A inconstitucionalidade da anulação da sentença do tribunal do júri: frente à soberania dos veredictos

Nome da autora:  – Acadêmica de Direito Universidade de Gurupi – UNIRG, [email protected].

Nome do orientador: Paulo Izídio da Silva Rezende, Professor Esp. em Direito e Processo do Trabalho, orientador do curso de Direito da Universidade de Gurupi – UNIRG, [email protected].

Resumo: Determina o Código de Processo Penal que em se tratando de crimes praticados contra a vida da vítima, deverá ser processado o acusado sob o procedimento especial do Tribunal do Júri, em que a tomada da decisão condenatória ou absolutória caberá aos membros do Conselho de Sentença, constituído por sete indivíduos leigos, sorteados para o ato e devidamente juramentados. Ao juiz togado, por sua vez, compete a elaboração formal da sentença, contendo a dosimetria da pena, de acordo com as circunstâncias, atenuantes e causas de aumento e diminuição de pena, não cabendo ao Juiz togado alterar o teor do veredicto.  Entretanto, existem situações em que as decisões de absolvição do Júri são recorridas pela acusação sob a alegação de contrariedade à prova dos autos e que tais decisões deveriam ser objeto de anulação pelo Tribunal de Justiça. Desenvolvido segundo o método dedutivo, bibliográfico e qualitativo, a pesquisa irá analisar o tema e apontar qual a interpretação adotada pelos tribunais superiores quanto a anulação da sentença do tribunal do júri por decisão contrária à prova dos autos aos autos.

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Palavras-chave: Tribunal do Júri. Princípios. Anulação. Soberania dos veredictos. Lei nº 11.689/2008.

 

Abstract: The Criminal Procedure Code determines that in the case of crimes committed against the victim’s life, the accused must be prosecuted under the special procedure of the Jury Tribunal, in which the decision of the condemnatory or absolute will be up to the members of the Sentencing Council, made up of seven lay individuals, drawn for the act and duly sworn. The judge togado, in turn, is responsible for the formal elaboration of the sentence, containing the dosimetry of the sentence, according to the circumstances, mitigating and causes of increase and decrease of sentence, it is not up to the judge toado to change the content of the verdict. However, there are situations in which the Jury’s acquittal decisions are appealed by the prosecution on the grounds of contradiction to the evidence in the case file and that such decisions should be annulled by the Court of Justice. Developed according to the deductive, bibliographic and qualitative method, the research will analyze the theme and point out the interpretation adopted by the superior courts regarding the annulment of the jury’s decision by decision against the case.

Keywords: Court of Jury. Principles. Annulment. Sovereignty of verdicts. Law No. 11,689 / 2008

 

Sumario: Introdução. Materiais e Métodos. 1. Constituição federal e a soberania dos veredictos. 2. Rito do tribunal do júri. 3. Código de processo penal de 1941 e os 10 quesitos. 4. A inconstitucionalidade da anulação da sentença do tribunal do júri por contrariedade à prova dos autos: frente à soberania dos vereditos. Considerações finais. Referencias.

 

Introdução

O tribunal do júri é um rito processual competente para julgar os crimes contra a vida e delitos conexos. Os seus princípios estão regidos no artigo 5º, parágrafo XXXVIII, da Constituição Federal como direitos e garantias fundamentais.

Em expressa previsão legal, determina o Código de Processo Penal e a Constituição Federal que os veredictos proferidos no rito do tribunal do júri competem exclusivamente ao conselho de sentença, que é composto por sete jurados que tomam uma decisão exclusiva e pautada na maioria dos votos.

A tomada de decisões penais em sede dos julgamentos perante o Tribunal do Júri exige a opção por uma sentença justa e adequada aos autos. Todavia, existem decisões em que os jurados por íntima convicção desconsideram algumas informações aludidas no âmbito do processo penal, como é o caso da valoração das provas.

Desta feita, as decisões de absolvição do Tribunal do Júri são recorridas pela acusação sob a alegação de contrariedade à prova dos autos, com o argumento de que os quesitos reconhecidos pelos jurados são manifestadamente contrários e que, por esse motivo, tais decisões devem ser anuladas.

Por esse motivo é que este estudo jurídico apresenta a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da soberania dos veredictos, destinada a discutir e estabelecer os aspectos teóricos e metodológicos sobre a anulação de sentença do Tribunal do Júri por contrariedade à prova dos autos.

Segundo o método dedutivo, este artigo apresenta os dispositivos constitucionais que regem a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri; a regulamentação contida no Código e Processo Penal e a inconstitucionalidade da anulação de sua sentença ante ao preceito fundamental da soberania de suas decisões.

 

Materiais e métodos

A pesquisa científica classifica-se como bibliográfica, haja vista que irá discutir posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a soberania das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri e a sua anulação por contrariedade de provas aos autos.

O trabalho foi pautado em material teórico disponível em sites, bibliotecas, revistas (periódicos online), material digital e jurisprudências e elaborado segundo a metodologia de análise qualitativa do texto, com a exposição de trechos e posicionamentos doutrinários. Os resultados foram obtidos após a exposição e confrontamento de entendimentos e expostos por meio textual, cujos trechos foram transcritos para melhor compreensão do leitor.

 

1 Constituição federal e a soberania dos veredictos

A Constituição Federal promulgada em 1988 é conhecida como a Carta Magna que tem como fundamento a proteção ampla aos direitos fundamentais. É uma Constituição garantista, inclusive para acusados e presos que respondem à processos penais em primeiro e segundo grau.

No capítulo II, o artigo 5º intitula os direitos e garantias fundamentais que são assegurados à todos os indivíduos. Dentre suas disposições, os princípios do tribunal do júri estão regidos expressamente em seu inciso XXXVIII, que institui o tribunal do júri e enumera os seguintes princípios fundamentais: a plenitude de defesa, que é a auto defesa; a defesa técnica, que são exercidas de forma plena; e a soberania dos veredictos, dentre a competência de julgar os crimes dolosos contra a vida onde a decisão cabe apenas aos jurados pela condenação ou absolvição do acusado (BRASIL, 1988).

A soberania dos veredictos figura dentre uma das garantias decorrentes do tribunal de júri e tem por finalidade precípua assegurar que um direito, a ela correspondente, seja efetivamente fruído. A instituição do Júri dedica-se à proteção do efetivo cumprimento do devido processo legal.

 

“A soberania dos veredictos é a alma do Tribunal Popular, assegurando-lhe o efetivo poder jurisdicional e não somente a prolação de um parecer, passível de rejeição por qualquer magistrado togado. Ser soberano significa atingir a supremacia, o mais alto grau de uma escala, o poder absoluto, acima do qual inexiste outro. Traduzindo-se esse valor para o contexto do veredicto popular, quer-se assegurar seja esta a última voz a decidir o caso, quando apresentado a julgamento no Tribunal do Júri. (NUCCI, 2014, p. 387).”

 

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A Constituição prevê como essência do rito do tribunal do júri a soberania dos veredictos, sendo um dos seus princípios que atribui ao conselho de sentença competência total em suas decisões, imodificáveis, onde magistrados são impossibilitados de subtrair ou substituir a decisão por qualquer outra sentença.

 

2 Rito do tribunal do júri

O tribunal do júri é um rito processual previsto no artigo 406 do Código de Processo Penal, o qual tem competência de julgar os crimes dolosos contra a vida e crimes conexos no ordenamento jurídico brasileiro.

O Júri é um órgão especial da justiça comum do Estado por atribuições e composições. Os seus princípios são regidos pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso XXXVIII, como direitos e garantias fundamentais, cujo os principais são: a plenitude da defesa, a defesa técnica e a soberania dos veredictos, que determina que compete apenas aos jurados a decisão pela condenação ou absolvição do acusado. (BRASIL, 1988).

 

“O Tribunal do Júri julga apenas crimes dolosos contra a vida, na modalidade tentada ou consumada, comissiva ou omissiva. O crime culposo, mesmo sendo contra a vida, é da competência do juiz singular. Tratando-se de crime doloso (intencional), ainda que seja no trânsito, a competência é do Tribunal do Júri (TASSE; GOMES, 2012, p.24).”

 

Os jurados escolhidos para compor o conselho de sentença deverão ser pessoas comuns de notória idoneidade e maiores de 18 anos. O sorteio da sessão de julgamento será realizado de portas abertas, sendo que os jurados sorteados serão convocados pelo correio, por mandado de citação ou por qualquer outro meio para que compareçam no dia e hora designados (BRASIL, 1941).  Serão fixadas na porta do Tribunal as referências processuais.

“Art. 447.  O Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento. (BRASIL, 1941)”.

 

No dia do julgamento ocorrerá a realização do sorteio e serão convocados para compor o conselho de sentença apenas sete jurados, sendo que os seus veredictos poderão ser formados de acordo com a sua intima convicção, pois a sua decisão é soberana e garantida constitucionalmente. “Enquanto os jurados desempenham a tarefa de apreciar a matéria fática e as provas que envolvem o delito, o juiz-presidente cuida dos aspectos jurídicos” (BULOS, 2014, p. 639).

O conselho de sentença deverá responder alguns quesitos sobre materialidade do fato, autoria e se o acusado deve ser absolvido. Assim dispõe o parágrafo único do artigo 482 do Código de Processo Penal:

 

“Art. 482. […]

Parágrafo único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes. (BRASIL, 1941).”

Posteriormente, o juiz distribuirá cédulas aos jurados que serão utilizadas para a votação, sendo que a decisão será tomada por maioria de votos. Após a decisão dos jurados, se condenatória, o juiz proferirá a sentença e a dosimetria da pena; no caso de absolvição, o juiz presidente profere a sentença absolutória e a sessão é encerrada (BRASIL, 1941).

 

3 Código de processo penal de 1941 e os 10 quesitos

O Código de Processo Penal de 1941 previa em seus artigos 484 e seguintes os dez quesitos obrigatórios formulados aos jurados que deveriam respondê-los na fase de decisão do julgamento, enfrentando-as uma por uma:

 

“Art. 484. Os quesitos serão formulados com observância das seguintes regras:

I – o primeiro versará sobre o fato principal, de conformidade com o libelo;
II – se entender que alguma circunstância, exposta no libelo, não tem conexão essencial com o fato ou é dele separável, de maneira que este possa existir ou subsistir sem ela, o juiz desdobrará o quesito em tantos quantos forem necessários;
III – se o réu apresentar, na sua defesa, ou alegar, nos debates, qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou o desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes, imediatamente depois dos relativos ao fato principal;
IV – se for alegada a existência de causa que determine aumento de pena em quantidade fixa ou dentro de determinados limites, ou de causa que determine ou faculte diminuição de pena, nas mesmas condições, o juiz formulará os quesitos correspondentes a cada uma das causas alegadas;
V – se forem um ou mais réus, o juiz formulará tantas séries de quesitos quantos forem eles. Também serão formuladas séries distintas, quando diversos os pontos de acusação;
VI – quando o juiz tiver que fazer diferentes quesitos, sempre os formulará em proposições simples e bem distintas, de maneira que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza.

Parágrafo único. Não serão formulados quesitos relativamente às circunstâncias agravantes e atenuantes, previstas nos arts. 44, 45 e 48 do Código Penal.

Art. 485. Antes de proceder-se à votação de cada quesito, o juiz mandará distribuir pelos jurados pequenas cédulas, feitas de papel opaco e facilmente dobráveis, contendo umas a palavra sim e outras a palavra não, afim de, secretamente, serem recolhidos os votos.

Art. 486. Distribuídas as cédulas, o juiz lerá o quesito que deva ser respondido e um oficial de justiça recolherá as cédulas com os votos dos jurados, e outro, as cédulas não utilizadas. Cada um dos oficiais apresentará, para esse fim, aos jurados, uma urna ou outro receptáculo que assegure o sigilo da votação.
Art. 487. Após a votação de cada quesito, o presidente, verificados os votos e as cédulas não utilizadas, mandará que o escrivão escreva o resultado em termo especial e que sejam declarados o número de votos afirmativos e o de negativos. (BRASIL, 1941).”

 

Após discussões no Congresso Nacional fora publicada a Lei nº 11.689, que entrou em vigor no dia 9 de agosto de 2008 e alterou quase todo o contexto de crimes contra a vida e crimes conexos dispostos no Código de Processo Penal. Desde então, o dispositivo que está em vigor prevê apenas três requisitos essenciais, são eles: a materialidade do fato, a autoria ou participação e um único destinado a todas as teses defensivas com a simples pergunta: se o acusado deve ser absolvido (BRASIL, 1941).

Esta alteração legislativa foi motivada pelas nulidades que as votações embasadas nos quesitos anteriores causavam. Estes novos quesitos, pautados em três perguntas foi introduzida no procedimento legal para melhorar a formulação dos questionamentos e evitar nulidades processuais.

Os quesitos são redigidos com mais facilidade e simplicidade para o entendimento dos jurados, a sua elaboração é feita com base na decisão de pronúncia, decisões que ocorreram em fase de instrução processual, inquirição de testemunhas e interrogatório do acusado, na sua alto defesa.

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“Os jurados respondem dos quesitos com o emprego de duas cédulas, uma com a palavra sim e outra com a palavra não. Serão cédulas opacas e dobráveis. O juiz formulará a pergunta e, então, um oficial de justiça recolherá os votos válidos. Outro, em seguida, recolherá os votos não utilizados. O juiz presidente, então, irá apurar o resultado da votação, que se dá por maioria de votos; vale dizer que quatro votos afirmativos ou negativos são suficientes para se ter a resposta ao quesito (JESUS, 2012, p. 529).”

 

Dentre estes três quesitos o mais inovador é o que trata das teses absolutórias, uma vez que a pergunta que é feita aos jurados é se absolvem o acusado. Desta feita, todas as questões que excluam o crime ou seja isento de pena está inserida em uma única pergunta, situação que pode confundir os jurados que são leigos e que proferem sua decisão com base na sua intima convicção. Ao ser questionado, o jurado pode se confundir e não saber ao certo qual foi o fundamento que motivou sua escolha pela absolvição (ARRUDA; SILVA, 2008). É esse o fato que tem embasado os recursos processuais da acusação para ver reformada a decisão proferida pelo Tribunal do Júri.

 

4 A inconstitucionalidade da anulação da sentença do tribunal do júri por contrariedade à prova dos autos: frente à soberania dos vereditos

As decisões do tribunal do júri são proferidas com base nas provas produzidas de forma lícita contidas nos autos do processo. Ainda que as provas permitam possibilidades para escolha destas decisões pelo corpo de jurados, a sua intima convicção, clemência, o quesito obrigatório ou mesmo a impossibilidade de identificação servirão de base para a formação do seu convencimento, atrelado à análise de todos os elementos que estiverem inseridos dentro do processo.

 

“compatibilizam-se nas garantias fundamentais do sigilo das votações com o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, de acordo com o artigo 5º, parágrafo XXXVIII, incisos LIV e LV, alínea “b” da Constituição Federal, promovendo a verdadeira ponderação de interesses constitucionais, somente permitindo que alguém seja submetido a julgamento pelo tribunal legitimando a decisões dos jurados baseadas em provas idôneas produzidas no decorrer do procedimento bifásico do tribunal do júri. (FARIA, 2019, p1).”

 

A decisão do jurado é motivada pela sua intima convicção e este é um fator que, via de regra, é questionado pela acusação em grau recursal, que cassam a decisão, nos casos de absolvição, nas hipóteses de anulação da sentença por contrariedade à prova dos autos.

Em razão do inconformismo com algumas decisões exaradas pelo Tribunal do Júri nas sentenças absolutórias, o Ministério Público apresenta o recurso de apelação disposto no artigo 593, III, “d” do Código de Processo Penal, sob a alegação de contrariedade à prova dos autos e afirmação de que os quesitos reconhecidos pelos jurados são incongruentes. Este é o teor da Lei:

 

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

III – das decisões do Tribunal do Júri, quando:

  1. d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (BRASIL, 1941).”

 

Ao interpor um recurso de apelação no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, o representante do Ministério Público Estadual fundamentou seu pleito nos seguintes termos:

 

“Assim sendo, em que pese a obrigatoriedade de tal quesito, é certo que a resposta negativa de sua existência por parte dos jurados, frente a existência de laudo necroscópico atestando o óbito da vítima, indica além de total inaptidão do corpo de jurados para a votação, um resultado completamente diferente das provas dos autos.” (TJTO – Razões recursais nº 0024887-31.2017.827.0000 Processo n° 0010069-90.2016.827.2722 Recorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO TOCANTINS Recorridos: JUSCELINO TORRES AMORIM e VAGNER BEZERRA MIRANDA. Rel. Des. RONALDO EURÍPEDES, 4ª Turma da 1ª Câmara Criminal, julgado em 03/04/2018).” 

 

O Tribunal não pode apreciar a apelação condenando ou absolvendo o acusado, sob pena de ferir o princípio da Soberania dos Veredictos, pois cabe somente ao corpo de jurados esta decisão. As instâncias superiores não decidem o mérito da ação que é proferida pelo conselho de sentença, os jurados não podem ser substituídos, diante da contradição do conjunto probatório e o resultado. A Carta Magna reconhece a Soberania dos Veredictos como o fundamento do rito do Tribunal do Júri.

 

“Disso resulta que a decisão dos jurados, quando indagados, de modo genérico, sobre a inocência do réu, tem por fundamento a sua íntima convicção, o que valoriza, nesse tema específico, o princípio do livre convencimento, em que o membro do Conselho de Sentença possui inteira discrição, protegido, constitucionalmente, pelo sigilo da votação (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), para absolver o acusado por razões, até mesmo, de clemência, tal como tem sido decidido por alguns Tribunais judiciários […] (MELLO apud CUNHA, 2019, p.1).”

 

Guilherme de Souza Nucci tece as seguintes considerações a respeito da matéria recursal a ser analisada pelo Tribunal de Segunda Instância:

 

“[…] quando interposta apelação, quanto ao mérito da decisão popular, deve o Tribunal togado agir com máxima cautela, afim de não dar provimento a todo e qualquer apelo, somente porque entende ser mais adequada outra avaliação. Ou porque o veredicto popular contraria a jurisprudência da Corte. Nada disso interessa ao jurado, que é leigo. Respeitar a soberania dos veredictos significa abdicar da parcela de poder jurisdicional, concernente ao magistrado togado, para, simplesmente, fiscalizar e buscar corrigir excessos e abusos, mas sem invadir o âmago da decisão, crendo-a justa ou injusta. O parâmetro correto para a reavaliação do Tribunal togado em relação à decisão do júri é o conjunto probatório: se há duas versões válidas, dependentes apenas de interpretação, para levar à condenação ou à absolvição, escolhida uma das linhas pelo Conselho de Sentença, há de se respeitar sua soberania. Nenhuma modificação pode existir. (NUCCI, 2014, p. 388).”

 

Guilherme Rezende, ao analisar o contexto jurisprudencial aponta três linhas de interpretação que norteiam as decisões nas apelações que tratem desta matéria:

 

“Existem três linhas decisórias[1], que estão claramente postas na decisão proferida no HC 350.895/RJ (relator para o acórdão ministro Sebastião Reis Jr.):

1ª. Posição do ministro Nefi Cordeiro (também no HC 288.054/SP), no sentido de que o jurado não tem o poder de absolver fora das hipóteses legais, não permitindo a absolvição por clemência ou qualquer outro motivo fora da prova dos autos. Assim, caberia recurso do MP quando a absolvição se fundamentar no 3º quesito sem amparo no conjunto probatório. A reforma de 2008 não teria ampliado as hipóteses de absolvição. [1] Nos baseamos no excelente texto de Guilherme Madi Rezende, publicado no Boletim do IBCCrim n. 296, julho de 2017.

2ª. Posição dos ministros Schietti Cruz e Saldanha Palheiro, manifestadas no HC 350.895/RJ: para quem os jurados podem absolver por qualquer motivo, mesmo de forma desvinculada da prova dos autos. Nessa linha, incabível recurso do MP com base na letra “d”, exatamente porque se está autorizada a absolvição por qualquer motivo, não pode a decisão ser cassada, em observância ainda do princípio da soberania das decisões do júri. Mas, é importante sublinhar, o ministro Schietti acertadamente explica que a apelação do artigo 593, III, “d” segue tendo aplicação em diversos outros casos, em que o MP poderá recorrer e o tribunal de apelação verificar se a decisão encontra ou não respaldo probatório[2]. De qualquer forma, para não alongar, recomenda-se a leitura do voto do ministro Schietti Cruz no referido julgamento dada excelente musculatura teórica e argumentativa.

3ª. Posição adotada pela maioria da 6ª Turma (ministro Sebastião, Maria Thereza e Néfi) no HC 350.895/RJ, que tenta conciliar as duas posições anteriores, afirmando que o quesito é obrigatório e está autorizada a absolvição por qualquer motivo (inclusive por “clemência” como preferiu chamar o STJ), mas, por outro lado, paradoxalmente admite o recurso de apelação por parte do MP com base na letra “d”. O voto condutor do ministro Sebastião foi, em suma, no sentido de que está autorizada a absolvição por clemência mas também cabe apelação do MP com fulcro na letra “d”, na medida em que mesmo a absolvição feita no quesito genérico pode ser controlada em grau recursal. Sustentou o ministro que o tribunal de apelação pode fazer o controle acerca do respaldo fático-probatório da decisão de clemência, para mandar o réu a novo júri quando a decisão absolutória for desprovida de elementos fáticos que a autorizem. A posição é, nas palavras de Rezende[3], “uma tentativa infeliz de conciliar entendimentos completamente divergentes dos Ministros. Cada qual desses entendimentos guarda coerência intrínseca; a decisão conciliatória, todavia, não”. (REZENDE apud LOPES JR, 2017, p.1).” 

O ministro Celso de Mello entende que:

“Registro, por necessário, que tenho adotado essa mesma orientação, no sentido de também considerar inadmissível – quando não incongruente em face da reforma introduzida no procedimento penal do júri – o controle judicial, em sede recursal (CPP, art. 593, III, “d”), das decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri com suporte no art. 483, III e § 2º, do CPP, quer pelo fato, juridicamente relevante, de que os fundamentos efetivamente acolhidos pelo Conselho de Sentença para absolver o réu (CPP, art. 483, III) permanecem desconhecidos (em razão da cláusula constitucional do sigilo das votações prevista no art. 5º, XXXVII, “b”, da Constituição), quer pelo fato, não menos importante, de que a motivação adotada pelos jurados pode extrapolar os próprios limites da razão jurídica (MELLO apud CUNHA, 2019, p.1).”

De acordo com este entendimento, anular decisões por contrariedades à prova dos autos seria um afrontamento a soberania dos veredictos e a autonomia do tribunal do júri, sob pena de violar a soberana competência garantida constitucionalmente, por ser também inadmissível pela doutrina e pela jurisprudência.

 

 

“APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO SIMPLES. RECURSO MINISTERIAL. PEDIDO DE ANULAÇÃO DO JULGAMENTO. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INOCORRÊNCIA. VERSÃO ACOLHIDA PELOS JURADOS RESPALDADA PELO ACERVO PROBATÓRIO. SUMULA 6 TJCE. HIGIDEZ DO VEREDITO DO JÚRI. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

  1. Em decorrência do princípio da soberania dos vereditos, a anulação do julgamento do Conselho de Sentença, sob a alegação de manifesta contrariedade à prova dos autos, somente é possível quando estiver completamente divorciado dos elementos de convicção constantes dos autos, ou seja, quando proferido em contrariedade a tudo que consta dos fólios, o que não ocorre na espécie.
  2. A opção por uma das versões fluentes da prova não enseja nulidade do julgamento. Havendo pluralidade de versões plausíveis, o Tribunal do Júri é soberano para optar por uma delas, no exercício de sua função constitucional assegurada no art. 5º, inc. XXXVIII, c, da Carta Magna. Precedentes.
  3. Da análise do caso concreto, pode-se perceber que haviam duas teses em conflito, a da acusação, segundo a qual o réu teria cometido o delito de homicídio, e a da defesa, de que o réu agiu em legítima defesa. As teses sustentavam-se em elementos probatórios contrários, tendo os jurados optado pela apresentada pela defesa. Percebe-se nos autos claramente suporte fático-probatório à decisão do Conselho de Sentença, especificamente pelo interrogatório do réu e de acordo com a prova testemunhal.
  4. Encontrando-se, assim, a decisão dos jurados em total consonância com a prova dos autos, correta a aplicação do enunciado da Súmula 6 deste egrégio Tribunal de Justiça.
  5. Recurso conhecido e desprovido.

(TJCE, Apelação criminal nº 0014239-54.2000.8.06.0070, 3ª Câmara Criminal, Rel. Des. Antônio Padua Silva, publicado em 01/11/2016).”

 

Ao julgar o Habeas Corpus 117076PR, Celso de Mello destacou que os jurados estão resguardados pelo princípio do livre convencimento e pelo sigilo de votação, ficando a seu critério a escolha por razões objetivas ou subjetivas para a absolvição ou condenação do réu. Para ele, admitir a apelação da acusação com base em contrariedade de provas “implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados”. (STF, HC 117076, 2019).

Esse também foi o entendimento proferido pelo STF, que em decisão liminar proferida pelo Ministro relator Edson Fachin no RHC 168796, determinou a suspensão de novo tribunal de júri em razão de anulação parcial reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo por ter sido proferida em contrariedade à prova dos autos (STF, 2019).

Em que pese o STF ter proferido decisões que reconhecem a soberania das decisões dos jurados, esta matéria ainda está longe de ser pacífica nos tribunais brasileiros, posto que, como bem asseverou o Ministro Edson Fachin em sua decisão, recentemente o STJ proferiu decisão em contrário a este entendimento e determinou a anulação do tribunal do júri sob a alegação e que a sentença, ainda que proferida por clemência, não pode contrapor-se totalmente as provas apresentadas (STF, RHC 168796, 2019).

Portanto, conclui-se que a anulação do tribunal do júri por contrariedade à prova nos autos é matéria que divide opiniões nos tribunais e que ainda não foi sedimentada ou julgada em sede de repercussão geral. Apesar de existir uma corrente que defenda a sua inconstitucionalidade, ainda não existe posicionamento que se aplique a todos os processos e que impeça o recebimento das apelações da acusação que alegue a contrariedade à prova dos autos para alterar a sentença absolutória proferida pelo conselho de sentença.

 

Considerações finais

              No decorre da pesquisa jurídica demonstrou-se que as decisões do tribunal do júri são de competência do conselho de sentença, com base no princípio da soberania dos veredictos, não podendo ser anuladas por juiz togado, sob pena de ofensa ao princípio constitucional.

As decisões do tribunal do júri são de competência dos jurados leigos, que são convocados para compor o conselho de sentença. Em alguns casos de absolvição, essas decisões são recorridas pelo ministério público sob a alegação de contrariedade a prova dos autos, argumentando que os quesitos votados pelos jurados são manifestamente contrários e por isso devem ser instrumento de apelação com o intuito de anulá-las.

Nesse contexto, as decisões são proferidas com base nas provas contidas nos autos do processo. Aos jurados é assegurada a tomada de decisão por clemência e íntima convicção, quesito obrigatório que servirá como base para a formação do seu conhecimento, analisando os elementos incluídos no processo.

Portanto, não é de competência do tribunal superior apreciar a decisão que já fora proferida anteriormente pelo corpo de jurados leigos, posto que ofenderia o princípio da soberania dos veredictos, presente na Carta Magna.

Apesar de não existir uma decisão pacificadora da jurisprudência, de acordo com alguns entendimentos dos tribunais superiores e da doutrina, anular decisões por contrariedades à prova dos autos seria um afrontamento a soberania dos veredictos e a autonomia do tribunal do júri, violando a soberana competência que é garantida consticionalmente. Assim, a pesquisa conclui-se que o assunto tratado divide opiniões nos tribunais e que ainda não foi julgada de modo geral. Existem posicionamentos que defendem a inconstitucionalidade, mas não é aplicado em todos os processos.

 

Referencias

ARRUDA, Eloísa de Sousa; SILVA, César Dário Mariano da. Reforma processual penal tornou quesitos do júri mais simples. Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2008. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2008-jun-28/reforma_penal_tornou_quesitos_juri_simples>. Acesso em: 01 mai. 2020.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 14 mar. 2020.

 

_______. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 29 mar. 2020.

 

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