de se iniciar determinado ato, prosseguir com ele ou suprimi-lo. O princípio da precaução determina que o ato potencialmente poluidor não seja praticado quando não se possam mensurar as suas conseqüências, no espaço ou no tempo, para o meio ambiente. Há incerteza científica não dirimida.


Como as duas autarquias estão autorizadas a fiscalizar e reprimir condutas lesivas ao meio ambiente, na eventualidade de haver dupla autuação contra o mesmo infrator e em função da mesma conduta ilícita, prevalece o auto de infração lavrado em primeiro lugar. Se a atuação supletiva do IBAMA teve por fundamento a iminência de dano e a inércia do ICMBio, futura autuação por parte desta autarquia caracterizará a sobreposição de competências e de sanções.


3. A fiscalização exercida pelo ICMbio abrange o entorno das Unidades de Conservação;


Todas as Unidades de Conservação devem dispor de um Plano de Manejo (art. 27, L 9985/2000)[1], elaborado no prazo de 05 anos a partir da criação da UC, cujo conteúdo deve abranger não apenas a área da Unidade de Conservação, mas também sua zona de amortecimento e seus corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas (art. 27, §1°, L 9985).


Art. 27. As unidades de conservação devem dispor de um Plano de Manejo.


§ 1° O Plano de Manejo deve abranger a área da unidade de conservação, sua zona de amortecimento e os corredores ecológicos, incluindo medidas com o fim de promover sua integração à vida econômica e social das comunidades vizinhas.”


Zona de amortecimento é o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade (art. 2°, inciso XVIII).


Esclareça-se que é atribuição do ICMBio a regulamentação das referidas áreas.


Art. 25. As unidades de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, devem possuir uma zona de amortecimento e, quando conveniente, corredores ecológicos.(Regulamento)


§ 1o O órgão responsável pela administração da unidade estabelecerá normas específicas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos de uma unidade de conservação.


§ 2o Os limites da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos e as respectivas normas de que trata o § 1o poderão ser definidas no ato de criação da unidade ou posteriormente.”


A fiscalização de uma área protegida não pode estar dissociada daquela exercida no respectivo entorno, sob pena de deixar desprotegida a própria Unidade de Conservação. “É perfeitamente compreensível que as dez unidades de conservação mencionadas não possam realizar plenamente seus objetivos, se não houver uma separação gradativa entre o meio ambiente antropicamente trabalhado e o meio natural. A expressão “zona de amortecimento” é um espaço destinado a diminuir ou enfraquecer os efeitos das atividades existentes na área circundante de uma unidade de conservação” (MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito Ambiental Brasileiro, 2009, p. 840).


A zona de amortecimento e a respectiva unidade de conservação devem ter atividades que coexistam harmonicamente, pois o meio ambiente não se administra contra os vizinhos ou contrariamente as suas necessidades. Neste sentido, a própria Lei n.° 9.985/2000 prevê que as normas sobre a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento e dos corredores ecológicos serão estabelecidas pelo órgão responsável pela administração da unidade (art. 49, §1°).


Também não podem ser esquecidas as Zonas Circundantes, conceito trazido pela Resolução CONAMA n° 13/90.


Art. 2° Nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota, deverá ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental competente.


 Parágrafo único. O licenciamento a que se refere o caput deste artigo só será concedido mediante autorização do responsável pela administração da Unidade de Conservação.”


Então, ao impor regras a serem obedecidas no entorno de uma Unidade de Conservação, o ICMbio, autarquia federal responsável pela administração dessas áreas legalmente protegidas, deve fiscalizar-lhe o cumprimento, aplicando, quando for o caso, a sanção correspondente.


Para a proteção das unidades de conservação, cabe ao Instituto Chico Mendes o exercício do Poder de Polícia não apenas na área inserida na UC, mas também em sua zona circundante e de amortecimento, as quais figuram como imprescindíveis à consecução das finalidades das áreas protegidas.


A fim de dissipar quaisquer dúvidas, o art. 36 da Lei do SNUC impõe à entidade administradora da UC a obrigação de “autorizar” o licenciamento quando o empreendimento afetar unidade de conservação ou sua zona de amortecimento. Assim, malgrado não deter competência para conceder licença, o ICMBio também exercerá seu poder de polícia no procedimento de licenciamento ambiental, tanto sobre a Unidade de Conservação quanto em face da respectiva Zona de Amortecimento e Circundante.


Art. 36. Nos casos de licenciamento ambiental de empreendimentos de significativo impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente, com fundamento em estudo de impacto ambiental e respectivo relatório – EIA/RIMA, o empreendedor é obrigado a apoiar a implantação e manutenção de unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral, de acordo com o disposto neste artigo e no regulamento desta Lei. (…).


“§ 3o Quando o empreendimento afetar unidade de conservação específica ou sua zona de amortecimento, o licenciamento a que se refere o caput deste artigo só poderá ser concedido mediante autorização do órgão responsável por sua administração, e a unidade afetada, mesmo que não pertencente ao Grupo de Proteção Integral, deverá ser uma das beneficiárias da compensação definida neste artigo.”


4. Conclusão


Face às razões expostas, conclui-se que a competência do IBAMA para fiscalizar Unidades de Conservação Federais e respectivas Zonas de Amortecimento e Circundante é supletiva, ou seja, está condicionada a que a autarquia federal competente (ICMBio), por qualquer razão injustificada, deixe de atuar quando deveria. A supletividade, todavia, há que ser analisada caso a caso e sopesada quando em confronto com os princípios da prevenção e da precaução. Na dúvida, o IBAMA deve agir e posteriormente solucionar, no caso concreto, o conflito positivo de competência.


 


Nota:

[1] Plano de Manejo é o “documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade” (art. 2°, XVII da Lei 9.985/2000). 


Informações Sobre o Autor

Mariana Wolfenson Coutinho Brandão

Procuradora Federal em exercício no IBAMA-Sede. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola de Magistratura de Pernambuco – ESMAPE


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