O que é meu é meu; o que é teu é teu; e do que é nosso, metade de cada um.
Essa é a lógica que rege o regime da comunhão parcial de bens. Os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges antes do casamento são de sua propriedade particular. Já o patrimônio amealhado durante a vida em comum pertence a ambos, pois há a presunção de que houve mútua colaboração na sua constituição.
Sem dúvida, esse critério é o que melhor atende a elementar princípio ético, preservando a titularidade dos bens a quem os adquiriu. Aliás, não foi outro motivo que levou o legislador a eleger o regime da comunhão parcial quando, antes do matrimônio, não optam os noivos por outro regime por meio de pacto antenupcial.
O casamento gera a comunicabilidade dos bens em face da presunção de que houve conjugação de esforços para sua aquisição. Inobstante tal possa não ser verdadeiro, ou seja, mesmo que não tenha havido a participação de ambos, ainda assim se instala o estado condominial. Para não deixar dúvidas, explicita a lei algumas hipóteses (CC, art. 1.660). Assim, apesar de adquirido por só um dos cônjuges, e em nome próprio, o bem passa a ser dos dois (CC, art. 1.660, I). Também se torna comum o que é amealhado por fato eventual com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior (CC, art. 1.660, II). O exemplo que sempre vem à mente é o prêmio de loteria: mesmo adquirido o bilhete antes do casamento, ocorrendo a contemplação depois das núpcias, o prêmio pertence a ambos os cônjuges. Outras especificações da lei deixam evidente que a atribuição de titularidade está ligada à presunção da comunhão de esforços. As benfeitorias realizadas nos bens particulares de cada cônjuge entram na comunhão (CC, art. 1.660. IV). A comunicabilidade existe também sobre os frutos dos bens, tanto particulares, como comuns (CC, art. 1.660, V).
Todas essas explicações levadas a efeito pelo legislador servem para realçar que incide o princípio da comunicabilidade dos bens amealhados depois das núpcias. Isso porque o casamento gera a comunhão de vidas (CC, art. 1.511), os cônjuges têm o dever de mútua assistência (CC, art. 1.566, III) e ambos são responsáveis pelos encargos da família (CC, art. 1.565). Portanto, embora não haja a participação efetiva dos dois, há que dividir o patrimônio comum, independentemente de quem o tenha adquirido.
Essa regra, no entanto, comporta exceções. Assim, a par da consagração da regra da comunicabilidade, há bens excluídos da co-titularidade (CC, art. 1.659). Ficam fora da comunhão os percebidos por doação ou por direito sucessório, pois pertencem somente ao beneficiário, mesmo que recebidos na constância do casamento (CC, art. 1.659, I). A falta de colaboração do consorte quando da aquisição de bem anterior ao casamento justifica a incomunicabilidade do patrimônio amealhado por sub-rogação dos bens particulares (CC, art. 1.659, II).
Porém, não só os bônus, também alguns ônus não são compartilhados. Não há responsabilidade de um dos cônjuges com relação às obrigações anteriores ao casamento assumidas pelo outro (CC, art. 1.659, III). Talvez a regra que identifica a responsabilidade referente às obrigações provenientes de atos ilícitos seja a mais esclarecedora quanto a essa dinâmica (CC, art. 1.659, IV). O infrator responde pelos prejuízos decorrentes de seu agir. No entanto, tendo havido proveito de ambos com o produto da ação ilegal, a responsabilidade solidariza-se.
Se tais dispositivos sequer necessitam de maior esforço para ser entendidos, outras hipóteses de exclusão da comunicabilidade dos aquestos revelam-se de todo absurdas, injustificáveis, injustas e, por tudo isso, inconstitucionais, é lógico.
São excluídos da comunhão os livros e os instrumentos da profissão (CC, art. 1.659, V), isso não só no regime da comunhão parcial, mas também no da comunhão universal de bens (CC, art. 1.668, V). Essa regra parece decorrer da presunção de que tais bens foram adquiridos exclusivamente pelo cônjuge que deles faz uso para o desempenho de seu trabalho. Trata-se de exceção ao princípio da comunicabilidade e, ainda assim, é uma exceção absoluta, por inadmitir prova em contrário. Não há qualquer motivo para inverter regra que tem por base o pressuposto da solidariedade familiar. Descabido atribuir exclusivamente a um dos cônjuges bens adquiridos durante o casamento, pelo simples fato de destinarem-se ao ofício profissional.
Cabe trazer como exemplo consultórios dentários, tratores, caminhões e até sofisticadas aparelhagens de sons, cujos valores sabidamente são muito elevados. Sem qualquer fundamento, pressupõe a lei que foram adquiridos por quem os utiliza. Porém, o que se vê diuturnamente é exatamente o contrário: o esforço do par na aquisição dos meios para um deles desempenhar seu mister.
Talvez a previsão legal tenha buscado garantir o exercício profissional e, quiçá, assegurar a quem trabalha condições de proceder ao pagamento dos alimentos ao outro cônjuge e aos filhos. Ainda assim, a regra não se justifica. Basta que se assegure, por ocasião da partilha, que tal patrimônio fique com quem os utiliza. Até é possível cogitar da indisponibilidade ou, quem sabe, impedir a partilha ou a venda dos bens indispensáveis ao exercício da atividade profissional. O que descabe é singelamente atribuir o bem a quem o utiliza.
Conquanto tenha o legislador mantido esta hipótese de exclusão da comunicabilidade, às claras que se trata de dispositivo desprovido de sustentação dentro do sistema jurídico. Nitidamente é fonte de enriquecimento sem causa de um com relação ao outro, que, muitas vezes, fez enormes sacrifícios para adquirir o instrumental necessário para o parceiro trabalhar. Descabe atribuir a titularidade em razão do uso exclusivo para fins profissionais. O uso não pode alterar o domínio. Adquirido durante o casamento, o bem é comum. O só fato de ser utilizado por um dos cônjuges não tem o condão de excluir o co-proprietário. À presunção de que os bens amealhados durante a vida em comum são fruto do esforço mútuo não pode ser oposta presunção outra, agora absoluta, afastando a comunicabilidade pelo simples fato de serem utilizados na atividade laboral de um deles.
Mas esta não é a única desarrazoada exceção à comunicabilidade, cuja aplicação se revela desastrosa.
Não há como excluir da universalidade dos bens comuns os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (CC, art. 1.659, VI), bem como as pensões, os meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes (CC, art. 1.659, VII). Ora, se os ganhos do trabalho não se comunicam, nem se dividem pensões e rendimentos outros de igual natureza, praticamente tudo é incomunicável, pois a maioria das pessoas vive de seu trabalho. O fruto da atividade laborativa dos cônjuges não pode ser considerado incomunicável, e isso em qualquer dos regimes de bens, sob pena de aniquilar-se o regime patrimonial, tanto no casamento como na união estável, porquanto nesta também vigora o regime da comunhão parcial (CC, art. 1.725). Assim, quando a família sobrevive dos rendimentos do trabalho de um ou de ambos os cônjuges, acabaria instalando-se sempre o regime da separação total de bens, ou melhor, não existiria regime de bens.
De regra, é do esforço pessoal de cada um que advêm os créditos, as sobras e economias para a aquisição dos bens conjugais. Mas cabe figurar a hipótese em que um dos consortes adquire os bens para o lar, enquanto o outro apenas acumula as reservas pessoais advindas de seu trabalho. Consoante reza a lei, os bens adquiridos por aquele serão partilhados, enquanto os que este entesourou restam incomunicáveis. Flagrantemente injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte suas economias em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. Descabido premiar o cônjuge que se esquiva de amealhar patrimônio, preferindo conservar em espécie os proventos do seu trabalho pessoal.
Ao depois, há quem não exerça atividade remunerada. Cabe tomar como exemplo o trabalho doméstico, na maioria das vezes desempenhado pela mulher. Porém, a ausência de remuneração no final do mês não significa que tais tarefas não dispõem de valor econômico. Estas atividades auxiliam, e muito, na constituição do patrimônio, bem como possibilitam que haja sobras orçamentárias. Ditas economias não podem ser contabilizadas como salário do varão imune à divisão, enquanto a mulher, por não ter retorno pecuniário, não é beneficiária de dito privilégio.
Esses dispositivos legais acabam sendo fonte de terríveis injustiças. São hipóteses que não admitem qualquer questionamento, gerando presunções absolutas em confronto às normas que sustentam o regime de bens. Isto é o que basta para justificar a inaplicabilidade dessas regras de exceção, desprovidas de qualquer justificativa. Excluir da comunhão quer os ganhos dos cônjuges, quer os instrumentos de trabalho utilizados por cada um certamente gera desequilíbrio que deságua em prejuízos injustificados e vantagens indevidas.
Os juízes não são meros aplicadores da lei de maneira automática e impensada. Têm sempre de atentar para o efeito concreto que o julgado vai produzir. Uma decisão que não se afine com o princípio da igualdade, não encontre um meio de repelir o enriquecimento sem causa ou deixe de impedir o favorecimento indevido não pode ser chamada de sentença: ato emanado por quem tem o dever de adequar a norma legal ao primado da Justiça.
Informações Sobre o Autor
Maria Berenice Dias
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM