Resumo: O sistema de fiscalização de constitucionalidade em Portugal, por ser misto, é tão complexo quanto o brasileiro. Nele está contemplada a fiscalização concreta da inconstitucionalidade, a qual é sempre sucessiva, a fiscalização abstrata da inconstitucionalidade, em sua forma preventiva e sucessiva, e a fiscalização da constitucionalidade por omissão. O presente estudo trará noções mínimas sobre cada uma destas espécies, a fim de ofertar maiores recursos para se pensar o sistema brasileiro de fiscalização da constitucionalidade.
Sumário: Nota introdutória. Introdução; 1. Objeto da fiscalização da Constitucionalidade; 2. Fiscalização concreta da constitucionalidade; 3. Fiscalização abstrata da inconstitucionalidade por ação; 3.1) Fiscalização preventiva; 3.2) Fiscalização sucessiva; 4. Fiscalização da inconstitucionalidade por omissão; Conclusão.
Nota introdutória
O presente estudo tem como principal objetivo discorrer sobre o atual sistema de controle de constitucionalidade português, revelando as suas principais características e modo de funcionamento. Não é o propósito do trabalho esgotar o tema sob apreciação, mas apenas aguçar o interesse dos interlocutores para que se intensifiquem estudos de direito comparado, os quais, em matéria de fiscalização de constitucionalidade, revelam-se de suma importância, seja para ressaltar aspectos positivos do sistema pátrio, seja para fundamentar críticas ao mesmo, motivando mudanças necessárias. Apesar do escopo primeiro deste estudo ser a informação, não se deixará de emitir juízos de valor, afinal o propósito de qualquer trabalho científico não é apenas dar a conhecer, mas, sobretudo, dar a pensar.
Introdução
O sistema de fiscalização da constitucionalidade em Portugal, tal qual o sistema brasileiro, caracteriza-se pela sua complexidade. Trata-se de um sistema misto, no qual se identificam simultaneamente características e mecanismos próprios do sistema austríaco de controle de constitucionalidade arquitetado por Kelsen e da judicial review desenvolvida no direito norte-americano.
O sistema austríaco de controle de constitucionalidade se caracteriza, sobretudo, pela aferição da compatibilidade da lei em tese frente à Constituição, tarefa esta que é atribuída exclusivamente a uma Corte Constitucional. Essas características lhe rendem denominações, tais quais, sistema abstrato de controle de constitucionalidade e sistema concentrado de controle de constitucionalidade.
A judicial review, por sua vez, se caracteriza basicamente pela aferição da compatibilidade da lei com a Constituição diante de um caso concreto. A questão acerca da constitucionalidade da norma, nesta seara, revela-se como uma questão incidental ao julgamento da causa posta pelas partes à apreciação do juízo, exigindo do magistrado comum, portanto, a tomada de posição no que se refere à inconstitucionalidade da norma a ser aplicada se pretender julgar o mérito da causa. Em virtude destas características esse sistema também é denominado de sistema concreto de controle da constitucionalidade ou sistema difuso de controle da constitucionalidade.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade, como já adiantamos, combina ambos sistemas. Se à primeira vista alguns poderiam supor que desta combinação resulta um sistema de controle de constitucionalidade mais eficiente, não é a conclusão a que se chega após um estudo mais detalhado. Assim como ocorre no sistema brasileiro, uma série de dificuldades surgem em virtude deste arranjo. Tais dificuldades não se relacionam apenas com a sua compreensão, mas, sobretudo, com o seu funcionamento. Como veremos existe uma gama de situações no qual o modelo em questão se revelará insuficiente, ou mesmo, falho.
1. O objeto da fiscalização da constitucionalidade
A fiscalização da constitucionalidade em Portugal, nos termos do artigo 277, n. 1, da CRP/1976, recai sobre normas jurídicas[1]. Logo, não é possível o controle de atos dos poderes públicos, tais como: atos políticos, os quais sujeitam-se exclusivamente ao regime de responsabilidade política; atos administrativos, os quais submetem-se apenas ao controle de legalidade pelos Tribunais Administrativos; e atos jurisdicionais, os quais são objeto de recurso para os Tribunais. Somente.
Diante do limitado objeto da fiscalização da constitucionalidade em Portugal, que deixa a descoberto uma série de atos não normativos que também possuem aptidão para ferir o texto constitucional, o Tribunal Constitucional ao longo dos tempos, através da interpretação, alargou o sentido de norma. O que se tem, atualmente, é uma noção funcional de norma jurídica, que equipara as normas jurídicas às regras de conduta ou aos critérios de decisão de casos concretos. Esse entendimento permitiu ao Tribunal Constitucional fiscalizar a inconstitucionalidade de interpretações extraídas das normas nas decisões judiciais. Note-se que uma coisa é a sentença do caso concreto, a qual não é suscetível de fiscalização de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional, outra é a norma que ela aplica ou deixa de aplicar, essa sim suscetível de fiscalização de constitucionalidade. Na prática o que se verifica é que, conforme a conveniência na análise da questão, o Tribunal Constitucional conhece ou não do recurso para fiscalizar a constitucionalidade. A noção construída jurisprudencialmente, portanto, dá margem ao Tribunal Constitucional para julgar aquilo que lhe convém, não se constituindo em um critério objetivo. Duras críticas são opostas pela doutrina portuguesa contra a noção funcional de norma adotada pelo Tribunal Constitucional.
Deve-se ter em conta que não são apenas as normas em vigor que se submetem ao controle de constitucionalidade, mas também o Direito anterior – inconstitucionalidade superveniente –, as normas revogadas, caducas ou suspensas. Nestas hipóteses, a relevância da fiscalização de constitucionalidade reside nas situações jurídicas produzidas por tais normais, já que a declaração de inconstitucionalidade em princípio produz efeito ex tunc, ou seja, desde o momento de entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (artigo 282, n.1, CRP/1976).
Observa-se que o controle de constitucionalidade, conforme consagra o artigo 277, n. 2, da CRP/1976, também objetiva garantir a conformidade dos tratados internacionais, quando eles violem disposição fundamental do ordenamento jurídico-constitucional[2]. Entretanto, se não se tratar de violação de uma disposição fundamental, a inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa.
2. Fiscalização concreta da constitucionalidade
Na esteira da tradição da Constituição Republicana portuguesa de 1911 – a qual foi inspirada na Constituição brasileira de 1891 e influenciada pelas idéias de Rui Barbosa nela consagradas –, a Constituição de 1976 consagrou o controle difuso, concreto e incidental dos atos normativos, que será sempre, por sua própria essência, sucessivo, abrangendo não só a inconstitucionalidade (art. 280, n.1), mas também a ilegalidade de qualquer norma (art. 280, n. 2).
De tal sorte, é atribuída a todo julgador, singular ou colegiado, a competência para fiscalizar a constitucionalidade das normas, de modo incidental, diante do caso concreto, quer por impugnação das partes, quer por iniciativa ex officio do julgador ou do Ministério Público. Note-se, pois, que os tribunais e julgadores singulares não se limitam a deixar de aplicar a norma entendida como inconstitucional, conforme se poderia supor a partir da leitura do artigo 204 da CRP/1976, segundo o qual “nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”. A competência que lhes é atribuída lhes permite mais do que deixar de aplicar a norma, lhes permite apreciá-la frente ao texto constitucional. Observa-se que o Tribunal Constitucional também está inserido no âmbito da disposição do artigo 204, podendo conhecer incidentalmente da inconstitucionalidade ou ilegalidade nos processos em que exerça as suas competências jurisdicionais.
Note-se que o sistema português é bastante peculiar, se comparado a maior parte dos sistemas europeus, pois, diante da inconstitucionalidade da norma a ser aplicada no caso concreto, os julgadores têm competência plena para se posicionar acerca da questão da inconstitucionalidade naquele caso específico – nunca em tese – e não apenas para admitir o incidente de inconstitucionalidade, remetendo-o para ser apreciado pelo Tribunal Constitucional. Apesar disso, a posição do Tribunal Constitucional no sistema português não é menos relevante, na medida em que sempre cabe recurso a ele da decisão de qualquer tribunal que aplicar norma anteriormente julgada por si inconstitucional ou ilegal e, também, na medida em que, quando o Tribunal, em sede de fiscalização concreta, declara por 3 (três) vezes inconstitucional determinada norma, poderá ser, prontamente, desencadeado processo de fiscalização abstrata, objetivando declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória e geral (art. 281, n. 3). Observa-se, contudo, que essa passagem da fiscalização concreta à fiscalização abstrata não ocorre automaticamente, nem está o Tribunal Constitucional obrigado a fazer, ficando dependente de iniciativa. Note-se, também, que não é necessário que a norma constitucional considerada como parâmetro nos três casos em que se posicionou pela inconstitucionalidade seja a mesma. É a norma tida como inconstitucional que deve se repetir. Da mesma sorte, nada impede que o Tribunal Constitucional declare apenas um segmento da norma inconstitucional, dando, portanto, uma amplitude menor à declaração da inconstitucionalidade em abstrato.
São três os tipos de decisões recorríveis ao Tribunal Constitucional: 1) decisões que recusem a aplicação de certa norma com fundamento em inconstitucionalidade ou em ilegalidade; b) decisões que apliquem norma cuja constitucionalidade ou ilegalidade haja sido suscitada durante o processe e c) decisões que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional. O que fundamenta a recorribilidade de tais decisões é o postulado da supremacia do Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional é o órgão especificamente legitimado para exercer a Guarda da Constituição em última instância. Se a primeira palavra acerca da inconstitucionalidade de determinada norma cabe a qualquer julgador, a última pertence exclusivamente ao Tribunal Constitucional.
A decisão proferida no recurso, entretanto, não substitui a decisão recorrida. Dado provimento ao recurso, ainda que parcialmente, os autos retornam ao julgador a quo, a fim de que este reforme a decisão.
É importante salientar que o recurso ao Tribunal Constitucional pode ser direto e, obrigatoriamente o será, quando se tratar de recurso interposto pelo Ministério Público em virtude da norma cuja aplicação tenha sido recusada constar de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto regulamentar (art. 280, n. 3).
A decisão positiva que resulta do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade é o julgamento da norma como inconstitucional (art. 280, n. 5).
3. Fiscalização abstrata da inconstitucionalidade por ação
Ao lado do controle difuso e concreto, a Constituição da República de 1976 consagrou o controle concentrado e abstrato de normas, que tem como principal característica não mais a apreciação da inconstitucionalidade como uma questão incidental a ser superada para que seja possível o proferimento de uma decisão no feito submetido à julgamento, mas sim como objeto principal do processo. Nesta hipótese, o processo constitucional se dirige à fiscalização acerca da constitucionalidade formal ou material de determinada norma jurídica em tese, resultando em uma decisão com força geral e obrigatória que vinculará não apenas os órgãos do Poder Judiciário, como também os órgãos dos outros poderes instituídos.
Logo, neste processo não há partes, não há interesses subjetivos contrapostos, não há um litígio subjacente. O desencadeamento de um processo de fiscalização concentrada e abstrata se dá exclusivamente na perspectiva de um interesse público e objetivo, razão pela qual a fiscalização abstrata vincula-se a um poder funcional de iniciativa atribuído a determinados órgãos ou a frações de titulares de órgãos do poder político. Somente aqueles que gozam de tal poder funcional de iniciativa podem requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade ou legalidade de normas jurídicas. Assim como no sistema brasileiros em que se identifica a existência de legitimados universais e legitimados restritos para a propositura das ações do controle concentrado, em Portugal se identifica um poder geral de iniciativa atribuído a determinados órgãos ou titulares de órgãos e um poder especial de iniciativa atribuído a certos órgãos e titulares de órgãos, dos quais se exige a vinculação entre o interesse objetivo de proteção da ordem jurídico-constitucional e um interesse em certa medida particualrizado, porém sempre público.
O processo de controle concentrado de constitucionalidade não é apenas desencadeado pelos detentores do poder funcional de iniciativa, também são eles quem fixa o objeto do processo no pedido. É ônus daquele que desencadeia o controle de constitucionalidade especificar as normas que pretende sejam analisadas, bem como apontar quais normas constitucionais entende violadas. O Tribunal Constitucional, contudo, não está adstrito a esta última parte, isto é, não se limita em confrontar a norma tida como inconstitucional apenas com a norma parâmetro indicada, podendo fundamentar a sua decisão em normas constitucionais diversas da invocada. Da mesma sorte, é possível que, a partir da decisão de inconstitucionalidade de uma dada norma, outras normas infraconstitucionais nela implícita ou contida se revelem inconstitucionais. Nestas hipóteses, portanto, o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização abstrata sucessiva, deve conhecer das inconstitucionalidades conseqüentes, mesmo que não sejam objeto do pedido.
O controle abstrato e concentrado, como já demos a entender, pode ser realizado antes dos diplomas legais entrarem em vigor – controle preventivo, nos termos dos artigos 278 e 279 da CRP/1976 – ou após as normas jurídicas tornarem-se plenamente válidas e eficazes – controle sucessivo, nos termos dos artigos 280 e 281da CRP/1976.
3.1. Fiscalização preventiva
Somente o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 223, f, da CRP/1976, tem competência para exercer a fiscalização preventiva da constitucionalidade de normas jurídicas[3]. Esta espécie de fiscalização abstrata tem como objetivo dificultar ou impedir que uma norma que não seja hígida entre em vigor. Portanto, ela é levada a efeito antes da norma ter sido promulgada pelo Presidente da República e ter produzido qualquer efeito jurídico.
Note-se que, uma vez realizado o controle de constitucionalidade da norma preventivamente, afastam-se eventuais violações grosseiras e inequívocas, contudo, nada impede que, ao longo de sua vigência, a norma seja submetida à fiscalização sucessiva, seja abstrata ou concreta.
Não se verifica uma sujeição automática dos diplomas à apreciação do Tribunal Constitucional. A fiscalização preventiva é desencadeada pelos detentores do poder funcional de iniciativa nos exíguos prazos determinados no texto constitucional.
O Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional, no prazo de 08 (oito) dias a contar da data da recepção do diploma (art. 278, n. 3), a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante em tratado internacional que ele vá ratificar, bem como de qualquer decreto que ele vá promulgar como lei ou como decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto de aprovação vá assinar (art. 278, n.1).
Os Representantes da República também podem requerer ao Tribunal Constitucional, no prazo de 08 (oito) dias a contar da data em que recebeu o diploma (art. 278, n. 3), a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante no decreto legislativo regional que lhe tenha sido enviado para assinatura (art. 278, n.2).
O Primeiro-Ministro e um quinto dos Deputados da Assembléia da República em efetividade de funções podem desencadear a fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional de qualquer norma constante em decreto enviado ao Presidente da República para promulgação como lei orgânica, no prazo de 08 dias a contar da comunicação feita pelo Presidente da Assembléia da República por ocasião do envio do decreto ao Presidente da República para promulgação (art. 278, n. 4, n. 5 e n.6).
Admitido o pedido, o Presidente do Tribunal Constitucional notifica o órgão que tiver exarado a norma impugnada para, querendo, se pronunciar no prazo de 3 (três) dias. Transcorrido esse prazo, o Tribunal Constitucional tem, em regra, 25 (vinte e cinco) dias para se manifestar acerca da inconstitucionalidade da norma. Este prazo, todavia, pode ser encurtado pelo Presidente da República por motivo de urgência (art. 278, n. 8).
A iniciativa não faz precluir o veto político, que pode ser manejado pelo Presidente da República ou pelo Representante da República. Ao contrário, o exercício do veto político faz precluir a iniciativa de fiscalização preventiva, a fim de preservar o Tribunal Constitucional do debate político emergente das razões do veto.
Quando o Tribunal Constitucional se pronuncia pela inconstitucionalidade da norma constante em decreto ou acordo internacional, o Presidente da República ou o Representante da República deverá vetá-lo. Pode, todavia, a norma julgada inconstitucional ser expurgada do decreto a ser promulgado ou assinado (art. 279, n.1) ou, ainda, pode ela ser confirmada por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, superando-se, de tal modo, a declaração de inconstitucionalidade. Se, por outro lado, o diploma vier a ser reformulado, pode o Presidente da República ou o Representante da República requerer nova apreciação ao Tribunal Constitucional (art. 279, n. 3).
Quando o Tribunal Constitucional se manifesta pela inconstitucionalidade de norma constante em trato internacional, este poderá ser ratificado pela Assembléia da República se esta o aprovar por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (art. 279, n. 4)
Observa-se que na fiscalização preventiva, a pronúncia de inconstitucionalidade de uma só norma ou de um só segmento de norma determina a inconstitucionalidade de toda a disposição ou de todo o diploma legal, não sendo possível como ocorre na fiscalização sucessiva se autonomizar uma norma ou segmento de norma não inconstitucional.
Note-se que a norma declarada inconstitucional preventivamente pelo Tribunal Constitucional, cuja declaração for afastada pela Assembléia da República, poderá ser reapreciada em eventual controle repressivo. Conforme esclarece Canotilho, “o Tribunal Constitucional pode sempre vir a considerar, em controle sucessivo, de novo inconstitucionais, as normas já objecto de idêntica decisão em sede de controle prévio”[4].
Por outro lado, se a pronúncia do Tribunal Constitucional for no sentido da não inconstitucionalidade, os efeitos produzidos se distinguem conforme se trate de normas legislativas e constantes de acordos internacionais ou se trate de normas constantes em tratados. Conforme lição de Jorge Miranda, “no caso de quaisquer normas, excepto normas de tratados, se o Tribunal Constitucional se não pronunciar pela inconstitucionalidade, o Presidente da República ou o Representante da República deverão promulgar ou assinar o diploma, a não ser que exerçam de seguida, no prazo constitucional, o veto político. Já no caso da decisão pela não inconstitucionalidade de norma inserida em tratado, o Presidente da República não fica obrigado a ratificar o tratado, porquanto a ratificação – ao contrário da promulgação ou da assinatura – é livre, continua a ser, no Direito português (como em geral em Direito comparado) uma faculdade do Presidente da República, enquanto titular do jus raepresentationis omnimodoe do Estado nas relações internacionais”[5].
Revela-se importante fazer referência, ainda a titulo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, à exercida pelo Tribunal Constitucional, nos termos da sua competência prevista no artigo 223, n. 2, alínea f, sobre referendos convocados pelo Presidente da República. O controle preventivo dos referendos, o qual é sempre obrigatório, independendo da vontade dos detentores do poder de iniciativa, é mais abrangente do que o controle sobre os atos normativos, convenções e tratados internacionais, pois não se limita a análise da constitucionalidade, mas também da legalidade. Deve-se atentar para a existência de vícios de qualquer natureza, analisando não apenas o objeto do referendo, mas também às perguntas e respostas a que serão submetidos os cidadãos. Finalmente, note-se que, conforme o ordenamento jurídico-constitucional português, o referendo dependendo do resultado que atinja torna-se vinculativo ou não, criando a obrigação para o Parlamento ou para o Governo de decretar a lei ou aprovar o tratado ou acordo internacional, cuja matéria foi objeto do questionamento popular.
3.2. Fiscalização sucessiva
O controle abstrato sucessivo, também denominado de controle em “via principal”, existe quando, independentemente de um caso concreto, se averigua a conformidade em tese de quaisquer normas vigentes com o parâmetro normativo-constitucional. O Tribunal Constitucional, nestas hipóteses, protege a Constituição frente ao legislador ordinário, garantindo a hierarquia normativa da ordem constitucional.
A fiscalização sucessiva abstrata é sempre da inconstitucionalidade e da ilegalidade de quaisquer normas vigente, exceto da desconformidade de normas legislativas com normas de Direito Internacional Convencional. Da fiscalização sucessiva abstrata resulta uma decisão positiva de declaração de inconstitucionalidade com força geral e obrigatória, nos termos do art. 281 da CRP/1976.
Na fiscalização sucessiva não há prazos como há na fiscalização preventiva, podendo o pedido ser apresentado a qualquer tempo. Tem poder de iniciativa para desencadear o processo de fiscalização de quaisquer normas, com base em quaisquer fundamentos, o Presidente da República, o Presidente da Assembléia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República e um décimo dos Deputados da Assembléia Geral (art. 281, n. 2, a, b, c, d, e f). O Representante da República, as Assembléias Legislativas regionais, os Presidentes das Assembléias Legislativas regionais, os Presidentes dos Governos regionais e um décimo dos Deputados da respectiva Assembléia Legislativa regional, por sua vez, podem requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de certas normas, com fundamento em violação dos direitos das regiões autônomas ou violação do estatuto da respectiva região (art. 281, n. 2, g).
Admitido o pedido, o Presidente do Tribunal Constitucional notifica o órgão do qual a norma impugnada tiver emanado para, querendo, se pronunciar no prazo de 30 (trinta) dias. Nesta seara, inversamente do que ocorre na fiscalização preventiva, não é admitida a desistência do pedido e não se suspende a aplicação, vigência ou eficácia das normas impugnadas. O Tribunal Constitucional, conforme observa Jorge Miranda, pode tampouco adotar providências cautelares.
Da decisão definitiva acerca da inconstitucionalidade originária ou ilegalidade originária da norma, em regra, resultam efeitos ex tunc, isto é, a regra é a retroatividade da decisão exarada pelo Tribunal Constitucional à data de entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal (art. 282, n. 1), inclusive, produzindo efeitos repristinatórios sobre as normas que eventualmente hajam sido revogadas pela norma declarada inconstitucional ou ilegal. Quando se trate de inconstitucionalidade ou ilegalidade por infração de norma constitucional ou lei posterior (inconstitucionalidade ou ilegalidade superveniente), a retroatividade alcança somente o momento de entrada em vigor do parâmetro e não da norma tida como inconstitucional ou ilegal, sem produzir efeitos repristinatórios. Como limite à retroatividade, contudo, ficam ressalvados, em princípio, os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao argüido (art. 282, n. 3).
Há, porém, possibilidade, em circunstâncias relevantes, de manipulação (ou modulação, como prefere a doutrina brasileira) dos efeitos da decisão do Tribunal Constitucional acerca da inconstitucionalidade ou da ilegalidade (art. 282, n. 4), dentro dos parâmetros postos pelo princípio da proporcionalidade em sua tríplice vertente: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Nesse sentido, o Tribunal Constitucional pode, por razões de segurança, equidade ou interesse público, restringir ou eliminar os efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade, salvaguardando situações jurídicas produzidas tidas como relevantes. É possível também que o Tribunal Constitucional recorra a limitações temporais apenas quanto a certos efeitos produzidos pela norma, deixando que outros retroajam. Do mesmo modo, quando se trate de inconstitucionalidade e ilegalidade originária, pode ser obstado a repristinação da norma anterior. Jorge Miranda identifica, contudo, limites absolutos à limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, por virtude de princípios fundamentais[6].
4. Fiscalização da inconstitucionalidade por omissão
A Constituição portuguesa de 1976 é uma das poucas a consagrar expressamente a possibilidade de verificação de inconstitucionalidade por omissão. A relevância deste instituto, bem como dos demais que compõe o sistema de controle de constitucionalidade, pode ser aferida em razão da disposição que consagra a fiscalização de constitucionalidade por ação ou por omissão de normas jurídicas como limites materiais à revisão constitucional (art. 288, l, da CRP).
A fiscalização da inconstitucionalidade por omissão visa, por meio da ciência dada aos órgãos legislativos competentes, implementar as medidas legislativas necessárias para tornar exeqüíveis certa norma constitucional programática, que não goze de eficácia plena[7]. A competência para a verificação de inconstitucionalidade por omissão, a qual pode ser desencadeada pelo Presidente da Republica, pelo Provedor de Justiça e, quando com fundamento na violação dos direitos das regiões autônomas, pelos presidentes das Assembléias Legislativas das regiões autoônomas, é exclusiva do Tribunal Constitucional – nos termos art. 283, n. 2, da CRP/1976.
A existência de omissões juridicamente relevantes, conforme destaca Jorge Miranda, é um fenômeno que se encontra em diversos setores do ordenamento jurídico e, em particular, no Direito Constitucional. Nos termos da lição de Canotilho e Vital Moreira, “o princípio da constitucionalidade não diz respeito apenas às acções do Estado; abrange também as omissões ou inacções do Estado. A Constituição não é somente um conjunto de normas proibitivas e de normas de organização e competência (limite negativo de actividade do Estado): é também um conjunto de normas positivas, que exigem do Estado e dos seus órgãos uma actividade, uma ação (limite positivo da actividade do Estado). O incumprimento dessas normas, por inércia do Estado, ou seja, por falta total de medidas (legislativas ou outras) ou pela sua ineficiência, deficiência ou inadequação, traduz-se igualmente numa infracção da Constituição – inconstitucionalidade por omissão”[8].
A inconstitucionalidade por omissão prevista no art. 283 da CRP/1076 não possui caráter preventivo, tampouco substitutivo, já que o Tribunal Constitucional apenas reconhece a posteriori a inconstitucionalidade diante da ausência das medidas legislativas necessárias para a efetivação de certa norma constitucional programática, não podendo adotar qualquer medida que repute necessária, ainda que o órgão legislativo competente, ao qual tenha sido comunicada a verificação da inconstitucionalidade, não supra a omissão. É nesse sentido que Jorge Miranda afirma que a verificação da inconstitucionalidade por omissão não cria qualquer obrigação jurídica para o órgão legislativo, apenas declara uma obrigação preexistente.
Note-se, pois, que os mecanismos consagrados no artigo 283 revelam-se de alcance limitado, não se encontrando no sistema português nenhuma ação mais efetiva como é o caso do mandado de injunção. De qualquer forma, a declaração de inconstitucionalidade por omissão, como observa Jorge Miranda, proporciona maiores condições de êxito em uma futura ação de responsabilidade civil contra o Estado por violação de direitos fundamentais.
Conclusão
Por duas razões nos abstemos de elaborar uma conclusão final quanto tema que optamos por desenvolver ao longo desse estudo.
A primeira delas diz com a própria característica essencial do estudo, o qual se pretende, sobretudo, informativo, a fim de ofertar subsídios para se pense e avalie o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade a partir de uma perspectiva comparada.
A segunda delas relaciona-se com a consciência da insuficiência da análise feita neste breve estudo, para que se afirmem proposições de forma categórica. Optamos por evitar o grave risco de precipitação, deixando de nos posicionar conclusivamente sobre o tema, o que, ao nosso ver, nem por isso compromete o estudo que visa primordialmente, como se consignou acima, a informação.
O objetivo principal é atingido se, após a leitura deste trabalho, permanecer a idéia de que o sistema de fiscalização da constitucionalidade em Portugal é tão complexo quanto o brasileiro, mas capaz de, por meio de suas características peculiares, servir como substrato avaliativo para o sistema brasileiro, seja para ovacionar certos pontos, seja para criticar outros.
Informações Sobre o Autor
Elisa Ustárroz
Advogada no Rio Grande do Sul, especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.