Resumo: Por muito tempo a homossexualidade foi considerada como doença ou anomalia pelas ciências, sendo tal prática condenável por grupos influentes, dentre estes a Igreja. Com o decorrer dos anos, as uniões entre pessoas de mesmo sexo passaram a integrar cada vez mais os quadros societários, fato este que repercutiu nas pesquisas e estudos das mais diversas ciências. Com o aumento acentuado de indivíduos homossexuais na sociedade, ao Direito restou o papel fundamental de tutelar os direitos e deveres oriundos de tais relações. Diante desta complexa função, o legislador vem adotando uma postura omissa e negligente, o que acabou por deixar as relações homoafetivas à margem do ordenamento jurídico, durante muitos anos. Visando sanar esta lacuna normativa, o Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis, reconhecendo os direitos salvaguardados pela Constituição Federal a estes grupos. Este julgamento fez surgir vários efeitos para o Direito, em especial no âmbito do Direito de Família. Entretanto, a referida decisão da Suprema Corte causou controvérsias entre parte dos doutrinadores, estudiosos e da sociedade de modo geral, segmentos que divergem quanto à constitucionalidade do posicionamento do STF. Para os adeptos da ideia de constitucionalidade da referida decisão, o Supremo ao se posicionar favorável à constituição familiar entre indivíduos de mesmo sexo, nada mais fez do que tutelar os princípios postos pela Carta Magna. Já para a corrente divergente, o STF ao julgar as referidas ações apresentou uma postura ativista perante o jurídico. O fato é que os grupos minoritários da sociedade têm enfrentado grande dificuldade para terem seus direitos tutelados. Esta realidade demonstra o total desrespeito ao princípio da isonomia – tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais na medida de suas desigualdades – e de forma semelhante afronta os preceitos basilares de um Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: União homoafetiva. Supremo Tribunal Federal. Grupos minoritários. Direito de Família.
Abstract: For a long time homosexuality was assumed as a sickness or an anomaly by the sciences, being this practice condemned by influent groups, the church among them. Over the years, the unions between same-sex began to integrate more and more the society, a fact that is reflected in surveys and studies from the most variety of sciences. With the steep rise of homosexual individuals in society, to the Law remained the fundamental role of safeguarding the rights and obligations arising from such relationships. Faced with this complex function, the lawgiver has been adopting a negligent and careless attitude, which eventually left the homosexual relationships outside the legal system for many years. Looking for giving an end with this normative gap, the Supreme Court (STF), with the judgment of the Direct Action of Unconstitutionality ( ADI ) 4277 and the Claim of Breach of Fundamental Precept (ADPF) 132, equated homosexual unions with stable unions, recognizing the rights safeguarded by the Constitution to these groups. This judgment has given rise to various effects to the law, particularly in the context of family law. Ho wever, this Supreme Court decision caused controversy among some scholars, studants and society in general, segments that differ on the constitutionality of the STF positioning. For adepts of the idea of constitutionality of that decision, the Supreme Court standing in favor of family constitution among individuals of the same sex, did nothing more than protect the principles laid by the Constitution. For the divergent current, the Supreme Court presents an activist approach to the law with this judgment. The fact is that minority groups in society have faced great difficulty in having their rights protected. This reality shows total disrespect to the equality principle- treating equals as equals and unequal as unequal as its inequalities – and similarly insult the basic precepts of a democratic state of law.
Keywords: Homosexual union. Supreme court. Minority groups. Family law.
Sumário: Introdução. 1. Estudo interdisciplinar. 2. Socialização da homossexualidade e sua relevância para o direito. 3. A família na constituição federal de 1989. 4. Amparo constitucional à união homoafetiva. 4.1. Princípio da dignidade da pessoa humana. 4.2. Princípio da liberdade. 4.3. Princípio da isonomia. 5. Reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar. 6. União homoafetiva e seus reflexos no direito de família. 6.1. Efeitos pessoais. 6.2. Efeitos patrimoniais. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A sexualidade sempre despertou curiosidade na humanidade, daí a explicação de ter sido esta objeto de estudo ao longo dos anos, por várias ciências. Em meio a esse embate de pesquisas e estudos, é inevitável o surgimento de pontos controversos, já que o tema por si só é polêmico. E neste sentido, a homossexualidade se destaca como um dos principais pontos controversos no tocante à sexualidade humana.
A história registra que as relações entre indivíduos de mesmo sexo não tiveram origem nos dias atuais. Apesar do desconhecimento da expressão “homossexualidade”, nas antigas civilizações era comum a ocorrência de relacionamentos entre indivíduos de iguais sexos. Tais relações faziam parte do cotidiano daquelas sociedades e apresentavam caráter místico, ritualista ou até mesmo libidinoso.
Com o decorrer dos tempos a homossexualidade passou a ser marginalizada e objeto de discriminação. Algumas ciências tinham estas relações como distúrbios ou doenças contagiosas, passando a se referirem as mesmas como “homossexualismo”. Entretanto, as pesquisas realizadas comprovaram a inexistência de qualquer anomalia nos indivíduos homossexuais, que justificasse sua classificação como um distúrbio ou uma enfermidade contagiosa. Assim, a expressão “homossexualismo” passou a ser tida como imprópria a menção ao uso da citada prática.
Alguns grupos continuam a se posicionarem de forma contrária a homossexualidade, por entenderem ser este um ato escandaloso e inaceitável. Dentre estes grupos opositores, destaca-se a Igreja que embasada em seus preceitos, tem a homossexualidade como um pecado passível de punição e censura.
Diante destas celeumas, ao Direito restou o papel de fundamental importância no referente ao citado tema, que vem a ser o de regulamentar os direitos e deveres oriundos das relações entre indivíduos de mesmo sexo.
As minorias sempre tiveram papel discreto no ordenamento pátrio, fato este que vai de encontro aos princípios postos pela Constituição Federal. O princípio da dignidade da pessoa humana é um verdadeiro mandamento nuclear que informa todos os demais princípios e normas não só constitucionais, mas do sistema jurídico como um todo. Afinal, o Direito gravita em torno da pessoa humana e sua função maior é a de assegurar tratamento condigno e isonômico entre os indivíduos.
Ocorre que, durante anos, em desconformidade com os preceitos postos na Constituição Federal, a opção sexual tem sido ato motivante para a discriminação. A ausência de lei regulando estas relações exerce forte influência para a ocorrência deste tratamento diferenciado e discriminatório.
Ante a falta de expresso amparo jurídico para as uniões homoafetivas, o STF, nos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)nº 132, equiparou-as às uniões estáveis entre casais heterossexuais, assegurando-lhes os mesmos direitos que a estes são garantidos.
Este trabalho apresentará um estudo interdisciplinar do tema, tendo como intuito evidenciar os direitos e deveres oriundos do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal das relações homoafetivas como entidade familiar, bem como as controvérsias quanto à constitucionalidade deste julgamento.
O método de estudo utilizado no trabalho foi o hipotético-dedutivo. Examinou-se o fenômeno das relações familiares e sociais, o histórico que cerca a união homoafetiva e quais as consequências jurídicas do seu reconhecimento enquanto entidade familiar, bem como as peculiaridades que envolvem a temática. Para tanto, foram abordados os conceitos e feitos apontamentos necessários ao entendimento do tema em questão.
1. ESTUDO INTERDISCIPLINAR
Observa-se que o tema em análise não tem importância apenas para o Direito, outras disciplinas ao longo dos tempos têm voltado seus estudos e pesquisas para a homossexualidade, visando a sua compreensão. Nota-se que, desde os tempos antigos, as relações entre indivíduos de mesmo sexo despertam curiosidade, polêmica e divergência entre posicionamentos científicos e entre opiniões pessoais.
Dados históricos registram que a homossexualidade se fazia presente no seio das civilizações desde os tempos mais remotos. Na antiga Grécia, era comum a prática do “culto ao belo”, que consistia em atividades desenvolvidas nos ginásios, onde os gregos podiam apreciar os mais jovens despidos em exibição dos seus corpos. A referida civilização também costumava desenvolver atividades teatrais em que os homens se vestiam de mulheres ou usavam máscaras femininas e se exibiam em manifestações homossexuais.
A História também aponta que eram comuns, na civilização grega, as relações entre homens mais velhos e os meninos adolescentes, o que originou o termo “pederastia”, que significa a tendência sexual manifestada por adultos em relação a rapazes na puberdade ou na adolescência.
De forma semelhante, há registros de que no Império Romano existiam relações entre indivíduos de mesmo sexo. Estas relações ocorriam de forma livre entre um romano e um escravo, sem qualquer restrição, entretanto, entre homens livres as relações eram passíveis de punição com multa, diferentemente do que ocorria na Grécia antiga.
Consta em dados históricos que personagens importantes do Império Romano também vivenciaram essas experiências homossexuais. Há indícios de que o imperador Júlio César mantinha um relacionamento com Nicodemos e Cleópatra, fato este que evidencia a existência da homossexualidade nas mais diversas classes da referida civilização.
De modo geral, nas antigas civilizações, a homossexualidade foi vista como um ato comum com caráter mitológico, ritualista ou até mesmo libidinoso, mas sua prática não era passível de punição, de repreensão ou mesmo de discriminação.
As primeiras normas a repreenderem a homossexualidade tiveram origem com o cristianismo, que vedava o ato sexual sem fins procriativos, por entender ser esta uma anomalia. A punição aplicada aos homossexuais era cruel chegando a utilizar-se de método de castração e morte na fogueira (Justiniano em 533 a.c.).
Na ciência, a homossexualidade passou a ser temática de estudo da Medicina, que por muito tempo considerou esta relação uma doença oriunda de uma má formação genética. Objetivando confirmar tal teoria, a referida ciência, durante anos, realizou diversos estudos do sistema nervoso central, dos hormônios, dos aparelhos genitais de indivíduos hetero e homossexuais, porém não foi encontrada nenhuma diferença entre eles.
Diante dos resultados nulos, a Medicina passou a encarar a homossexualidade como uma verdadeira opção do indivíduo em relacionar-se com outros indivíduos de mesmo sexo que o seu, tornando-o diferente da maioria apenas no aspecto do relacionamento amoroso sexual.
Tal conclusão levou a que em 17 de maio de 1990, fosse aprovada, em assembleia da Organização Mundial de Saúde (OMS), a eliminação da Homossexualidade do rol constitutivo da Classificação Internacional de Doenças (CID), porquanto restara confirmado que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão. Dito posicionamento era compatível com o que já havia sido adotado, na década de 70, pela Associação Americana de Psiquiatria (1973) e Associação Americana de Psicologia (1975), e no Brasil, pelos Conselho Federal de Medicina e Conselho de Federal de Psicologia (ambos em 1985).
Aliás, na época, a decisão da Associação Americana de Psiquiatria, acompanhada pela Associação Americana de Psicologia, foi alvo de críticas por alguns grupos, devido ao fato destes entenderem ter a decisão embasamento meramente sócio-político e não em realidade psicológica.
Também na visão de Freud, pai da Psicanálise, a “inversão sexual” não significava perversão, ou mesmo enfermidade. Conforme Sérgio Carrara (CARRARA, 2005, s/p) cita e comenta em artigo publicado em 2 de março de 2005, como professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1935, Freud, já no fim da vida, escreveu a esse respeito a uma mãe americana, que convivia com um filho homossexual e o consultou a propósito do tratamento do rapaz:
'Entendi pela sua carta que seu filho é homossexual. Impressionou-me muito o fato de a senhora não ter mencionado esse termo na informação que fornece sobre ele. Permita que eu lhe pergunte, por que o evita? A homossexualidade certamente não é uma vantagem, mas não é nada de que se possa envergonhar, não é vício, degradação, não pode ser classificada como doença…'
Após afirmar que dificilmente seria possível 'abolir' o desejo do rapaz através do tratamento analítico, termina sua carta com a seguinte observação: 'O que a análise pode fazer pelo seu filho é algo bem diferente. Se ele está infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer-lhe harmonia, paz de espírito, eficiência, permaneça ele ou não sendo homossexual…'
Deste modo, o uso da expressão “homossexualismo” tornou-se imprópria, já que o termo também tem conotação de doença e enfermidade.
A despeito de tudo isso, a verdade é que a Medicina, ainda nos dias atuais, parece pouco conhecer sobre o tema, o que faz da homossexualidade um enigma para a referida ciência.
Para a Psicanálise, a homossexualidade tem seu sentido ligado à ideia de desvios da heterossexualidade genital de forma moralista e preconceituosa. Neste sentido, nota-se que: “Todos os desvios sexuais são, em qualquer idade e essencialmente, desvios sexuais infantis. São frutos de um determinismo psíquico primitivo, que tem origem nas relações parentais desde a concepção até 3 ou 4 anos.” (RODRIGUES, 2010, p.5).
Para erradicar a noção errada de que o conceito de homossexualidade está ligado à noção de doença e, como tal, seja tratada profissionalmente, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) baixou a Resolução CFP N° 001/99, de 22 de março de 1999, cuja ementa é a seguinte: "Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual".
Tão sério é o assunto, que, além da edição da Resolução CFP N° 001/99, a presidência do CFP achou por bem prestar esclarecimentos adicionais sobre o assunto, encaminhando-os por carta aos integrantes da representação de classe, para que não remanescessem dúvidas que prejudicassem o cumprimento das normas:
“O Conselho Federal de Psicologia vem esclarecer alguns pontos importantes relacionados à Resolução CFP Nº 01/99, que estabeleceu normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual:
1. A resolução CPF Nº 01/99, baseada nos princípios da ética profissional do psicólogo, regulamenta que os psicólogos deverão contribuir com o seu conhecimento para o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamento ou práticas homoeróticas. Neste sentido proíbe os psicólogos de qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas e proíbe os psicólogos de adotar em ações coercitivas tendente a orientar a homossexuais para tratamentos não solicitados.
2. A resolução impede os psicólogos de colaborarem com eventos ou serviços que proponham tratamentos e cura das homossexualidades, seguido as normas da Organização Mundial de Saúde e impede que os psicólogos participem e se pronunciem em meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito social existente em relação aos homossexuais como portadores de desordem psíquica.
3. A resolução não impede os psicólogos de atenderem pessoas que queiram reduzir seu sofrimento psíquico causado por sua orientação sexual, seja ela homo ou heterossexual. A proibição é claramente colocada na adoção de ações coercitivas tendentes à cura e na expressão de concepções que consideram a homossexualidade doença, distúrbio ou perversão.
4. Os psicólogos não podem, por regra, ética, recusar atendimento a quem lhes procura em busca de ajuda. Por isso é equivocada qualquer afirmação de que os psicólogos estão proibidos de atenderem homossexuais que buscam seus serviços, incluindo a demanda de atendimento que possam ter como objeto o desejo do cliente de mudança de orientação sexual, seja ele hetero ou homossexual. No entanto, os psicólogos não podem prometer cura, pois não podem considerar seu cliente doente, ou apresentando distúrbio ou perversão.
5. Por fim, cabe salientar que a ética dos psicólogos é laica e portanto para o exercício da profissão não pode ser confundido com crenças religiosas que os psicólogos por ventura professem.
Odair Furtado–Presidente do Conselho Federal de Psicologia, Setembro/2003 [RODRIGRES, s/d, p.5- 6].”
Forçoso é reconhecer-se que, mesmo com os inúmeros estudos sociais e científicos realizados em relação à homossexualidade, a sociedade ainda apresenta enormes dificuldades para aceitar os modos de vida e opções dos indivíduos que divergem de padrões postos como normais pelo senso comum.
2. SOCIALIZAÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE E SUA RELEVÂNCIA PARA O DIREITO
Sob uma visão mais detalhada dos dias atuais, nota-se ter havido um relevante aumento do número de indivíduos homossexuais no meio social. Na última pesquisa realizada pelo IBGE, restou demonstrado que no Brasil existem mais de 60 mil parcerias homossexuais. Mas, afinal, quais as razões para a ocorrência deste fenômeno? Com o surgimento de novas relações, há alguma consequência para o Direito?
Neste sentido, atribui-se o acréscimo de indivíduos homossexuais a uma série de fatores, entre eles está o aumento populacional. Dados recentes apontam que a população brasileira, em julho de 2011, totalizava 192.376.496 habitantes (IBGE, 2011, s/p), fato este que comprova um elevado crescimento do número de indivíduos, se comparado ao crescimento em décadas anteriores.
É natural que o crescimento populacional tenha como ocorrência o aumento do número de indivíduos dos mais diferentes grupos sociais, inclusive entre os optantes de diferentes orientações sexuais. Assim sendo, grupos até então tidos como “anormais”, passaram a compor a sociedade de forma mais acentuada.
Outro fator relevante para o referido crescimento no número de homossexuais está atrelado ao avanço da conscientização e tolerância da sociedade às diferenças existentes entre seus membros, isto se comparada às gerações passadas. Este amadurecimento é resultante do maior enfrentamento da temática, mesmo que ainda de forma discreta por parte das instituições sociais influentes como a imprensa, a família, as escolas e até mesmo as religiões não conservadoras.
De forma semelhante, este fenômeno da tolerância tem ocorrido em outros países como se pode notar por meio do relatório elaborado pelo Centro Nacional de Pesquisas de Opinião da Universidade de Chicago, que se embasou em estudo realizado sobre as tendências gerais da atitude de mais de 30 países em relação à homossexualidade, que:
“A aprovação da homossexualidade aumentou em 27 países, e diminuiu apenas em quatro: Rússia, República Tcheca, Chipre e Letônia. Os cinco países com maior nível de aceitação da homossexualidade são Holanda, Dinamarca, Noruega, Suíça e Bélgica. Os últimos da lista foram sete ex-repúblicas socialistas, países da América Latina e da Ásia Oriental, além de Chipre, África do Sul e Turquia. Na Rússia, 59% da população achava em 1991 que ter uma conduta homossexual era algo errado, proporção que aumentou para 64% em 2008, indica a pesquisa.” (AFP, 2011, p. 1).
A homossexualidade, cada vez mais inserida no cotidiano da sociedade, faz surgir a necessidade de que o Direito se adapte as situações e regulamente tais relações. Com isso, visa-se garantir a prevalência da isonomia, da dignidade da pessoa humana, bem como da tolerância às diferenças existentes entre indivíduos.
Por muito tempo, a homossexualidade foi tratada com indiferença pelos legisladores e juristas, que se apresentavam inerte à problemática surgida. Entre os grupos que contribuíam para a não regulamentação das uniões homoafetivas está a Igreja Católica, instituição de grande influência na sociedade, que por entender a homossexualidade como um ato escandaloso e passível de repúdio, sempre exerceu influência contrária ao tratamento legal do tema. Maria Berenice Dias discorre sobre a intolerância por parte das religiões da seguinte forma:
“De qualquer modo, das religiões que existem, não deve haver nenhuma que não pregue o amor ao próximo. As mais próximas, por terem sido trazidas com a colonização, acreditam em um Deus que veio à Terra encarnado na pessoa do próprio filho. Jesus Cristo desde menino exercitou a tolerância. Em nenhuma de suas pregações incitou o ódio ao semelhante ou negou a alguém o direito de subir ao reino do céu. Basta lembrar que impediu que Madalena fosse apedrejada, multiplicou pães para dar de comer a quem tinha fome e morreu na cruz para salvar toda a humanidade.” (DIAS, 2010, p.1)
Não obstante, com o surgimento de constantes conflitos oriundos das relações entre indivíduos de mesmo sexo, agravados pela ausência de legislação que regule a matéria, tornou-se impossível a omissão do Direito no que se refere à temática posta. Restando, deste modo, ao STF a função de solucionar essas celeumas, por meio do uso da equidade.
A Suprema Corte, ao equiparar uniões homoafetivas às uniões estáveis, embasou-se no entendimento do “fenômeno social jurídico”, impreterível para a solução da problemática. E, neste sentido, para sanar a omissão legislativa, se faz necessária a compreensão pelo jurista do fato social, enquanto produto da atuação do indivíduo em seu meio, não bastando a aplicação da letra fria da lei. Conforme dispõe Pontes de Miranda:
"Diante das convicções da ciência, que tanto nos mostram e comprovam explicação extrínseca dos fatos (isto é, dos fatos sociais por fatos sociais, objetivamente), o que se não pode pretender é reduzir o direito a simples produto do Estado. O direito é produto dos círculos sociais, é fórmula da coexistência dentro deles. Qualquer círculo, e não só os políticos, no sentido estrito, tem o direito que lhe corresponde."(Miranda, 1955, p.170)
Ressalta-se, neste contexto, a importância da sociedade enquanto elemento essencial na transformação da norma. Ante a dinamicidade das relações sociais, ao Direito restou um papel de grande complexidade, tendo em vista o desafio a este imposto de acompanhar as constantes transformações no seio da sociedade e, de forma semelhante, apresentar soluções para os prováveis conflitos que venham a surgir.
É certo afirmar que ao Direito incumbe a regulamentação das relações entre os indivíduos. Portanto, cabe ao Poder Legiferante a obrigatoriedade de disciplinar as relações homoafetivas, quanto aos seus efeitos jurídicos. Tal prerrogativa visa assegurar direitos e impor deveres aos parceiros entre si, entre estes e a coletividade e entre esta e aqueles.
3. A FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988:
Entre os inúmeros organismos sociais e jurídicos existentes, a Família tem proteção especial por ser esta a base do sistema organizacional da sociedade. Neste sentido, cabe a instituição Família a função de nortear o sistema político vigente, daí o porquê de sua importância fundamental, digna de tutela constitucional.
Nota-se que o conceito, a compreensão e a extensão do que venha a ser Família tem sofrido constantes alterações, o que possibilita, igualmente, transformações nos regramentos da matéria vigentes na ordem jurídica.
A Constituição Federal, devido a inserção do art. 226, passou a estabelecer a pluralidade de entidades familiares. Com a alteração, o casamento deixou de ser única forma de constituição da Família, tendo em vista a tutela exercida pelo Estado de forma expressa e isonômica, às Famílias constituídas pela união estável (§3°, art.226) e a família monoparental (§4°, art.226), ampliando desta forma, o conceito de Família. Assim, dispõe o referido artigo da Constituição Federal:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º. O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º. O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º. Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º. Entende-se, também, como entidade familiar à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º. Os direito e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.
§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privada.
§ 8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”
Ao contrário da interpretação de alguns, o art. 226, caput, da CF não limitou as modalidades de instituição de família às previstas nos §§ 1º, 3º e 4º, quais sejam, casamento, união estável e família monoparental. Não, o caput do artigo dispõe que o objeto da proteção do Estado é a família, gênero que abriga muitas espécies, inclusive as mencionadas nos citados parágrafos, numa enunciação exemplificativa, mas não taxativa. Assim, também, não estabeleceu hierarquia entre entidades familiares, daí por que cabe ao intérprete o papel de identificar no cotidiano o modelo de família a ser tutelada e reconhecida juridicamente. Maria Berenice Dias ao tratar dessas novas possibilidades de constituição familiar, afirma:
“As famílias modernas ou contemporâneas constituem-se em um núcleo evoluído a partir do desgastado modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, patrimonializado e heterossexual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Neste seu remanescente, que opta por prole reduzida, os papéis se sobrepõem se alternam, se confundem ou mesmo se invertem, com modelos também algo confusos, em que a autoridade parental se apresenta não raro diluída ou quase ausente. Com a constante dilação das expectativas de vida, passa a ser multigeracional, fator que diversifica e dinamiza as relações entre os membros”. (DIAS, 2001, s/p).
Ressalta-se que essa nova concepção de formação de Família fundamenta-se no afeto, valor jurídico prestigiado pela Constituição Federal, portanto, digno de tutela estatal, o qual quebrou o paradigma voltado à ideia de prevalência do caráter religioso, produtivo, reprodutivo e patrimonial cultivado na ultrapassada família patriarcal.
A nova concepção de família condiz com o disposto na Magna Carta, tendo em vista que o legislador constituinte ao dar proteção à família pluralizada, apenas cumpriu com sua obrigação política como representante do Povo: enxergou o fato social, absorveu as mutações sociais e, em consequência, admitiu que as relações amorosas mudaram e continuam mudando. Hoje, o casal não precisa do consentimento de quem quer que seja para ter relacionamento sexual, para ter ou não ter filhos, para casar, constituir união estável ou união livre com quem quiser, seja com pessoa do sexo oposto ou do mesmo sexo, inclusive, com os avanços da biotecnologia e da engenharia genética, sequer é preciso ter relações sexuais para procriar.
Voltando ao princípio da afetividade, no momento atual o ordenamento jurídico não mais encontra óbice para acolher legalmente qualquer filho, tanto os havidos do casamento, como os extramatrimoniais, os nascidos de reprodução humana heteróloga (aqueles concebidos com sêmen de doador anônimo ou mesmo com óvulo de doadora anônima) e os adotados. Pois bem, é por esse viés do pluralismo da sociedade e da família, erigido, entre outros, sob os auspícios da dignidade humana, do afeto e da liberdade, que se estabeleceram a isonomia filial, a isonomia entre homem e mulher, a isonomia entre os cônjuges etc., e que se impõe seja também estabelecido o tratamento isonômico para qualquer tipo de família, a exemplo da homoafetiva.
Assim, o entendimento ampliativo da norma, no tocante à titularidade dos direitos assegurados aos indivíduos, tem importância no fato de se garantir a eficácia do princípio constitucional da igualdade, presente no Estado Democrático de Direito. Nesse sentido:
“[…] Constitui pressuposto essencial para o respeito à dignidade da Pessoa Humana a garantia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivos de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.” (SARLET, 2001, p. 91-92).
A referência constitucional à entidade familiar visa assegurar a inclusão de forma indiscriminada de qualquer uma, não permitindo deixar ao desabrigo do conceito de Família – conceito equívoco – a entidade homoafetiva.
4. AMPARO CONSTITUCIONAL À UNIÃO HOMOAFETIVA
A Constituição vista como simples compilação de regras norteadas por princípios que se consubstanciam em normas de eficácia programática e aplicabilidade mediata, ou seja, normas que necessitam da edição de dispositivos infraconstitucionais para sua eficácia, não condiz com a presente necessidade de se dar máxima efetividade às disposições contidas no corpo constitucional.
Os princípios, enquanto elementos detentores de função normativa, apresentam grande importância no atual ordenamento jurídico. Para Espíndola (1998, p. 47- 48), o vocábulo princípio designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por um conceito mestre, de onde todos os demais pensamentos derivam e se subordinam. Assim sendo, os princípios consistem em fundamento para outras normas.
Desta forma, é cediço que a teoria normativa dos princípios apresenta forte ligação com o Pós-Positivismo (BONAVIDES, 2006, p.265, 276 e 294), atual fase do constitucionalismo, que se posiciona favorável à existência da normatividade dos princípios. Nessa direção, expõe Luís Roberto Barroso:
“O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais. (…) O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade. Por outro lado, o discurso científico impregnara o Direito. Seus operadores não desejavam o retorno puro e simples ao jusnaturalismo, aos fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos de uma razão subjetiva. Nesse contexto, o pós-positivismo não surge com o ímpeto da desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade. O constitucionalismo moderno promove, assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito” ( BARROSO, 2006, p.27-28).
A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe acerca de inúmeros princípios, a exemplo da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da não discriminação e da liberdade, os quais merecem maior atenção, dada a pertinência com o tema em questão.
4.1- Princípio da Dignidade da Pessoa Humana:
A atual Carta Magna, em seu art. 1°, estabelece os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. A relevância destes, para o ordenamento jurídico brasileiro, está ligada ao fato de formarem um esteio para todas as outras normas constitucionais, e, consequentemente, de exercerem forte comando sobre as normas infraconstitucionais.
Deste modo, dentre os princípios relacionados no referido dispositivo constitucional, está posta a Dignidade da Pessoa Humana.
“Art. 1°. A República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos. (…)
III – a dignidade da pessoa humana;”
O jurista Ingo Wolfgang Sarlet, ao conceituar a Dignidade da Pessoa Humana, afirma que:
"Temos por Dignidade da Pessoa Humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos". (SALET, 2001, p. 60)
A inserção da Dignidade da Pessoa Humana como fundamento do Estado Democrático de Direito tem importância no fato do referido princípio balizar o sistema jurídico, nos mais diversos campos do Direito. Segundo Sarlet (2003, p.115), “a Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática”.
Não resta dúvida que a Dignidade da Pessoa Humana necessita de ser preservada, e tal fato está ligado à ideia de ser esta um princípio fundamental constitucional. E, neste sentido, acrescenta José Afonso da Silva:
“A dignidade da pessoa humana por ser essencialmente um valor absoluto não pode ser objeto de relativização ou ponderação. A dignidade da pessoa humana define um núcleo intocável de direitos e é a partir desse núcleo que os princípios e direitos fundamentais se definem e podem ser ponderados. Apreciar, valorar ou relativizar é tirar todo o sentido da dignidade da pessoa, colocando em risco a própria existência do princípio. A dignidade humana não pode ser reduzida, mas sim afirmada, devendo ser o marco inicial e referência central na ponderação e mensuração de todos os outros valores.” (2003, p.207)
Assim, por meio do princípio supracitado concebe-se a valorização do indivíduo, através da visão da dignidade como a razão fundamental para a estrutura organizacional do Estado e do Direito, devendo-se garantir a todo ser humano respeito enquanto pessoa, bem como o direito de autodeterminar-se. Neste contexto, dispõe:
“[…] se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (MORAES, 1998, p. 60).
A sexualidade, enquanto direito natural, é uma prerrogativa do indivíduo. Assim, é inalienável e imprescritível, integrando a própria condição humana e, portanto, exercendo papel fundamental para o livre desenvolvimento da individualidade e personalidade das pessoas.
E, neste sentido, é notória a existência da relação entre a dignidade da pessoa humana e a homossexualidade do indivíduo, já que o referido princípio assegura o respeito ao exercício da sexualidade, garantindo o direito a tratamento igualitário, independentemente da tendência afetiva. Maria Berenice Dias comenta que:
"Qualquer discriminação baseada na orientação sexual do indivíduo configura claro desrespeito à dignidade humana, a infringir o princípio maior imposto pela Constituição Federal, não se podendo subdimensionar a eficácia jurídica da eleição da dignidade humana como um dos fundamentos do estado democrático de direito. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições de direitos servindo de fortalecimento a estigmas sociais e causando sofrimento a muitos seres humanos" (DIAS, 2010, s/p)
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em decisão recente, dispôs nesse sentindo:
“DIREITO DE FAMÍLIA – AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA – ART. 226, § 3º, DA CF/88 – UNIÃO ESTÁVEL – ANALOGIA – OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – VERIFICAÇÃO – Inexistindo na legislação lei específica sobre a união homoafetiva e seus efeitos civis, não há que se falar em análise isolada e restritiva do art. 226, § 3º, da CF/88, devendo-se utilizar, por analogia, o conceito de união estável disposto no art. 1.723 do Código Civil/2002, a ser aplicado em consonância com os princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput e inc. I, da Carta Magna) e da dignidade humana (art. 1º, inc. III, c/c art. 5º, inc. X, todos da CF/88). TJMG AC 1.0024.09.484555-9/001, rel. Des. Elias Camilo, p. 20/04/2010.”
De forma semelhante, o Tribunal do Rio Grande do Sul decidiu:
“UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DE BENS SEGUNDO O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. DIREITO À MEAÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIO DA BOA FÉ OBJETIVA. Constitui união estável a relação de fato entre duas mulheres, consistente na convivência pública e ininterrupta pelo período de cinco anos, com o objetivo de formação de família, observados os deveres de mútua assistência, lealdade, solidariedade e respeito. A homossexualidade é um fato social que acompanha a história da humanidade e não pode ser ignorada pelo Judiciário, que deve superar preconceitos para aplicar a tais relações de afeto efeitos semelhantes aos que se reconhecem a uniões entre pessoas de sexos diferentes. Aplicação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, além da analogia, dos princípios gerais de direito e da boa-fé objetiva, na busca da concretização da justiça. Possibilidade de partilha dos bens amealhados durante o convívio, de acordo com as normas que regulamentam a união estável, utilizado como paradigma supletivo para evitar o enriquecimento sem causa. (RS – 1ª Vara de Família e Sucessões de Alvorada – Proc. 003/1.07.0001956-8 – Ação de Dissolução de União Estável – Juíza de Direito Evelise Leite Pâncaro da Silva – j. 13/01/2009)”.
O princípio em epígrafe, ao elevar o ser humano ao centro do ordenamento jurídico, aponta o dever das normas em atender as necessidades do indivíduo, bem como proporcionar-lhe vida digna por meio da efetiva prevalência dos direitos fundamentais. Assim, a dignidade enquanto núcleo essencial dos direitos humanos que acompanham o homem ao longo de toda sua existência, visa tutelar de forma indiscriminada, direitos, liberdades e garantias pessoais dos indivíduos.
É notório que não é apenas a Constituição brasileira que assegura o princípio em análise, várias outras constituições e declarações internacionais reconhecem a dignidade humana como valor supremo. Nesta vereda, a Constituição Portuguesa, promulgada em 1976, o estabelece em seu art. 1°, entre os princípios basilares: “Portugal é uma República soberana, baseada, entre outros valores na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Ocorre que, a dignidade é preexistente ao Estado Português, o que significa que o seu reconhecimento e sua efetivação são indispensáveis para a legitimidade do ordenamento jurídico.
É salutar destacar o papel da família, enquanto espaço propulsor da Dignidade da Pessoa Humana. Atribui-se a tanto o fato de o referido princípio encontrar na família o núcleo fundamental para o seu desenvolvimento, digno de tutela constitucional. Conforme nota-se pelo disposto no art. 226 da CF/88, o intuito da Carta Magna é tutelar a dignidade do indivíduo no âmbito familiar.
O desrespeito aos indivíduos integrantes da união homoafetiva afronta diretamente o princípio da dignidade humana, ao sobrestar o direito destes de terem tutelada a sua liberdade sexual. Desta forma:
“(…) na construção da individualidade de uma pessoa, a sexualidade consubstancia uma dimensão fundamental da constituição da subjetividade, alicerce indispensável para a possibilidade do livre desenvolvimento da personalidade. Fica claro, portanto, que as questões relativas à orientação sexual relacionam-se de modo íntimo com a proteção da dignidade da pessoa humana. Esta problemática se revela notadamente em face da homossexualidade, dado o caráter heterossexista e mesmo homofóbico que caracteriza a quase totalidade das complexas sociedades contemporâneas”. (RIOS, 2002, p. 90-91).
A omissão do legislador no tocante ao reconhecimento da união homoafetiva, enquanto entidade familiar, por muito tempo afrontou a dignidade humana de uma forma ampla e, consequentemente, outros direitos que se fundamentam no referido princípio. Deste modo, o direito dos indivíduos à privacidade e à intimidade (art. 5°, X, da CF), sofria restrições no dado instante em que se limitava a liberdade dos companheiros de escolherem seus parceiros para estabelecerem relação familiar. Neste aspecto, assim se expressa Roxana Cardoso Brasileiro Borges:
“Um dos principais conceitos na discussão sobre a autonomia jurídica individual e a autonomia privada e os direitos de personalidade é o de respeito à vida privada, em sentido amplo, que se volta para a liberdade de vida das pessoas, significando o direito que a pessoa tem de conduzir sua vida por si mesma, sem direcionamentos públicos, venham estes do Estado, da Sociedade ou de outro indivíduo ou grupos de indivíduos, desde que suas ações não causem danos a terceiros ou não ponham em risco a ordem pública. Esse conceito é muito importante diante do progressivo nivelamento dos indivíduos na sociedade de massa. O exercício positivo dos direitos de personalidade pode ser um anteparo a esse projeto homogeneizante.” (2005, p. 244).
A Suprema corte Federal, por meio do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceu a possibilidade de constituição de entidade familiar entre indivíduos de mesmo sexo, igualando tais relações às uniões estáveis. Esta decisão do STF teve como intuito suprir a ausência de legislação que regule as referidas relações, bem como assegurar a prevalência da Dignidade da Pessoa Humana.
A decisão dos ministros desempenha fundamental importância no combate à discriminação e visa garantir ao indivíduo respeito e proteção, tutelando as suas prementes necessidades básicas, independentemente de sua orientação sexual.
4.2- Princípio da Liberdade
No decorrer dos tempos, a humanidade sempre objetivou a prevalência da liberdade de seus membros. Para o indivíduo, a liberdade tem sentido amplo e é inerente a sua própria natureza, devendo ser assegurado o seu direito de escolher e viver livremente no meio social.
Marilena Chauí apresenta uma visão filosófica do tema em epígrafe:
“Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais – justiça, igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e, no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O segundo momento é a busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal”. (CHAUÍ, 1999, p.365)
Correntes divergem, no que se refere à concepção de liberdade. Para os adeptos da visão aristotélica, a liberdade significa o poder de autodeterminação e de escolha sem intervenção externa. Opostamente a esta concepção, outra corrente define a liberdade como produto de um contexto externo, divergindo da ideia de ato de escolha do indivíduo. Uma terceira corrente, mais moderna, apresenta o conceito de liberdade ligado a visão de poder de escolha do indivíduo condicionada pelas circunstâncias alheias.
Na visão de José Afonso da Silva (2005, p.233), o princípio da liberdade está ligado à ideia de poder de atuação do homem com o intuito de buscar sua realização enquanto pessoa, consistindo, deste modo, na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal.
No referente à ideia de democracia presente em um Estado Democrático de Direito, é perceptível não apenas o dever de garantir ao indivíduo a liberdade de optar entre diferentes alternativas, mas de forma semelhante deve-se assegurar meios para que estas escolhas possam vir a se concretizarem.
O papel do Estado de tutelar a prevalência da liberdade torna-se ainda mais complexo quanto se trata da formação da personalidade do indivíduo, já que os direitos oriundos desta merecem maior atenção, dado o seu caráter subjetivo, como é o caso da sexualidade.
“Diante das garantias constitucionais que configuram o Estado Democrático de Direito, impositiva a inclusão de todos os cidadãos sob o manto da tutela jurídica. A constitucionalização da família implica assegurar proteção ao indivíduo em suas estruturas de convívio, independentemente de sua orientação sexual.” (DIAS, 2010, p.194.)
Deste modo, a Constituição Federal, em seu art. 5º, ao tratar da liberdade, assegura aos indivíduos a livre orientação sexual, enquanto identidade pessoal entre pessoas, não devendo, pois, ser essa uma justificativa para a existência de um tratamento diferenciado.
O direito do indivíduo poder livremente fazer sua opção sexual condiz com o que preceitua o princípio da liberdade. E neste sentido, da mesma forma que as relações heterossexuais, às uniões homoafetivas devem ser igualmente tuteladas pelo ordenamento jurídico.
4.3- Princípio da isonomia:
A isonomia, enquanto princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio, tem essencial importância na concretização do Estado Democrático de Direito. Assim, a desigualdade no tratamento dos indivíduos tem como consequência o rompimento dos preceitos postos por uma Constituição garantista, como a brasileira.
Nota-se que a Carta Magna alberga em seus dispositivos a igualdade. E neste contexto, o art. 3°, inciso IV, da Lei Maior brasileira estabelece como objetivo da República Federativa do Brasil o princípio, ora em análise, nos seguintes termos: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
O art. 5°, caput, da Lei Maior é taxativo na imposição da isonomia, dispondo:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (….) .”
O tratamento indiscriminado assegurado de forma expressa pela Carta Magna, tem como fulcro a efetiva proteção isonômica de todos os cidadãos. É notória a proibição de discriminação de qualquer tipo ou natureza, conforme aponta o artigo supracitado.
Diante da amplitude contida na ideia de igualdade a que se refere o dispositivo constitucional, é cediço que entre os preceitos que o ordenamento estabelece como não passíveis de discriminação, está a orientação sexual dos indivíduos.
E neste sentido, a rejeição à existência de uniões homossexuais contraria os objetivos dispostos na Constituição da República. Corroborando com esta ideia, o preâmbulo constitucional prevê um Estado Democrático de Direito que tem como fulcro garantir, dentre outros valores, a justiça, a liberdade, a igualdade e o bem-estar, valores este necessariamente presentes em uma sociedade embasada na fraterna, pluralista e sem preconceitos como a brasileira.
Entretanto, ainda que a Constituição Federal assegure a prevalência da isonomia entre todos os indivíduos, o tratamento discriminatório tem ocorrido de forma contumaz no âmbito social e também no judicia. Neste sentido, a antiga visão que estabelecia a homossexualidade como crime passível de castigo ou pena, vai de encontro aos fundamentos postos. Dispõe Konrad Hesse que:
“Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei (artigo 3º, alínea 1, Lei Fundamental). Ela pede a realização, sem exceção, do direito existente, sem consideração da pessoa: cada um é, em forma igual, obrigado e autorizado pelas normalizações do direito, e, ao contrário, é proibido a todas as autoridades estatais não aplicar direito existente em favor ou à custa de algumas pessoas. Nesse ponto, o mandamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do estado de direito.” (HESSE, 1998, p.330)
Nota-se que o fato de as uniões homoafetivas não serem tuteladas de forma expressa pelo texto constitucional, bem como da legislação infraconstitucional, reflete fortemente na discriminação entre indivíduos. Para o vulgo, é como se, subliminarmente, houvesse o alerta: "se a lei não contempla tal comportamento, é porque ele não é correto". Assim, a omissão legislativa diante das relações homossexuais, destoa totalmente do princípio constitucional da isonomia e desrespeita-o.
Importa ressaltar que os direitos relacionados a uniões homoafetivas estão ligados à esfera moral. E devido a tal fato, o tratamento dado aos indivíduos deve se pautar na ideia de igualdade, almejando uma Justiça que trate isonomicamente a todos, conforme estabelece a Constituição como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, em seu art. 3º, inciso I.
A orientação sexual, enquanto direito fundamental garantido pela Constituição, apresenta uma dupla perspectiva que se consubstancia em ações positivas e negativas. Quanto ao aspecto negativo, nota-se que o Estado é obrigado a não questionar ou discutir questões que envolvem a opção sexual dos indivíduos. Por outro lado, exigem-se do Estado ações positivas no sentido de haver mais empenho e determinação nas intervenções que visem coibir o tratamento discriminatório entre a pessoas.
A Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direito Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ao repelirem a discriminação por opção sexual, reafirmam a exigência sobre o respeito e o cumprimento do princípio da isonomia. O Brasil, por exemplo, assinou o Pacto de San José em 1992, mas a Constituição Brasileira que privilegia a igualdade, porque a reconhece e exige seu cumprimento pelos cidadãos brasileiros, vige desde 1988.
Devido ao fato de as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais terem aplicação imediata, nos moldes do § 1º, do art. 5º da Constituição Federal, esse comando se aplica aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, dada a semelhança no tratamento constitucional da matéria.
É cediço que o princípio da não discriminação não deve ser compreendido a partir dele próprio, tendo em vista ser este um consectário ou reflexo do princípio da isonomia, já que esse princípio visa sobrestar as desigualdades existentes entre indivíduos. Assim, resta claro que a efetivação da igualdade consiste em assegurar o direito a não discriminação.
Portanto, não há justificativa para que a homoafetividade seja marginalizada pelo Poder Legislativo, quando, além do que impõe o próprio ordenamento jurídico, deveria seguir o exemplo do Poder Judiciário, reconhecendo a existência das uniões homoafetivas e os direitos a elas atinentes. Na verdade, insiste-se, é sabido que o Poder Legislativo vem procrastinando a aprovação do Estatuto das Famílias, exatamente, por conta do reconhecimento da família homoafetiva, proposto no citado projeto de lei.
5. RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR:
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu as uniões entre indivíduos do mesmo sexo como entidade familiar, teve por intuito assegurar a não discriminação em virtude da preferência sexual, garantida pelo art. 3°, inciso IV, da CF.
A decisão do STF, no julgamento da ADI 4.277/DF e da ADPF 132/RJ, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, deu ao art. 1.723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Pela decisão do STF, o reconhecimento há de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequência da união estável heteroafetiva.
A decisão do STF tem eficácia “erga omnes” e efeito vinculante, ou seja, aplica-se a todos, indistintamente. Deste modo, ao posicionar-se de forma favorável à união homoafetiva, o STF vinculou às decisões posteriores à sua, de modo que a decisão (em todos seus termos) há de ser obedecida por todos de maneira obrigatória.
O enfrentamento da temática pelo STF dividiu opiniões de diferentes grupos sociais, bem como de estudiosos do direito. Para alguns doutrinadores a decisão do Supremo consiste em ativismo do Poder Judiciário, já que o grupo entende que ao reconhecer o direito da união entre indivíduos de mesmo sexo, a Corte criou uma norma jurídica, inovando no ordenamento pátrio. E, como é cediço, não é competência do STF o ato de legislar sobre qualquer que seja o tema, cabendo esta função ao poder legislativo.
Assim, para esta corrente, o fato de o legislador ter especificado o reconhecimento da união estável “entre o homem e a mulher” (Constituição Federal, art. 206, § 3º) têm por consequência a exclusão da aplicabilidade do instituto às relações existentes entre pessoas de mesmo sexo, sendo inadmissíveis as constituições de Família homoafetiva.
Deste modo, asseveram ser incabível, no presente caso, a utilização da analogia pelo Judiciário como instrumento eficaz para decidir de forma contrária ao texto Constitucional.
Neste contexto, Streck, Barreto e Oliveira (2011, s/p) ressaltam que:
“Não se trata de ser contra ou a favor da proteção dos direitos pessoais e patrimoniais dos homossexuais. Aliás, se for para enveredar por esse tipo de discussão, advertimos desde já que somos absolutamente a favor da regulamentação de tais direitos, desde que efetuados pela via correta, que é a do processo legislativo previsto pela Constituição Federal. O risco que exsurge desse tipo de ação é que uma intervenção desta monta do Poder Judiciário no seio da sociedade produz graves efeitos colaterais. Quer dizer há problemas que simplesmente não podem ser resolvidos pela via de uma ideia errônea de ativismo judicial. O Judiciário não pode substituir o legislador.”
Para Luís Roberto Barroso, o conceito de ativismo judicial é ligado à ideia de interpretação da Constituição de forma a ampliar o sentido e alcance de suas normas, consistindo na intervenção ampla e intensa do Poder Judiciário na concretização das normas. Tal atitude do Judiciário tem como conseqüência a interferência na esfera da competência dos Poderes Executivos e/ou Legislativo.
O ativismo dos poderes encontra vedação no art. 2° da Carta Magna, este dispositivo garante a harmonia e a independência entre os três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), atribuindo desta forma a delimitação de competências como instrumento necessário para a ocorrência da referida independência e principalmente da harmonia entre os Poderes.
Já para os defensores da legitimidade da decisão da Suprema Corte, o reconhecimento da união estável entre indivíduos de mesmo sexo consistiu uma medida de salvaguarda dos preceitos fundamentais contidos na Constituição Federal, por meio da utilização de uma técnica de controle de constitucionalidade das leis.
Neste sentido, o Ministro Celso Melo se posiciona de forma favorável à postura da Corte:
“O STF, sob a atual Constituição, tomou consciência do alto relevo de seu papel institucional. Desenvolveu uma jurisprudência que lhe permite atuar como força moderadora no complexo jogo entre os poderes da República. Desempenha o papel de instância de equilíbrio e harmonia destinada a compor os conflitos institucionais que surgem não apenas entre o Executivo e o Legislativo, mas, também, entre esses poderes e os próprios juízes e tribunais. O Supremo acha-se investido, mais do que nunca, de expressiva função constitucional que se projeta no plano das relações entre o Direito, a Política e a Economia. O tribunal promove o controle de constitucionalidade de todos os atos dos poderes da República. Atua como instância de superposição. A Suprema Corte passa a exercer, então, verdadeira função constituinte com o papel de permanente elaboração do texto constitucional. Essa prerrogativa se exerce, legitimamente, mediante processos hermenêuticos. Exerce uma função política e, pela interpretação das cláusulas constitucionais, reelabora seu significado, para permitir que a Constituição se ajuste às novas circunstâncias históricas e exigências sociais, dando-lhe, com isso, um sentido de permanente e de necessária atualidade. Essa função é plenamente compatível com o exercício da jurisdição constitucional. O desempenho desse importante encargo permite que o STF seja co-partícipe do processo de modernização do Estado brasileiro”. (CHAER, 2006, s/p).
Os críticos alegam ser inegável que a postura do STF, não raramente, tem ocorrido de forma ativista e intervencionista, citando como exemplo as decisões da Corte nas ações que tratam dos casos de demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, quando dezenove medidas foram impostas para a ocorrência da demarcação da referida área. De forma semelhante, dizem, se deu no julgamento referente ao direito de greve no serviço público, à imposição da fidelidade partidária, assim como no uso restrito das algemas etc.
Ocorre que, no caso da decisão sobre o reconhecimento da família homoafetiva, o STF admitiu legitimamente a aplicabilidade dos direitos fundamentais de forma indiscriminada, equiparando a união de indivíduos de mesmo sexo às uniões estáveis. O texto constitucional ao se referir à união estável “entre homem e mulher” não teve por intuito excluir ou restringir hipóteses de constituição familiar. Assim, assiste direito aos indivíduos homossexuais de constituírem entidade familiar, já que deve prevalecer no caso sub judice a interpretação que reconhece o afeto como núcleo do conceito de Família e, portanto, digno de tutela, não ensejando a exclusão dos direitos inerentes aos indivíduos por questão de sexualidade.
Resta clara a inexistência de vedação do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, por parte do § 3° do art. 226 da CF e do art. 1.723 do Código Civil. Assim, não há de se falar em ativismo do Judiciário no julgamento da (ADI) 4277 e da (ADPF) 132.
Durante anos, as uniões entre indivíduos de mesmo sexo não foram regulamentadas. Atribui-se, para tanto, o fato de por um longo período tramitar sem julgamento no Legislativo o projeto de lei que visa assegurar os direitos dos integrantes das uniões homoafetivas.
Entretanto, pressionado por grupos influentes, o Legislativo adotou a omissão como solução para a celeuma. Aliás, esta postura tem sido adotada, reiteradas vezes pelo referido Poder em relação a todos os projetos de lei que apresentam conteúdo polêmico e passível de divisão da opinião pública, como o já citado Estatuto das Famílias.
Caso semelhante de omissão do Legislativo ocorre com o Projeto de Lei (PL) 222 que visa criminalizar atos discriminatórios a homossexuais. Denominado de homofóbico, o projeto de lei tem sido alvo de constantes polêmicas. Entretanto, apesar de anos de tramitação na Câmara de Deputados e no Senado Federal, o projeto não foi julgado, fato este que comprova a omissão dos representantes do povo, em relação a uma questão de grande relevância para sociedade.
“Na verdade, o que acontece é que a sociedade, influenciada pela Igreja, pressiona os legisladores, os quais ficam com receio da desaprovação de seu eleitorado e, por consequência, temem a perda de votos na próxima eleição. Estes, então, acabam não aprovando projetos para reconhecimento de direitos e institutos, como o da união estável entre pessoas do mesmo sexo, por temer a reprovação de seu eleitorado.” (Knychala; LEME,s/d, p.4).
A referida postura do Poder Legislativo tem sobrecarregado o Judiciário, que em meio ao “fogo cruzado” não pode simplesmente se negar ao seu dever de julgar as demandas, sob alegação de ausência de norma. Neste sentido, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, contido no art. 5º, XXXV, da Constituição brasileira, veda a omissão do Poder Judiciário, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Nota-se que ao interpretar a lei civilista com fulcro na Carta Magna, o Supremo desempenhou sua função, enquanto guardião da Constituição Federal, equiparando a união entre indivíduos do mesmo sexo às uniões estáveis de modo à garantir a prevalência dos direitos fundamentais a estes grupos minoritários e marginalizados pela própria legislação.
Apesar de todas as críticas direcionadas a decisão tomada pelo STF, percebe-se o maior amadurecimento do Poder Judiciário brasileiro em decorrência dos outros poderes, principalmente do Legislativo. Resta evidenciada a diferença entre os poderes nas soluções das celeumas que envolvem questões controversas e interesses conflitantes entre grupos sociais.
O fato é que a carência de lei não significa ausência de direito, tendo em vista que é por demais injusto grupos minoritários carecerem de direitos tidos como fundamentais, ficando à mercê de um Legislativo muitas vezes inoperante e preocupado com os ideais partidários, colocando-os acima da própria convicção de Justiça.
Assim, valer-se da justificativa de interferência dos poderes para viciar a decisão do STF que reconhece a união homoafetiva, é vedar os olhos para uma realidade que há muito tempo aflige nosso ordenamento. Na verdade, a medida tomada pelo Judiciário ao se antecipar a existência da lei, utilizando-se de artifício hermenêutico para garantir aos indivíduos a prevalência dos Direitos Fundamentais contidos na Constituição, tem papel fundamental na supressão da crise institucional que durante anos assola o sistema político nacional.
6. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEUS REFLEXOS NO DIREITO DE FAMÍLIA
Partindo-se da premissa de que há necessidade de se conceder tutela a questões atreladas às uniões homoafetiva, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre indivíduos de mesmo sexo. Deste modo, a corte suprimiu a ausência legal no tocante a temática.
Neste ponto, é salutar mencionar Luis Roberto Barroso:
“A regra do art.226, §3° da Constituição, que se refere ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher, representou a superação da distinção se fazia anteriormente entre o casamento e as relações de companheirismo. Trata-se de norma inclusiva, de inspiração antidiscriminatória, que não deve ser interpretada como norma excludente e discriminatória, voltada a impedir a aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas. Justamente ao contrário, os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da liberdade impõem a extensão do regime jurídico da união estável às uniões homoafetivas. Igualdade importa em política de reconhecimento; dignidade em respeito ao desenvolvimento da personalidade de cada um; e liberdade no oferecimento de condições objetivas que permitam as escolhas legítimas. Ademais, o princípio da segurança jurídica, como vetor interpretativo, indica como compreensão mais adequada do Direito aquela capaz de propiciar previsibilidade nas condutas e estabilidade das relações.” (BARROSO, 2006, p.39)
Com o reconhecimento da união homoafetiva como núcleo familiar digno de tutela, é inegável a deflagração de efeitos pessoais e patrimoniais no ordenamento pátrio, com destaque para o âmbito do Direito de Família.
6.1 Efeitos pessoais:
Os efeitos pessoais da regulamentação das uniões homoafetivas estão ligados à ideia de reciprocidade entre os partícipes das relações. Nesta linha de raciocínio, nota-se que os integrantes destas relações, a exemplo do que ocorre nas uniões estáveis, apresentam o dever de observância em relação a necessidade de respeito aos direitos e deveres recíprocos e, suas relações pessoais.
Neste sentido, dispõe o art. 1.724 do vigente Código Civil brasileiro: “As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”. Tendo, portanto, aplicação direta no “novo” núcleo familiar, quer dizer, o que se aplica à união estável, aplicar-se-á à união homoafetiva, que outra coisa não é senão, também, uma união estável, desde que uma e outra atendam aos requisitos da lei: convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família (CC, art. 1.723).
Em conformidade com o dispositivo supracitado, nota-se que quatro são os deveres básicos aplicáveis às uniões homoafetivas. Assim como no casamento e na união estável heteroafetiva, os parceiros da união homoafetiva devem, um ao outro, lealdade, respeito e consideração, assistência, bem como, se houver filho, por adoção ou reprodução humana assistida heteróloga, terão o dever de guarda, sustento e educação sobre o menor.
A união estável se constitui independentemente de aprovação ou referendo de quem quer que seja, até mesmo do Estado. Portanto, se a união homoafetiva vier a ser constituída com elaboração de escritura pública, chegando ao fim pode ser desfeita consensualmente, sem intervenção do Judiciário, ou, não o sendo, litigiosamente com decisão prolatada em juízo na ação judicial promovida para a finalidade. No caso, irá tratar-se de Ação de Reconhecimento de Existência de União Estável Homoafetiva, e Dissolução da União Estável Homoafetiva, processada na Vara de Família, que é o foro competente. Há quem a nomeie como Ação de Reconhecimento e Dissolução de União Estável, mas ocorre que, quando as partes solicitam a tutela jurisdicional, o relacionamento já se encontra findo, daí não se justificar mais tal denominação.
Quanto aos deveres recíprocos relacionados pelo Código Civil (art. 1.566, I a V), é bastante pertinente dizer-se que o primeiro dever objeto de estudo é a lealdade, valor mais amplo do que a fidelidade, porque, enquanto esta se volta para o monopólio ou exclusividade das relações sexuais entre os parceiros, aquela envolve respeito aos compromissos assumidos, à palavra empenhada, às promessas, ou seja, a lealdade radica no âmbito da conduta moral dos conviventes. Os deveres de fidelidade recíproca e de vida em comum sob o mesmo teto, exigidos pelo Código Civil aos casados, não o são para a união estável, porque aqui se trata de relacionamento peculiar, em que há liberdade de constituição e dissolução, como foi acima abordado.
O respeito e a consideração mútuos, na verdade, não são deveres do casamento nem da união estável, são deveres sociais que se impõem a qualquer relacionamento entre pessoas, seja no lar, na rua, no trabalho, na escola etc, os indivíduos precisam se tratar com respeito e consideração, quer dizer, exige-se a preservação da dignidade humana.
Percebe-se que os deveres até aqui comentados dizem respeito à vida privada dos parceiros, a sua comunhão de vidas, eles não representam interesse público, mas interesse privado, razão por que a inobservância deles não é juridicamente relevante. Assim, se no casamento ou na união estável um dos parceiros é infiel ou desleal, desrespeitoso e sem consideração para com o outro, a solução plausível é a extinção do relacionamento.
Diferentemente ocorre com os deveres de mútua assistência e sustento, guarda e educação dos filhos, porquanto não se relacionam à vida privada do casal ou dos parceiros. Assim, são deveres que expressam interesse público relevante, sendo juridicamente exigíveis, mediante ação de alimentos, requerendo-se o cumprimento da obrigação de alimentos (alimentos decorrentes do parentesco ou do dever de mútua assistência, sendo este último o que interessa nesta abordagem) ou do dever de sustento, guarda e educação dos filhos (reclamáveis em ação de alimentos, ação de guarda, ação de regulamentação do direito de visitas etc.).
Em razão do dever de mútua assistência, não há dúvida de que, assim como os cônjuges, os companheiros ou conviventes têm direito a alimentos, seja a união estável de caráter heterossexual ou homoafetivo, provando-se a incidência do binômio necessidade (do credor) x possibilidade (do devedor). A propósito:
“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS E ALIMENTOS. COMPETÊNCIA DAS VARAS DE FAMÍLIA. INICIAL NOMINADA ERRONEAMENTE DE SOCIEDADE DE FATO. NULIDADE INOCORRENTE. PRELIMINAR REJEITADA. Não é nulo o processo e a sentença quando se constata ter havido apenas mero equívoco terminológico no nome dado à ação, sendo clara a intenção do autor de buscar o reconhecimento de uma `união estável, e não mera `sociedade de fato. Versando a controvérsia sobre direito de família, a competência funcional é das Varas de Famílias. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. A união homoafetiva é fato social que se perpetua no tempo, não se podendo admitir a exclusão do abrigamento legal, impondo prevalecer a relação de afeto exteriorizada ao efeito de efetiva constituição de família, sob pena de afronta ao direito pessoal individual à vida, com violação dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Diante da prova contida nos autos, mantém-se o reconhecimento proferido na sentença da união estável entre as partes, já que entre os litigantes existiu por mais de dez anos forte relação de afeto com sentimentos e envolvimentos emocionais, numa convivência more uxoria, pública e notória, com comunhão de vida e mútua assistência econômica, sendo a partilha dos bens mera conseqüência. ALIMENTOS. DESCABIMENTO. Revelando-se o requerente pessoa jovem e sem qualquer impedimento ao trabalho, é de se indeferir o pensionamento, impondo-se a efetiva reinserção no mercado de trabalho, como, aliás, indicado nos autos. Preliminar rejeitada e recurso do requerido provido em parte, por maioria, e recurso do autor não conhecido, á unanimidade.” (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70021908587, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 05/12/2007)
Por evidente, a mútua assistência entre os pares não se resume à prestação material de alimentos, mas alcança a ajuda moral e espiritual, o companheirismo, enfim, cuida da assistência imaterial. Aliás, a assistência tem sido um aspecto de grande relevância para o reconhecimento pelos tribunais da existência de união estável entre indivíduos, como aconteceu nessa decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul:
“Ementa: AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. POSSIBILIDADE JURÍDICA. 1. Os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, dentre outros, que retratam direitos e garantias fundamentais, se sobrepõem a quaisquer outras regras, inclusive à insculpida no artigo 226, §3º, da Constituição Federal, que exige a diversidade de sexos para o reconhecimento da união estável. 2. Restando devidamente comprovada a existência, por mais de quatro anos, de relação de afeto entre as partes, numa convivência more uxoria, pública e notória, com comunhão de vida e mútua assistência, deve ser mantida a sentença que reconheceu a união estável. RECURSO IMPROVIDO”. (Apelação Cível Nº 70016660383, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 26/10/2006)
6.2- Efeitos patrimoniais:
Observa-se que com a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis, além de efeitos pessoais, também decorrem efeitos de ordem patrimonial como a fixação de alimentos entre companheiros, o estabelecimento de regime de bens, bem como o direito à herança e até mesmo à pensão por morte. No que se refere a alimentos, esse direito-dever foi abordado no item anterior.
Quanto ao regime de bens das uniões homoafetivas,as normas aplicáveis são as que regulamentam a matéria na união estável. Então, de acordo com o art. 1.725 do Código Civil: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. Fica claro que, por contrato escrito, os conviventes podem dispor o regime que quiserem e que não ofenda à lei. Não havendo contrato escrito ou sendo ele nulo, aplica-se o regime legal, que é o da comunhão parcial de bens.
O Código Civil estabelece que:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”
O dispositivo supracitado tem sido bastante criticado por parte da doutrina, devido ao fato de apresentar diferenciação entre a viuvez de uma esposa e a separação por morte entre companheiros, estando estes últimos em situação de inferioridade, desfavorável a eles em razão da falta de isonomia sucessória, conforme claramente disposta no transcrito inciso III (até primo terá mais direito do que o ou a companheira sobrevivente).
Deste modo, os efeitos decorrentes do reconhecimento da nova entidade familiar, denominada de união estável homoafetiva, fizeram surgir inovações no âmbito do Direito de Família. Entretanto, conforme restou demonstrado, tais inovações apresentam grande similitude ao regramento aplicável as uniões estáveis entre indivíduos heterossexuais.
CONCLUSÃO
O presente trabalho monográfico intitulado “União homoafetiva: o direito das minorias” buscou tratar do Direito, enquanto elemento fundamental no combate ao preconceito social. O motivo pelo qual se optou pelo tema, está atrelado à necessidade de se aprofundar nas controvérsias pertinentes ao reconhecimento da união homoafetiva enquanto entidade familiar. Certamente, a principal dificuldade enfrentada na realização do presente trabalho, foi a de tratar de uma temática bastante complexa e polêmica com fulcro em bibliografias ainda recentes, tendo em vista a contemporaneidade do tema em epígrafe.
Observou-se no decorrer deste trabalho que grupos minoritários presentes na sociedade enfrentam sérias dificuldades quanto ao reconhecimento de seus direitos. Esta realidade, cada vez mais evidente no Brasil, nos remete a uma série de questionamentos no tocante ao sistema normativo, organizacional e político pátrio.
O desrespeito aos princípios constitucionais causa o sentimento de insegurança jurídica no meio social. E neste sentido, nota-se que a discriminação de indivíduos homossexuais fere o princípio da isonomia assegurada pelo art. 3 °, IV, da Constituição Federal, que dispõe ser objetivo fundamental da República Federativa: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. O julgamento da (ADI) 4277 e da (ADPF) 132 pelo Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer o direito de pessoas de mesmo sexo constituírem família, equiparando esta relação às uniões estáveis, representou um avanço e fomentou a não discriminação.
Para alguns doutrinadores, a referida decisão constituiu um ato ativista do STF, com fulcro na alegação de que teria havido uma interferência do Poder Judiciário na competência do Poder Legislativo, situação esta vedada pelo art. 2° da Carta Magna. Ocorre que a referida alegação não procede, pois apesar da ausência de lei regulando as uniões homoafetivas, não há qualquer vedação legal para o reconhecimento da entidade familiar.
Deste modo, ante a omissão do Poder Legislativo em normatizar a matéria, restou à Suprema Corte equiparara união homoafetiva às uniões estáveis, visando dar prevalência aos preceitos fundamentais contidos na Constituição Federal, função esta inerente ao STF, por ser um tribunal constitucional, isto é, guardião da Constituição Federal, cabe a ele zelar pelo cumprimento das normas constitucionais. Neste sentido, nota-se que a ausência de lei não significa ausência de direitos.
Afirma a desembargadora Maria Berenice Dias (2006, p.24) que: “entre o preconceito e a justiça fique o Estado com a justiça e, para tanto, albergue que o direito legisla novos conceitos, derrogando velhos preconceitos”. Evidentemente, é dever de um Estado Democrático de Direito consagrar o princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, assegurando a juridicidade a todos os cidadãos, bem como o direito à liberdade, aos direitos sociais, à proteção estatal e, sobretudo, direito à felicidade.
O trabalho apresentado teve como intuito demonstrar as controvérsias existentes no tocante ao reconhecimento da entidade familiar constituída por pessoas de mesmo sexo. Através do estudo interdisciplinar, assim como pela contextualização histórica do tema, restou clara a importância de se tratar a matéria, não apenas no âmbito do Direito, mas também no contexto de outras ciências.
Com o reconhecimento da união homoafetiva, direitos até então alheios a estes indivíduos passaram a fazer parte da realidade desta entidade. Este fato teve grande relevância no âmbito do Direito de Família. Desse modo, direitos aos alimentos, à guarda de filho menor, até mesmo se o parentesco resultar da socioafetividade, direito à adoção conjunta de filho, direitos patrimoniais, passaram a integrar a realidade jurídica destas “novas” entidades familiares.
Finalmente, espera-se ter contribuído com a produção deste trabalho para o despertar de algumas questões atreladas às dificuldades enfrentadas pelos grupos minoritários, que compõe a sociedade de um modo geral.
A resistência do Poder Legislativo em legislar sobre matérias passíveis de divisão da opinião pública demonstra uma situação alarmante e cada vez mais constante no ordenamento pátrio. Desta forma, a ausência de leis não pode restringir os direitos inerentes às pessoas, de modo que o Direito preexiste à norma. Por meio desta visão é que o Poder Judiciário tem se utilizado da interpretação normativa e principiológica como medida eficaz para suprir a omissão legislativa.
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Informações Sobre o Autor
Hildebrando Diniz Araújo Júnior
Advogado sócio fundador do escritório H2 Advocacia Diniz. Bacharel pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Pós graduando em Direito Civil pela Universidade Anhanguera Uniderp – SP