O valor probatório do depoimento do ofendido no processo penal

Resumo: O presente artigo apresenta os sistemas de apreciação das provas no Processo Penal Brasileiro, traçando considerações a respeito da valoração da prova nos processos criminais. Apresenta aspectos jurídicos a respeito do valor probatório do depoimento do ofendido, sobretudo nos processos que tratam de crimes sexuais cometidos contra criança ou adolescente, pois nestes casos o depoimento da vítima deve ser tomado através do “depoimento sem dano”.

Palavras-chave: Provas. Processo Penal. Crimes sexuais. Depoimento. Depoimento sem dano.

Abstract: This article presentes the assessment systems of the evidences in the Brazilian Criminal Procedure Law, outlining considerations regarding the evaluation of evidence in criminal cases. It presentes juridical aspects concerning the probative value of the victim’s  testimony, especially in suits dealing with sexual crimes against children or teenagers, because in these cases the testimony of the victim should be taken through the “undamaged testimony”.

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Keywords: Evidences. Procedure Law. Sexual crimes. Testimony. Undamaged testimony.

Sumário: Introdução. 1. Sistemas de apreciação das provas no Processo Penal. 1.1. Sistema da íntima convicção. 1.2. Sistema da prova tarifada. 1.3. Sistema do livre convencimento motivado. 2. Valoração da prova no Processo Penal. 2.1. Valor do depoimento do ofendido 2.1.1. Depoimento sem dano. Conclusão.

Introdução

As provas, à luz do princípio da busca da verdade real, são instrumentos para que o magistrado forme o seu conhecimento valorativo acerca dos fatos que lhe são apresentados. Neste sentido, muitas são as fontes probatórias de que se pode valer o julgador em busca da verdade real.

O depoimento do ofendido, não obstante seja a sua parcialidade e o seu envolvimento direto com os fatos, é uma das provas previstas no Código de Processo Penal. A depender da espécie do crime praticado e das provas a disposição do julgador, o depoimento do ofendido pode ser valorado de diferentes maneiras.

Nos crimes sexuais o depoimento do ofendido tende a ter uma força probatória maior, pois, por vezes, é a única prova existente no processo. Assim, nesses crimes o juiz tende a valorar de forma diferente e especial a prova a que tem acesso para que busque uma solução justa para o caso.

Quando se trata de crimes sexuais contra crianças e adolescentes surge a figura do depoimento sem dano. Tal modalidade de depoimento tem como função colher de forma técnica e menos invasiva o depoimento das vítimas, assegurando o princípio da proteção integral do menor.

1. Sistemas de apreciação das provas no Processo Penal.

Para que se forme o convencimento do juiz, destinatário direto das provas, estabelece-se relações entre o julgamento da causa e as provas produzidas em juízo. Tais relações entre as vinculações do magistrado a determinados meios de provas, a gestão da prova por ele exercida e a sua apreciação dão origem a diversos sistemas de apreciação de prova que passarão a ser analisados individualmente.

1.1. Sistema da íntima convicção

O sistema da íntima convicção também é conhecido como sistema da certeza moral do juiz ou sistema da livre convicção. Nesse sistema a valoração da prova e as decisões do magistrado são livres, independem de motivação.

Segundo Renato Brasileiro, o referido sistema apresenta um bônus e um ônus:

A vantagem desse sistema é a liberdade que o magistrado tem para avaliar as provas de acordo com sua livre convicção, não estando preso a um sistema tarifado fixado em abstrato e a priori pelo legislador. Apresenta, no entanto, o gravame de não se exigir do magistrado qualquer espécie de fundamentação, o que compromete o controle sobre o exercício da função jurisdicional. (2014, p. 580)

Tal sistema, via de regra, é repelido pelo ordenamento brasileiro, ante a disposição constitucional contida no art. 93, IX, que assegura que:

“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.” (In: Planalto, 2016) [grifos nossos]

Apesar desta previsão constitucional, tal sistema é adotado no tribunal do juri, no qual os jurados não motivam o seu voto, até porque ele é sigiloso. Tal adoção decorre da, também constitucional, previsão contida no art. 5º, inciso XXXVIII:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII – É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:(…)

b) o sigilo das votações;” (In: Planalto, 2016) [grifos nossos]

Assim, ante a incompatibilidade lógica entre a motivação da decisão e o sigilo das votações, conclui-se que as decisões tomadas pelos jurados no âmbito do tribunal do júri prescindem de motivação, seguindo, portanto, o sistema da íntima convicção.

1.2. Sistema da prova tarifada.

O sistema da prova tarifada também é conhecido como sistema das regras legais, sistema da certeza moral do legislador ou sistema da prova legal. Nesse sistema o juiz fica vinculado à valoração legal estabelecida pelo legislador quanto às provas. O legislador tem limitada a sua gestão probatória.

Segundo Nestor Távora, há resquícios do sistema da prova tarifada no nosso processo penal, apesar de não ter sido adotado como regra:

“É o que ocorre com a previsão do art. 158 do CPP, ao exigir, nos crimes que deixam vestígios, que a materialidade seja provada com a realização do exame de corpo de delito, não servindo a confissão para suprir eventual omissão. A lei diz a prova adequada à demonstração da materialidade, rejeitando a confissão e elegendo a perícia como o meio a ser utilizado. Caso não seja possível a realização de perícia, as testemunhas podem ser utilizadas, a confissão jamais (art. 167, CPP). É sem dúvida um resquício do sistema da prova tarifada.” (2010, p. 368) [grifos nossos]

Assim, a despeito de o Código de Processo Penal ter adotado o sistema do livre convencimento motivado do juiz, o sistema da prova tarifada apresenta influência em alguns dispositivos da norma adjetiva penal, como o exemplo acima citado.

1.3. Sistema do livre convencimento motivado.

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O sistema do livre convencimento motivado também é conhecido como sistema da persuasão racional ou sistema da apreciação fundamentada. Nesse sistema, que é o adotado no Brasil, o juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida. Tal adoção está estampada no art. 155, caput, do Código de Processo Penal:

“Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” (In: Planalto, 2016)

Segundo esse sistema, o julgador é livre para decidir desde que o faça motivadamente. Essa liberdade consiste na gestão das provas e na sua valoração. Neste sentido, Nestor Távora:

“Essa liberdade, por sua vez, não é sinônimo de arbítrio, cabendo ao magistrado, alinhado às provas trazidas aos autos, fundamentar a decisão, revelando, com amparo no manancial probatório, o porquê do seu convencimento, assegurando o direito das partes e o interesse social.” (2010, p. 369)

Assim, dá-se ao processo penal a transparência que lhe é cabível, já que não se pode imaginar decisões penais obscuras, sigilosas. As razões utilizadas pelo julgador têm que ser conhecidas pelo réu, sobretudo no processo penal, ante os bens jurídicos envolvidos nos processos criminais.

2. Valoração da prova no processo penal.

Com base nos sistemas de apreciação das provas acima demonstrados, podemos chegar à conclusão de que o juiz tem liberdade para formar o seu conhecimento e julgar o processo, desde que o faça motivadamente. Nesse sentido, as provas podem ter diferentes valores probatórios a depender do caso concreto.

Em relação ao depoimento do ofendido há algumas nuances que devem ser observadas a depender do crime em análise e do caso concreto. Tais particularidades serão analisadas a seguir.

2.1. O valor do depoimento do ofendido

O interesse do ofendido na condenação do seu agressor faz com que o depoimento da vítima  seja analisado com determinada atenção. Além desse cuidado especial, faz-se necessário que essa prova seja examinada em conjunto com todo o arcabouço probatório contido nos autos.

Nos crimes contra a dignidade sexual, tendo em vista que, não raras vezes, não são deixados vestígios, a palavra da vítima assume um papel de maior importância dentro do conjunto probatório. Neste sentido transcreve-se recente decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ, proferida no Habeas Corpus 301380/SP:

“HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ESTUPRO. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. SEXO ORAL. EXAME PERICIAL. DESNECESSIDADE. CRIME QUE NÃO DEIXA VESTÍGIOS. PALAVRAS DAS VÍTIMAS. VALIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. Nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal, “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. 3. Consistindo o ato sexual na prática de sexo oral nas ofendidas e no mesmo contexto em relação ao paciente, e, constatado não ter a prática deixado vestígios materiais, desnecessária a determinação de exame pericial, diante de sua irrelevância para verificação da materialidade delitiva. 4. “A jurisprudência pátria é assente no sentido de que, nos delitos de natureza sexual, por frequentemente não deixarem vestígios, a palavra da vítima tem valor probante diferenciado” (REsp. 1.571.008/PE, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, Dje 23/2/2016). 5. Habeas Corpus não conhecido. [HC 301380/SP, T5 – QUINTA TURMA, 14/06/2016, DJe 21/06/2016]” (In: STJ, 2016)

Ora, não poderia ser diferente. Em determinadas espécies delituosas, denominadas de crimes não transeuntes, não são deixados vestígios passíveis de ser examinados. Assim, torna-se inviável o exame de corpo de delito. Além disso, por vezes não há testemunha ocular do fato criminoso.

Dessa forma, diante dessas circunstâncias, o depoimento do ofendido toma um valor maior do que normalmente tomaria. Tal conclusão pode-se chegar a partir de uma interpretação tomada a partir da análise do livre convencimento acima tratado.

2.1.1. O depoimento sem dano

Nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes surgiu, recentemente, um novo meio de obtenção de prova, a partir de uma iniciativa tomada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Trata-se de nova modalidade de depoimento da vítima, denominado de depoimento sem dano, que apesar de ainda não ter regulamentação legal, já é adotada em diversos tribunais do Brasil. Importante citar que, a despeito da inexistência de lei regulamentando o depoimento sem dano, o CNJ editou a recomendação 33/2010 defendendo a implantação de depoimento especial para crianças e adolescentes.

O depoimento sem dano consiste em uma forma menos invasiva de colheita do depoimento de crianças ou adolescentes que foram vítimas de crimes contra a dignidade sexual, através de profissionais habilitados para a retirada das informações de maneira informal, à medida que se obtém a confiança da vítima.

Com o depoimento sem dano busca-se, à luz do princípio da proteção integral do menor, diminuir os efeitos da vitimização secundária. Por vitimização secundária, também chamada de sobrevitimização, segundo Nestor Sampaio Penteado Filho:

“Entende-se ser aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime, com o sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito policial e processo penal).” [grifos do autor] (2012, p. 110)

Com isso, evita-se que a vítima tenha que relatar o seu sofrimento diante de várias pessoas desconhecidas, o que pode gerar um novo trauma. Além disso, se o depoimento for tomado formalmente, corre-se o risco de a vítima não se sentir a vontade para expor a verdade dos fatos.

Tal modalidade de depoimento já foi legitimada pelo Superior Tribunal de Justiça no RHC 45.589-MT, veiculado no Informativo 556, que se passa a transcrever:

“Não configura nulidade por cerceamento de defesa o fato de o defensor e o acusado de crime sexual praticado contra criança ou adolescente não estarem presentes na oitiva da vítima devido à utilização do método de inquirição denominado “depoimento sem dano”, precluindo eventual possibilidade de arguição de vício diante da falta de alegação de prejuízo em momento oportuno e diante da aquiescência da defesa à realização do ato processual apenas com a presença do juiz, do assistente social e da servidora do Juízo. Em se tratando de crime sexual contra criança e adolescente, justifica-se a inquirição da vítima na modalidade do “depoimento sem dano”, em respeito à sua condição especial de pessoa em desenvolvimento, procedimento aceito no STJ, inclusive antes da deflagração da persecução penal, mediante prova antecipada (HC 226.179-RS, Quinta Turma, DJe 16/10/2013). Ademais, o STJ tem entendido que a inércia da defesa, em situações semelhantes à presente, acarreta preclusão de eventual vício processual, mormente quando não demonstrado o prejuízo concreto ao réu, incidindo, na espécie, o art. 563 do CPP, que acolheu o princípio pas de nullité sans grief (HC 251.735-RS, Sexta Turma, DJe 14/04/2014).” RHC 45.589-MT, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 24/02/2015, DJe 3/3/2015. (In: STJ, 2016)

Esta modalidade de depoimento deve ser adotada como regra quando a vítima for criança ou adolescente. Além disso, deve-se buscar a sua regulamentação legal para que se evite eventuais arguições de nulidade. Trata-se, portanto, de importante instrumento na busca da verdade real e na proteção integral do menor.

Conclusão

Assim, conclui-se que, tendo em vista a adoção do sistema do livre convencimento motivado do juiz, o depoimento da vítima carreada aos autos pode tomar diferentes valorações a depender do caso concreto. Nos crimes sexuais tal espécie de prova deve ser valorado com maior atenção, ante a comum escassez de provas. Nos crimes sexuais cometidos contra criança ou adolescente o depoimento do ofendido deve ser tomado através da técnica do “depoimento sem dano”. Está latente que além de se buscar a justa valoração das provas, se deve vislumbrar eventuais benefícios extraprocessuais, a exemplo da proteção do menor, como no caso do depoimento sem dano. A função jurisdicional não deve ser buscada a todo custo, pois os direitos e garantias fundamentais devem ser mantidos não afetados.

 

Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília, Congresso Nacional, 2016. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 45.589 – MT. Relator Ministro Gurgel de Faria. DJe 03/03/2015. Disponível em: <www.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=INFJ&tipo=informativo&livre=@COD='0556'> Acessado: 29/08/2016.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 301.380 – SP. Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. DJe 21/06/2016. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=301380&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=1> Acessado em: 29/08/2016.
DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal – Volume Único. 2ª Ed. Salvador – BA: Juspodivm, 2014.
MOREIRA ALVES, Leonardo Barreto. Processo Penal – Parte geral. 6ª Ed. Salvador – BA: Juspodivm, 2016.
PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. 2ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.
TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4ª Ed. Salvador – BA, 2010.

Informações Sobre o Autor

Álvaro Grako Lira Melo de Albuquerque

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa

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