Como é sabido, a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acresceu o parágrafo terceiro ao art. 102, nos seguintes termos: “no recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
Muito embora nossa firme opinião no sentido de que a norma constitucional pudesse ser de imediato aplicada, venceu o entendimento amplamente majoritário, no sentido de que ulterior esforço legislativo seria imprescindível para a aplicação do instituto.[1] A argumentação vencedora – como se esperava – empresta significativa atenção à expressão “nos termos da lei” mencionada no texto constitucional. Era evidente que, no final, a aplicação do instituto somente ocorreria anos após quando então fosse regulamentado o dispositivo, malgrado nosso entendimento em prol de sua sedimentação jurisprudencial (e não legislativa). Mas não é o caso de aqui polemizar.
A expectativa então foi confirmada com a Lei 11.418/06 que tentou disciplinar essa nova condição de admissibilidade do recurso extraordinário, a ser apreciada exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal. Em linhas gerais, existe a presunção de relevância do recurso, que é afastada pelo voto de, no mínimo, dois terços dos Ministros da Corte.
Merecem transcrição os dois dispositivos acrescentados pela Lei Regulamentadora ao Código de Processo Civil:
“Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
§ 2o O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.
§ 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
§ 4o Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.
§ 5o Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 6o O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
§ 7o A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.”
“Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§ 1o Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2o Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§ 3o Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4o Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§ 5o O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.”
Contudo, a própria lei determinou ao Supremo Tribunal Federal, “em seu Regimento Interno, estabelecer as normas necessárias à execução desta Lei” (art. 3º, da Lei 11.418), a despeito de sugerir a aplicação desta lei “recursos interpostos a partir do primeiro dia de sua vigência” (art. 4º, da mesma). Resumo da ópera: diante da previsão legislativa, o Pretório Excelso entendeu que enquanto não regulamentado o tema por norma regimental, não seria possível exigir o cumprimento do requisito.
Então, foi editada a Emenda Regimental nº 21/2007, ratificando algumas previsões constitucionais e legais e criando outras, a fim de adaptar o julgamento da aferição da repercussão geral.
Este breve estudo analisará duas situações, no mínimo, curiosas.
Em primeiro lugar, a legislação estabeleceu ser ônus do recorrente convencer o Supremo Tribunal Federal, em preliminar do recurso, do preenchimento do requisito (art. 543-A, §2º, CPC). A conseqüência pela desatenção deste ônus foi capitulada expressamente na Emenda Regimental nº 21: a recusa do extraordinário.[2] Em que pese a conveniência técnica de ser trabalhado o requisito preliminarmente, em nosso sentir, nada justifica a conseqüência draconiana de seu não conhecimento pela preterição da forma determinada. Ou seja, caso o Supremo Tribunal Federal entenda que a questão constitucional é relevante e oferece repercussão geral, deveria avançar no mérito do recurso em prol da defesa da Constituição Federal, pois é esta – e não a disposição vaga do art. 543-A, §2º, CPC, complementada pela norma regimental – que preconizou a “filosofia da repercussão geral”. Por conseguinte, não é legal (tampouco conveniente) que as normas infraconstitucionais e regimentais arrefeçam a força normativa constitucional. Identificada a repercussão geral, ainda que o recorrente não tenha desenvolvido tópico preliminar específico, deve o Supremo avançar na análise do mérito, pois tal julgamento interessa a sociedade, e não apenas aos sujeitos do recurso.
Um segundo tópico diz respeito à forma pela qual os Ministros debaterão a existência – ou não – da repercussão geral. De acordo com a literalidade da Emenda Regimental nº 21, a análise da repercussão geral poderá ser realizada sem a necessidade de sessão plenária pública. Isto porque o Relator poderá submeter, por meio eletrônico, aos demais ministros cópia de sua manifestação sobre a existência ou não da repercussão geral (art. 323 do Regimento). Também os demais ministros poderão encaminhar sua decisão, no prazo comum de 20 dias (art. 324), sendo presumida a repercussão geral com o silêncio.
Para tentar conciliar essa previsão com as garantias constitucionais do contraditório e da publicidade das decisões, o art. 325, do Regimento Interno, determina a juntada das manifestações eletrônicas aos autos. Contudo, a constitucionalidade desse procedimento é altamente duvidosa. Ora, se de um lado é certo que o recorrente desenvolveu o tópico da repercussão geral em seu recurso, exercendo assim seu sagrado direito de influenciar o convencimento judicial (contraditório), por outro, é indisfarçável que o mero envio de correspondência prejudica ou aniquila a troca de opiniões e o saudável debate que caracteriza o julgamento colegiado. Isso sem contar que o jurisdicionado somente conhecerá as razões da recusa, quando esta já tiver sido definitivamente julgada, sem direito a qualquer recurso, dada a irrecorribilidade do provimento (art. 326 do Regimento).[3] Nessas situações, o jurisdicionado é privado da sustentação oral e da audiência na deliberação da Corte, circunstância que, em nosso sentir, não é condizente com o devido processo constitucional, especialmente com a garantia da publicidade dos julgamentos (art. 93, IX, CF).[4]
Em outras palavras, a interpretação do Regimento conforme a Constituição conduz a realização de uma sessão pública para o debate e decisão quanto à repercussão geral, e não se limita a troca de emails com a posterior publicização desses. Somente com a possibilidade do ingresso do processo na pauta, poderá o jurisdicionado exercer satisfatoriamente sua defesa, inclusive mediante a sustentação oral.
Há, ainda, outras peculiaridades no procedimento de aferição da repercussão geral, que analisamos em outra sede, como a admissão do amicus curiae, a escolha dos recursos representativos da controvérsia, o rejulgamento das causas pelos tribunais de origem, a conveniência de se permitir ao Superior Tribunal de Justiça seleção de recursos pela relevância, etc.[5] Todavia, em face dos limites do presente trabalho, deixamos os tópicos acima para debate.
O que fica claro, nesse contexto, é o importantíssimo trabalho a ser empreendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na resolução dessas questões. Se, por um lado, deve ser aplaudida a introdução da exigência, a fim de limitar o trabalho da Corte aos debates sociais mais importantes, por outro, não se pode negar que critérios mais claros e constitucionais devem ser oferecidos, sob pena do jurisdicionado interpretar o fenômeno como uma autorização para uma inadequada e perigosa discricionariedade judicial na seleção dos recursos.
Diante das dezenas de milhares de recursos julgados anualmente pelo Supremo Tribunal Fderal, algo deveria ser imediatamente feito para conservar o papel do extraordinário como instrumento de guarda da Constituição. Em geral, a iniciativa constitucional foi acertada. Resta aos operadores interpretar as novas normas com os olhos abertos à Constituição e ao jurisdicionado.
Informações Sobre o Autor
Daniel Ustárroz
Professor convidado nos cursos de especialização da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC), UFRGS, ULBRA/RS e URCAMP, dentre outras instituições.
Mestre em Direito Processual pela UFRGS
Autor das seguintes obras:
Manual dos Recursos Cíveis. Livraria do Advogado: 2007.
Responsabilidade Contratual. 2. ed. Revista dos Tribunais: 2007.
Intervenção de Terceiros no Processo Civil. Livraria do Advogado: 2004.