Resumo: O presente ensaio tem por finalidade realizar uma análise da tutela jurisdicional sob diferentes aspectos, enfocando esse objeto a partir de múltiplos critérios classificatórios. Tendo-se constatado que a tutela jurisdicional vem sendo abordada de modo fragmentado pela doutrina, mostra-se relevante reunir as diferentes classificações possíveis e chamar a atenção para a complexidade da tutela jurisdicional, que não pode ser bem compreendida exceto se examinada como um todo. Assim, utilizando diversos critérios e destacando a complementaridade entre eles para chegar a uma visão mais ampla e congruente, pretende-se dar uma ideia geral acerca desse objeto de estudo, enfocando para tanto as tutelas cognitiva, executiva, preventiva, repressiva, antecipatória, final, urgente, provisória, temporária, definitiva, cautelar, satisfativa, específica, etc.
Palavras-chave: processo – tutela jurisdicional – critérios classificatórios.
Sumário: Introdução. 1. Relação entre direito material e processo: a busca da efetividade na reestruturação das formas de tutela jurisdicional. 2. Espécies de tutela e técnicas processuais. 3. Classificação da tutela jurídica quanto à pessoa ou autoridade que a exerce. 4. Classificação tradicional da tutela jurisdicional. 5. Critérios classificatórios da tutela jurisdicional relacionados com o fator tempo. 5.1. Anterioridade em relação ao dano ou à ilicitude.5.2. Momento processual em que a tutela é concedida. 5.3. Urgência. 5.4. Duração da tutela prestada. 6. Critério classificatório relativo à imediatidade ou mediatidade da atuação sobre o direito visado.
7. Outros critérios classificatórios.7.1. Identidade entre a tutela jurisdicional concedida e a situação que decorreria da não violação do direito.7.2. Titularidade do direito protegido. 7.3. Critério funcional (valores básicos perseguidos). Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Impressionante o desenvolvimento do estudo sobre a tutela jurisdicional atualmente. Também o número de critérios sugeridos para classificá-la chama a atenção, destacando as várias facetas sob as quais pode ser examinada. Considerando, porém, que cada autor costuma restringir sua abordagem a um único aspecto, a imagem que fica é a de classificações avulsas, pretensamente auto-suficientes, sem qualquer preocupação no sentido de organizá-las em conjunto.
Mais do que isso, como forma de justificar a análise da tutela jurisdicional sob um único ângulo, geralmente o autor da classificação, não tendo elementos suficientes para negar a validade das categorias obtidas segundo critérios diversos, opta por de certo modo incluir essas espécies de tutela na sua classificação, identificando-as com as modalidades de tutela que são o objeto principal da categorização por ele próprio formulada.
A simplificação aludida pode ser demonstrada a partir do seguinte exemplo: escolhendo como critério classificatório a urgência, seria possível distinguir tutela antecipatória e cautelar (ambas normalmente vistas como se fossem urgentes) das demais formas de tutela jurisdicional; o próximo passo seria afirmar que a tutela preventiva deve ser enquadrada no gênero tutela de urgência; depois se começa a diferenciar as espécies integrantes do mesmo gênero, e assim conclui-se que a tutela antecipada distingue-se da cautelar porque a primeira tem natureza satisfativa, enquanto a segunda é meramente assecuratória.
Não é necessário prosseguir na análise do exemplo para evidenciar a generalização efetuada. Ora, poderiam tantos gêneros, espécies e sub-espécies decorrer da aplicação de um único critério classificatório (urgência)? Não estariam sendo utilizados outros critérios na medida em que a classificação avança? O mais grave, contudo, é a falsa impressão de que as modalidades de tutela classificadas segundo aspectos diversos poderiam ser identificadas umas com as outras (exemplos: antecipação de tutela = preventiva = satisfativa; cautelar = preventiva = assecuratória), como se os critérios fossem iguais.
A fim de proporcionar exame mais completo da tutela jurisdicional, no entanto sem incidir em generalizações que deturpem a classificação, entendemos que a única solução possível é evidenciar a existência de critérios diversificados, propondo que a categorização seja realizada segundo cada um deles, em separado. Mas é necessário prosseguir: de nada adiantaria obter dezenas de classificações aleatórias; é preciso que as espécies de tutela classificadas de acordo com critérios distintos sejam somadas para que se obtenha uma caracterização mais completa e ao mesmo tempo mais específica da tutela jurisdicional. Em outras palavras, é fundamental que seja ressaltada a noção de complementaridade entre os resultados obtidos a partir de cada classificação, pois um mesmo objeto pode ser analisado sob diferentes ângulos.
Talvez um exemplo alheio ao direito facilite a compreensão do acima exposto: para definir e caracterizar os seres humanos, bastaria classificá-los apenas segundo a cor da pele, ou somente de acordo com o sexo, a altura, o peso ou a cor dos cabelos? A resposta obviamente é negativa. A caracterização do ser humano deve levar em conta todos esses aspectos, além de muitos outros não mencionados acima. Inquestionavelmente será incompleta a classificação que tome por base exclusivamente um desses aspectos. De outra parte, contudo, não é possível realizar a classificação segundo todos os critérios de uma só vez. É necessário abordar cada critério de forma separada num primeiro momento, para somente depois somá-los e chegar a uma descrição capaz de abranger todas as facetas do sujeito analisado.
O mesmo ocorre com a tutela jurisdicional. Sua caracterização não pode ficar restrita a um único aspecto.
Diante disso, entendemos que seria de fundamental importância defender uma classificação mais abrangente da tutela jurisdicional, enfocando tanto as características intimamente ligadas com o próprio direito material cuja proteção é buscada quanto aquelas de natureza técnica, processual.
Será tortuoso, porém, o caminho a ser percorrido para cumprir a tarefa assumida e alcançar o resultado já traçado. O presente trabalho é essencialmente crítico, destinado à reformulação das classificações habitualmente realizadas por ilustres processualistas, especialmente os brasileiros.
Convém aqui ressaltar uma limitação imposta ao estudo com o objetivo de torná-lo mais claro: embora os critérios sugeridos sejam aplicáveis à tutela jurisdicional prestada em qualquer lugar do mundo, as críticas dirigidas às classificações predominantemente aceitas devem tomar como base um espaço específico. No Brasil, por exemplo, a tutela antecipatória pode ser concedida em função da urgência ou da evidência, enquanto outros Países podem limitar sua concessão apenas a uma dessas hipóteses. Em se tratando de um estudo fundamentalmente crítico, foi inevitável restringi-lo ao contexto brasileiro pelo menos nesse aspecto, o que não necessariamente impede que os critérios propostos sejam aplicados em ordenamentos distintos. Em outros termos: o aspecto “destrutivo” do presente trabalho se circunscreve ao panorama brasileiro, enquanto o “construtivo” visa a transcender esses limites. Não podemos negar que toda proposta reformuladora pretende destruir um pouco do antigo e substituí-lo por algo novo. A sinceridade não nos permite ocultar essa circunstância.
Tendo, então, como linha fundamental, a demonstração dos equívocos ao nosso ver cometidos na grande maioria das classificações da tutela jurisdicional e, principalmente, a sugestão de critérios classificatórios capazes de proporcionar uma reformulação organizada, optamos por iniciar o estudo abordando a relação entre o direito material e o processo, destacando especialmente a importância da efetividade da jurisdição na reestruturação das formas de tutela jurisdicional.
Na seqüência, passamos a delimitar de modo mais preciso o objeto do estudo, adotando classificação da tutela jurisdicional em sentido amplo e diferenciando-a das demais formas de tutela jurídica, que não integram o presente trabalho.
O próximo passo é o exame da classificação tradicionalmente realizada acerca da tutela jurisdicional, seguida naturalmente das críticas a que está sujeita e da propositura de critérios que entendemos mais adequados para a categorização, sempre enfatizando a complementaridade entre eles e o caráter meramente exemplificativo do rol apresentado.
1. Relação entre direito material e processo: a busca da efetividade na reestruturação das formas de tutela jurisdicional
Toda e qualquer lesão ou ameaça a direito pode ser levada à apreciação do Poder Judiciário, conforme dispõe o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal. Somada essa garantia a outros princípios também de estatura constitucional, como o contraditório, a ampla defesa, a igualdade e o due process of law, entre tantos outros, é possível perceber que, quando não solucionados espontaneamente os conflitos de interesses, a resolução dos mesmos dependerá: em primeiro lugar, da iniciativa por parte dos indivíduos, autoridades ou coletividades interessados ou responsáveis pela proteção dos direitos violados ou ameaçados, assim desencadeando a atuação do órgão judicial competente para resolver o litígio; a partir de então, tem início o processo, meio através do qual a lide será exposta e debatida, as alegações serão ou não comprovadas, até que ao final se obtenha uma solução imparcial para o conflito. Convém lembrar, ainda, que muitas vezes a atividade meramente cognitiva exercida pelo julgador (acertamento do direito) é incapaz de satisfazer por completo o respectivo titular, fazendo-se também necessárias atividades voltadas a alterar a situação fática existente, com a realização de atos materiais capazes de interferir no mundo sensível.
Evidente que, para oferecer às partes julgamento justo, dotado de máxima certeza e segurança jurídica, é necessário tempo, seja para possibilitar a contraposição de argumentos entre as partes, seja para produzir as provas indispensáveis, seja ainda para que o juiz possa estudar o caso adequadamente, com ampla análise das questões fáticas e dos aspectos jurídicos, assim oferecendo decisão que solucione corretamente o litígio e restabeleça a paz social de forma definitiva.
De outra parte, em várias ocasiões a demora do Poder Judiciário na resolução do conflito pode significar verdadeira denegação de justiça[1], tal a iminência (a) de que o direito seja (ou continue sendo) violado ou (b) de que se torne impossível a reparação, restauração, ressarcimento do dano já ocorrido, em função do desaparecimento das condições materiais necessárias para tanto.
O Estado, ao proibir que a tutela dos direitos seja exercida de forma direta pelos seus titulares (salvo em hipóteses bastante peculiares), obrigatoriamente assume, em contrapartida, o dever de oferecer respostas adequadas a todas violações ou ameaças a direitos materiais, o que é feito através do processo. Conseqüentemente, o sistema processual precisa estar aparelhado com mecanismos aptos a proporcionar, tempestivamente, a prevenção e a reparação (lato sensu) de qualquer espécie de lesão ou ameaça a interesses juridicamente protegidos[2].
Se por um lado o tempo é elemento essencial à obtenção de decisão segura e justa, por outro a demora em resolver o litígio freqüentemente causa perigo de que, antes da decisão definitiva, se consume a ilicitude, o dano, ou ainda o perecimento ou a destruição do objeto visado, a dilapidação do patrimônio que serviria como garantia do credor, etc. Surge, então, o conflito entre dois valores básicos assegurados por nosso ordenamento, a segurança jurídica e a efetividade da jurisdição, fenômeno de tensão que Teori Albino Zavascki define de forma precisa:
“O decurso do tempo, todos sabem, é inevitável para a garantia plena do direito à segurança jurídica, mas é, muitas vezes, incompatível com a efetividade da jurisdição, notadamente quando o risco de perecimento do direito reclama tutela urgente. Sempre que se tiver presente situação dessa natureza – em que o direito à segurança jurídica não puder conviver, harmônica e simultaneamente, com o direito à efetividade da jurisdição – ter-se-á caracterizada hipótese de colisão de direitos fundamentais dos litigantes, a reclamar solução harmonizadora. Ora, a harmonização – porque supõe pluralidade de elementos a serem harmonizados – não pode se dar, simplesmente, à custa da eliminação de um dos direitos colidentes. Isto não seria uma solução harmonizadora (conciliadora, congraçadora, conformadora) dos elementos em conflito, mas sim uma solução de desarmonização, se assim se pode dizer, pois equivaleria a excluir do sistema jurídico, como se dele não fizesse parte, um dos direitos conflitantes”.[3]
Durante muito tempo, contudo, a atenção do legislador manteve-se focada apenas no primeiro desses valores, sob o argumento de que para conferir maior efetividade aos direitos através do processo seria necessário diminuir drasticamente o grau de segurança jurídica por ele proporcionado. Esse temor foi suficiente para manter, ao longo de anos, o desequilíbrio entre tais direitos fundamentais conflitantes, invariavelmente concedendo preponderância à segurança em detrimento da efetividade.
Mais recentemente, porém, os operadores do direito perceberam que a falta de efetividade do processo também seria causa de incerteza, de insegurança jurídica, uma vez que a parte vitoriosa não saberia se a satisfação de seu direito seria possível de fato, muito menos se a conseqüência prática visada seria realizada em tempo hábil, proporcionando o resultado esperado enquanto o mesmo ainda tivesse alguma utilidade e importância para o respectivo titular.
Constatada essa interdependência, bem como a necessidade de compatibilização entre os valores da efetividade e da segurança jurídica, alterou-se o centro das atenções no processo civil brasileiro, iniciando-se em 1994 verdadeira “onda reformadora”[4] destinada a conferir maior efetividade ao processo, tudo em conformidade com uma nova leitura do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. A ponderação envolvendo os valores em conflito ganhou o devido espaço, assim evitando que qualquer deles restasse suprimido pelo excessivo cuidado com a observância do outro.
Para viabilizar que a efetividade da jurisdição alcançasse estágio equivalente àquele em que a segurança jurídica já se encontrava, foi indispensável a criação de novas técnicas, de mecanismos capazes de proporcionar a concessão da tutela em menor tempo e também de assegurar maior identidade entre o resultado do processo e a situação que decorreria da obediência espontânea à ordem jurídica material[5]. Em contrapartida, igualmente foram concebidos mecanismos destinados a assegurar que a preocupação em evitar os transtornos gerados pela demora do processo e ainda viabilizar a prestação de tutela específica não acarretassem insegurança jurídica. O processo assumiu verdadeiramente sua condição de instrumento capaz de proporcionar a realização concreta do direito material, procurando oferecer tutela adequada às mais variadas situações protegidas, em abstrato, pelas normas jurídicas substanciais. A necessidade de alteração do instrumento diante das modificações ocorridas no plano do direito material, ao qual efetivamente aquele deveria servir, tornou-se evidente.
Enfim, nos últimos anos inúmeras formas de tutela jurisdicional foram desenvolvidas em nosso País, com o objetivo de que o processo passasse a ser um instrumento cada vez melhor aparelhado para proteger e realizar, de modo preciso, adequado, útil, tempestivo e seguro, os direitos atribuídos pelas normas substanciais:
“A questão da efetividade do processo, pois, obrigou o processualista a pensar sobre tutelas jurisdicionais diferenciadas, isto é, tutelas adequadas às particularidades das situações de direito substancial. Nessa linha de grande importância é a pesquisa de procedimentos que permitam a realização do direito material mediante cognição sumária, pois não é mais possível a confusão entre justiça e certeza”.[6]
A abundância de novas espécies de tutela jurisdicional, porém, dificultou a exata compreensão do alcance de cada uma delas, assim como a classificação criteriosa de tais espécies, conforme as características que lhes são próprias. A doutrina procurou incluir as espécies de tutela recentemente criadas em categorias já existentes, analisando as novidades segundo critérios rígidos estabelecidos para uma realidade ultrapassada.
Em síntese, ao invés de reformular a classificação da tutela jurisdicional, adaptando-a aos novos tempos e aos novos mecanismos surgidos, a opção adotada foi no sentido de interpretar essas novas espécies de tutela de maneira que a classificação antiga não precisasse ser modificada: foram desprezadas as características do objeto classificado, mas pelo menos assim a classificação tradicional manteve-se intacta, inalterada… Aliás, esse o ponto central do presente trabalho, que será aprofundado mais adiante, após breve análise da técnica processual no contexto da tutela jurisdicional.
2. Espécies de tutela e técnicas processuais
Este capítulo foi inserido no trabalho em virtude de recente lançamento da obra “Técnica Processual e Tutela dos Direitos”, de Luiz Guilherme Marinoni[7]. O livro mencionado trata da tutela jurisdicional de forma bastante atualizada e precisa, traços sempre marcantes nas obras do referido autor paranaense.
Não é nossa pretensão combater estudo de tão renomado processualista. Em primeiro lugar, porque nos faltaria qualificação, experiência e talento para tanto. Em segundo, porque as dimensões imaginadas para o presente trabalho não permitiriam combater adequadamente os argumentos expostos brilhantemente pelo professor Marinoni ao longo de aproximadamente setecentas páginas. Em terceiro, porque, ao nosso ver, trata-se de obra importantíssima para o processo civil brasileiro, por trazer à tona a discussão acerca da tutela jurisdicional em termos atualizados e inovadores, compatibilizáveis com as modificações alusivas à classificação da tutela jurisdicional sugeridas no presente ensaio.
Pretendemos apenas defender as idéias aqui expostas contra certos argumentos lançados pelo professor paranaense, que interpretados de forma estrita poderiam arruinar a classificação da tutela jurisdicional proposta neste trabalho. Em outras palavras: tentamos demonstrar a razoável compatibilidade entre o presente ensaio e a obra mencionada, cuja relevância é inegável.
Dois são os pontos que entendemos possam aparentar conflito entre as exposições: o primeiro, relativo à própria classificação da tutela jurisdicional; o segundo, alusivo à diferenciação entre técnica processual e tutela dos direitos. Pensamos, todavia, que ambos os pontos de aparente (ou “superficial”) divergência podem ser explicados conjuntamente. É o que faremos a partir de agora.
Luiz Guilherme Marinoni claramente sustenta que as espécies de tutela dos direitos estão previstas nas normas materiais, às quais o sistema processual deve servir, oferecendo mecanismos, técnicas capazes de realizar em concreto a situação juridicamente protegida em abstrato. Diante de tal raciocínio, somente uma classificação seria possível quanto à tutela dos direitos: aquela que levasse em conta exclusivamente o direito material atingido ou ameaçado. Todas as demais classificações que tivessem relação com a forma através da qual o processo realiza o direito substancial corresponderiam apenas a técnicas, e não a espécies de tutela.
Note-se, porém, que Marinoni diferencia técnica processual e tutela dos direitos (não tutela jurisdicional), o que já fica claro no próprio título de sua obra. Aliás, em determinada passagem, expressamente reconhece que a tutela jurisdicional é apenas uma dentre as várias espécies de tutela jurídica:
“A tutela jurisdicional, portanto, deve ser compreendida somente como uma modalidade de tutela dos direitos. Ou melhor, a tutela jurisdicional e as tutelas prestadas pela norma de direito material e pela Administração constituem espécies do gênero tutela dos direitos”.[8]
Analisada a matéria sob esse prisma, efetivamente poderíamos admitir que a antecipação da tutela, a provisoriedade da tutela concedida, a cognitividade, a executividade, a cautelaridade, etc. são meras técnicas criadas pelo processo, e não espécies de tutela dos direitos.
Entretanto, quando falamos em tutela jurisdicional, necessariamente realizada através do processo (e não em tutela de direitos, expressão mais abrangente, conforme já mencionado), não podemos ignorar a técnica como algo tão fundamental que chega a caracterizar (adjetivar) e a se confundir com a própria tutela, cuja prestação somente é viável através dos mecanismos processuais disponibilizados ao operador do direito[9]. O processo não é um instrumento vazio destinado a realizar direitos materiais, mas sim uma organização de técnicas apropriadas para concretizar esses direitos.
Cândido Rangel Dinamarco, ao definir “técnica”, expõe de forma clara essa interdependência entre o direito material e o processo:
“Técnica é a predisposição ordenada de meios destinados a obter certos resultados preestabelecidos. Toda técnica será cega e até perigosa se não houver a consciência dos objetivos a realizar, mas também seria estéril e de nada valeria a definição de objetivos sem a predisposição de meios técnicos capazes de promover sua realização”.[10]
Tomar apenas o direito substancial ameaçado ou violado como critério para classificar a tutela jurídica prestada pela via judicial (ou seja, a tutela jurisdicional) é medida radicalmente oposta à aceitação do processo como mecanismo autônomo, desvinculado do direito material. Todavia, também consiste em radicalismo, pois, para se contrapor ao posicionamento contestado, nega veementemente todas as constatações proporcionadas pela visão contrária, que, sob certo ponto de vista, igualmente gerou avanços.
O que propomos é uma classificação mais abrangente[11], incluindo tanto os aspectos relacionados com o direito material quanto os que possuem maior conotação técnica, por entendermos que todos eles são fundamentais para definir e distinguir as formas de tutela jurisdicional. Ou, melhor ainda: para não confundir espécies de tutela definidas segundo critérios diversos, sugerimos sejam realizadas várias classificações, cada uma delas embasada em um critério específico (alguns mais ligados ao direito material, outros mais intimamente vinculados à técnica utilizada).
Nosso objetivo, portanto, em nenhuma hipótese pode ser confundido com “intuito de dissociar ou de afastar processo e direito material”. Muito pelo contrário: procuramos demonstrar que não existe uma absoluta autonomia do processo, mas também não há uma dependência obrigatória entre ele e o direito substancial sob todos os aspectos, até mesmo porque o processo existe ainda quando o mérito (o próprio direito material afirmado) não é analisado.
Resta ainda uma última observação a ser feita quanto ao possível mal entendido previsto no parágrafo anterior: ao elaborarmos várias classificações diferentes, não sugerimos que a tutela jurisdicional seja classificada exclusivamente segundo algum desses critérios (que pode estar mais ou menos atrelado ao direito material), mas sim de acordo com todos os critérios possíveis, muitos dos quais inclusive foram omitidos neste trabalho, pois um rol completo não teria fim. Com a soma dessas classificações chegamos a uma caracterização muito mais precisa da tutela jurisdicional[12], ao mesmo tempo em que destacamos que essa espécie de tutela dos direitos necessariamente representa a associação entre técnicas processuais e direitos materiais a serem protegidos. Em outros termos: assim demonstramos de maneira mais enfática que a tutela jurisdicional necessariamente está vinculada não apenas ao direito substancial, mas igualmente às técnicas através das quais é prestada; quando inserida a palavra “jurisdicional” logo depois do vocábulo “tutela”, naturalmente estaremos fazendo alusão também à forma de prestação da tutela.
Sob esse ângulo, nos fica facultado ir além na classificação da tutela jurisdicional, escapando dos limites que Marinoni impõe a si próprio. Ao mesmo tempo, não ignoramos que muitas das espécies por nós classificadas consistem em verdadeiras técnicas, de certo modo neutras quanto ao direito material protegido[13], mas que nem por isso deixam de ser formas de realizá-lo adequadamente. É o caso típico da antecipação de tutela, que será analisado posteriormente.
Note-se, aliás, que as expressões “antecipação de tutela”, “tutela antecipatória”, “tutela cautelar”, “tutela provisória”, “tutela temporária”, entre tantas outras, são utilizadas pelos processualistas brasileiros a todo momento, inclusive pelo professor Marinoni[14]. E nenhuma dessas espécies de tutela tem vinculação imediata com o direito material protegido: são espécies de tutela jurisdicional classificadas segundo critérios estritamente técnicos, processuais.
Procuramos, portanto, enxergar além de um único critério, principal omissão em que incorrem os processualistas, ao nosso ver, quando classificam a tutela jurisdicional apenas em: “antecipatória ou final”; “cautelar ou satisfativa”; “preventiva ou sancionatória/repressiva”; “provisória, temporária ou definitiva”; “urgente ou não”; “específica ou não”. A análise conjunta, utilizando todos os critérios possíveis e imagináveis, fornece maior riqueza na definição e na caracterização da tutela concedida.
Por fim, necessário encerrar o presente capítulo fornecendo a resposta que entendemos mais adequada à seguinte afirmação: “mas Marinoni não ignora que a técnica processual também pode ser classificada (o que está implícito na própria menção a espécies como a antecipatória); então bastará que se proponha a classificar também as técnicas processuais e o resultado da soma das classificações poderá até mesmo coincidir com o obtido através do presente estudo”. Realmente, foi isso que pretendemos demonstrar: a relativa compatibilidade entre as exposições, apesar da nomenclatura e dos pontos de partida diversos. Apenas ressaltamos que incluímos as técnicas na classificação da tutela jurisdicional, pois esta última é prestada obrigatoriamente através do processo, instrumento destinado a realizar certos fins, é verdade, mas tudo de acordo com técnicas pré-estabelecidas, intimamente ligadas a esse resultado.
3. Classificação da tutela jurídica quanto à pessoa ou autoridade que a exerce
Inicialmente, convém destacar que o presente trabalho tem como objeto apenas a análise e a classificação da tutela jurisdicional, excetuadas, portanto, todas as demais espécies de tutela jurídica que, em decorrência da pessoa ou autoridade que a exerce, não podem ser chamadas de jurisdicional.
Assim, ficam excluídas do trabalho: (a) a autotutela, caracterizada pelo exercício direto pelo próprio titular do direito lesado ou ameaçado[15]; (b) a tutela autocompositiva, em que existe um acordo de vontades entre os sujeitos envolvidos e uma conseqüente conciliação dos interesses; (c) a tutela arbitral (Lei 9.307/96), exercida por um terceiro escolhido de comum acordo entre as partes, ao qual se atribui poder para decidir o litígio[16], e; (d) a tutela administrativa, exercida por órgãos da Administração, sem que o conflito seja submetido ao Poder Judiciário, como na hipótese de uma atuação preventiva da Brigada Militar impedindo a invasão de um imóvel, um furto, etc., ou ainda a tutela prestada pelas Juntas e Tribunais Administrativos[17].
A tutela jurisdicional, por sua vez, é a prestada pelo Estado-Juiz, através do processo[18]. Pressupõe a existência de um órgão dotado de poder suficiente para, quando provocado, impor suas decisões às partes litigantes, tendo como função aplicar as normas constantes do ordenamento jurídico mesmo contra a vontade de uma delas, valendo-se da imperatividade de suas decisões para colocar fim ao litígio, mantendo (ou restaurando) a paz social.
Embora não possua importância superior, a priori, em relação a qualquer das outras espécies antes elencadas, a tutela jurisdicional indubitavelmente apresenta-se como a última alternativa de resolução de conflitos jurídicos, devido à coercitividade atribuída às decisões emanadas do Poder Judiciário. E tal relevância adquire maior vulto quando a cultura da sociedade passa a desvalorizar as demais formas de tutela dos interesses colidentes.
O volume incontrolável de demandas judiciais, portanto, é reflexo da falência dos outros meios (consensuais, arbitrais e administrativos) de resolução de conflitos. A própria impossibilidade de exercício da autotutela também acarreta uma maior procura pelo Judiciário, pois o cidadão precisa recorrer ao Estado-Juiz em praticamente todos os casos nos quais houver resistência ou desrespeito aos direitos atribuídos pela ordem jurídica material, não lhe sendo facultado obter com base na força própria ou na astúcia as vantagens que por lei lhe são asseguradas.
É bem verdade que o exercício da tutela jurisdicional não exclui por completo essas outras formas de proteção dos interesses, sendo elas complementares. Assim, mesmo em Juízo, é estimulada, por exemplo, a conciliação entre os litigantes. Por outro lado, a própria lei faculta às partes a escolha de um terceiro imparcial (árbitro), a fim de que o mesmo resolva a questão discutida entre elas. Claro exemplo disso vem expresso no art. 24 da Lei 9.099/95, que estabelece a possibilidade de, não ocorrendo conciliação em sede de Juizados Especiais Cíveis, optarem as partes, de comum acordo, pelo juízo arbitral.
De qualquer modo, o espírito belicoso que impera na sociedade brasileira contemporânea freqüentemente impede a resolução dos conflitos através dessas formas simplificadas, fazendo-se necessária a intervenção do Poder Judiciário. Também a postura irresponsável por parte de muitos administradores públicos acarreta enorme crescimento no número de demandas, devido à grande quantidade de relações conflituosas envolvendo o Estado que poderiam ser (mas não o são) resolvidas em outras esferas, sem a participação do Judiciário.
Assim, embora o Estado insistentemente crie novos mecanismos de resolução dos conflitos e incentive a utilização desses meios alternativos, cada vez mais o Judiciário é chamado para agir em primeiro lugar, não mais como uma última e derradeira instância, a ser acionada apenas quando frustradas as demais espécies de exercício da tutela jurídica. Tal tendência é agravada pela circunstância de que o Poder Judiciário não pode se eximir de adotar as medidas necessárias para solução da lide, dessa forma acumulando número de processos incompatível com a estrutura existente.
4. Classificação tradicional da tutela jurisdicional
A doutrina clássica estabelece três formas de tutela jurisdicional, as quais foram adotadas pelo Código de Processo Civil de 1973, onde existe um Livro dedicado a cada uma delas.
A tutela cognitiva visa a superar uma crise de certeza a respeito do direito material, dizendo o que deve ser e eventualmente também estipulando sanção para o caso de descumprimento. Em se tratando de processo contencioso, é um meio de compor lide originada de pretensão contestada, segundo Francesco Carnelutti[19].
Tutela executiva, por sua vez, é aquela voltada à prática de atividades destinadas a alterar a situação fática existente, isto é, realizar faticamente o direito. Corresponde à interferência no mundo sensível por meio de atos materiais[20]. Em outras palavras, busca adequar o ser ao dever ser. De acordo com Carnelutti, representa um meio de compor lide originada de pretensão insatisfeita[21].
Já a tutela cautelar não busca satisfazer diretamente o direito material afirmado, mas sim garantir a efetividade futura da tutela de conhecimento ou de execução. Garante o resultado útil do processo, que poderia ser colocado em risco por causa do tempo necessário ao reconhecimento ou à realização de um direito provável, segundo a lição do professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira[22].
A classificação da tutela em cognitiva ou executiva tem como elemento central a natureza da atividade desenvolvida pelo órgão judicial, enquanto a cautelar é classificada por um critério diverso. Isto é: mesmo no processo cautelar a atividade jurisdicional será apenas cognitiva ou executiva. Nesse sentido a ressalva feita por Teori Zavascki em relação à classificação tradicional:
“O ponto mais questionável desta classificação, e que desperta as críticas mais vigorosas, é justamente o da inclusão, ali, da tutela cautelar. É que o critério diferenciador adotado, baseado na natureza da atividade jurisdicional, serve para distinguir a tutela cognitiva da executiva, mas não se presta para diferenciar das duas a tutela cautelar. Também no processo cautelar a atividade jurisdicional é somente de cognição e de execução”.[23]
Na mesma linha a crítica lançada por Calamandrei, demonstrando que a utilização de critérios diferentes torna incorreta a classificação[24], como também aconteceria se pretendêssemos classificar as pessoas em “homens, mulheres e europeus”[25]. Os seres humanos europeus são homens ou mulheres; a atividade desempenhada pelo órgão judicial no âmbito do processo cautelar é necessariamente de natureza cognitiva ou executiva.
A classificação tradicional, portanto, não se sustenta.
Tentaremos sempre, ao longo da explanação, trabalhar com critérios que nos permitam contrapor espécies de tutela, diferenciando-as totalmente. No caso da cognição e da execução, as atividades desenvolvidas pela autoridade judicial são essencialmente distintas, inconfundíveis: “dizer” e “fazer”, respectivamente. Isso não impede, contudo, que em um mesmo processo estejam presentes essas duas formas de tutela: a cada momento o juiz exerce um tipo de atividade, mas não é necessário realizá-las em processos diferentes.
Por outro lado, normalmente a cognição precede à execução, mas isso não ocorre em todos os casos de forma obrigatória. É claro exemplo disso a Execução de Título Extrajudicial, em que a atividade cognitiva mais intensa, via de regra, tem início com a oposição de Embargos, que é naturalmente posterior à penhora, ato de natureza executiva.
Cognição e execução, portanto, não devem ser consideradas como se sempre fizessem parte de fases distintas e sucessivas do procedimento, e sim como classes de atividade cuja predominância (de uma ou outra) poderá até se alternar na condução do feito. Analisando desse modo, isto é, tomando em consideração cada ato realizado pelo órgão judicial, é possível distinguir a respectiva natureza ainda quando atos de caráter executivo sejam praticados no chamado “processo de conhecimento”, assim como quando atos de caráter cognitivo sejam praticados no âmbito do “processo de execução”.
Resumindo, a classificação tradicional peca pela imprecisão: a tutela de conhecimento e a de execução são categorias decorrentes da aplicação de critério relacionado com a natureza da atividade desenvolvida pela autoridade judicial; já a classificação da tutela como cautelar é conseqüência da utilização de critério diverso, qual seja, o da imediatidade/mediatidade com que é atingido o direito material que a parte pretende seja efetivado. Para facilitar a compreensão deste último critério aludido e da própria classificação da tutela jurisdicional como um todo, deixaremos para momento posterior o exame das cautelares e de seu posicionamento dentro das diversas classificações que por nós serão propostas ao longo do trabalho.
5. Critérios classificatórios da tutela jurisdicional relacionados com o fator tempo
Considerando a permanente tensão entre segurança jurídica e efetividade da jurisdição, desencadeada principalmente pelo fator tempo, necessário à primeira e prejudicial à segunda, os critérios classificatórios ligados ao momento de concessão e à duração da tutela adquirem fundamental importância.
Assim, para oferecer tratamento mais detalhado da matéria, entendemos conveniente segmentar a análise da influência do tempo[26] sobre as formas de tutela jurisdicional, tomando como base quatro critérios diversos, que enfocam o fator temporal sob ângulos também diferenciados. É o que a seguir passamos a expor.
5.1. Anterioridade em relação ao dano ou à ilicitude
Segundo o critério ora em comento, podemos classificar a tutela como anterior ou posterior ao dano ou à ilicitude. Em regra geral, a tutela prestada com anterioridade pode ser também chamada de preventiva, em contraposição às tutelas repressiva, reparatória, ressarcitória, reintegratória e restauradora, que correspondem a atuações posteriores ao dano ou ao ilícito. Preferimos evitar, aqui, o uso da expressão “tutela sancionatória”. Tal opção foi adotada, em primeiro lugar, com a finalidade de impedir que a fixação de uma sanção para o caso de futuro descumprimento, que tem função obviamente preventiva (ameaça com o intuito de desencorajar o infrator potencial), fosse confundida com tutela sancionatória posterior ao dano ou à ilicitude. Além desse aspecto, entendemos que as palavras utilizadas, por serem mais específicas e começarem sempre pelo prefixo “re”[27], oferecem maior clareza à classificação, facilitando a exposição da matéria e, por conseqüência, sua compreensão. De qualquer modo, nada impede o uso da expressão tutela sancionatória, desde que observada a distinção supra[28].
Propositadamente deixamos de incluir na classificação acima sugerida a tutela de remoção do ilícito. Isso porque essa espécie de tutela apresenta uma peculiaridade: caracteriza-se por ser posterior ao ilícito, mas geralmente anterior ao dano. Considerando que o critério escolhido diz com a anterioridade em relação ao dano ou à ilicitude, mostrou-se necessário tratar da tutela de remoção do ilícito em separado, a fim de ressaltar essa característica que lhe é própria.
Diante do caráter instrumental do processo, jamais pode ser esquecida sua finalidade de proporcionar a efetiva realização do direito material cuja proteção é buscada judicialmente. O ordenamento jurídico indica condutas que devem ser seguidas. Não se limita a estabelecer sanções para a hipótese de descumprimento. Por razões óbvias, o mais perfeito funcionamento da ordem jurídica ocorre quando as condutas exigidas pelas normas são obedecidas de forma espontânea pelos indivíduos e pelas coletividades. Reduzir o direito à aplicação de sanções por descumprimento das normas significaria enxergar somente o aspecto patológico do fenômeno jurídico.
Ensina Barbosa Moreira:
“Se não é viável, ou não é satisfatória, a modalidade tradicional de tutela consistente na aplicação de sanções, quer sob a forma primária da restituição ao estado anterior, quer sob as formas secundárias da reparação ou do ressarcimento, o de que precisam os interessados é de remédios judiciais a que possam recorrer antes de consumada a lesão, com o fito de impedi-la, ou quando menos de atalhá-la incontinenti, caso já esteja iniciando”.[29]
Seguindo essa idéia, a prevenção contra o dano ou a ilicitude logicamente representa atitude mais consentânea com a finalidade primeira das normas, que é orientar comportamentos. A aplicação de sanções é necessariamente corretiva de situações patológicas, portanto subsidiária[30].
É verdade, porém, que muitas vezes a adoção de medidas preventivas é insuficiente para impedir a ocorrência de danos ou ilicitudes. Em outros casos, simplesmente é impossível prever essas conseqüências, razão pela qual somente percebemos que havia risco quando o dano já se consumou ou já foi cometido o ilícito. Essas dificuldades por muito tempo levaram os juristas a pensar na tutela dos direitos exclusivamente sob a ótica repressiva, reparatória, ressarcitória, etc., ainda mais quando a abordagem estava circunscrita à tutela jurisdicional, em virtude da lentidão que há muito caracteriza a atuação do Poder Judiciário.
Nos últimos tempos, contudo, percebeu-se uma preocupação cada vez maior com a efetividade do processo, isto é, com a verdadeira realização do direito material tal qual normatizado, não se contentando o Judiciário em simplesmente assistir, de braços cruzados, ao descumprimento dos preceitos legais, atuando apenas depois de já consumada a lesão. Ademais, em grande parte dos casos a atuação jurisdicional posterior é incapaz de restabelecer a situação existente antes do dano ou da ilicitude.
A tutela prestada de forma preventiva, então, ganhou importância, especialmente para proteger direitos não patrimoniais[31] e interesses coletivos ou difusos, que na hipótese de descumprimento dificilmente podem ser reparados de modo adequado[32]. Em outras palavras, admitiu-se de uma vez por todas que o processo deveria oferecer mecanismos capazes de “conduzir ao mesmo resultado que seria obtido se espontaneamente cumprida a norma de direito substancial ou realizada a ação de direito material”[33], e, para isso, melhor prevenir do que remediar.
Todavia, uma certa confusão envolvendo os critérios classificatórios tem levado inúmeros juristas a identificarem a tutela cautelar e a antecipação dos efeitos da tutela com a tutela preventiva[34]. Os critérios pelos quais se definem essas espécies de tutela jurisdicional, todavia, são essencialmente distintos. É verdade que em muitos casos as medidas cautelares e as antecipatórias possuem natureza preventiva, mas nem sempre isso ocorre. Como exemplo claro disso, podemos citar as antecipações de tutela concedidas com base no inciso II ou ainda no § 6º do art. 273 do Código de Processo Civil, que independem da comprovação do risco de dano iminente.
Podemos citar, ainda, a reintegração de posse concedida liminarmente como caso típico de tutela antecipada sem natureza preventiva, pois consiste em medida naturalmente posterior ao esbulho, objetivando devolver a posse ao respectivo titular[35].
A relevância da demonstração de que os critérios classificatórios não se confundem está relacionada com o exame dos pressupostos que podem ser exigidos para concessão da medida. Ora, admitindo-se que a tutela cautelar e a antecipatória são necessariamente preventivas, bastaria à parte contrária oferecer prova de que o dano/ilicitude já ocorreu para impedir a prestação de alguma dessas tutelas. Conforme exemplos vistos acima, tal exigência não encontra fundamento jurídico apto a justificá-la. De outra parte, a prova de que o dano já ocorreu não significa necessariamente a impossibilidade de que haja continuidade na prática da ação danosa, agravando suas conseqüências. Por óbvio, o processo deve disponibilizar meios também para atalhar esses prejuízos injustificadamente causados de forma continuada.
Devemos ressaltar, ainda, que a classificação quanto à anterioridade em relação ao dano ou à ilicitude também não se confunde com provisoriedade, temporariedade ou definitividade, que dizem respeito exclusivamente com a duração da tutela prestada[36]. A concessão de tutela definitiva, ao final do procedimento, após cognição exauriente, tanto pode ser posterior quanto anterior à ocorrência do dano ou da ilicitude, e neste último caso será preventiva. Aliás, esse o ideal de celeridade que deve ser perseguido pelo processo, evidentemente sem abandonarmos as garantias fundamentais para que se alcance uma decisão também segura e justa. Assim, não tendo sido ainda cometido o dano e não havendo iminência de que isso ocorra, é bem possível que a tutela final (e definitiva) seja suficiente para preveni-lo, desde que o processo não seja demasiadamente demorado.
Quando se toma como “momento-base” o dano ou a ilicitude, até mesmo a tutela antecipada (naturalmente provisória) pode ser classificada, em certas situações, como posterior. É o caso da liminar concedida em ação de reintegração de posse, já abordado acima. Os efeitos são anteriores em relação à decisão final, mas podem ser posteriores ao dano ou à ilicitude.
Analisando tais diferenças quanto aos critérios classificatórios fica evidente a insuficiência de uma única classificação da tutela jurisdicional.
5.2. Momento processual em que a tutela é concedida
Considerando que o processo é o meio através do qual se exerce a jurisdição, não há tutela jurisdicional antecedente a todo e qualquer processo. O que existe é antecedência no sentido de “concedida em outro processo anterior”. É o caso das cautelares preparatórias, que exigem a propositura da ação principal em um segundo momento (art.806 do CPC).
Quando não nos referimos a dois processos, mas a apenas um, somente podemos falar em tutela antecipada ou final. Em regra, como forma de garantir aos litigantes o exercício do pleno contraditório e da ampla defesa, a igualdade entre as partes, a obediência ao devido processo legal, etc., a tutela é concedida a final, quando já produzidas todas as provas e debatidos os argumentos relevantes. Exatamente por estar cercada de maiores garantias, a tutela prestada ao fim do procedimento, após mais profundo exame da matéria em litígio, oferece maior segurança jurídica.
A antecipação dos efeitos da tutela é providência excepcional, aceita quando haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, perigo esse que não seria afastado ao longo da demorada tramitação do feito caso a tutela somente fosse concedida a final. A segurança jurídica, então, cede maior espaço à efetividade, assim viabilizando a obtenção de um resultado útil através do processo, tarefa a que o Estado se obrigou quando tomou para si o monopólio da jurisdição.
Contudo, nem sempre será necessária a existência desse risco de dano (periculum in mora) para que os efeitos da tutela sejam antecipados. A propósito, o legislador brasileiro admitiu expressamente a antecipação da tutela em outras duas hipóteses, nas quais também se mostra adequada e conveniente a medida, embora não exista obrigatoriamente o receio de dano irreparável ou de difícil reparação. São os casos tratados no inciso II (abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu) e no § 6° (“quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso”), ambos do art. 273, do Código de Processo Civil[37].
No primeiro desses casos, o comportamento desleal e protelatório de uma das partes faz presumir esteja ela se aproveitando da demora na prestação jurisdicional para continuar gozando de benefício que teme não lhe seja assegurado quando do julgamento final. Em decorrência dessa presunção, e com o objetivo de desestimular tal comportamento, pode ser antecipada a concessão da tutela. Marinoni, com precisão, destaca a importância desse mecanismo:
“O sistema processual deve ser capaz de racionalizar a distribuição do tempo no processo e de inibir as defesas abusivas, que são consideradas, por alguns, até mesmo direito do réu que não tem razão. A defesa é direito nos limites em que é exercida de forma razoável ou nos limites em que não retarda, indevidamente, a realização do direito do autor.”[38]
No que tange ao § 6°, a justificativa para a antecipação dos efeitos da tutela consiste na inexistência de controvérsia em relação a uma parte dos pedidos. O dispositivo em pauta possui certa semelhança com o art. 334, inciso III, do CPC, que trata da dispensa de prova quanto aos fatos incontroversos. Em ambos os casos, há evidente economia processual, seja evitando a produção desnecessária de provas, seja atribuindo a tutela pretendida a quem indiscutivelmente faz jus a ela, até porque dispensável a instrução do feito para a decisão quanto a esse ponto.
Utilizando o critério classificatório em comento, podemos diferenciar duas sub-espécies de antecipação de tutela: a inicial e a intermediária. Sem dúvida, a denominação empregada poderia ser outra, mas esse é um aspecto irrelevante para o estudo que nos propomos a realizar. Basta aqui mencionar que a tutela inicial corresponde ao que poderíamos chamar de liminar[39] em sentido técnico e restrito, ou seja, a máxima antecipação dos efeitos da tutela[40]. De outra parte, chamamos de intermediária a tutela que é antecipada, mas não ao extremo como a inicial (ou liminar). Trata-se, portanto, de toda e qualquer tutela prestada antes do final do procedimento, exceto a que é concedida quando da primeira atuação judicial (in limine litis), que para oferecer maior detalhamento preferimos chamar de inicial ou liminar.
Contrapondo-se à tutela antecipada, temos aquela que se caracteriza por somente ser prestada ao final do procedimento. É o extremo oposto da liminar.
Importante ressaltar que a antecipação dos efeitos da tutela pode ocorrer até mesmo na sentença ou em grau de recurso: não finalizado por completo o procedimento, toda a tutela concedida será antecipatória[41]. Essa afirmação, aliás, evidencia o propósito visado quando da utilização do critério classificatório em pauta, permitindo que a tutela seja enquadrada sempre em alguma das espécies acima mencionadas, jamais em duas delas ao mesmo tempo.
Convém frisar, ainda, que não devemos confundir tutela final com tutela definitiva[42], por motivos que serão analisados adiante. Neste momento, o que se toma como base para a classificação é somente o instante do procedimento em que a tutela é concedida, sem qualquer preocupação atinente à sua duração.
Apenas oferecendo um exemplo do que afirmamos (e deixando para momento posterior o exame mais detalhado acerca da definitividade), a tutela cautelar pode ser prestada em qualquer fase do processo: início, meio ou fim. Em se tratando de processo cautelar, a tutela prestada ao final do procedimento não será definitiva, e sim temporária. Voltaremos a abordar o assunto quanto tratarmos do critério relacionado com a duração da tutela.
A cautelar, por outro lado, nada tem a ver com a tutela antecipada (liminar ou não). São espécies de tutela que não coincidem nem se contrapõem, pois classificadas segundo critérios diferentes. Enquanto a antecipatória é uma espécie de tutela definida pelo critério do momento processual em que é concedida, a cautelar é uma categoria determinada pela mediatidade com que determinado direito é protegido.
A tutela antecipada é neutra quanto à natureza da medida (“antecipação de uma tutela qualquer”), pois sua definição decorre da aplicação de critério que em nada se relaciona com o conteúdo do provimento, nem com a imediatidade ou mediatidade da atuação sobre o direito visado.
Diante do apontado acima, percebe-se que a própria tutela cautelar pode ser antecipada. É o que ensina Adroaldo F. Fabrício:
“(…) no processo cautelar, mais do que em outros, abre-se margem à emissão de provimentos liminares. Processo particularmente impregnado da preocupação com a urgência, abre espaço necessariamente maior à antecipação dos efeitos do provimento buscado, vale dizer, antecipação de cautela”.[43]
Basta constatar o momento do processo em que a cautela é concedida para verificar se houve antecipação dos efeitos da tutela. Assim, quando houver a concessão de liminar (máxima antecipação de tutela), será classificada como inicial. Sendo concedida no curso do processo, nem no primeiro ato do juiz nem ao final, será intermediária. Quando a concessão da tutela ocorrer no fim do processo, será final.
E são muitos os dispositivos referentes ao processo cautelar que prevêem a concessão de liminar[44]. Considerando esta como a máxima antecipação dos efeitos da tutela, razão nenhuma justifica a contraposição realizada por grande parte da doutrina: tutela cautelar e tutela antecipada não são incompatíveis, contrárias; são apenas diferentes, mas nada impede apareçam juntas num mesmo caso.
Fica fácil agora compreender o que significa aquilo que chamamos de neutralidade da tutela antecipatória frente à natureza do provimento que será antecipado. A antecipação de tutela é, por que não dizer, uma técnica que se presta a medidas de toda a natureza. E aqui reside, ao nosso ver, a principal incoerência dos doutrinadores que insistem em caracterizar a tutela antecipada como satisfativa, em contraposição à tutela assecuratória, cautelar[45].
A tutela antecipada somente se contrapõe à final, e não à cautelar. Isso porque a característica que diferencia essa espécie de tutela das demais é exatamente sua antecipação, ou seja, o fato de ser concedida antes do fim do processo.
Ao tentarmos demonstrar que não há incompatibilidade entre os conceitos de tutela antecipada e de tutela cautelar, bem como que tais espécies podem ser cumuladas (pois não são contrárias, mas sim diferentes), pretendemos também sustentar que, em tese, não há empecilho à antecipação da tutela cautelar com base na aplicação (subsidiária) do inciso II e do § 6º do art. 273 do Diploma Processual Civil, assim atribuindo maior efetividade também ao processo meramente acautelatório.
5.3. Urgência
Embora extremamente simples a classificação que agora passamos a expor, entendemos que o ponto merece tratamento em separado por duas simples razões: primeiro, porque o critério urgência não se confunde com qualquer dos outros que utilizamos neste estudo, possuindo características próprias; segundo, porque a expressão tutela de urgência tem sido comumente utilizada para significar gênero do qual seriam espécies a tutela antecipada e a cautelar[46], o que contraria frontalmente o posicionamento adotado no presente trabalho.
De início, importante retomar um ponto já abordado acima. A antecipação de tutela pode estar embasada, segundo o art. 273 do Código de Processo Civil, em três situações completamente distintas: a) no fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (inciso I); b) no abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu (inciso II), ou; c) na ausência de controvérsia quanto a um ou mais dos pedidos cumulados, ou parte deles (§ 6°). É possível incluir, ainda, um quarto fundamento para a antecipação dos efeitos da tutela (fora dos casos expressamente previstos no art. 273 do CPC), semelhante ao mencionado na letra “a”, mas contentando-se com o mero receio de que seja praticado um ato ilícito. Trata-se da chamada “tutela inibitória”, que dispensa a demonstração do risco de “dano”[47].
Na primeira hipótese, indiscutivelmente existe uma situação de urgência, a fim de evitar a ocorrência do dano. Idem em relação ao quarto caso citado, em que se busca impedir a prática de ato ilícito. Em ambas as situações, a urgência é condição necessária para a antecipação dos efeitos da tutela.
Nas hipóteses tratadas no inciso II e no § 6° do art. 273, ao contrário, não é exigida a demonstração da urgência para que haja a antecipação dos efeitos da tutela[48]. Basta que, além dos pressupostos constantes do caput, fique evidenciado também o abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu para ensejar a concessão da tutela antecipada. Da mesma forma, a ausência de controvérsia quanto a um ou mais pedidos cumulados (ou parte deles) é suficiente para justificar a antecipação, independentemente de qualquer temor ou risco. Apenas se pretende conferir, desde logo, a tutela jurisdicional àquele que indiscutivelmente é titular do direito cuja proteção foi buscada pela via judicial. O inciso II e o § 6º, portanto, não cabem dentro do gênero tutela de urgência, sendo mais adequado inseri-los no gênero denominado tutela da evidência[49].
Em nenhum desses dois últimos casos pode ser exigida a demonstração de urgência como condição para que a tutela seja concedida antecipadamente[50]: isso representaria a necessidade de atendimento cumulado, por exemplo, do inciso I e do inciso II do art. 273, interpretação que é desautorizada pela conjunção “ou” que liga as duas disposições.
Portanto, nem sempre a antecipação dos efeitos da tutela dependerá da urgência. A inclusão da tutela antecipada como espécie do gênero tutela de urgência, conseqüentemente, representa equívoco que pode ter efeitos práticos indesejados, gerando confusão quanto às condições exigidas para sua concessão.
É bem verdade que o inciso II e o § 6° do art. 273 têm sido pouco aplicados atualmente, bem como que os casos mais freqüentes de antecipação de tutela estão embasados na urgência. Todavia, entendemos que essa não é uma exceção que confirma a regra geral. Ao nosso ver, a urgência é critério totalmente distinto, que não possui relação alguma ao menos com parte dos casos em que é permitida a antecipação dos efeitos da tutela. Aliás, sequer podemos excluir a hipótese de os dispositivos mencionados no início deste parágrafo serem pouco aplicados exatamente em virtude da confusão gerada por essa classificação rotulada “tutela de urgência”. É possível que os juízes (até mesmo inconscientemente) deixem de conceder a tutela antecipada nesses casos em razão da falta de urgência, entendendo que não haverá risco de prejuízo ao autor se a tutela somente for concedida ao final.
Convém ainda mencionar uma das principais justificativas utilizadas pelos juristas que defendem a classificação da tutela segundo o critério urgência, colocando como espécies do mesmo gênero a tutela antecipada e a cautelar. Trata-se da modificação do conceito de urgência, que passou a ser empregado com o sentido de “risco de dano iminente ou de embaraço à efetividade da jurisdição”[51] para abranger também a hipótese constante do inciso II. Afora consistir em flagrante distorção do verdadeiro significado da palavra urgência, o conceito acima não é capaz de embasar a classificação da tutela antecipatória concedida com lastro no § 6º como urgente.
Entendemos que a classificação deve levar em conta as características das várias espécies de tutela jurisdicional, e não o contrário. Não é útil, muito menos necessário, incluir toda e qualquer antecipação de tutela na categoria urgente, assim como não se pode classificá-la sempre como preventiva, conforme já examinado anteriormente. Para expor de forma mais clara essas idéias, novamente fazemos uso de exemplo alheio ao direito: classificando os seres humanos de acordo com a cor de pele e o continente de origem (portanto utilizando dois critérios), podemos concluir que as pessoas se dividem, conforme o primeiro deles, em brancas, amarelas, negras, etc., e conforme o segundo, em europeus, asiáticos, africanos, etc. Embora a grande maioria dos europeus seja branca, enquanto os africanos costumam ser negros, está evidentemente incorreta a generalização no sentido de classificar toda pessoa nascida em determinado continente como se necessariamente possuísse a mesma cor de pele de seus conterrâneos.
É a classificação que deve se moldar às circunstâncias. Alterar o significado de palavras para assimilar situações diferentes sob um mesmo rótulo não contribui em absolutamente nada, apenas dificultando a compreensão pelo operador do direito, ou seja, exercendo função totalmente contrária àquela que deveria ser desempenhada pela classificação.
De outra banda, o gênero tutela de urgência incluiria também as cautelares. Quanto a estas, admitimos que o perigo de dano é condição indispensável para a respectiva concessão. Entretanto, uma observação se faz necessária. Ao nosso ver, urgência é algo mais do que perigo de dano ou de ilicitude: é a iminência desse perigo. Se a medida cautelar fosse urgente por natureza, sua concessão deveria ser sempre liminar, jamais se aguardando até a decisão final, sob pena de consumar-se o prejuízo a um dos litigantes.
Talvez um exemplo facilite a compreensão do que estamos dizendo: A e B discutem a propriedade de um automóvel. B, que está na posse do veículo, inscreve-se em um rali, pretendendo competir com o carro cuja propriedade é discutida. Diante da grande probabilidade de danos no automóvel na hipótese de ser utilizado para esse fim, A imediatamente move contra B demanda de natureza cautelar (seqüestro), embasada no art. 822, inciso I, do CPC, com o objetivo de evitar o uso do carro no rali. Suponhamos que essa competição automobilística esteja marcada para meses depois da inscrição no evento. Haveria motivo (entenda-se urgência) para a concessão de liminar? E mesmo se o demandado confirmasse, na sua defesa, o propósito de participar do rali, haveria necessidade de imediata concessão da tutela? Por outro lado, poderia o juiz extinguir o processo por falta do pressuposto urgência? Teria sentido exigir que A somente ingressasse em juízo às vésperas do rali, quando o perigo de dano fosse iminente? Entendemos que as respostas a todas essas indagações devem ser negativas, até porque o fundamento legal antes mencionado exige apenas o “fundado receio de rixas ou danificações”, não a comprovação de que tal risco seja iminente. Analisando o art. 797 do CPC, fica ainda mais óbvio que nem sempre as medidas cautelares são urgentes, pois: “Só em casos excepcionais, expressamente autorizados em lei, determinará o juiz medidas cautelares sem a audiência das partes”.
Um último argumento trazido pelos defensores da tutela de urgência como gênero, do qual fariam parte a tutela antecipatória e a cautelar, deve ser rebatido, ainda que de forma breve. Trata-se da conveniência, ou melhor, da justificativa apresentada para a reunião dessas duas espécies sob um mesmo gênero. Assim se posiciona o professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
“A constatação de identidade funcional das duas tutelas, com seu enquadramento como espécies do mesmo gênero, acarreta várias conseqüências práticas. Uma das mais importantes é a impossibilidade de o Juiz extinguir o processo sem julgamento do mérito se por mero equívoco a parte denominou a antecipatória de cautelar, ou vice-versa. O simples nome não apresenta qualquer relevância jurídica (…). Se a parte forneceu o fato jurídico consubstanciador da causa petendi e formulou pedido de segurança, o enquadramento jurídico constitui tarefa exclusiva do órgão judicial: iura novit curia”.[52]
Concordamos com praticamente todas as conclusões expostas no trecho acima reproduzido, isto é: a) o simples nome não apresenta qualquer relevância jurídica, motivo pelo qual o juiz não poderá extinguir o processo sem julgamento do mérito em razão de equívoco na denominação; b) o enquadramento jurídico do pedido e do fato consubstanciador da causa petendi compete ao julgador.
Discordamos, no entanto, da afirmação contida na primeira frase do trecho transcrito. Ao nosso ver, as conclusões repetidas no último parágrafo supra independem da constatação de uma identidade funcional entre essas espécies de tutela. Aliás, a própria lei processual autoriza que o juiz proceda dessa forma, sendo desnecessário demonstrar a igualdade de função para que se atinja esse mesmo resultado (art. 273, § 7º, do CPC).
5.4. Duração da tutela prestada
Quanto à sua duração, a tutela jurisdicional pode ser classificada em provisória, temporária ou definitiva. Tais espécies são tradicionalmente identificadas com as tutelas antecipatória, cautelar e final, respectivamente. Por tudo o quanto já foi dito acima, não é difícil entender que essa identificação realizada pela visão tradicional é parcialmente incompatível com a classificação que apresentamos neste trabalho. Passamos a expor, então, nosso posicionamento a respeito do tema.
Provisória é aquela que tende a ser substituída por uma tutela de mesma natureza. O exemplo clássico é a tutela antecipada, necessariamente vinculada à postulação de uma tutela final que a substituirá e terá natureza semelhante (se concedida).
Relembrando as distinções feitas anteriormente e enfocando a neutralidade da tutela antecipada quanto à natureza do provimento, convém novamente ressaltar a possibilidade de antecipação da tutela satisfativa e também da tutela cautelar, assecuratória. Portanto, da mesma maneira pode a tutela provisória ser satisfativa ou cautelar. Quando falamos em substituição por uma tutela de mesma natureza não especificamos qual. O que importa para definir a tutela como provisória é a identidade (ou ao menos semelhança) entre a medida concedida de forma antecipada e a que será ou não oferecida ao final do processo, obviamente condicionada à procedência do pedido.
Noutras palavras, em se tratando de processo exclusivamente cautelar, a tutela antecipada eventualmente concedida terá natureza cautelar, assecuratória; quando requerida a antecipação dos efeitos de uma medida satisfativa, esta será a natureza da tutela antecipada.
Para a classificação da tutela como provisória, não importa se a mesma possui natureza cautelar ou satisfativa: basta analisar se existe antecipação de uma tutela qualquer.
Temporária, por sua vez, é a tutela que futuramente será substituída por outra de natureza diversa. Tem como finalidade durar apenas por certo tempo, até que uma tutela de outra natureza seja prestada. Seus efeitos não se perpetuam.
Para diferenciar a tutela temporária da provisória, a doutrina tem utilizado exemplos bastante claros, plenamente compatíveis com nossa exposição[53]. O primeiro deles diz respeito ao andaime destinado a viabilizar a construção de um edifício, que tem utilidade apenas por tempo determinado, isto é, até a conclusão das obras envolvendo o prédio. Depois de pronto o edifício, inexiste razão para que o andaime seja mantido, pois já cumpriu integralmente sua função. Mais do que isso, o andaime não será substituído por outra máquina ou equipamento de mesma natureza. O exemplo em pauta representa a tarefa desempenhada pela tutela cautelar, caracterizada exatamente por ser temporária.
O mesmo não acontece com o elevador instalado no prédio. Ainda que durante a construção o elevador fosse mais simples, com menores requintes, já que utilizado apenas para transportar materiais de um andar para outro, ao final da obra não deixará de ter serventia. Talvez seja substituído por outro elevador mais moderno, mais luxuoso, com maior capacidade de carga, etc. Entretanto, o encerramento da construção não implica em perda da sua utilidade. Esse exemplo corresponde à função da tutela antecipada, provisória por natureza.
Ainda fazendo uso dos exemplos acima referidos, podemos demonstrar de forma mais clara o que quisemos dizer com a neutralidade da tutela antecipada e, por conseqüência, também da tutela provisória. No caso do elevador substituído por outro ao final da construção, temos a mesma situação que ocorre quando da antecipação de tutela: o elevador (tutela) existente de início será mantido ou substituído por outro de mesma natureza quando terminadas as obras (processo). O andaime, contudo, também pode ser provisório. Caso a construtora esteja à espera de um andaime mais seguro ou mais prático, ainda não disponível, poderá começar o trabalho com aquele que já possui. Quando receber o novo, porém, substituirá o antigo (ambos de mesma natureza).
Essas observações nos permitem reiterar a crítica em relação ao conceito que a doutrina comumente utiliza para definir a tutela provisória, como sendo destinada a durar somente até que uma tutela definitiva, concedida com base em cognição exauriente, a substitua. Entendemos que o conceito mais preciso deve fazer referência à substituição por uma tutela final, independentemente de ser definitiva ou temporária, pois também admitimos a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela cautelar.
A terceira e última espécie de tutela jurisdicional que decorre da classificação segundo a sua duração é a chamada tutela definitiva. Tal espécie é caracterizada basicamente por ser obtida com base em cognição exauriente, portanto capaz de fazer coisa julgada material[54].
O maior aprofundamento da cognição naturalmente proporciona que se alcance graus de certeza e de segurança jurídica mais elevados. Considerando que tais valores são básicos para a sustentação de qualquer ordenamento jurídico, há a exigência de que a tutela somente adquira a condição de definitiva quando submetida à cognição exauriente. Nesse sentido as disposições constantes dos §§ 2º e 4º do art. 273 do CPC, o primeiro deles vedando a antecipação de tutela quando houver perigo de irreversibilidade e o segundo expressamente autorizando que a tutela antecipada seja revogada ou modificada a qualquer tempo. O mesmo ocorre com a tutela cautelar, sobre a qual versam os arts. 807 e 808 do Diploma Processual Civil.
6. Critério classificatório relativo à imediatidade ou mediatidade da atuação sobre o direito visado
No presente capítulo abordaremos a diferenciação entre as medidas satisfativas e as cautelares. Esse, aliás, tem sido o critério predominantemente utilizado pela doutrina para contrapor a tutela antecipada e a tutela cautelar, posicionamento com o qual não concordamos[55].
Conforme já exposto, a antecipação dos efeitos da tutela é uma técnica que se presta aos mais diversos provimentos: pode ser concedida com finalidade preventiva ou repressiva, em casos urgentes ou não, etc. Também foi mencionada a possibilidade de antecipação tanto de medidas cautelares quanto de medidas satisfativas.
A imediatidade/mediatidade da atuação sobre o direito visado é, sem dúvida, critério suficiente para diferenciar a tutela cautelar da satisfativa. Entretanto, nenhuma relação possui com o momento processual em que a tutela é concedida, único critério capaz de caracterizar a antecipação de tutela.
De qualquer forma, mesmo que o critério da imediatidade/mediatidade da atuação sobre o direito visado seja irrelevante para traçar a distinção entre a tutela antecipada e a cautelar, não deixa de ter importância sob outros prismas, motivo pelo qual entendemos conveniente examiná-lo no presente trabalho.
Preliminarmente, contudo, devemos admitir que a escolha do critério ora em análise é, de certo modo, arbitrária. Poderíamos abordar as medidas satisfativas e as cautelares segundo um critério mais amplo, que abarcasse também outras espécies ao lado delas, na mesma classificação, tais como as medidas preparatórias (por exemplo: ação de prestação de contas para posterior cobrança) e as conservativas stricto sensu (notificação, protesto de título, etc.), cujas peculiaridades permitem a distinção entre qualquer uma delas e as demais.
O critério utilizado na classificação indubitavelmente constitui escolha de quem a elabora, opção que, é óbvio, deve ser realizada de forma técnica e razoável. Optamos, assim, por uma classificação restrita exclusivamente à abordagem da satisfatividade e da cautelaridade, segundo critério que denominamos imediatidade/mediatidade da atuação sobre o direito visado. Também a denominação está sujeita a críticas: alguns autores diferenciam tutela cautelar e tutela satisfativa com base no que chamam de referibilidade, palavra que entendemos bem empregada, mas não suficientemente clara prima facie quanto ao seu significado, especialmente por omitir a que se refere.
Feita essas ressalvas, agora podemos iniciar o exame do tema objeto do presente capítulo, que diz com as características básicas da satisfatividade e da cautelaridade.
Ao processo compete oferecer mecanismos adequados para solucionar a freqüente tensão entre segurança jurídica e efetividade, compatibilizando-as e impedindo a supressão de qualquer desses valores, ambos fundamentais para a existência de um Estado de Direito. Por vezes, a única maneira de viabilizar a efetividade dos direitos é proporcionar sua imediata fruição. Noutros casos, é possível garantir a efetividade de forma indireta, isto é, simplesmente assegurando a permanência de condições que no futuro permitam o acertamento ou a satisfação do direito. Em determinadas ocasiões, por outro lado, sequer são necessárias medidas destinadas a antecipar a fruição do bem visado ou a garantir uma possibilidade de futura certificação ou gozo, pois inexiste risco de que o objeto se deteriore, seja ocultado, que as provas desapareçam, ou ainda que o provável titular sofra outra espécie de prejuízo irreparável[56].
Chama-se de satisfativo o provimento que realiza de forma imediata o direito buscado pela parte, embora por vezes essa satisfação não seja total. Cautelar, ao contrário, é o provimento que apenas garante a possibilidade de futura fruição, sem desde já satisfazer/realizar o direito material visado.
Parte da doutrina entende que satisfatividade e cautelaridade fazem parte de um mesmo gênero de tutela jurisdicional, pois ambas serviriam para assegurar o resultado útil do processo, a primeira delas voltada aos casos em que o perigo à efetividade reside na demora para a fruição, enquanto a segunda teria como destino afastar a impossibilidade de futuro gozo do bem, nos casos em que desnecessária a imediata fruição.
Ao nosso ver, esse posicionamento pode ser explicado de duas formas: ao longo de muitos anos, as cautelares inominadas foram utilizadas no Brasil como único instrumento capaz de garantir o resultado útil do processo quando houvesse risco de que a demora para a fruição do direito, inerente à maioria dos procedimentos, causasse danos irreparáveis a alguma das partes. Considerando que no ordenamento jurídico nacional de tempos atrás não havia previsão relativa à antecipação de tutela satisfativa em termos genéricos, e sim apenas em casos específicos (como nas ações possessórias e na nunciação de obra nova), a doutrina e a jurisprudência viram-se obrigadas a aceitar a concessão de liminares satisfativas através de processos rotulados como “cautelares inominadas”. Para justificar essa opção, mostrou-se conveniente reunir as medidas antecipatórias de tutela satisfativa e as medidas cautelares num mesmo grupo, caracterizado genericamente por assegurar o resultado útil do processo; de outra parte, essa tendência de aproximar a tutela antecipada e a tutela cautelar, transformando-as em espécies do mesmo gênero, acabou por realçar as diferenças existentes entre elas. O principal fator utilizado pela doutrina para distinguir essas espécies foi a imediatidade/mediatidade da atuação sobre o direito material visado, caracterizando-se a antecipação de tutela pela satisfatividade do provimento e a cautelar pela atuação indireta, não satisfativa, meramente acautelatória.
A criação doutrinária, contudo, apesar da evidente boa intenção de seus defensores, distorceu a classificação da tutela jurisdicional. Primeiro, porque colocou lado a lado espécies de tutela decorrentes da utilização de critérios diversos, como já referido em capítulos anteriores deste trabalho. Segundo, porque habituou os operadores do direito a relacionar satisfatividade com tutela antecipada.
Ora, já vimos anteriormente que a antecipação diz respeito somente ao momento do processo em que a tutela é prestada, não levando em consideração o conteúdo ou a natureza da tutela concedida. Entretanto, o conceito de satisfatividade ficou, de certa forma, restrito à tutela antecipada, passando-se a ignorar o fato de que medidas satisfativas também podem ser concedidas ao final do processo[57]. Mais do que isso: tornou-se relativamente comum a definição de medidas satisfativas como aquelas que se destinam a assegurar o resultado útil do processo de forma direta, antecipando tutela que é capaz de afastar o risco decorrente da não fruição imediata do direito.
Portanto, entendemos que, embora a cautelar efetivamente se aproxime do verbo assegurar, a antecipação de tutela não possui relação necessária (e sim apenas eventual) com o verbo satisfazer. Além disso, a satisfatividade é característica marcante da tutela final definitiva, assim entendida toda aquela que não é provisória (antecipação de tutela) nem temporária (cautelar).
Sintetizando, podemos dizer que satisfativa é a medida que realiza exatamente o direito sobre o qual versa a demanda, de forma direta (mas não necessariamente integral), ao passo que a cautelar consiste em medida com conseqüências diversas daquela que a parte realmente deseja ver se tornar definitiva, limitando-se a assegurar a possibilidade de futuro gozo ou acertamento do direito cuja proteção se busca. Em outras palavras, a medida cautelar está condicionada à existência de uma pretensão satisfativa que corre perigo durante o tempo necessário para solução do litígio, ao contrário da medida satisfativa, que tem existência autônoma e sua duração tende a ultrapassar os limites do processo.
7. Outros critérios classificatórios
Impossível enumerar todos os critérios que podem ser utilizados para classificar a tutela jurisdicional. Além disso, toda classificação está condicionada aos critérios escolhidos por quem a formula.
Portanto, o rol de critérios classificatórios apresentado neste trabalho é obviamente exemplificativo. Não há nem poderia haver pretensão de oferecer um elenco exaustivo.
Passamos agora a examinar alguns outros critérios que nos parecem relevantes, além de demonstrarem claramente a diversidade entre os muitos que poderiam ser escolhidos, deixando ainda mais evidente o caráter ilustrativo da classificação apresentada.
7.1. Identidade entre a tutela jurisdicional concedida e a situação que decorreria da não violação do direito
Já ressaltamos que a tutela jurisdicional deve guardar a máxima correspondência possível com a situação ideal decorrente da espontânea e perfeita obediência às normas de direito substancial[58].
Entretanto, essa necessária correspondência nem sempre significa identidade, devido aos inúmeros elementos circunstanciais que dificultam (quando não inviabilizam) a prestação da tutela nos exatos termos que seriam proporcionados pelo cumprimento espontâneo da ordem jurídica material.
De acordo com o critério em análise, a tutela jurídica prestada pela via processual pode ser classificada em específica ou não específica.
Na primeira hipótese, a tutela jurisdicional (a) previne contra o descumprimento da lei, evitando a ocorrência da lesão e dessa forma impedindo a indesejada modificação das circunstâncias fáticas, ou ainda (b) recompõe integralmente a situação pretérita (alterada em descompasso com o ordenamento jurídico), proporcionando ao lesado uma condição idêntica àquela existente antes do dano ou da ilicitude.
No caso da tutela não específica, a resposta oferecida pelo Poder Judiciário proporciona ao tutelado uma situação fática diversa da que resultaria da estrita e integral obediência ao ordenamento.
Fazemos questão de sublinhar que a mencionada identidade se refere unicamente aos elementos fáticos, uma vez que sob o prisma jurídico-abstrato inexistem os entraves que dificultam a concessão da plena tutela dos direitos[59], tudo ficando restrito, no entanto, ao plano do verbo.
Voltando à tutela específica dos direitos, há basicamente quatro formas pelas quais pode ser atingida: 1) atitude espontânea do obrigado, que corresponde ao mais perfeito funcionamento do sistema jurídico, dispensando até mesmo a intervenção judicial; 2) ação preventiva voltada a coagir (e também incentivar) o sujeito a não descumprir a obrigação nem cometer qualquer ilicitude, normalmente exercida através de mecanismos como as astreintes ou mesmo a prisão civil (coerção indireta); 3) ação preventiva adotada contra o possível infrator do direito, no sentido de impedir diretamente a consumação do ilícito ou do dano, proporcionando as condições necessárias à efetiva proteção do direito em perigo; 4) provimento judicial substituindo a conduta de quem estaria obrigado a prestar algo ou emitir declaração de vontade, como ocorre na adjudicação compulsória.
Importante esclarecer, todavia, que esses meios através dos quais se busca a prestação de tutela específica não necessariamente levam a tal resultado. Por intermédio deles também é possível obter tutela que não coincida com a situação prevista pelas normas de direito material. Ou seja, tais medidas igualmente podem ser utilizadas para oferecer tutela que não se enquadre no gênero denominado tutela específica.
O ressarcimento pelo equivalente e a mera repressão stricto sensu (punição) são exemplos de casos em que a tutela concedida é caracterizada exatamente por não se identificar com o resultado preferencial visado pelas normas de direito substancial. E nada impede, por exemplo, que o ressarcimento pelo equivalente seja realizado de forma espontânea pelo causador do dano.
Convém frisar, ainda, que embora a tutela preventiva geralmente proporcione melhores resultados do que aquela prestada após a ocorrência do dano ou da ilicitude, essa conseqüência nem sempre se mostra verdadeira na prática. Isso porque a tutela preventiva não é obrigatoriamente específica, embora tenha esta como objetivo: em determinados casos, a medida de prevenção contra o dano ou ilicitude consiste em mera ameaça ao potencial infrator, freqüentemente incapaz de proteger de maneira adequada e efetiva o direito em perigo. Por outro lado, as medidas repressivas lato sensu podem corresponder à tutela específica visada, como acontece, por exemplo, numa simples restituição de coisa certa, numa reintegração de posse ou numa remoção do ilícito.
Para que dúvidas não subsistam, esclarecemos que de forma alguma estamos pregando a superioridade da tutela repressiva frente à preventiva. Muito pelo contrário: admitimos que, em tese, prevenir é melhor do que remediar. O que pretendemos enfatizar é que a análise da tutela jurisdicional exclusivamente sob um ângulo (seja o critério da anterioridade em relação ao dano ou à ilicitude, seja qualquer outro) não oferece elementos suficientes para que possamos afirmar a adequação e o alto grau de eficiência da tutela concedida. Para tanto, é necessário um exame mais abrangente, segundo os mais variados critérios, de forma simultânea, integrada e complementar.
7.2. Titularidade do direito protegido
A tutela jurisdicional pode ser classificada de acordo com a titularidade do direito protegido. Nesse sentido, o critério mais utilizado diz respeito ao número de titulares em favor dos quais é pedida a concessão da tutela, critério esse normalmente associado também à homogeneidade entre os interesses dos diversos titulares e à possibilidade de determinação do vínculo que os liga. Daí resulta a complexidade de tal classificação, que utiliza conjugadamente mais de um critério classificatório.
Num primeiro momento, a tutela jurisdicional pode ser dividida em dois grupos: a tutela de direitos subjetivos individuais e a de direitos subjetivos transindividuais (ou coletivos lato sensu). Ambas, todavia, comportam subdivisão: a primeira, em tutela de direitos individuais homogêneos e não homogêneos; a segunda, em tutela de direitos coletivos stricto sensu e de direitos difusos.
O exame dos mecanismos correspondentes a cada uma dessas espécies de tutela demandaria análise extremamente profunda, incompatível com os limites impostos a este trabalho, cujo objetivo primordial consiste em oferecer classificação organizada e sistemática da tutela jurisdicional, sem a pretensão de se aprofundar em temas tão específicos como o ora em apreço, sob pena de acabarmos nos desviando da linha que norteia o presente estudo.
Uma ressalva, no entanto, deve ser feita em relação à classificação em pauta. Tal crítica consiste em que a mesma aborda exclusivamente a tutela de direitos subjetivos, deixando de lado a tutela do direito objetivo, ou seja, da própria ordem jurídica abstratamente considerada, cuja proteção se torna cada vez mais efetiva através de mecanismos como o controle concentrado de constitucionalidade. A tutela do próprio direito objetivo não se enquadra na classificação ora exposta porque não leva em consideração a titularidade do direito protegido. A defesa da ordem jurídica abstratamente considerada alcança tanto direitos individuais como transindividuais, motivo pelo qual não é possível enquadrá-la em qualquer desses dois grupos.
Teori Albino Zavascki afirma que a evolução da tutela jurisdicional no sentido de oferecer mecanismos aptos para a proteção de direitos transindividuais e da própria ordem jurídica em abstrato representou aquilo que chama de “a primeira onda de modificações” do sistema processual brasileiro após a promulgação do Código de 1973, circunstância que por si só denota a importância da classificação segundo o critério ora em comento[60].
7.3. Critério funcional (valores básicos perseguidos)
Grande número de processualistas tem sustentado, enfaticamente, que a tutela antecipatória e a cautelar integram um mesmo gênero de tutela jurisdicional. Até agora pretendemos mostrar que não, isto é, que nenhum dos critérios acima apontados gera uma classificação que necessariamente inclua tais espécies de tutela numa mesma categoria.
Isso não significa, porém, a impossibilidade de escolher outro critério que satisfaça esse desejo de demonstrar proximidade entre a cautelar e a antecipação de tutela. Apenas destacamos nosso posicionamento no sentido de que a urgência não é o critério adequado para esse fim.
Entendemos menos relevante aproximar tais espécies de tutela nos dias atuais, pois dispomos de mecanismos que permitem a concessão da antecipação de tutela por outro caminho que não o do processo cautelar, única via antes existente, o que gerava a necessidade de destacar as semelhanças entre elas para justificar a utilização das “cautelares inominadas” com a finalidade de proporcionar medidas satisfativas antecipadamente.
De qualquer forma, é verdade que a concessão dessas duas espécies de tutela jurisdicional tem em vista, preponderantemente, garantir a efetividade da jurisdição. Sob tal prisma, ambas podem ser colocadas como espécies do mesmo gênero: a função constitucional exercida por qualquer delas realmente consiste em proporcionar efetividade ao processo, visto este como instrumento para a realização concreta dos direitos materiais abstratamente previstos nas normas.
Teori A. Zavascki identifica a função desempenhada pela antecipação de tutela e pela cautelar em virtude de ambas servirem como mecanismos de concretização e de harmonização de direitos fundamentais em conflito[61], mais especificamente para solucionar tensões entre segurança jurídica e efetividade jurisdicional. Nesse sentido, afirma:
“É o que claramente consta nos arts. 798 e 273 do Código de Processo Civil. Utilizando terminologia fluida e de conteúdo genérico (“fundado receio”, “lesão grave”, “difícil reparação”, “dano irreparável”, “abuso do direito de defesa”, “manifesto propósito protelatório”) aqueles dispositivos nada mais fazem senão descrever situações de possível confronto entre efetividade e segurança, abrindo campo para que o juiz formule, ele próprio, caso a caso, a solução mais adequada a manter vivos e concretamente eficazes os dois direitos fundamentais. Está aí a via judicial de criação da regra conformadora, convindo notar que, como parece intuitivo, tal via somente será legítima na inexistência ou na insuficiência de regra legislada.”[62]
Reproduzimos o trecho acima para justificar nossa parcial discordância em relação ao posicionamento adotado pelo professor Teori Zavascki. Pensamos que a antecipação de tutela e a cautelar somente são prestadas com o objetivo de conferir preponderância à efetividade da jurisdição, jamais com a finalidade precípua de privilegiar a segurança jurídica. Para garantir esta última, não é necessário se valer da tutela cautelar ou da antecipatória.
Se por um lado é verdade que a terminologia utilizada nos arts. 273 e 798 do CPC permite a criação de regra concreta compatibilizadora da efetividade com a segurança, por outro devemos reconhecer que essa mesma terminologia é o que confere maior liberdade ao juiz para conceder ou não a tutela cautelar ou a antecipatória. E mais: a prestação dessas tutelas somente ocorrerá quando se mostrar relevante privilegiar a efetividade da jurisdição, sem é claro suprimir a segurança jurídica, também fundamental ao Estado de Direito.
Essa é, inclusive, a interpretação que fazemos de outra passagem da obra do professor Teori:
“No mister de formular a solução conformadora, tem o juiz à sua disposição duas técnicas distintas, que utilizará segundo a natureza do caso concreto: a cautelar e a antecipatória. Com a primeira, assegura a efetividade do processo por meio de medida de garantia (medida genuinamente cautelar, fundada no art. 798 do CPC); com a outra, assegura essa efetividade mediante a antecipação total ou parcial de efeitos executivos da própria tutela definitiva pretendida na inicial (medida antecipatória, disciplinada no art. 273 do CPC)”.[63]
Concluímos, então, que a circunstância capaz de reunir as tutelas antecipatória e cautelar num mesmo gênero é a função constitucional por elas desempenhada, ambas tendo por objetivo garantir a efetividade da jurisdição, que é ameaçada pelo tempo necessário à prestação de uma tutela definitiva. Em outras palavras, tais espécies de tutela não são mecanismos de concretização e de harmonização de direitos fundamentais em conflito, e sim instrumentos destinados a conferir preponderância a um direito fundamental específico: a efetividade da jurisdição. São, portanto, instrumentos que apontam em um único sentido.
Por fim, importante ressaltar que outras espécies de tutela, classificadas segundo critérios diversos[64], também podem ser reunidas com a tutela antecipada e com a cautelar nesse mesmo gênero, pois, como já ressaltamos inúmeras vezes, as várias classificações sugeridas são complementares, não excludentes.
Conclusão
Procuramos demonstrar, inicialmente, a estreita ligação entre o direito substancial e o processo, este na condição de instrumento voltado à realização concreta daquele. De outra parte, também foi ressaltada a existência de uma relativa autonomia entre esses dois campos, seja porque o processo nem sempre realiza concretamente algum direito subjetivo material, seja porque este último pode ser satisfeito fora do processo, sem a necessidade de intervenção judicial.
Tais noções são relevantes para definir o que seja tutela jurisdicional e as classificações que acerca dela podem ser elaboradas. Antes disso, porém, é necessário inseri-la no universo mais amplo das formas de tutela jurídica, enfatizando que a tutela jurisdicional é uma espécie que se distingue das demais essencialmente pela autoridade que a exerce e pelo meio utilizado (processo).
Assim definida a tutela jurisdicional, fica evidente que sua classificação também deve levar em conta a forma pela qual é prestada, pois suas peculiaridades frente às demais espécies de proteção dos direitos dizem respeito exatamente ao modo através do qual é concedida a tutela. Entendemos, portanto, que a classificação da tutela jurisdicional deve considerar não apenas os resultados obtidos, mas também as técnicas utilizadas para tanto.
Todo e qualquer objeto pode ser classificado segundo vários critérios. No caso da tutela jurisdicional, é viável que tanto os aspectos técnicos quanto os mais intimamente ligados ao próprio direito material protegido sejam analisados com a finalidade de classificá-la, desde que não se pretenda misturar as espécies assim obtidas como se decorressem de classificação segundo critério único. Cada critério proporciona uma classificação. Há, contudo, uma relação de complementaridade entre as várias classificações possíveis, já que cada uma enfoca o mesmo objeto sob prisma diferenciado.
Exatamente essa idéia de insuficiência da classificação sob um único aspecto que nos levou a abordar tantos critérios distintos num mesmo trabalho, o que obviamente prejudica o desenvolvimento de estudo aprofundado e específico sobre cada um deles. O objetivo traçado, porém, consistia em oferecer noção mais ampla da tutela jurisdicional, não vinculada à classificação segundo um critério apenas, mas sim ressaltando a existência de múltiplos aspectos a serem examinados para definir com precisão a tutela mais adequada à solução de cada caso concreto.
A crítica dirigida à classificação tradicional não está limitada somente à inclusão da tutela cautelar como tertium genus, mas também à insuficiência do enfoque utilizado. Em outras palavras: quanto à classificação em si, deve ser ressaltado apenas que a cautelar não pode ser colocada como espécie distinta das tutelas cognitiva e executiva, por não decorrer da aplicação de um mesmo critério; mais inconcebível, porém, é pretender que a classificação tradicional seja suficiente para definir a tutela jurisdicional sob todos os aspectos relevantes, como se nenhuma outra categorização fosse possível.
Oferecendo um rol de critérios meramente ilustrativo, procuramos mostrar a importância de uma análise mais complexa, que considere a soma das muitas classificações possíveis, a fim de proporcionar análise mais detalhada da tutela jurisdicional.
A idéia de complementaridade entre as classificações ajuda também a perceber as diferenças existentes entre tutelas normalmente identificadas ou contrapostas pela doutrina. O campo de visão se alarga. É possível observar que as diferenças nem sempre implicam em contraposição, assim viabilizando a cumulação de espécies de tutela tradicionalmente (e, ao nosso ver, equivocadamente) definidas como contrárias.
Dessa forma, tutela cautelar e antecipação de tutela, por exemplo, deixam de ser diferenciadas pela imediatidade/mediatidade da atuação sobre o direito visado, como se tal critério fosse capaz de provocar a divisão da tutela jurisdicional em cautelar ou antecipatória, impedindo a visualização do óbvio: que a tutela cautelar pode ser antecipada. E não são poucas as hipóteses em que a possibilidade de concessão de liminar (entendida esta como a máxima antecipação dos efeitos da tutela) encontra-se expressamente prevista na legislação processual.
A classificação da tutela em antecipada ou final leva em conta somente o momento processual em que a mesma é concedida, pouco importando o conteúdo do provimento.
As medidas cautelares, diferentemente, são espécies caracterizadas pela mediatidade da atuação sobre o direito material visado, contrapondo-se apenas às medidas satisfativas, que realizam exatamente o direito sobre o qual versa a demanda, de forma direta.
Outro critério segundo o qual pode ser classificada a tutela jurisdicional é a urgência. Entendemos, porém, que os contornos do gênero tutela de urgência em hipótese alguma se confundem com a mera soma das espécies tutela cautelar e tutela antecipada. Afinal, existem inúmeras hipóteses legalmente previstas que autorizam a antecipação de tutela com base em outros fundamentos que não a urgência, além do que o pressuposto periculum in mora, necessário à concessão da tutela cautelar, não exige necessariamente a iminência de tal perigo (= urgência).
A tutela jurisdicional pode ainda ser classificada em anterior ou posterior ao dano ou à ilicitude, critério que não leva em consideração o momento do processo em que a tutela é concedida. Tal distinção deixa transparecer que a tutela preventiva não é necessariamente antecipatória, bem como que a própria tutela repressiva, ressarcitória, reparatória, reintegratória, restauradora (enfim, posterior ao dano ou ao ilícito) pode ser concedida no início, no meio ou no fim do processo.
Nenhum desses critérios, contudo, diz respeito à duração da tutela prestada. Sob esse ângulo, que possui íntima relação com a profundidade da cognição exercida, a tutela pode ser classificada em provisória, temporária e definitiva.
Também a titularidade do direito protegido pode ser utilizada com o objetivo de classificar a tutela jurisdicional, assim diferenciando a tutela de direitos individuais e a tutela de direitos transindividuais.
A identidade entre a tutela jurisdicional concedida e a situação que decorreria da não violação do direito igualmente representa critério importante para a análise da adequação da medida adotada pela via processual.
Enfim, todos os critérios arrolados (e muitos outros aqui omitidos) são essenciais para caracterizar de forma plena a tutela jurisdicional. Nenhum deles, contudo, é suficiente para atingir tal objetivo. São critérios distintos, mas complementares. Não é possível classificar a tutela jurisdicional de modo completo sem abordar o momento processual em que é concedida, a anterioridade ou não em relação ao dano/ilícito, a urgência, a duração da tutela, a imediatidade/mediatidade da atuação sobre o direito visado, a identidade entre a tutela jurisdicional concedida e a situação que decorreria da não violação do direito, a titularidade do direito protegido, a função constitucional exercida através da tutela, etc.
Por fim, importante registrar que a teoria exposta não está despida de interesse prático. É com base nela que o jurista poderá concretamente estabelecer a tutela mais adequada, justa, oportuna e útil em cada caso, desse modo assegurando a efetividade da jurisdição sem prejuízo da segurança jurídica, direitos fundamentais em tese conflitantes, mas que necessariamente devem ser compatibilizados na aplicação do direito em concreto, tudo com vistas à pacificação social.
Informações Sobre o Autor
Fabrício Dani de Boeckel
Mestre em Direito pela UFRGS. Graduado e Laureado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS. Professor do Curso de Direito da UNISINOS, nos níveis de Graduação e pós-graduação lato sensu