Resumo: O presente artigo tem o intuito de abordar um tema inquietante e bastante sugestivo que é a interpelação existente dentro da psicanálise acerca dos fatos norteados pelo direito. È de notório saber da importância que se faz em utilizar-se da interdisciplinaridade, pois, estudando a mente, os processos cognitivos, perceptivos da psique humana, juntamente com o estudo de uma ciência tipicamente humanista como o direito, se faz imprescindível. Nossa temática aborda as teorias psicanalíticas, ora focando na pessoa do criminoso, identificando e racionalizando os processos sociais que o delineiam, ora focando apenas na sociedade como produtora, como genitora dessa criminalidade, elegendo este diferente como escape das agressões inibidas pelo tabu. A análise busca é pelo fortalecimento das intenções humanísticas em prol do ser humano, com críticas oriundas da investigação psicanalítica á sociedade e as condições por ela estabelecidas para uma suposta minoria.
Introdução
O presente trabalho traz á luz um importante foco proporcionado pela interdisciplinaridade, ou seja, as ciências jurídicas não se valem unicamente de si, todas as ciências que se fazem flutuantes, permeadas e co-adjuvante nos processos de conhecimento, de busca pelo saber são muito mais completas e certamente mais fundadas no acerto.
É com este intuito que decidimos buscar fontes possíveis de interpelação entre a psicanálise e o Direito, valorizando as discussões e contribuindo para novos paradigmas e concepções psicanalíticas e jurídicas, para a busca maior do desenvolvimento científico sempre em prol do ser humano, da sociedade e dos estudiosos como um sistema multifocal ao passo que é único, particular.
Vamos abordar uma orientação da pesquisa acerca do crime e da pena, que em torno dos anos 20 e 30, sob um ângulo completamente novo inseria a sociedade como parte interna do objeto do esforço explicativo, ou seja, as teorias psicanalíticas da criminalidade e da sociedade punitiva.
O raiar da psicanálise para o direito.
Na teoria da criminalidade podemos distinguir dois aspectos de pensamentos: Primeiramente a explicação do comportamento criminoso, este teve uma contribuição bastante significativa a partir de Freud com a teoria do delito por sentimento de culpa.
Estas teorias têm as suas raízes na doutrina freudiana da neurose e na aplicação dela pelo próprio Freud na explicação do comportamento delituoso. Segundo Freud, a repressão dos instintos delituosos pela ação do superego, não destrói estes instintos, deixando apenas que se sedimentem no inconsciente, de maneira que estes instintos, inconscientemente, estão atrelados, imbuídos de culpa, tendendo a confissão. O comportamento delituoso, o indivíduo supera o sentimento de culpa e realiza a tendência a confessar.
Por este prisma, a teoria psicanalítica do comportamento criminoso representa uma negação ao tradicional conceito de culpabilidade e em decorrência deste, todo o direito penal que tenha por base este princípio.
Por outro lado, a teoria psicanalítica da sociedade punitiva, que constitui o segundo aspecto, coloca em dúvida o princípio da legitimidade e, portanto, a legitimação do direito penal.
A teoria da sociedade punitiva, a reação penal ao comportamento delituoso não tem a função de eliminar ou definir a criminalidade, mas corresponde a mecanismos psicológicos face o desvio criminalizado que por sua vez, figura como necessário e impossível de se eliminar, de se extrair da sociedade.
Em Totem e Tabu[1], Freud mostra a diferença entre a neurose e o tabu, ou seja, a neurose é uma doença individual, e o tabu é uma formação social.
O nascimento do tabu
O tabu nasceu nos tempos primitivos, ou seja, uma era envolta em magias e religiosidade, todos os fenômenos naturais maléficos eram oriundas das forças divinas encolerizadas pelos fatos que exigiam reparação. Desse modo, no intuito de amenizar a ira dos “deuses”, foram criadas as proibições (religiosas, sociais e políticas), ou seja, o tabu.
A infração totêmica, ou a desobediência tabu, conduziu a coletividade à punição do infrator, gerando assim, o que modernamente denominamos “crime” e “pena”, implicando no sacrifício da vida do agressor, ou em oferendas de objetos valiosos (animais, peles e frutas) ás divindades.
Então, originalmente, a pena implica em vingança, no revide à agressão, transgressão sofrida, desproporcionada com a ofensa e aplicada sem preocupação da justiça.
O primitivo temia atrair sobre si, violando o tabu, uma grava pena, uma doença ou mesmo, a morte. O doente, contrariamente a isso, vincula a proibição o temor de uma pena para um de seus parentes, pessoas queridas, não necessariamente sobre si.
Quando da violação de um tabu, a punição ocorre de modo espontâneo; é apenas uma forma secundária de pena a que se realiza com a intervenção do grupo social, ou seja, a punição do grupo se realiza de forma subsidiária à punição espontânea, de maneira que todos os componentes do grupo se sentem ameaçados pela violação do tabu e por isso se antecipam na punição do violador.
Desde os tempos primitivos vingança passou por fases, que não se deram de forma sistemática atreladas à adoção de princípios diversos, mas da evolução social.
Na vingança privada, do cometimento de um crime, a reação era da vítima, dos parentes e até do grupo social (tribos), agindo sem proporções, não apenas contra o ofensor, mas todo o seu grupo social, implicando numa eliminação, por vezes, de grupos inteiros.
O Talião surge para limitar à ofensa a um mal idêntico ao praticado, sendo um marco histórico, haja vista, a redução da ação punitiva, sendo recepcionado pelo Código de Hamurábi (Babilônia), no Êxodo (povo Hebraico) e na Lei das XII Tábuas (Roma).
Posteriormente surge a composição, que é um sistema pelo qual o ofensor comprava sua liberdade (moeda, gado etc.), livrando-se do castigo, também adotado pelo Código de Hamurábi, pelo Pentateuco e o Código de Manu (Índia), remontando as modernas indenizações no âmbito civil e nas multas de caráter penal. A fase da vingança divina decorre da influência religiosa e decisiva sobre os povos.
O castigo, ou oferenda, delegado pela divindade, era aplicado pelos sacerdotes que infligiam penas severas, cruéis e desumanas, tendo como escopo á intimidação.
Com uma organização social mais elaborada, atingiu-se então a vingança pública, proporcionando maior estabilidade estatal, visando então, à segurança do príncipe ou soberano, com penas ainda severas e cruéis, obedecendo ainda ao sentido religioso, era, portanto, justificada essa proteção, porque os soberanos governavam em nome das entidades, dos deuses.
Numa fase posterior, da pena foi retirado o caráter religioso, e a responsabilidade do grupo, ganha então a mentalidade da individualização, contribuído então para que os costume penais se fizessem humanos.
No período medieval, as práticas penais se enlaçaram e se influenciaram mutuamente no direito romano, canônico e bárbaro.
Quando das penas de morte, eram as mais cruéis (enforcamento, afogamento etc.), visando intimidar e eram cominadas penas desiguais, pois tinham como critério a condição política e econômica do réu, sendo amplamente utilizadas a mutilação, o açoite, a tortura.
Psique humana: resquícios primitivos.
Estes mecanismos primitivos são explicados por Freud através da tentação de imitar aquele que violou o tabu, liberando de outra maneira os instintos reprimidos. Esta tentação mimética corresponde à representação da capacidade contaminadora do tabu, de modo que a reação punitiva pressupõe a presença nos membros do grupo, de impulsos semelhantes ao proibido.
“Les sciences morales ne peuvent manquer d’être influencées par le fait que la psychanalyse a tiré au clair la psychogénèse et l’évolution de la compulsion d’aveu et du besoin de punition. Nous ferons abstraction ici de l’éthique conventionnelle que l’on tient presque universellement aujourd’hui pour contingente et sujette à caution. Nous soutenons que les découvertes analytiques permettent d’envisager l’histoire de la morale et certains des problèmes les plus importants de cette discipline dans une perspective nouvelle. Bien plus, elles réduisent à néant des contradictions qui semblaient jusqu’ici insolubles, parmi lesquelles je citerai le problème psychologique de la conscience morale. La liste interminable des ouvrages sur la nature de la conscience montre bien la valeur attachée à celle-ci en tant que phénomène psychologique de premier plan. “
Theodor Reik (2006, p. 06) funda uma teoria psicanalítica do direito penal, tomando por base a dupla função da pena, ou seja, a pena serve de satisfação da necessidade inconsciente de punição que impele a uma ação proibida e a segunda que traz a pena como uma satisfação também das necessidades de punição da sociedade, por intermédio de uma identificação inconsciente com o delinqüente.
Essas concepções terminam por ser retributiva e preventiva, simultaneamente, não sendo mais que uma racionalização dos fenômenos que fundam suas raízes no inconsciente humano.
A teoria retributiva é correspondente nas autopunições inconscientes encontrados nos neuróticos e que são regulados como se houvesse um Talião, ao passo que contradiz a evolução da cultura e da humanidade.
A teoria da retribuição enfatiza a função da pena em face da sociedade (prevenção geral) e em face do autor do delito (prevenção especial), influenciando a coletividade e o autor do delito sendo então complementares e se fundam na natureza bifurcada da pena e das raízes psicológicas, reiterando a concepção freudiana de culpa e de sua anterioridade a ação criminosa.
A teoria psicanalítica da finalidade da pena é desenvolvida posteriormente por Franz Alexander e Hugo Staub, que põem em relevo o mecanismo sociopsicológico através do qual a pena infligida a quem delinqüe vem contrabalancear a pressão dos impulsos reprimidos, que o exemplo de sua aplicação no delinqüente torna visível, representando um reforço para o superego.
A contribuição dada por ambos se dá primeiramente pela transposição do princípio trazido por Freud, ou seja, transforma-se numa característica psicológica geral do mundo dos delinqüentes e das pessoas que incorporam o mundo do sistema penal, estabelecendo entre essas pessoas uma afinidade que geralmente se apresenta como pelas fortes tendências anti-sociais não suficientemente reprimidas, impedindo as pessoas pertencentes ao segundo grupo um zeloso exercício da função punitiva.
Em suma, há uma transposição do referencial, sai da sociedade punitiva, em sentido estrito e passa a ser uma reação institucionalizada individualizando nas pessoas que estão ao seu serviço, como os juízes, policiais, seguranças etc.
Em segundo motivo é notadamente complementar do sentido reikiano, ou seja, a visão acerca da pena não é restrita a identificação da sociedade com o delinqüente e da correlação reforçada do superego, mas do ponto de vista da identificação com um sujeito individual com a sociedade punitiva e com os órgãos de reação penal, da falta de resolução por intermédio das inibições do comportamento anti-social, levando assim, a identificação do sujeito com os atos da sociedade punitiva.
A pena adquire um significado de recompensa pela renúncia ao sadismo de maneira que essa identificação conduz à diminuição da quantidade de agressões para inibir, favorecida pelo caráter ritual e espetacular dos procedimentos judiciários. Eles partem da representação ideal de uma justiça racional, que atua sem os conceitos de expiação, de retribuição que não serve á agressão dissimulada de agressões me massa.
Para se alcançar, não basta que o homem tenha equilíbrio do ego sobre a vida afetiva, mas que a tendenciosa agressividade das massas alcance uma eliminação ampla através da sublimação.
O caminho trilhado por Reik, Alexander e Staub, desencadeou ao desenvolvimento proporcionado por Paul Reiwald que traz as figuras/conceitos da projeção e do bode expiatório como expressões representativas da teoria da sociedade punitiva, como seu mecanismo inconsciente.
Um mecanismo semelhante ao que caracterizava a mentalidade primitiva conduzindo ás representações das forças demoníacas hostis, nas quais estão transferidas as próprias agressões, explica como sociedade punitiva as separações do bem e do mal.
Segundo Helmut Ostermeyer (2002, p.51), a pena não basta para descarregar toda a agressão reprimida, uma parte dela acaba sendo exteriorizada através de mecanismos de projeção.
O fenômeno da projeção da agressividade e do correspondentemente sentimento de culpa sobre o delinqüente é analisado, na literatura psicanalítica como a mítica figura do bode expiatório carregado com nossos sentimentos de culpa e enviado ao deserto.
Edward Naegeli relaciona a mórbida necessidade de sensacionais descrições de delito com este necessário bode, que é encontrado no delinqüente, onde então se projeta nossas ou menos inconscientes tendências criminosas.
Essas projeções de sombra, nomeadas por Naegeli (2002, p.58) insiste sobre o caráter perigoso que as formas de projeção de sombras quando advém de toda uma comunidade e se voltam sobre minorias e grupos marginais, gerando uma má-consciência. A história dos povos, das civilizações nos mostra que este é um fator real e perigoso, que se atrela a realidade social indistintamente de raça, língua ou cor, cultura, região.
Notadamente vemos uma inquietação por parte de alguns estudiosos que lutam para uma posição crítica ante aos apelos sociais e jurídicos, ante a própria consciência, expurgando velhos conceitos e a partir da interdisciplinaridade possível entre direito e psicanálise, fazer uma ponte na busca da humanização e racionalização do pensar jurídico.
CONCLUSÃO
É notória a contribuição das teorias psicanalíticas, inclusive para as teorias sociológicas da criminalidade e no concernente a criminologia crítica que se utiliza dos conceitos trazidos pela psicanálise, fundamentando numa abordagem inovadora tais concepções.
Porém, se o nosso olhar for singular, positivista, compreenderemos que as teorias psicanalíticas tiveram e tem uma importante função crítica, não ultrapassaram os limites fundamentais da criminologia. É fato que as teorias se apresentam como a etiologia de um comportamento, cuja criminalização é aceita sem análise das relações sociais que explicam a lei e seus mecanismos.
As teorias são limitadas porque orientam a análise sobre as funções punitivas sem mediar esta análise com o conteúdo específico do comportamento desviante, do seu significado dentro da histórica determinabilidade das relações sócio-econômicas.
Esta identificação tem o mesmo efeito que teria uma justaposição extrínseca dos dois momentos. A ausência de uma mediação entre eles é conseqüência da visão universalizante com a qual na visão psicanalítica é interpretada através de estruturas conceituais meramente subjetivas e psicológicas, tanto do comportamento criminoso quanto a reação punitiva, têm-se então uma desentegralização.
Notadamente, essa visão universal está presente em todo criminologia liberal, que extirpa o caráter único do sujeito e da contextualização sócio-econômicas, o que, grosso modo, cria um pensamento e o joga para abarcar todas as possibilidades humanas.
Mas apesar de suas limitações, traz um olhar atento acerca do indivíduo, mas principalmente acerca da sociedade punitiva, traz com muita atualidade as posições e as concepções que comparativamente da reação e da punição, dos conceitos e da realidade fática, se mostra moderna e reiterada.
[1] FREUD, Sigmund.Totem e tabu. SE, v. XIII, 1913.
Informações Sobre o Autor
Katherine Lages Contasti
Acadêmica de Direito do Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Participante do Projeto Mandacaru que dá assessoria á comunidades colombolas em Teresina/PI.