Só porque moro no morro
A minha miséria a vocês despertou
A verdade é que vivo com fome
Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador (…)No morro ninguém tem mansão
Nem casa de campo pra veranear
Nem iate pra passeios marítimos
E nem avião particular
Somos vítimas de uma sociedade
Famigerada e cheia de malícias
No morro ninguém tem milhões de dólares
Depositados nos bancos da Suíça (…)
As frases da música Vítimas da Sociedade, do sambista Bezerra da Silva (1927-2005), retratam a realidade de 83% de jovens brasileiros que possuem o mesmo perfil: negros e pobres que foram presos injustamente em razão de reconhecimento fotográfico irregularmente produzido, segundo levantamento do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE, 2021).
Mas a preocupação com os falsos reconhecimentos ganhou a atenção dos tribunais a partir de outubro de 2020. No dia 27 do referido mês e ano, a sexta turma do STJ, a partir do voto do ministro e relator, Rogério Schietti, ao julgar o HC nº 598886/SC, deu um novo entendimento ao artigo 226, do Código de Processo Penal (CPP), quanto ao reconhecimento de pessoas.
O texto normativo datado da década de 40 diz:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
De olho nas lacunas que o artigo apresenta, em sua manifestação, o ministro afirmou que a não observância das formalidades legais para o reconhecimento – garantias mínimas para o suspeito da prática de um crime – leva à nulidade do ato. Na época, Schietti destacou a urgência da adoção de uma “nova compreensão” dos tribunais sobre o ato de reconhecimento de pessoas.
Segundo o ministro, não é mais aceitável o entendimento de que os requisitos formais sejam “mera recomendação do legislador”, que se defenda que possam ser flexibilizadas, porque isso “acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças”, disse. As formalidades do art. 226 tiveram, por fim, reconhecido seu status de condição necessária para que um reconhecimento venha a servir de prova de autoria de um delito.
A professora da Universidade Alberto Hurtado (Chile) associada ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), integrante do Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre reconhecimento, Janaina Matida, destaca a importância da aplicabilidade do entendimento dado pelo STJ e fala sobre os falsos positivos que o regular funcionamento da memória humana é capaz de produzir.
“O reconhecimento depende da memória. Precisamos entender, assumir que há uma limitação nesse sentido. Diferente do que o legislador de 1941 supunha, a memória humana tem limites e não é capaz de cristalizar os fatos que alguém viveu no passado de modo infalível. Nossa vontade, enquanto cidadãos, de contribuir às investigações, de prestar informações verdadeiras, de apontar o real culpado, não são suficientes para que confiemos na memória humana é naturalmente falha. A “memória que é” é diferente da “memória que gostaríamos que fosse. São anos de dedicação dos pesquisadores da psicologia da testemunha que fundamentam esta afirmação”.
Assim, continua a Professora, “é preciso partir da memória tal como ela é, contribuindo para que os melhores resultados possíveis considerando os seus reais limites. As regras e práticas probatórias do processo penal precisam considerar isso, se é que de fato nos importamos com a redução do risco de se condenar inocentes”.
Janaina Matida também sinalizou para o perigo das generalizações espúrias no contexto que chamou de raciocínio informativo/probatório, a depender se o raciocínio sobre os fatos sob exame é da etapa investigativa ou já processual. “Estereótipos são generalizações que pesam sobre grupos sociais. Sociedades tradicionalmente racistas e machistas, como é o caso da sociedade brasileira, frequentemente têm seus mais distintos contextos invadidos por estereótipos de raça e de gênero. Para o reconhecimento de pessoas, não há dúvidas acerca da presença de estereótipos de raça e classe que norteiam a investigação criminal de delitos contra o patrimônio.
Jovens negros e periféricos têm as suas fotos incluídas em álbum e fotos, exibidas e reexibidas, incessantemente, às vítimas porque é lugar comum serem considerados, exclusivamente por serem negros e pobres, suspeitos em potencial. Gustavo Nobre, Luiz Carlos Justino, Tiago Vianna Gomes não são casos isolados, são a ponta do iceberg de um problema estrutural que, para ser resolvido, precisa também de mudanças estruturais”. E completa: “Policiais, defensores, promotores e magistrados precisam de urgente capacitação técnica para atuarem corretamente me matéria de reconhecimento de pessoas. Se o direito quer contribuir para uma sociedade mais igualitária e justa, não pode ter suas regras e práticas divorciadas das conquistas científicas”.
Com isso em mente, Janaina Matida comenta a importante iniciativa do IDDD, que recentemente lançou o Caderno de orientações para o sistema de justiça. “O Caderno foi desenvolvido a muitas mãos e cabeças, e representa um esforço que o IDDD fez para contribuir ao aperfeiçoamento da atuação de todos os operadores jurídicos (advogados e defensores públicos sim, mas não sói. O promotor que sabe da sua missão constitucional também encontrará orientações valiosas no Caderno, o juiz que respeita o standard probatório penal também). Para acesso ao caderno, acesse o link.
Para finalizar, Matida afirma incisivamente que “é preciso combater o negacionismo epistêmico se de fato nos importamos com a qualidade das decisões, se de fato as condenações injustas são um problema sério para nós. A redução dos erros, como o reconhecimento de alguém inocente, só será alcançada quando todas as instituições assumirem esta pauta como uma pauta coletiva”, finalizou.
Quanto ao futuro, sobre as possibilidades de mudança, Janaina diz ser otimista. “Acredito na conjunção de esforços que atualmente estão sendo feitos, em diversas frentes e instituições, e que vão apresentar resultados. Será preciso sensibilizar e capacitar operadores jurídicos, mas acredito que estamos no caminho para isso”.
O próximo capítulo da série Mulheres na carreira Jurídica é com a professora, advogada e presidenta da OAB/SP, Patrícia Vanzolini. Assine a Newsletter e receba o conteúdo em primeira mão em sua caixa de e-mails.