1. Da indução às soluções extrajudiciais de controvérsias
Durante a metade final dos anos noventa, a panacéia para os problemas brasileiros estava pautada em um processo voraz de privatização dos bens públicos. Nos governos de Fernando Henrique esta realidade privatista se consolidou com a paulatina privatização das empresas e serviços públicos, veiculando uma realidade neoliberal, sem que houvesse uma resistência contundente ao processo.
Observado o fenômeno da privatização este não fica restrito ao aspecto material ou unicamente ao aspecto produtivo. O direito vem nos últimos anos sofrendo com estas mudanças, principalmente na dicotomia clássica entre o direito público e o privado, com uma nítida perspectiva de privatização do direito público em várias instâncias, com reformas dos ordenamentos jurídicos, senão diretamente; reformas de baixa intensidade. Assim, se propõe a reforma do Judiciário, a reforma trabalhista e sindical, a reforma do Estado, a reforma política, a reforma da Previdência, a reforma eleitoral.
Enfim, tais movimentos político-jurídicos, paradoxalmente, se servem do mesmo sentido axiológico[1], quando se desponta o papel minimista da legislação, no que tange às garantias sociais até então dispensadas aos cidadãos, uma vez que os órgãos estatais já não mais conseguem, ou não mais pretendem, atender às necessidades sociais a contento.
Por certo, toda essa discussão acerca das novas formas de se administrar uma sociedade advém de métodos e determinações dispensadas pelo ordenamento jurídico para os cidadãos e organizações inseridas em uma sociedade pós-moderna, pautada em um capitalismo maduro, no qual os conflitos existentes são apenas de âmbito interno, inexistindo possibilidade de ruptura estrutural do sistema produtivo.
Por conseguinte, as suas idiossincrasias jurídicas repousam no fato de se manter o status quo, em que o papel do Estado e conseqüentemente do Direito está balizado em normas de manutenção da estrutura política e de promoção dos meios de multiplicação de riquezas, conjunturas que proporcionam a volatilidade do capital e das formas de seu incremento produtivo.
Vivenciada essa nova realidade, se vislumbra uma deliberada retirada por parte do Estado do seu papel ativo de intervenção nas relações entre os particulares, com o escopo de promoção social e possibilidade de cidadania ativa[2]. Esta abstenção ocorre em quase todos os setores em que é possível a atuação substitutiva por um sujeito privado, seja para a implementação de uma nova forma de valorar um serviço impossível de se auferir valor, lucro, até então, como na solução de controvérsias, seja na delegação (ou venda) de serviços públicos, ou mesmo na implementação de um processo legislativo alternativo, a exemplo da utilização da autonomia privada coletiva (negociação coletiva), ou ainda das normas administrativas das agências reguladoras.
Estas novas formas de se arregimentar o Direito, por mais que pareçam autóctones, não são frutos de trabalhos exaustivos dos nossos legisladores, tampouco resultado de reiteradas demandas judiciais. A participação do Estado brasileiro se consubstancia na promoção de um novo sistema jurídico globalizado, com diretrizes criadas por entidades alienígenas, como se pode observar das global prescriptions, ou um conjunto de elementos doutrinários[3] traçados por organismos internacionais, onde se determina o comportamento jurídico desejado, sendo dever dos países subjugados a sua obediência[4].
Pois bem, no que tange às dificuldades de se efetivar o processo judicial célere e dinâmico, denota-se, por outro lado, um deliberado fenômeno de sua privatização, mais ainda, um deliberado movimento de privatização da jurisdição, sem que este debate seja aprofundado na sociedade, com o fomento às formas extrajudiciais de solução de controvérsias, inclusive com a positivação de preceitos contrários à finalidade de alguns deles, como a obrigatoriedade de solução mediada nas comissões de conciliação prévia no âmbito trabalhista, tendo como paradigma um sistema jurídico democrático. Desta forma, ao invés de se efetivar uma reestruturação física e legal do judiciário e do Direito Processual, respectivamente, se aposta em uma exteriorização ou na sua privatização.
Entendida a jurisdição como o poder que o Estado possui de dizer o direito, de solucionar por um órgão especializado os litígios (uma de suas acepções), ao possibilitar ou delegar este poder-dever[5], por conseguinte e inegavelmente, privatiza a jurisdição, levando-se em conta a atual lex mercatoria.
O alocução pautada na celeridade, democratização e liberdade de escolha para a solução das controvérsias não apresenta à sociedade brasileira o discurso subliminar da privatização, com os mesmos fundamentos neoliberais da privatização das empresas e serviços públicos, que está arraigado nestas formas extrajudiciais de solução de conflitos.
Pode-se afirmar que este não é um fenômeno restrito ao nosso país. Nas demais democracias da América Latina, se observa que a legislação se presta ao papel de legitimadora da reorganização do Estado[6], dando ensejo a uma nova ordem jurídica de limitação, mitigação ou retirada do sentido protecionista das normas, referentes ao seu aspecto social[7].
No que tange a estas novas normas globais, sua implementação se dá no contexto das necessidades criadas em virtude das deficiências reais planejadas por setores do próprio Estado. Neste diapasão, as organizações internacionais, como o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Nações Unidas, através de seus organismos, criam uma necessidade sofismática de reformas em um sentido único[8], com o afastamento do Estado de suas funções sociais, como é o caso evidente das formas extrajudiciais de solução de controvérsias, onde sujeitos, na sua maioria privados, irão lucrar com o que até então se dava sob o protagonismo do judiciário.
2. ASPECTOS METODOLÓGICOS ACERCA DA MEDIAÇÃO E ARBITRGEM
O fomento às instâncias extrajudiciais de solução de controvérsias tem como fonte material o acima descrito. Já no que concerne às formas utilizadas e conhecidas, pode-se fazer a distinção dentro de uma perspectiva inserida na divisão clássica da autocomposição e da heterocomposição, em que, na primeira forma, os particulares darão a solução para os seus conflitos, independentemente da participação de qualquer sujeito. São as soluções autônomas[9].
Já no caso da heterocomposição, existe a figura de um terceiro, seja público ou privado, singular ou colegiado, que participará da negociação, induzindo e incentivando as partes a uma solução consensuada, no caso da mediação ou conciliação. Neste caso, a doutrina não é uníssona no que tange a aplicação dos referidos termos[10].
Destarte, observa-se, com respeito aos posicionamentos contrários, que o instituto poderá ser denominado ou entendido pela sua finalidade ou meio de solucionar os problemas, ou seja, tanto na mediação quanto na conciliação, existe um terceiro, público ou privado, singular ou colegiado, que irá levar as partes a uma solução consensuada, porém induzida. Isso é inegável, pois a participação de um terceiro, sendo também considerado como uma forma heterônoma de solução dos conflitos, justamente por ser um estranho, por mais que não decida diretamente, indiretamente leva as partes a um resultado. Sua participação é fundamental, posto que sem ele não haveria consenso e se para este consenso era prescindível sua participação, estaríamos diante de uma autocomposição[11].
A solução poderá se dar também pela decisão de um órgão ou pessoa que irá dizer o direito com escoro legal, dando solução à controvérsia levada ao seu conhecimento, como nos casos da arbitragem e da jurisdição.
A arbitragem, sendo ela pública ou privada, porém fora da esfera judicial; e a jurisdição, conhecida por ser o poder que o Estado possui para solucionar os conflitos, através do judiciário, o Estado-juiz. Ambas são formas heterônomas de solução de controvérsias.
Em virtude da precaríssima prestação jurisdicional, foi criado um sincretismo jurídico[12] dada a urgência de utilizar a arbitragem como forma ágil de solução das controvérsias. Esse fato fez emergir uma nova necessidade ideológica de reforma, no ensejo de adaptar as normas locais às demandas de mercado, sem que haja uma demonstração cabal e irrefutável da necessidade e da utilização dessas instâncias, bem como senão fosse possível a agilização do processo judicial[13].
O fundamento, inclusive oficial, para a implementação dessas instâncias extrajudiciais de solução dos conflitos repousa no hipotético e, muitas vezes, falacioso fato de um mais fácil e ágil acesso à justiça, uma maior celeridade, melhores serviços e diminuição de custos para o Estado, entre tantos outros argumentos efetivamente de cunho não jurídico, parciais e que não devem ser aceitos como verdadeiros pela sociedade.
3. DO FOMENTO À ARBITRAGEM
No que tange a estas alternativas de solução dos conflitos, observa-se que isto se evidencia em novas fontes materiais do direito ou mesmo no sentido unívoco da privatização do direito público e que as normas processuais convergem para uma realidade de comercialização ou de soluções extrajudiciais dos conflitos[14]. Esta realidade privada para a solução das controvérsias se acentua principalmente no fomento à arbitragem e à mediação.
Apesar de a arbitragem não ser um instituto novo, com registros históricos de utilização pelas cidades-Estado da babilônia, no Império romano e no processo canônico, bem como no Brasil Império[15], esta foi a fórmula encontrada através da Lei 9.307 de 23 de setembro de 1996 para adaptar a nossa realidade processual à experiência mundial, sob o indicativo da necessidade de soluções extrajudiciais[16], privatizando a justiça (sua finalidade – ou a jurisdição, como citado) ou mesmo o próprio acesso à justiça[17].
Na mesma ordem, potencializa-se, materializa-se a implementação da autonomia privada, como ícone do direito privado, da democracia e da liberdade, e do estágio político ideológico neoliberal observado no Brasil, onde os particulares encontram ou escolhem um apêndice da legislação a qual introduz uma nova categoria de matéria. Os entreveros referentes a esta matéria podem ser solucionados de acordo com a referida lei, ou seja, a autonomia da vontade possibilita a convenção de arbitragem, para direitos patrimoniais disponíveis[18].
Assim, tem-se, pois, o fim do protagonismo estatal para a solução das controvérsias sociais[19], em função de uma imparcialidade, ao menos formal, do Estado-juiz, consoante se obtempera de mais uma emenda à Constituição da República (nº 45), em especial no tocante ao Artigo 114, § 2º.
Nesse cotejo, tem-se, por parte da doutrina brasileira, a noção de que a arbitragem, de uma vez por todas, incorpora o então caráter publicista da solução das controvérsias, possuindo inclusive caráter jurisdicional ou parajurisdicional, dando guarida à participação deste verdadeiro processo privado no universo do direito processual constitucional e, conseqüentemente, por obviedade, pela sua própria natureza, o seu ingresso na teoria geral do processo, uma vez que princípios processuais devem ser respeitados, como o do dispositivo, do contraditório, da ampla defesa, dentre outros[20]. É a integração, ao que parece, ad perpetuam da arbitragem como forma de solução dos conflitos sociais e a ratificação da privatização da jurisdição, recalcando o acima aludido fenômeno de privatização do direito público e do acesso à justiça.
De mais a mais, a própria forma privada de solucionar as demandas na sociedade toma outro vulto ou atende a uma nova realidade formalista e epistemológica, quando ao se exteriorizar o acesso a um processo civilizado formalmente equânime, se possibilita a criação de um sistema normativo de consumidores dos serviços, os quais já não mais são prestados com exclusividade pelo Estado, em sua função de promover a paz social[21].
Sob esse aspecto, observa-se uma outra realidade, engendrada numa nova perspectiva de modificação ou alteração do sistema jurídico adotado no Brasil. Evidencia-se um momento de transição das características heterônomas estatais do sistema jurídico romano-germânico, para a característica abstencionista do sistema anglo-saxão.
Como marco histórico, essa nova realidade colide com o tradicional processo jurisdicional criado no Estado moderno. Dá-se protagonismo a estas instâncias privadas de solução das controvérsias, em detrimento a uma necessidade premente de valorização do acesso à justiça, justo e imparcial, ao reconhecimento da crise do sistema judiciário, que tampouco é exclusiva deste poder, minimizando, exteriorizando o problema e olvidando os reais obstáculos às soluções jurisdicionais céleres e justas, como por exemplo a dificuldade da sua própria estrutura material, o que pode ser resumido no brilhante pensamento do professor e juiz do Trabalho Sérgio Torres Teixeira:
“A etapa contemporânea da doutrina processual, conhecida como fase instrumentalista, manifesta os seus traços característicos mediante duas fórmulas de atuação. Primeiro, a imposição de uma visão crítica acerca da realidade processual, reconhecendo a atual crise e apontando as deficiências do modelo de processo jurisdicional na consecução dos seus escopos. Segundo, a promoção do desenvolvimento de um potencial reformista, no sentido de buscar promover a evolução e conseqüente aperfeiçoamento do sistema processual, almejando atingir real efetividade na concretização do direito do cidadão ao efetivo acesso à justiça. Almeja demonstrar, assim, que somente com a eficiência do modelo de processo jurisdicional será possível proporcionar a eficácia da ordem jurídica, garantindo a todos a inserção em um ordenamento jurídico justo, cujas normas estipulam medidas que promovem a vida harmoniosa na comunidade e asseguram a efetivação dos direitos. Seja pela observância espontânea das regras materiais, seja pela força coercitiva do Estado-Juiz, quando devidamente provocado mediante a propositura de uma ação judicial”[22].
Nesse âmbito, a terceira onda do acesso à justiça, consoante a festejada obra de Mauro Capelleti e Bryant Garth[23], vê-se originariamente prejudicada, em face da propalada lex mercatoria à solução dos conflitos, mantendo-se para o Estado o papel de arcar com o custo e a solução do processo, em face da denegatória de lucro observada em litígios não importantes, aos quais se apresentam, na tentativa de encontrar uma solução justa, atores sociais pouco interessantes. No caso brasileiro, a classe média, cada vez mais excluída, ou mesmo os naturalmente excluídos pelo sistema, na busca de um mínimo de reconhecimento da cidadania, até então passiva.
Nessa mesma ordem, havendo a indução ou mesmo a coação legal à busca de uma solução extrajudicial, está se revendo a própria finalidade de atuação do direito, através da jurisdição. Isso porque, uma vez criada a instância pública (judicial) de solução de controvérsias, o Estado proporcionou a garantia, ao menos formal, do escopo jurídico do processo, senão de maneira espontânea, coercitiva, pela determinação sentencial por um de seus órgãos, dotado de poder específico.
Segundo abalizada doutrina, o Estado, ao propiciar o aparecimento do Poder Judiciário, pretende que se faça valer a sua vontade, de um Estado enquanto comunidade, como se depreende da seguinte interpretação:
“A afirmação de que através da jurisdição o Estado procura a realização do direito material (escopo jurídico do processo), sendo muito pobre em si mesma, há de coordenar-se com a idéia superior de que os objetivos buscados são, antes de qualquer coisa, os objetivos sociais: trata-se de garantir que o direito objetivo material seja cumprido, o ordenamento jurídico preservado em sua autoridade e a paz e a ordem na sociedade favorecida pela imposição da vontade do Estado. O mais elevado interesse que se satisfaz através do exercício da jurisdição é, pois, o interesse da própria sociedade (ou seja, do Estado enquanto comunidade)”[24]
Dessa maneira, seguindo esse entendimento e o que se apresenta hodiernamente, estamos em um período de revisão dos desideratos estatais como comunidade, em face do retorno da teoria da vontade, ortodoxa, neoliberal, em que se busca atender aos desígnios, não da sociedade como um todo, mas de uma pequena fração de interessados na privatização de uma de suas funções, os quais se apropriam de uma atividade que até então era de protagonismo estatal, indo de encontro à instrumentalidade do sistema processual, principalmente em sua ótica social e política, além da técnico-jurídica[25].
É inegável a precariedade com que funciona o Poder Judiciário brasileiro, bem como a necessidade de se estudar a relevância dos conflitos e dos seus contendores no estuário social, porém não se pode tratar como regra as excepcionalidades do acesso à Justiça, como se corrobora da seguinte assertiva;
“Cada vez mais se reconhece que, embora não possamos negligenciar as virtudes da representação judicial, o movimento de acesso à Justiça exige uma abordagem muito mais compreensiva da reforma. Poder-se-ia dizer que a enorme demanda latente por métodos que tornem os novos direitos efetivos forçou uma nova meditação sobre o sistema de suprimento – o sistema judiciário.
O tipo de reflexão proporcionada por essa abordagem pode ser compreendida através de uma breve discussão de algumas das vantagens que podem ser obtidas através dela. Inicialmente, como já assinalamos, esse enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações nas reformas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. Esse enfoque, em suma, não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial”[26].
De acordo com as diretrizes traçadas pelas global prescriptions, a Constituição induz, promove a arbitragem e coage a uma busca das soluções extrajudiciais, como no caso da aplicação literal do § 2º do art. 114[27]. Por outro lado, a cognição desta nova realidade deve se fazer mais uma vez pela estrutura, já que não é recente a vontade dos setores neoconservadores da sociedade brasileira em eliminar o conhecido poder normativo da Justiça do Trabalho, quando é exatamente nesta instância que os hipossuficientes conseguem algumas conquistas, como os reajustes salariais desconsiderados pelo próprio Estado e pelos empregadores[28].
A recusa à negociação não pode ser igualada à recusa pela arbitragem, pois estar-se-ia confundindo-se formas de solução de controvérsias diversas, como a autocomposição e a heterocomposição. Na mesma ordem, a busca do Judiciário por soluções não pode está condicionada a uma concordância do ex adverso[29], por ser óbvia a barreira ao devido processo legal. Esta interpretação escolástica do conteúdo normativo impinge uma afronta ao princípio da inafastabilidade, bem como ao princípio político de acesso à justiça.
A aplicação da norma constitucional acima indicada, por certo, ao menos aparentemente, entra em contradição com a própria finalidade anunciada das recentes mudanças na legislação, em que se tem como escopo (formal), justamente, a facilidade do acesso à justiça, consubstanciado na mesma Emenda à Constituição de nº 45, quando da descentralização do Judiciário, Justiça Itinerante, e da previsão de que seja cumprido o princípio do acesso à ordem jurídica justa[30].
No mesmo sentido, não se pode ter como certo ou simplesmente acreditar que o acesso à justiça está restrito ao exercício do direito formal de ação[31], mas ao exercício do direito de uma cidadania ativa, no qual seja possível, por meios judiciais ou extrajudiciais, a efetivação dos direitos materiais conculcados, independentemente de quem seja o violador desses direitos. É o escopo de justiça no seu aspecto pacificador, limitador da justiça privada ou da arbitrariedade, que deve fazer legítimo o preceito de uma ordem jurídica justa, equânime e razoável. Para isto, faz-se necessária a presença, no arcabouço jurídico inserto no sistema jurisdicional do país, de preceitos que consubstanciem o direito a esta ordem justa, a exemplo dos direitos fundamentais[32], corolário de desenvolvimento humano e respeito ao próximo.
Já no que tange à mediação como outra forma de solução extrajudicial de controvérsias, estas instâncias de solução dos conflitos não se avocam no poder de “dizer o direito”, pois a busca de uma solução consensuada é o seu desiderato, utilizando-se, porém, de um terceiro, para cumprir este papel o qual, em especial no processo judicial, é obrigação do Estado-juiz, a exemplo dos litígios de família, de direitos patrimoniais privados, dos Juizados Especiais Cíveis e dos dissídios trabalhistas.
4. DO FOMENTO À MEDIAÇÃO
No que pertine aos conflitos de trabalho em especial, foram criadas as comissões de conciliação prévia, em que se utiliza forma equivocada e obrigatória para a tentativa de solução dos dissensos individuais de trabalho, consoante disciplinado na Lei 9.958/2000, que adicionou os arts. 625- a 625-H na CLT.
Conforme insculpido no art. 624-D consolidado[33], obriga-se aos sujeitos do contrato de trabalho a busca de uma solução mediada, sob pena de, uma vez provocado o judiciário diretamente, haver a extinção do feito sem julgamento do mérito, caso não busquem esta instância extrajudicial e privada de tentativa de solução de controvérsias.
Nesse cotejo, a extravagância do dispositivo legal se desconecta da finalidade oficial de celeridade processual e enxugamento da Justiça do Trabalho, do número excessivo de ações distribuídas anualmente, pois uma vez não obedecida a condição de passagem das demandas individuais nas referidas comissões, pespega um revés excessivamente prejudicial, principalmente ao trabalhador, por desobediência a um preceito normativo, que é inclusive obrigatório na instrução das reclamações trabalhistas, sendo prescindível sua utilização extrajudicialmente. Ou seja, os discursos não estão de acordo – Abhorrent inter se orationes.
Conforme assinalado, ocorre um perfeito desacerto entre o elemento axiológico de incremento dessa nova disciplina processual e a finalidade. Ora, se o que se anuncia à sociedade é a necessidade de privatizar, exteriorizar a solução dos conflitos individuais de trabalho, justamente por conta do elevadíssimo número de demandas trabalhistas que acaba por congestionar a prestação jurisdicional, impedindo uma solução célere, não há sentido de se exigir que as demandas que não passem por estas comissões estejam fadadas ao retrocesso processual, com seu arquivamento, sem julgamento do mérito. Esta deverá ser tida como uma opção.
A obediência incondicional aos ditames da lei ignora a realidade[34], a estrutura do ordenamento jurídico e o que é mais gravoso, a necessidade dos jurisdicionados terem um livre acesso à Justiça, desburocratizado e, mais ainda, no que tange à Justiça Especializada do Trabalho, uma solução àquilo para que foi provocada de forma célere, dada a natural discrepância econômica existente entre as partes, bem como a premente necessidade de fazerem-se legitimar as verbas de subsistência do trabalhador.
A interpretação do artigo 625-D consolidado não poderá levar ao arbítrio da lei, uma vez que, naturalmente, a mediação dos conflitos dessa natureza deverá se fazer de forma voluntária. De outro modo, a finalidade da norma é a conciliação e jamais a obrigação de se conciliar[35], qualquer interpretação em sentido contrário, data venia, rompe com o sentido lógico-formal da disciplina jurídica. Não há necessidade, pois, de se macular um processo, pela inobservância de uma norma, que strictu sensu, subverte o sentido da conciliação. Se as partes não passaram pelas comissões de conciliação, não há prejuízo algum, pois é imperativo, no processo do trabalho, por intermédio do Estado-juiz, ao menos duas tentativas de conciliar antes da sentença.
Conforme observado, o livre acesso à Justiça, a um processo célere e sem empecilhos ao acesso ao Judiciário se torna conculcado quando o próprio Estado, seguindo as já propaladas global prescriptions, insere no ordenamento jurídico elementos prejudiciais a uma ordem jurídica justa. A necessidade de passagem das demandas trabalhistas pelas referidas comissões, fere o princípio da liberdade e ao mesmo tempo, tal e qual a arbitragem, ao princípio político do acesso à Justiça[36].
Neste paralelo, sem qualquer prejuízo à teleologia de facilitar a solução das controvérsias por instâncias extrajudiciais, para que exista o processo judicial, existe a necessidade de respeito a critérios de conexão entre o fato, o pedido, o interesse e a legitimidade do jurisdicionado, bem como o Estado deverá facilitar o acesso à solução pelo seu órgão competente e não criar compulsões que servem para mitigar o livre acesso à Justiça, sendo essa a face do princípio político inserido no acesso à jurisdição[37].
Na esteira do raciocínio esposado, observa-se que a coação a uma solução extrajudicial ataca outro princípio constitucional, uma vez que o juiz natural impõe a necessidade de buscar uma saída para o conflito pautada na legalidade, sem a exceção se transformar em regra, com a inversão da teleologia de institutos ou formas extrajudiciais de solução de controvérsias pela ordem jurídica.
Informações Sobre o Autor
Fábio Túlio Barroso
Advogado. Doutor em Direito pela Universidad de Deusto, Bilbao, Espanha. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Professor da Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de Pernambuco – FDR-UFPE (graduação, mestrado e doutorado em Direito), Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (graduação e mestrado em Direito), Faculdade Boa Viagem – FBV (graduação e especialização), Faculdade Integrada de Pernambuco – FACIPE e Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região – ESMATRA VI (especialização)