O princípio da insignificância na Justiça Militar

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Resumo: O presente trabalho buscará demonstrar além de como vem se dando a aplicação do Princípio da Insignificância na Legislação Penal Militar, também o posicionamento dos Tribunais Superiores, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal Militar.


Sumário: 1. O princípio da insignificância na justiça militar. 1.1 O Princípio da Insignificância e a lesão levíssima. 1.2 Princípio da Insignificância no delito de furto. 1.3. Princípio da Insignificância nos delitos de porte e uso de substância entorpecente.


1. O princípio da insignificância na justiça militar.


O Princípio da Insignificância foi evidenciado pela primeira vez por Claus Roxin em 1964, partindo do velho adágio latino minima non curat praetor (o Estado não cuida de coisas insignificantes).[1]


A tipicidade penal exige que haja ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos. Qualquer ofensa a esses bens não é suficiente para configurar um injusto penal típico.


Em certas condutas que se amoldam a determinado tipo penal, mas não apresentam nenhuma relevância material, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal, vez que o bem jurídico não chegou verdadeiramente a ser lesado.


Na inteligência do Princípio da Insignificância, conclui-se que nem toda conduta humana é dotada da lesividade necessária a merecer reprimenda penal.  Segundo tal princípio, faz-se necessária uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se quer punir e a drasticidade da intervenção estatal. Nullum crimen sine iniuria, ou seja, não há crime sem que haja o dano digno de reprovação ao bem jurídico[2].


A insignificância de determinada conduta não deve ser aferida apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas principalmente em relação ao grau de sua intensidade, ou seja, pela extensão da lesão produzida.[3]


O Princípio da Insignificância deverá estar ligado à convicção do julgador quando esse se deparar com a possibilidade de sua aplicação, ou balizar as infrações que possam levar em consideração o valor da culpabilidade, a conduta do agente e o dano, bem assim a mínima perturbação que este último causou à ordem social e a ausência de periculosidade.


Ressalte-se que o fato de determinada conduta configurar infração de menor potencial ofensivo, prevista no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal de 1988, não significa que tal conduta se amolde, por si só, ao Princípio da Insignificância.


A insignificância da ofensa, que deve ser valorada através da consideração global da ordem jurídica, afasta a tipicidade da conduta.


Questão crucial é saber se o Princípio da Insignificância, na prática, pode ser aplicado irrestritivamente à Justiça Militar, ou se tem aplicação somente na Justiça Comum.


Nas palavras de Neves e Streinfinger,


“(…) se o incorporarmos ao Direito Castrense, estaremos dotando o aplicador da lei de um poder que não lhe cabe, ou seja, o de legislar. Ademais, fomentaríamos o esquecimento da regularidade das instituições militares, de acordo com o que já sustentamos ao tratar do principio da intervenção mínima, incentivando a falência da prevenção geral positiva.”


Prosseguem aduzindo que o Princípio da Insignificância, na Justiça Militar, tem aplicação relativa, ficando a cargo do Juiz aplicar referido princípio quando a lei deixar ao discricionarismo do magistrado invocar a bagatela.[4]


Porém, mais uma vez, contrariando alguns doutrinadores e operadores do Direito, que defendem a idéia de ser o CPM uma legislação severa e inflexível, o Código Castrense traz expressamente alguns casos de aplicação do Princípio da Insignificância, que serão tratados de forma individualizada.


1.1 O Princípio da Insignificância e a lesão levíssima.


A aplicação do Princípio da Insignificância, no caso de lesões levíssimas, vem estampada na própria exposição de motivos do Código Penal Militar (CPM), que já em 1969, dispôs:


“Entre os crimes de lesão corporal, inclui-se o de lesão levíssima, o qual, segundo o ensino da vivência militar, pode ser desclassificado pelo Juiz para infração disciplinar, poupando-se, em tal caso, o pesado encargo de um processo penal para fato de tão pequena monta.” [5]


Isso é o que estabelece o parágrafo 6º do artigo 209 do CPM: no caso de lesões levíssimas, o Juiz pode considerar a infração como disciplinar.


Portanto, entendendo o Juiz que a lesão produzida não é de grande monta, ou seja, que o dano produzido não é digno de reprovação, poderá, à luz do Princípio da Insignificância, absolver o acusado.


Discussão polêmica é a questão da possibilidade de o próprio Juiz desclassificar o delito de lesão corporal levíssima para infração disciplinar, livrando o acusado do processo penal.


Jorge Alberto Romeiro, citado por Jorge Cesar de Assis, analisando referido princípio, entende que: “quando o Juiz considera a infração como disciplinar, ele absolve o condenado, enviando o processo para a instância administrativa, sem vincular absolutamente à decisão dela, que pode punir ou não, pois as responsabilidades penal e disciplinar são distintas e independentes.“[6]


Considerando que a esfera penal e a disciplinar (administrativa) são totalmente independentes e autônomas, poder-se-ia questionar se o Juiz tem ou não competência para desclassificar um delito militar para transgressão disciplinar.


Jorge Cesar de Assis entende que o Juiz somente poderá absolver o acusado, sob a égide do Princípio da Insignificância, e jamais considerar a infração como disciplinar. [7]


Ocorre que, nesse caso, tal princípio acaba não sendo aplicado da maneira como desejou a mens legis. Quis o legislador que o Juiz desconsiderasse o crime, livrando o acusado do processo penal. Todavia, na prática, o Juiz só aplica o princípio ao final do processo, absolvendo o acusado. Portanto, o fim primeiro, que era poupá-lo do fardo de um processo, não foi alcançado.


Ademais, a aplicação da pena disciplinar tem como um de seus fundamentos o pronto restabelecimento da disciplina e da hierarquia, que por óbvio exige sua imediata aplicação.


Portanto, sendo a lesão de natureza levíssima, o Juiz, amparado pelo artigo 6º, do artigo 209 do CPM, poderá absolver o acusado, por considerar que os danos causados à vítima são de pequena monta.


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1.2 Princípio da Insignificância no delito de furto.  


Outra questão polêmica é a aplicação do Princípio da Insignificância ao caso do delito de furto cometido por militares.


A questão não é pacífica e ostenta decisões dos Tribunais Superiores tanto no sentido de não se admitir a sua aplicação, como no sentido de admiti-la.


O Superior Tribunal Militar (STM) entende que não é o valor monetário da res o fator decisivo para selar o destino do agente, mas o relevante prejuízo para as Forças Armadas e para a sociedade em geral (STM – Ap. 2005.01.049837 –0- RJ).


As instituições militares sustentam-se no binômio hierarquia e disciplina, pilares reforçados pelas lições de ética, moral e devoção ao cumprimento do dever, que devem ser impostas àqueles que são os responsáveis pela defesa da Pátria e pela preservação da ordem pública, muito mais que aos cidadãos comuns. [8] 


O parágrafo 1º do artigo 240 do Código Penal Militar autoriza que, no caso de o agente ser primário e de a res furtiva ser de pequeno valor, o Juiz substitua a pena de reclusão pela de detenção, diminuindo-a de um a dois terços. Outra possibilidade que o referido parágrafo abre ao Juiz é de considerar a infração como disciplinar.


Ainda, o parágrafo 2º do referido artigo dispõe que a atenuação do parágrafo 1º é igualmente aplicável no caso em que o criminoso primário restitua a coisa ao seu dono ou repare o dano causado, antes da instauração da ação penal.


Da mesma maneira que no delito de lesões levíssimas, surge a questão da competência do Juiz militar para desclassificar um delito militar para transgressão disciplinar, tendo em vista que a esfera penal e a disciplinar (administrativa) são totalmente independentes e autônomas.


O STM entende que o parágrafo 2º do artigo 240 do CPM não autoriza que se considere a infração como disciplinar. Quando se refere expressamente à “atenuação do parágrafo anterior”, quis o legislador possibilitar unicamente a substituição da pena de reclusão pela de detenção, e a sua diminuição quantitativa. [9]


Portanto, a aplicação do Princípio da Insignificância, sendo o delito considerado como infração disciplinar pelo Juiz, estaria adstrita à hipótese do parágrafo 1º do artigo 240 do CPM.


No caso da aplicação do Princípio da Insignificância aos delitos de furto, deve-se ainda fazer a distinção entre ínfimo (ninharia) e coisa de pequeno valor.


Como já aludido, a questão é bastante polêmica, não havendo uniformidade de decisões dos Tribunais, como se verá a seguir.


O STM entende que, nos crimes contra o patrimônio, deve-se punir a quebra da confiança, independentemente do valor da res furtiva, servindo a primariedade e os antecedentes do acusado na diminuição da pena, que deverá ser feita em sua maior graduação, ou seja, 2/3 (dois terços).


Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do RHC 89.624- RS, que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia, entendeu cabível a aplicação do Princípio da Insignificância aos crimes militares, argumentando que, além da correspondência formal, para a configuração da tipicidade, é necessária uma análise materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado.


Oportuno salientar que, por ocasião do julgamento do referido recurso, o Ministro Marco Aurélio entendeu por divergir do voto da relatora, e conseqüentemente, pela inaplicabilidade do Princípio da Insignificância aos crimes militares. Na oportunidade, salientou o Excelentíssimo Ministro que, no caso de tais delitos, deve-se levar em consideração o local da prática criminosa, ou seja, o quartel. 


Como se percebe, aqueles que alegam não ter aplicação o Princípio da Insignificância na Justiça Militar, equivocam-se, eis que ele é previsto no próprio corpo do CPM, em casos pré-estabelecidos pelo legislador.


O Código Penal Militar, tido por alguns como um código severo demais, mais uma vez revelou-se vanguardista acerca do Princípio da Insignificância.


Importante destacar por fim que é pacífico na jurisprudência brasileira, que quando se tratar do delito de roubo, o Princípio da Insignificância não deverá ser levado em consideração, vez que o agir delituoso é cometido por meio de violência e grave ameaça à pessoa. A gravidade do roubo não se restringe à questão patrimonial, e tem a ver também com a violência ou grave ameaça à pessoa.


1.3. Princípio da Insignificância nos delitos de porte e uso de substância entorpecente.


Em termos de entorpecentes, não se cogita falar da aplicação do Princípio da Insignificância. A inaplicabilidade de tal princípio aos crimes de porte e uso de substância entorpecente é pacífica, tanto na doutrina como na jurisprudência dos Tribunais Superiores.


O crime de posse e uso de substâncias entorpecentes está tipificado no Capítulo III do CPM, sendo considerado crime contra a incolumidade pública e a saúde. E é por essa razão que, mesmo sendo pequena a quantidade de entorpecente que o militar traga ou guarde consigo, ainda que para uso próprio, o crime já restará configurado, posto que o que se tutela nesse caso é a disciplina militar, sempre ofendida nesses casos.


O tipo penal não exige que o agente use ou tenha posse de uma grande quantidade de drogas, portanto, qualquer que seja a quantidade apreendida, será suficiente a configurar o ilícito penal em questão.


Assis salienta que o delito militar de posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar é delito especial de posse ou uso da droga, exatamente porque ele ocorre em lugar sob a administração militar[10].


A relevância da inaplicabilidade do Princípio da Insignificância a tais delitos está no fato de que a função militar exige o manejo constante de armas e explosivos, não lhe sendo permitido beneficiar-se do crime de bagatela.


Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 81.734-3 – PR, que teve como relator o Ministro Sydney Sanches, do corpo de cujo acórdão pode-se extrair o seguinte:


“O uso de entorpecentes por um soldado, que se utiliza de armas e explosivos para treinamento e vigilância, pode causar danos irreparáveis a si, a seus colegas de farda e à própria unidade onde serve. A circunstância de ser mínima a quantidade de droga em poder do acusado não exclui o risco de dano à vida militar.”


O caput do artigo 290 do CPM traz a previsão expressa de que quaisquer das condutas ali descritas devem se realizar em lugar sujeito à administração militar, para que se configure o ilícito penal militar. O lugar sob a administração militar é um requisito especial para o apenamento do fato[11].


Como se denota, no caso dos delitos de posse ou uso de entorpecentes, em lugar sujeito à administração militar, ainda que com o militar se apreenda pequena quantidade da droga, não há que se falar em aplicação do Princípio da Insignificância, restando configurado o ilícito penal.


No que diz respeito à nova lei de drogas (Lei n.º 11.343/2006 ), ainda não há manifestações jurisprudenciais  aptas a embasar qualquer posição. No entanto, pode-se destacar que a referida lei não veio para abolir o caráter criminal das condutas ali tipificadas. Ao contrário, avança no tratamento penal do usuário de drogas ilícitas, sintonizando a legislação ordinária com a Constituição Federal, devendo, portanto, prevalecer o entendimento da inaplicabilidade do princípio ora abordado aos crimes tipificados na referida lei.


 


Notas:

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v. 1. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 19.

[2] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREINFINGER, Marcelo. Apontamentos de direito penal militar: parte geral. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 41.

[3] BITENCOURT, op. cit., p. 20.

[4] NEVES e STREINFINGER, op. cit., p. 43.

[5] CHAVES JÚNIOR, Edgard de Brito. Legislação Penal Militar, 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 16.

[6] ROMEIRO, Jorge Alberto, apud ASSIS, Jorge Cesar. Comentários ao Código Penal Militar, 6 ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 451.

[7] Ibid., loc. cit.

[8] Ibid., p. 531.

[9] (STM – Ap. 47.293-2 – RJ – Rel Min. Dr. Paulo César Cataldo – DJU 18.11.1994, p.31.667).

[10] ASSIS, op. cit., p. 633.

[11] Ibid., loc. cit.


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Informações Sobre o Autor

Alessandra Cristina Padula

Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Estagiária da Procuradoria da Justiça Militar em Santa Maria – RS


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