A ideologia que degenera o estereótipo

Sumário: 1. Introdução. 2. A ideologia que condiciona. 3. Loucura: o remédio para o mal que nos acomete. 4. Degeneração da democracia. 5. O estereótipo de civilidade. 6. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO


O presente trabalho objetiva analisar o tipo de manifestação ideológica realizado pelos enfoques jornalísticos, sob a finalidade de elucidar o povo brasileiro acerca da manipulação a que estão propensos, proveniente da ação dos governantes em coagir através da mídia. A análise em estudo crê em uma noção de ideologia que pretende educar, conscientizar ao invés de promover condutas condicionadas.


Ademais visa a democracia calcada em seu princípio, a virtude, para que esta forma de poder possa esclarecer e fornecer notícias e não ludibriar as massas com resoluções simplificadas, mascarando, assim, a realidade.


2. A IDEOLOGIA QUE CONDICIONA


A função fundamental da ideologia é ocultar divisões sociais, dissimular a aparência de indivisão através da ilusão das condições sociais reais em que vivemos. Assim afirma Marilena Chauí:


[…] ideologia e inconsciente através do imaginário […] e do silêncio, realizando-se indiretamente perante a consciência. Falamos, agimos, pensamos, temos comportamentos e práticas que nos parecem  perfeitamente naturais e racionais porque a sociedade os repete, os aceita, os incute em nós pela família, pela escola, pelos livros, pelos meios de comunicação, pelas relações de trabalho, pelas práticas políticas. Um véu de imagens estabelecidas interpõe-se entre nossa consciência e realidade; […][i]


Após este esclarecimento percebe-se que um dos componentes característicos da ideologia é de que homens e mulheres padronizem seu comportamento com a finalidade de estabilização social. Em outras palavras, sabe-se para onde vai seguramente: comunidade, identidade e estabilidade como diria Aldous Huxley. Para isso a mídia utiliza propagandas expressivas, reprodutivas e repetitivas com o propósito de tornar invisível a realidade.


Como artifícios podemos exemplificar o tipo de letra e o espaço reservado às manchetes de jornais, revistas, quer dizer, tudo depende do tipo de leitor que a empresa jornalística pretende atingir. Podemos ainda fazer uma analogia deste condicionamento ideológico com o citado no livro de Aldous Huxley: O Admirável Mundo Novo:


[…] Observem – disse o diretor, triunfante – Observem. Os livros e o barulho intenso, as flores e os choques elétricos […] e, ao cabo de duzentas repetições da mesma lição ou de outra parecida, estariam casadas indissoluvelmente. […][ii]


Aldous Huxley representa nesta ficção um estado totalitário no qual as pessoas viviam manipuladas sem chance de questionamento. Além disso trata da superioridade e inferioridade das classes como uma coisa “justa”;  as castas eram predestinadas para obter-se delas estabilidade social. Nesta  sociedade as castas recebiam doses diárias  de “soma”, um alucinógeno que realizava a manutenção do condicionamento, enquanto nós recebemos, também diariamente, a ideologia dos detentores do poder que mantêm através da mídia a manipulação da opinião pública.


3. LOUCURA: O REMÉDIO PARA O MAL QUE NOS ACOMETE


A Democracia Moderna calcada nos Direitos Fundamentais, ou seja, no respeito mútuo entre o Estado e o Povo é o sustentáculo para a organização dos poderes devendo a administração pública promover o “bem comum”.


Nada melhor do que um belo discurso para acalentar os corações receosos pela instabilidade de um governo. Durante a vigência de crise no Estado muito utiliza-se da ponderação e articulação de certas palavras e frases que possam formar opiniões desarticulando a verdade.


O povo ao aspirar soluções e elucidações embarca na busca desenfreada pela estabilidade do Estado ao deixar-se embriagar pela “loucura”: o remédio para o mal que nos acomete. Assim como nos ensina Erasmo de Rotterdan em sua obra “Elogio da Loucura”:


“Mas a desonra, a infâmia, as censuras, as maldições só nos fazem mal quando queremos sentir: desde que não pensemos nisso, deixam de ser um mal […]  Confessovos que não sei explicar como podem tratar de infelizes meus loucos, sendo a loucura, como é, patrimônio universal da humanidade, e quando todos os mortais nascem, educando-se e se conformam com ela.”[iii]


É desta forma que o homem permite ser ludibriado  por falsas verdades. Em seu âmago persegue a justiça, mas a imagina tão inacessível que se acostuma com o que lhe é dado de antemão, com o que lhe é pré-estabelecido e pré-determinado, acreditando desta forma que por não possuir altruísmo não lhe é permitido transformar, reformular, o estado caótico em que sobrevive.


Jean Jacques Rousseau, já observava em sua obra clássica  “Do Contrato Social”:


[…] A maior parte das nações, como a dos homens, somente é dócil na mocidade; envelhecendo, tornam-se incorrigíveis; logo que os costumes são estabelecidos e os preconceitos arraigados, é vão e perigoso quere-los reformar; o povo nem pode aturar que se toquem seus males para os destruir, semelhante aos enfermos estúpidos e covardes que tremem ao ver o médico.”[iv]


3. DEGENERAÇÃO DA DEMOCRACIA


Democracia política significa dizer que o povo possui o direito de participar das decisões políticas junto aos governantes. Assim opina  Norberto Bobbio (1987,p.155) “[…] democratização – entendida como instituição e exercício de procedimentos que permitem a participação dos interessados nas deliberações de um corpo coletivo […]”[v] No entanto, esta forma de poder pode degenerar-se, como já dizia Aristóteles, e tornar-se uma demagogia e, através desta, ludibriar as massas com soluções simplificadas, encobrindo a realidade e, desta forma, a realidade. Estas resoluções são mais comumente chamadas de lacunas ideológicas do Direito, as quais não podem ser preenchidas sob pena de destruir a demagogia. Na opinião de Norberto Bobbio:


Entende-se também por “lacuna” a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em outras palavras, não já a falta de uma norma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma norma que se desejaria que existisse, mas que não existe. […][vi]


Calcado neste esclarecimento afirma-se que lacunas são utilizadas por demagogos para induzir telespectadores, leitores e eleitores a interpretarem os fatos de acordo com a vontade ideológica do governante. Se houvesse a completude, ou seja, normas que barrassem o apelo demagógico o qual simula realidades ilusórias, a eqüidade impediria a mídia de monopolizar opiniões e de burlar a identidade de cada cidadão. Enfim a completude permitida a justiça, o direito ao indivíduo de fazer analogias e, desta maneira, decidir o melhor para a sua sociedade, e, por fim, para si mesmo. Como disse Aristóteles o melhor é zelar pelo bem coletivo com o propósito do bem viver individual (1094a-p.17): “[…] toda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda escolha, visam a um bem qualquer; e por isso foi dito não sem razão que o bem é aquilo que as coisas tendem […]” Este afirma também (1094b-p.18): “[…] e embora seja desejável atingir esse fim para um indivíduo só, é mais nobre alcançá-la para uma nação ou para as cidades-Estados […]”[vii]


Esta escolha que visa o corpo coletivo vem assegurar as participações conscientes, críticas e racionais diante da política governamental exposta pela mídia. Ademais, este pensamento determina a manutenção da democracia, pois ao identificar e preservar o “bem” estaremos também garantindo outro princípio da democracia: a virtuosidade. No que se refere ao princípio citado seguem posições de Aristóteles (1113b-p.65) e Montesquieu, respectivamente: “[…] depende de nós praticar atos nobres ou vis, e se é isso que significa ser bom ou mau, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos.”[viii]


Quando esta virtude desaparece, a ambição penetra o coração dos que podem acolhê-la e a avareza apodera-se de todos. Os desejos mudam de objeto: não mais se ama aos que se amava; era-se livre com as leis, quer-se ser livre contra elas;cada cidadão é como um escravo que fugiu da casa de seu senhor; chamava-se rigor o que era máxima; chama-se imposição o que era regra; chama-se temor o que era respeito. A frugalidade agora é avareza e não desejo de possuir. Outrora, os bens dos particulares constituíam o tesouro público mas, então, o tesouro torna-se patrimônio dos particulares […]”[ix]


4. A INÉRCIA DO POVO BRASILEIRO


Outro problema que deve ser apontado é o desperdício dos recursos dos contribuintes para fazer propagandas governamentais, dinheiro este que deveria ser usado em campanhas contra a fome e outras em busca da saúde e educação pois estes são essenciais para o povo adquirir capacidade, tanto para existir quanto para evoluir. O distúrbio ocorre e o povo passa inerte, como se a situação fosse banal a até natural. Significa considerar o povo como seres incapazes de criticar o óbvio. Carlos Novaes cita, em sua obra, Marilena Chauí quando esta demonstra que a ideologia  é capaz de banalizar:


[…] ‘a função do Direito é fazer com que a dominação não apareça como violência. Se o Estado e o Direito fossem percebidos como instrumentos de dominação, os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, justo e bom.’ [x]


Hoje o Estado comanda impunemente, e os cidadãos apenas observam, não tem caráter de indignação ativa. As qualidades de ato e potencia, atribuídas por Aristóteles ao homem estão canalizadas na atividade do absorver e não do assimilar. Em outras palavras, o homem apenas visualiza os fatos, mas não pensa em como reverter a situação pois a mídia acostuma e condiciona o caráter passivo do ser humano.


“A televisão (que, todo mundo sabe, não estimula a reflexão) fez do Homem um ser passivo, comandado por estímulos. O Homem já não participa das coisas do seu tempo. O Homem apenas vê, observa o mundo como algo de que ele não faz parte (algo fora dele)”[xi]


Assim segue que a degeneração da democracia é viabilizada pela mídia pois a última possibilita o controle da consciência do cidadão. Tal percepção é percebida, também, por Marilena Chauí:


“[…] processo de inculcação de valores, hábitos, comportamento e idéias, pois não estamos preparados para pensar, avaliar e julgar o que vemos, ouvimos e lemos […]. Dessa maneira, um conjunto de programas e publicações que deveriam ter verdadeiro significado cultural tornam-se o contrário da cultura e de sua democratização, pois se dirigem a um publico transformado em massa inculta, infantil, desinformada e passiva.”[xii]


Transformar o que somos é o principal, reavaliar nossa ociosidade e rever os conceitos, enfim criar um caráter de consciência e, após absorvê-la emanar o conhecimento adquirido. Através da sabedoria interior teremos prudência para julgar o que conhecemos e o que nos é imposto, desta forma utilizaremos a mídia para controlar o Estado e outros que também detenham o poder de coação para deteriorar a democracia de expressão.


5. O ESTEREÓTIPO DE CIVILIDADE


Quando houver consciência da necessidade de promover, junto ao povo, a racionalidade ético-analítica, construir-se-á um governo democrático, no qual a mídia não mais usará a ideologia dominante e condicionante para mascarar a realidade. A consciência da moral produz a civilidade, ou seja, o respeito mútuo entre cidadãos e Estado, sem que haja motivos “prudentes” para que o último deseje induzir o pensamento do primeiro.


Para que este estereótipo possa ser verídico e não utópico há necessidade de inserir um quarto poder contemporâneo calcado na ética e compromissado com a garantia dos direitos humanos. Isto, porque o quarto poder atuaria na sociedade como um todo limitando o poder do governante e, ainda impediria a conduta da mídia de manipular o povo em benefício do Estado. Afinal é nosso direito não ser coagido, induzido e manipulado por quem detém o poder.


“Povo” esta quarta fragmentação do poder evitaria a sua concentração. Ademais, o referido poder permitiria à democracia se concretizar uma vez determinando a recíproca de direitos e deveres do Cidadão e Estado. Utilizando-se do poder o povo teria o controle máximo, isto é, seria seu dever zelar pela ética, pelo bem comum, limitando a arbitrariedade dos poderosos em coagir através da mídia os cidadãos. Hauriou previa este novo poder controlador e afirmava: se a opressão do sistema é intolerável cabe à resistência.


6. CONCLUSÃO


Civilizado é o estereótipo que gostamos de vender para o mundo desenvolvido à nosso respeito. Um estereótipo com características bem particulares como, por exemplo, a imagem de um país democrático, o qual zela com criticidade e compromisso pela não violação dos direitos humanos de cada cidadão que aqui habita.


Utilizando-se deste estereótipo, com o propósito de mascarar a nossa realidade, empresas jornalísticas além de manipular a opinião pública, utilizam-se desta para obter lucros, desrespeitando, assim os direitos humanos vigentes no nosso país. A mídia deve ter por finalidade, como cita a Constituição, a mensagem educativa, cultural e acima de tudo respeitar os valores éticos e sociais pátrios, apregoados pela nossa sociedade. No entanto os meios de comunicação paulatinamente estão violando a lei maior ao passo que transformam os telespectadores ativos em passivos à degradação da reprodução jornalística.


Os detentores do poder necessitam rever seus preceitos com o propósito de promover a clareza dos fatos cometidos para que o meio jornalístico possa,  desta forma, proporcionar a opinião pessoal frente os atos cometidos. Através deste sistema estaremos priorizando a personalidade de casa indivíduo e assegurando a democratização da opinião individual.


Segue-se que o enfoque jornalístico deve ter uma visão voltada para o esclarecimento dos fatos ao invés de mascará-los sob o poder da ideologia que os condiciona. Soma-se a isso a responsabilidade do Estado em garantir a veracidade das ações cometidas e, então banir o monopólio da impunidade dos detentores de poder, os quais governam a mídia, no interesse de coagir a ideologia dos cidadãos. Civilizar não pode ser sinônimo de “Utopia”, mas sim de realidade próxima a qual, progressivamente, através da mídia, emitirá a essência valorosa para uma realidade social ativa, isto é, compromissada na veracidade de seu estereótipo: civilidade.


 


Bibliografia

ARISTÓTELES.  Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,2001.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e Democracia.7.ed. São Paulo: Cortez, 1997.

______ Convite à filosofia. 8.ed. São Paulo: Ática, 1997.

BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

_______ Teoria do Ornamento Jurídico – Plano da existência. Tradução de Maria Celeste C.J. Santos.10.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

HERCKENHOF, João Batista. Ètica, educação e cidadania. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Tradução de Vallandro e Vidal Serrano. 2.ed. São Paulo: Globo, 2001.

MONTESQUIEU, Charles Luis de Secondat. Do Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

NOVAES, Carlos Eduardo. Capitalismo para iniciantes. 22.ed. São Paulo: Ática, 1995.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2000.

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

 

Notas:

[i] CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e Democracia, Cortez, 1997, p. 176.

[ii] HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo, Globo, 2001, p. 32.

[iii] ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura, Abril Cultural, 1984, p. 50.

[iv] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, Martin Claret, 2000, p. 53

[v] BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade, Paz e Terra, 1987, p. 155

[vi] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico: Plano da Existência, Universidade de Brasília, 1997, p. 140.

[vii] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Martin Claret, 2001, p. 17/18.

[viii] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Martin Claret, 2001, p. 65.

[ix] MONTESQUIEU, Charles Luis de Secondat. Do Espírito das Leis, Abril Cultural, 1985, p.42.

[x] NOVAES, Carlos Eduardo. Capitalismo para Iniciantes, Ática, 1995, p. 134.

[xi] HERKENHOFF, João Baptista. Ética, Educação e Cidadania, Livraria do Advogado, 1996, p. 84.

[xii] CHAUÍ, Marilena de Souza. Convite à Filosofia, Ática, 1997, p. 333.


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Paloma Pirez Valério


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