Algumas discussões contemporâneas do direito constitucional no brasil

Introdução


A passagem do tempo deixa marcas em toda parte. Passados 19 anos da edição da Carta de 1988, muitas foram as mudanças. Alguns processos gerais merecem nota. De mera proclamação política, repositório de exortações sem força normativa, a Constituição passou a norma jurídica, vinculante para os três Poderes. Mais que isso, reconheceu-se a sua supremacia formal, material e axiológica, impondo a invalidade de toda e qualquer disposição que a contrarie, bem como a sua centralidade, de que resulta a irradiação das suas disposições por todo o ordenamento jurídico. Em conseqüência, a Constituição não apenas condiciona a interpretação dos enunciados que lhe são inferiores como chega a produzir efeitos nas relações privadas, independentemente de mediação legislativa.


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Ao lado desses processos gerais, no entanto, transformações pontuais têm igualmente marcado a construção do Direito Constitucional. O presente estudo procurou selecionar algumas dessas transformações que, por sua especial relevância para a realidade brasileira, merecem uma reflexão específica, a saber: (i) o início da reação à banalização dos princípios constitucionais; (ii) a ascensão da jurisprudência constitucional e de sua força vinculante; e (iii) o impacto sobre a segurança jurídica provocado pela alteração da jurisprudência e o debate acerca dos efeitos temporais das decisões judiciais.


I. Princípios: o retorno do pêndulo e a busca de equilíbrio


As últimas décadas assistiram, no Brasil e em outras partes do mundo, à ascensão dos princípios – e em particular dos princípios constitucionais – à categoria de normas jurídicas, ao lado das regras[1]. As Constituições contemporâneas, e a Carta brasileira é um exemplo, empregam amplamente enunciados normativos estruturados sob a forma de princípios, em geral com o objetivo de juridicizar opções valorativas, políticas e mesmo ideológicas. De fato, tornou-se comum encontrar na Constituição disposições como as que prevêem, e.g., a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III) e a construção de uma sociedade solidária, como um dos objetivos da República (art. 3º, I). Afora outros enunciados, menos abrangentes, mas igualmente gerais, como os que tratam da proteção do consumidor, do meio ambiente, da criança, do adolescente e do idoso, ou mesmo os que veiculam vários direitos fundamentais.


Durante muito tempo, disposições como essas eram consideradas meras proclamações políticas, sem maiores conseqüências para a ordem jurídica. Elas veiculavam um discurso de intenções, mas delas não se podia extrair conseqüências concretas ou exigíveis perante o Judiciário, por exemplo. Embora inseridos em um diploma supostamente jurídico – a Constituição –, os princípios não eram considerados nem operavam como disposições realmente jurídicas. Aos poucos, porém, esse quadro se alterou substancialmente.


Ao longo de menos de 20 anos, no Brasil, o discurso acerca da normatividade dos princípios, sobretudo dos constitucionais, tornou-se dominante. Não é o caso de percorrer aqui o caminho que nos conduziu a esse ponto, nem as amplas discussões acerca da distinção entre princípios e regras, bastando lembrar com que freqüência, e relativa tranqüilidade, passou-se a afirmar que também os princípios são normas jurídicas. E como não poderia deixar de ser, a partir do discurso teve início a prática. Sem necessidade de maiores perquirições, é um fato que a referência aos princípios constitucionais tornou-se cada vez mais comum na fundamentação de sentenças e acórdãos, ainda que sob variadas formas e para efeitos diversos.


A transição do debate teórico para a prática, porém, não tem sido feita sem percalços. A tradição no Direito brasileiro era o manejo de regras, e não de princípios, de modo que as dificuldades eram, a rigor, previsíveis. Realmente, a vagueza de muitos dos princípios contidos na Carta de 1988 – cujo sentido se abre para compreensões diversas, variáveis em função das concepções pessoais do intérprete –, associada ao pouco cuidado metodológico de alguns aplicadores, tem desencadeado um fenômeno descrito pela doutrina por meio de expressões como “euforia principiológica”, “carnavalização dos princípios”, “embriaguez principiológica”, dentre outras similares. Em muitos momentos, a menção a um princípio constitucional passou a ser empregada como a palavra mágica que autoriza o intérprete a proferir qualquer decisão.


Até porque, do ponto de vista puramente retórico, a verdade é que praticamente qualquer solução pode ser reconduzida a princípios como, e.g., os da dignidade, da justiça social, da solidariedade e outros tantos. Qualquer pretensão de que alguém cogite pode ser descrita como algo relevante para sua dignidade humana. A justiça social e a solidariedade, dependendo da compreensão que se tenha delas, podem justificar a imposição de inúmeras obrigações a terceiros; uma série infinda de providências hipotéticas podem contribuir de algum modo para a proteção do consumidor, do meio ambiente, do idoso e da criança e dos adolescentes, até porque tais metas nunca estarão inteiramente satisfeitas, e assim por diante.


Nessa linha, e com fundamento genérico em alguns princípios, passou-se a afastar a aplicação de regras validamente editadas pelo legislador sem muita cerimônia ou cuidado. Em muitas ocasiões o intérprete tem se sentido livre para simplesmente deixar de aplicar um dispositivo legal[2], não porque ele seja inconstitucional ou por se tratar de uma incidência inconstitucional do comando[3], mas simplesmente por assim “parecer bem” ao aplicador, à luz de sua compreensão pessoal acerca do sentido do princípio. Nesse mesmo ambiente, outra prática, que já não pode ser descrita como isolada, é a criação de deveres particulares não previstos de forma razoavelmente clara na Constituição ou em lei. Isto é: o juiz, com fundamento, e.g., na solidariedade social, impõe a um particular obrigações que não decorrem de forma óbvia do princípio e nem de lei específica.


Pois bem. De algum tempo para cá, já se começa a perceber as primeiras reações organizadas da doutrina a esse uso indiscriminado – quase “festivo” – e pouco criterioso dos princípios constitucionais, sobretudo pela jurisprudência[4]. É o início do retorno do pêndulo e a busca por uma posição de maior equilíbrio. Veja-se que o reconhecimento da juridicidade dos princípios é um dado incorporado em caráter definitivo ao acervo jurídico nacional: esse ponto não é objeto de discussão. A questão que se coloca é posterior, mais complexa, e surge quando a afirmação abstrata acerca da juridicidade dos princípios deve interagir com situações concretas, no âmbito das quais convivem fatos, princípios diversos e regras variadas. Nesse contexto, como exatamente os princípios devem operar? O que se pode exigir judicialmente com fundamento neles?


Embora o debate permaneça em ebulição, o retorno do pêndulo no que diz respeito aos princípios – que haverá de conduzir o tema, de uma euforia inicial, a um estágio de maior maturidade dogmática e operacional – tem sido impulsionado por três considerações principais formuladas pela doutrina.


Em primeiro lugar, os princípios constitucionais são o locus no qual a necessidade de convivência respeitosa entre os espaços do jurídico-constitucional e da deliberação majoritária e democrática talvez se mostre de forma mais visível. Se é certo que o princípio é um comando jurídico, que pretende a realização de determinados efeitos no mundo dos fatos e, nesse passo, admite o manejo da tutela jurisdicional tradicional para exigi-los, também é certo que há um espaço de desenvolvimento dos princípios que compete com exclusividade ao legislador e ao administrador eleitos, na esfera de suas competências. Sequer há necessidade de exemplificar. Não há dúvida de que o respeito à dignidade humana, por sua mera enunciação, impõe determinadas condutas básicas aos particulares e ao Estado, mas também é verdade que esse mesmo princípio admite diferentes desenvolvimentos legislativos, diferentes políticas públicas, diferentes escolhas.


Assim, ao lidar com princípios constitucionais, o intérprete haverá de ter em mente que em algum ponto há uma linha que divide as possibilidades de solução em dois campos: o campo do jurídico-constitucional, delineado por consensos mínimos oponíveis a qualquer grupo político, e por isso mesmo sindicáveis independentemente de novas manifestações majoritárias (ou mesmo em oposição a essas novas manifestações), e o campo das opções político-majoritárias legítimas. O aplicador, nessa qualidade, apenas pode “jogar” no primeiro campo, e não no segundo. Ainda que ele pessoalmente discorde de alguma “jogada” levada a cabo no segundo campo, não lhe é permitido interferir, salvo na qualidade de cidadão.


As razões para essa primeira observação – que funciona como um vetor impulsionando o pêndulo de volta – são várias e se relacionam, basicamente, com a própria natureza do Estado democrático e com a legitimidade da atividade jurisdicional. Não cabe aqui discorrer sobre elas, embora elas conduzam a uma segunda observação, autônoma.


A doutrina tem destacado a repercussão negativa que, indiretamente, a “banalização dos princípios” acaba por desencadear sobre outros bens constitucionais. Há diversas possibilidades aqui, dependendo do ambiente no qual a discussão se trave e se vai apenas destacar alguns exemplos. Em matéria de direitos, é freqüente que a sua concessão ampla com fundamento em princípios constitucionais gerais acabe gerando problemas de isonomia e de distribuição desigual de recursos públicos[5]. Isso porque freqüentemente não será possível generalizar a decisão concessiva do direito para todos os indivíduos que se encontram em situação equiparável à do autor da demanda, que receberá, desse modo, uma porção substancialmente maior de benefícios públicos que os demais. Tais reflexos, essa é a idéia, não podem ser ingenuamente ignorados pelo aplicador.


Em sentido similar, a criação, a partir de princípios, de obrigações específicas não previstas de forma clara e em caráter geral para todos em determinado universo pode autorizar distorções variadas. No caso de agentes econômicos, e.g., a higidez da concorrência nos mercados pode ser afetada, uma vez que apenas os agentes econômicos que eventualmente sejam réus na demanda em que o tema é discutido estarão obrigados a adotar tal ou qual comportamento[6].


Sob outra perspectiva, esse uso desenfreado dos princípios contribui, não há dúvida, para o esvaziamento ainda maior do debate político democrático. Parece tentadoramente mais fácil e rápido ir ao Judiciário solicitar tudo o que se deseja com fundamento na dignidade da pessoa humana do que engajar-se no debate público a fim de influenciar as escolhas políticas. É desnecessário ocupar espaço para demonstrar que essas não são duas vias fungíveis.


Em terceiro lugar, talvez a crítica mais imediata à euforia principiológica, e nem por isso menos relevante, envolva o prejuízo que o fenômeno causa ao Estado de Direito e à segurança jurídica. Há no país milhares de juízes, dezenas de tribunais e inexiste a vinculação geral dos precedentes, própria dos sistemas de common law. Ora, nesse cenário, se cada magistrado puder, com fundamento em suas concepções particulares acerca de princípios gerais, impor obrigações e afastar a aplicação de regras válidas, quais serão as regras vigentes afinal? O que esperar do sistema jurídico? Como se comportar de acordo com o Direito que não se sabe ainda qual é? A insegurança, tanto para o passado, quanto para o futuro, é evidente.


Repita-se que o debate sobre o “retorno do pêndulo” em matéria de princípios constitucionais encontra-se em andamento. Não se trata, como já destacado, de uma negação da normatividade ou da importância dos princípios, mas da busca de um equilíbrio entre os diferentes aspectos do sistema jurídico-constitucional e político que, queira-se ou não, estão interligados. O ativismo judicial no Brasil, de forma geral, sempre foi identificado com o avanço, com uma postura progressista, “do bem” e politicamente correta. Essa espécie de avaliação, pouco crítica e maniqueísta, caracteriza com freqüência os adolescentes ou os apaixonados. Com as críticas que começaram a surgir, talvez tenhamos dado início a nossa maturidade nesse particular.


II. Jurisprudência constitucional: força cada vez mais vinculante


Nos últimos anos, as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores passaram a desempenhar um papel central na vida jurídica do país por duas razões principais. Em primeiro lugar, a abertura do sistema jurídico acaba por transferir ao magistrado um poder decisório bastante amplo, de modo que é ele quem definirá, afinal, qual o direito vigente sobre determinada matéria. Ademais, além da evidente persuasão pragmática e lógica associada às decisões de tais Cortes, opções legislativas específicas, sobretudo no âmbito do processo civil, têm procurado prestigiar a jurisprudência dos Tribunais Superiores.


Há mais que isso, porém. É possível observar uma tendência bastante clara de conferir à jurisprudência constitucional do STF não apenas importância decisiva, mas também efeitos vinculantes, em maior ou menor extensão. E não se trata propriamente da figura da súmula vinculante, criada pela Emenda Constitucional nº 45/04 e regulamentada apenas no final de 2006, pela Lei nº 11.417, de 19.12.2006. Esse movimento tem sido impulsionado por vários expedientes de que tem se valido o próprio Supremo Tribunal Federal (ou ao menos alguns de seus membros). Aprofunde-se a questão.


Ao longo dos últimos anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ampliou de forma importante as hipóteses de emprego da reclamação, sobretudo para o fim de garantir a autoridade de suas decisões[7]. Em um primeiro momento, ampliou-se a legitimação ativa para manejar a reclamação, que passou a incluir todos os que comprovem prejuízo oriundo de decisões judiciais ou da Administração contrárias a julgado do STF proferido em sede de controle abstrato de constitucionalidade, e não apenas o autor da ação original na qual proferida a decisão[8].


Na seqüência, vários Ministros da Corte passaram a admitir o manejo da reclamação tendo em conta não apenas o dispositivo do julgado, como também as razões que o determinaram. O fenômeno foi identificado como o da transcendência dos motivos, ou ainda o da atribuição de efeitos transcendentes aos motivos determinantes das decisões[9], e decorre de uma compreensão mais abrangente acerca do efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade.


É certo que a questão não é tranqüila no âmbito do próprio STF, devendo em breve ser examinada de forma específica por seu Plenário. Aparentemente por essa razão, em decisões mais recentes, alguns Ministros passaram a justificar a mesma solução, que antes decorria da transcendência dos motivos, com fundamento no “poder ínsito à própria competência do Tribunal de fiscalizar incidentalmente a constitucionalidade das leis e dos atos normativos. E esse poder é realçado quando a Corte se depara com leis de teor idêntico àquelas já submetidas ao seu crivo no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade. Assim, em relação à lei de teor idêntico àquela que já foi objeto do controle de constitucionalidade no STF, poder-se-á, por meio da reclamação, impugnar a sua aplicação ou rejeição por parte da Administração ou do Judiciário, requerendo-se a declaração incidental de sua inconstitucionalidade, ou de sua constitucionalidade, conforme o caso. Na hipótese em exame, como já acentuado, não estamos a falar em ‘transcendência dos motivos determinantes’[10].


Seja como for, o fato é que a tendência de atribuir efeitos vinculantes às decisões do STF em geral prossegue. Recentemente, o Ministro Gilmar Mendes admitiu o uso da reclamação por terceiros para a preservação da autoridade de decisão proferida pelo STF no âmbito de controle difuso e incidental de constitucionalidade[11]. A decisão, até o momento não examinada em caráter definitivo pelo Plenário, tem suscitado alguma perplexidade. A adotar-se esse mecanismo, o papel da súmula vinculante seria substancialmente reduzido. Mais que isso, efeitos similares aos da súmula vinculante seriam produzidos sem a observância dos requisitos previstos constitucional e legalmente para sua edição. Alguns detalhes do caso ajudam a esclarecer a hipótese.


A reclamação foi manejada para preservar a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 82.959-SP (DJU 1º set. 2006, Rel. Min. Marco Aurélio), que declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime (Lei nº 8.072/90, art. 2º, § 1º). O reclamado foi um magistrado da Comarca de Rio Branco, no Acre, que fez divulgar comunicado informando que a decisão proferida pelo STF no habeas corpus referido apenas teria eficácia a favor de outros condenados após eventual resolução do Senado Federal que suspendesse a norma em caráter geral, nos termos do art. 52, X da Constituição.


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O Ministro Gilmar Mendes, em longo voto, no qual descreve o movimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de prestigiar as decisões do STF, seja no âmbito do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, seja no incidental e difuso, deferiu a liminar solicitada na reclamação. Registrou, ademais, seu entendimento no sentido de que à resolução do Senado Federal de que trata a Constituição caberia apenas dar publicidade à decisão proferida pelo STF. Do ponto de vista prático, a liminar proferida pelo Ministro cassou as decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco que negaram a possibilidade de progressão de regime relativamente aos interessados na reclamação e determinou ao magistrado que proferisse novas decisões, nas quais deveria avaliar, em concreto, se os interessados faziam ao não jus ao benefício.


Como se vê, independentemente dos novos instrumentos criados pela EC nº 45/04 – a súmula vinculante e a repercussão geral de que trata o § 3º do art. 102 da CF (esta última também disciplinada no último mês de 2006, pela Lei nº 11.418, de 19.12.06) –, verifica-se o avanço de uma tendência que aos poucos vai se incorporando ao sistema jurídico brasileiro, a saber: a progressiva vinculatividade, erga omnes, das decisões proferidas pelo STF, não apenas em sede de controle abstrato de constitucionalidade.


III. Segurança jurídica: alteração da jurisprudência e discussão sobre os efeitos temporais


Um terceiro tema que gera perplexidade nos jurisdicionados e suscita debates teóricos específicos é a alteração relativamente freqüente de entendimentos consolidados por parte do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Na realidade, a perplexidade decorre de três elementos conjugados, dois dos quais já foram referidos.


Em primeiro lugar, um sistema aberto como o brasileiro confere ao julgador, e sobretudo aos Tribunais Superiores, um poder bastante amplo de definir o que é o Direito. O jurisdicionado diligente, portanto, procura informar-se do entendimento dessas Cortes para pautar sua conduta. Em segundo lugar, e na linha do que já se registrou, é certo que a jurisprudência desses Tribunais tem se tornado cada vez mais central e decisiva – e por vezes vinculante – para o sistema jurídico nacional. Por fim, e em terceiro lugar, é natural que a eficácia da decisão judicial retroaja justamente para atingir os efeitos pretéritos do ato sob exame[12].


Ora, o impacto da alteração de um entendimento jurisprudencial consolidado sobre a segurança jurídica (previsibilidade e confiança) poderá ser bastante intenso. Imagine-se que o indivíduo A se comporta na forma prevista pela jurisprudência dominante, que lhe é contemporânea. Surge uma demanda sobre o ponto. Ocorre que, anos depois, quando a demanda vem a ser julgada pelos Tribunais Superiores, o entendimento dessas Cortes sobre a matéria sofreu alteração. A pergunta é simples: que parâmetro jurídico se haverá de aplicar a A? O direito vigente à época em que o ato foi praticado ou aquele posterior, resultado da alteração jurisprudencial?


Por conta desse quadro, e no âmbito da discussão mais geral acerca da modulação temporal dos efeitos de decisões judiciais e administrativas[13], é que um dos temas cuja discussão ganhou especial impulso nos últimos tempos foi o dos efeitos prospectivos das decisões dos Tribunais Superiores que modifiquem sua jurisprudência consolidada anterior. De forma bastante resumida, a idéia central que move os debates é a seguinte: a alteração de uma jurisprudência dominante – embora possível e eventualmente desejável – deve ser equiparada a uma alteração legislativa, na medida em que um novo direito vigente se estabelece. E se é assim, a regra geral da irretroatividade deve igualmente incidir, de modo a preservar-se a confiança e a segurança dos jurisdicionados. A relevância do debate pode ser medida pela quantidade de temas acerca dos quais a jurisprudência dominante das Cortes se alterou, ou deu claras indicações de que poderá se alterar, ao longo do ano passado[14].


Nesse sentido, podem ser lembrados o caso da verticalização[15] e o já citado HC 82.959-SP (DJU 1º set. 2006, Rel. Min. Marco Aurélio), no qual o STF, modificando entendimento anterior[16], declarou a inconstitucionalidade do dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos que vedava a progressão de regime (Lei nº 8.072/90, art. 2º, § 1º). É certo que, na ocasião, a Corte declarou expressamente que a decisão que proferia não geraria conseqüências jurídicas relativamente às penas já extintas. Outros temas têm sido alvo de reapreciação nos últimos tempos.


O STF, como se sabe, havia consolidado o entendimento de que era válida a exigência legal de depósito prévio para a interposição de recurso administrativo, sobretudo em matéria tributária[17]. Nada obstante, como comprovam recentes acórdãos, a Corte alterou a sua orientação, passando a entender pela invalidade da exigência[18]. Também o tema da validade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia, antes admitida pelo Supremo Tribunal Federal, foi revisitado e sete Ministros já se manifestaram pela inconstitucionalidade da prisão no caso[19]. Talvez as questões mais controvertidas envolvam realmente os temas tributários, por conta de suas repercussões patrimoniais imediatas, e muitas têm sido as alterações nesse particular.


O Plenário do Supremo Tribunal Federal havia consolidado o entendimento de que, por força da regra constitucional da não-cumulatividade (CF/88, art. 153, § 3º, II), o contribuinte de IPI tinha direito a creditamento nos casos em que a operação anterior era isenta[20] ou tributada à alíquota zero[21]. A questão, porém, voltou ao Plenário do Tribunal que, por maioria, consolidou entendimento diverso[22].


O tema da restituição do ICMS que vem a ser pago a menor do que o valor presumido nas hipóteses de substituição tributária, que já contava com jurisprudência consolidada do STF, encontra-se novamente em discussão, ainda não concluída[23]. É interessante que, no início desse julgamento, ainda em 2003, a Corte discutiu expressamente acerca da possibilidade de alterar seu entendimento já consolidado, admitindo-se, como não poderia deixar de ser, a viabilidade da modificação[24].


Apenas mais um exemplo, ligeiramente diverso dos demais, por envolver a modificação, pelo STF, de jurisprudência consolidada do STJ. O Superior Tribunal de Justiça havia pacificado o entendimento de que o art. 56 da Lei nº 9.430/96, que revogara isenção prevista pelo art. 6º, II, da Lei Complementar nº 70/91, era inválido, mantendo assim a desoneração de COFINS para as sociedades prestadoras de serviço instituída pela lei complementar. Embora se houvesse consolidado a jurisprudência no sentido de que o tema seria decidido em última instância pelo STJ, a questão acabou por chegar ao STF[25]. O julgamento ainda não foi concluído no âmbito do Supremo Tribunal Federal, mas a maioria de seus Ministros já se manifestou em sentido diverso do pacificado pelo STJ, para considerar revogada, pela Lei nº 9.430/96, a isenção referida[26].


Como se vê, este último tema, assim como outros, vem assumindo uma importância cada vez maior. E nem poderia ser diferente; os Tribunais Superiores, conscientes da relevância de suas decisões, têm dado maior atenção à grave repercussão que as mudanças na sua jurisprudência causam na vida dos jurisdicionados. Assim, a questão não apenas inaugura um novo capítulo na história da segurança jurídica, como também demonstra o papel destacado dos Tribunais no Estado contemporâneo, recolocando a jurisprudência entre as principais fontes do Direito.


Conclusão


Afora os três temas resumidos acima, outros poderiam figurar na listagem que se acaba de apresentar. A importância recentemente assumida pelo Direito Constitucional alia-se ao generoso conjunto de direitos fundamentais e programas incorporados pela Carta e ao seu notório caráter compromissário para formar um enorme grupo de questões quase sempre riquíssimas, que hoje permeiam o trabalho de qualquer jurista. A verdade é que a Constituição – que já conquistou os tribunais – se expande para fora do mundo jurídico e alcança o debate público mais amplo, ganhando espaço no dia-a-dia das pessoas que não trabalham com o Direito.


 


Notas:

[1] Embora não se trate do mesmo fenômeno, é certo que há uma ligação importante entre esse processo e aquele que conduziu à conquista de normatividade pelo próprio texto constitucional.

[2] Por vezes, até mesmo uma regra constitucional.

[3] Sobre a possibilidade de não aplicação de um enunciado normativo a determinada hipótese pelo fato de ele gerar, no caso, uma norma inconstitucional, v., dentre outros, Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 2005, p. 220 e ss..

[4] V. alguns exemplos: Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005; Noel Struchiner, Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito. Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio, 2005; Fernando Leal, Decidindo com normas vagas – Estado de direito, coerência e pragmatismo por uma teoria da decisão argumentativa e institucionalmente adequada. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito Público da UERJ, 2006; e Daniel Sarmento, Ubiqüidade constitucional: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83-118, 2006.

[5] A questão é especialmente grave em matéria de prestações de saúde. A discussão já chegou ao STF e o ponto foi observado pela Ministra Ellen Gracie ao deferir em parte suspensão de tutela antecipada requerida pelo Estado de Alagoas para limitar a responsabilidade do Estado ao fornecimento dos medicamentos previstos na portaria pertinente do Ministério da Saúde. No caso, destacou a Ministra: “Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados ‘(…) e outros medicamentos necessários para o tratamento […]’ (…) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade” (STF, DJU 5 mar. 2007, STA 91/AL, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie).

[6] Um exemplo ilustra o ponto. Por meio de ação civil pública, o Ministério Público do Estado de São Paulo postulava a aplicação de uma série de restrições, não previstas em lei, à publicidade de refrigerantes e sucos contendo açúcar adicionado. Apenas uma das empresas que atuam nesse mercado, porém, foi incluída como ré na demanda.

[7] CF/88, art. 102, I, l.

[8] STF, DJU 19 mar. 2004, Rcl-AgR 1.880/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa.

[9] STF, DJU 18 mar. 2005, Rcl 2.986 MC/SE, Rel. Min. Celso de Mello: “O litígio jurídico-constitucional suscitado em sede de controle abstrato (ADI 2.868/PI), examinado na perspectiva do pleito ora formulado pelo Estado de Sergipe, parece introduzir a possibilidade de discussão, no âmbito deste processo reclamatório, do denominado efeito transcendente dos motivos determinantes da decisão declaratória de constitucionalidade proferida no julgamento plenário da já referida ADI 2.868/PI, Rel. p/ o acórdão Min. JOAQUIM BARBOSA. Cabe registrar, neste ponto, por relevante, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no exame final da Rcl 1.987/DF, Rel. Min. MAURÍCIO CORREA, expressamente admitiu a possibilidade de reconhecer-se, em nosso sistema jurídico, a existência do fenômeno da “transcendência dos motivos que embasaram a decisão” proferida por esta Corte, em processo de fiscalização normativa abstrata, em ordem a proclamar que o efeito vinculante refere-se, também, à própria “ratio decidendi”, projetando-se, em conseqüência, para além da parte dispositiva do julgamento, “in abstracto”, de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. Essa visão do fenômeno da transcendência parece refletir a preocupação que a doutrina vem externando a propósito dessa específica questão, consistente no reconhecimento de que a eficácia vinculante não só concerne à parte dispositiva, mas refere-se, também, aos próprios fundamentos determinantes do julgado que o Supremo Tribunal Federal venha a proferir em sede de controle abstrato, especialmente quando consubstanciar declaração de inconstitucionalidade (…). Cabe destacar, neste ponto, tendo presente o contexto em questão, que assume papel de fundamental importância a interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função institucional, de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”), confere-lhe o monopólio da última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental, como tem sido assinalado, com particular ênfase, pela jurisprudência desta Corte Suprema: “(…) A interpretação do texto constitucional pelo STF deve ser acompanhada pelos demais Tribunais. (…) A não–observância da decisão desta Corte debilita a força normativa da Constituição. (…).” (RE 203.498-AgR/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES – grifei) Impende examinar, no entanto, antes de quaisquer outras considerações, se se revela cabível, ou não, na espécie, o emprego da reclamação, quando ajuizada em face de situações de alegado desrespeito a decisões que a Suprema Corte tenha proferido em sede de fiscalização normativa abstrata. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar esse aspecto da questão, tem enfatizado, em sucessivas decisões, que a reclamação reveste-se de idoneidade jurídico-processual, se utilizada com o objetivo de fazer prevalecer a autoridade decisória dos julgamentos emanados desta Corte, notadamente quando impregnados de eficácia vinculante: “O DESRESPEITO À EFICÁCIA VINCULANTE, DERIVADA DE DECISÃO EMANADA DO PLENÁRIO DA SUPREMA CORTE, AUTORIZA O USO DA RECLAMAÇÃO. – O descumprimento, por quaisquer juízes ou Tribunais, de decisões proferidas com efeito vinculante, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade, autoriza a utilização da via reclamatória, também vocacionada, em sua específica função processual, a resguardar e a fazer prevalecer, no que concerne à Suprema Corte, a integridade, a autoridade e a eficácia subordinante dos comandos que emergem de seus atos decisórios. Precedente: Rcl 1.722/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Pleno).” (RTJ 187/151, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)”.

[10] STF, Inf. STF 458, Rcl 4.987 MC/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes.

[11] STF, Inf. STF 454 e 463, Rcl 4.335-5 MC/AC, Rel. Min. Gilmar Mendes. O processo já foi submetido ao Plenário e, quando da conclusão deste trabalho, se encontrava com pedido de vista deferido ao Ministro Ricardo Lewandowski.

[12] Naturalmente, há diversas situações que escapam a esse esquema, ao menos parcialmente, até porque a Constituição garante a todos o direito de levar à apreciação do Poder Judiciário situações que possam constituir ameaça a direito, justamente para prevenir sua ocorrência.

[13] O tema da modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais é mais abrangente. Embora o marco normativo na matéria seja, como se sabe, o que prevê ao art. 27 da Lei nº 9.868/99, a questão é mais geral e envolve a convivência de princípios constitucionais, como os da legalidade, da segurança jurídica, da boa fé e da confiança legítima. Algumas decisões do STF já têm examinado o ponto, v. STF, DJU 5 nov. 2004, MS 22.357-0/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes: “Mandado de Segurança. 2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – INFRAERO. Emprego público. Regularização das admissões. 3. Contratações realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes. 9. Mandado de Segurança deferido”. Em sentido similar, v. STF, DJU 17 set. 2004, MS 24.268/MG, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, Rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes; e STF, DJU 1º ago. 2003,  Pet-QO 2.900-3/RS, Relator Min. Gilmar Mendes.

[14] V. por todos, na doutrina, Luís Roberto Barroso, Mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. Segurança jurídica e modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais, Revista de Direito do Estado 2:261-188, 2006.

[15] V. STF, DJU 10 ago. 2006, ADI 3.685/DF, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie. Historicamente, a interpretação do Tribunal Superior Eleitoral acerca da legislação eleitoral (art. 6º da Lei nº 9.504/97) admitia a existência de coligações partidárias diversas nos âmbitos nacional e locais. Em 26.02.2002, porém, o TSE modificou o seu entendimento para considerar vedada tal prática (Resolução nº 21.002). Em reação a essa decisão, o Congresso Nacional, por ampla maioria, aprovou a Emenda Constitucional nº 52/06, que não só passou a admitir a liberdade de coligação em qualquer das circunscrições eleitorais do país de forma expressa, como também determinou sua aplicação ao pleito que se realizaria naquele mesmo ano. Contra essa Emenda, o Conselho Federal da OAB propôs a referida ação direta de inconstitucionalidade, em cujo julgamento o STF assentou que a medida, por importar alteração no processo eleitoral, somente poderia produzir efeitos após um ano de vigência, já que o princípio da anualidade eleitoral (CF/88, art. 16) constituiria direito fundamental (CF/88, art. 60, § 4o, IV).

[16] Com efeito, no STF, DJ 18 mar. 1993, HC 69.657/SP, Rel. para acórdão Min. Francisco Rezek, o Plenário decidiu, por maioria, pela constitucionalidade do dispositivo em questão.

[17] Nesse sentido, v., por todos, STF, DJU 21 out. 2003, AI-AgR 440.362/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso: “Não ofende a Constituição o fato de a lei exigir o depósito prévio da multa como pressuposto de admissibilidade do recurso administrativo”.

[18] O leading case, nesse sentido, foi STF, DJU 29 jun. 2007, RE 389.383/SP, Rel. Min. Marco Aurélio: “RECURSO ADMINISTRATIVO – DEPÓSITO – §§ 1º E 2º DO ARTIGO 126 DA LEI Nº 8.213/1991 – INCONSTITUCIONALIDADE. A garantia constitucional da ampla defesa afasta a exigência do depósito como pressuposto de admissibilidade de recurso administrativo”. V. tb. STF, DJU 22 jun. 2007, RE 388.359/PE, Rel. Min. Marco Aurélio; STF, DJU 29 jun. 2007, AI-AgR 398.933/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; STF, DJU 11 mai. 2007, RE-AgR 396.059/RJ, Rel. Min. Eros Grau.

[19] STF, Infs. STF 449 e 450, RE 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso: “O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária em garantia (…). O Min. Cezar Peluso, relator, negou provimento ao recurso, por entender que o art. 4º do DL 911/69 não pode ser aplicado em todo o seu alcance, por inconstitucionalidade manifesta. Afirmou, inicialmente, que entre os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia não há afinidade, conexão teórica entre dois modelos jurídicos, que permita sua equiparação. Asseverou, também, não ser cabível interpretação extensiva à norma do art. 153, § 17, da EC 1/69 — que exclui da vedação da prisão civil por dívida os casos de depositário infiel e do responsável por inadimplemento de obrigação alimentar — nem analogia, sob pena de se aniquilar o direito de liberdade que se ordena proteger sob o comando excepcional. Ressaltou que, à lei, só é possível equiparar pessoas ao depositário com o fim de lhes autorizar a prisão civil como meio de compeli-las ao adimplemento de obrigação, quando não se deforme nem deturpe, na situação equiparada, o arquétipo do depósito convencional, em que o sujeito contrai obrigação de custodiar e devolver. Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor-fiduciante viola o princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão de o DL 911/69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficção jurídica ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário, em ofensa ao princípio da reserva legal proporcional. Após os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediu vista dos autos o Min. Celso de Mello”.

[20] STF, DJU 27 nov. 1998, RE 212.484/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão, Rel. para o acórdão Min. Nelson Jobim.

[21] STF, DJU 6 jun. 2003, RE 350.446/PR, Rel. Min. Nelson Jobim: “Se o contribuinte do IPI pode creditar o valor dos insumos adquiridos sob o regime de isenção, inexiste razão para deixar de reconhecer-lhe o mesmo direito na aquisição de insumos favorecidos pela alíquota zero, pois nada extrema, na prática, as referidas figuras desonerativas, notadamente quando se trata de aplicar o princípio da não-cumulatividade. A isenção e a alíquota zero em um dos elos da cadeia produtiva desapareceriam quando da operação subseqüente, se não admitido o crédito”.

[22] STF, Inf. STF 473, RE 353.657/PR, Rel. Min. Marco Aurélio e RE 370.682/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão. Quando da afirmação do novo entendimento, o Min. Ricardo Lewandowski suscitou questão de ordem acerca da possibilidade de modulação, no caso, dos efeitos da alteração jurisprudencial. O Tribunal, porém, rejeitou a questão de ordem. Para tanto, embora usando vários fundamentos, o STF entendeu, em relação ao segundo recurso extraordinário, que o tema não se havia pacificado na Corte, já que os acórdãos anteriores, apontados como paradigmas, não haviam ainda transitado em julgado.

[23] STF, Inf. STF 455, ADI 2.675/PE, Rel. Min. Carlos Velloso e ADI 2.777/SP, Rel. Min. Cezar Peluso: “O Tribunal retomou julgamento de duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pelos Governadores dos Estados de Pernambuco e de São Paulo contra o art. 19 da Lei 11.408/96 e art. 66-B, II, da Lei 6.374/89, com a redação dada pela Lei 9.176/95, respectivamente dos referidos Estados, que asseguram a restituição do ICMS pago antecipadamente no regime de substituição tributária, nas hipóteses em que a base de cálculo da operação for inferior à presumida — v. Informativos 331, 332, 397 e 443. O Min. Cezar Peluso, em relação à ADI 2675/PE, também votou pela improcedência do pedido, reiterando os fundamentos de seu voto na ADI 2777/SP. Em seguida, após o voto-vista do Min. Eros Grau e dos votos dos Ministros Gilmar Mendes, Sepúlveda Pertence e Ellen Gracie, acompanhando a divergência iniciada pelo Min. Nelson Jobim, pela procedência dos pedidos formulados em ambas as ações diretas, e, ainda, dos votos dos Ministros Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello, que acompanhavam o voto dos relatores pela improcedência dos pedidos, o julgamento foi suspenso para colher o voto de desempate do Min. Carlos Britto. Não vota, na ADI 2675/PE, o Min. Ricardo Lewandowski, por suceder ao Min. Carlos Velloso, e não vota, em ambas as ações diretas, a Min. Cármen Lúcia, por suceder ao Min. Nelson Jobim”.

[24] STF, Inf. STF 331, 27 nov. 2003, ADI 2.675/PE, Rel. Min. Carlos Velloso e ADI 2.777/SP, Rel. Min. Cezar Peluso: “Em seguida, no mesmo julgamento acima mencionado, em virtude da ponderação feita pelo Min. Presidente, no sentido de que os votos então proferidos contrariam a validade da norma declarada constitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, nos autos da ADI 1851/AL, submeteu-se ao Plenário nova questão de ordem sobre a admissibilidade, ou não, do julgamento das ações diretas em causa, haja vista a possibilidade de que seja dada nova interpretação ao mesmo tema pela Corte. O Tribunal, embora salientando a necessidade de motivação idônea, crítica e consciente para justificar eventual reapreciação de uma questão já tratada pela Corte, concluiu no sentido de admitir o julgamento das ações diretas, por considerar que o efeito vinculante previsto no § 2º do art. 102 da CF não condiciona o próprio STF, limitando-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo, e que, no caso, ficou demonstrada a distinção entre os dispositivos impugnados nas presentes ações e a Cláusula Segunda do Convênio ICMS 13/97. O Min. Sepúlveda Pertence também admitiu o julgamento das ações, mas exclusivamente em razão da distinção formal entre as normas impugnadas. Após, o julgamento foi adiado, em virtude do adiantado da hora (…)”.

[25] STJ, DJU 12 dez. 2005, AgRg no REsp 740.384/SP, Rel.ª Min.ª Eliana Calmon: “Apesar de o STJ ter mantido o enunciado da Súmula 276/STJ no julgamento do AgRg no REsp 382.736/SC, conclui-se pelo descabimento do recurso especial porque o STF vem entendendo que a questão não pode ser resolvida sob o prisma do princípio da hierarquia das leis, mas sim em função de a matéria ser ou não reservada ao processo de legislação complementar pela Constituição Federal de 1988, tendo, inclusive, deferido medida liminar para preservação da competência da Excelsa Corte sobre a matéria (Rcl 2.620/MC/RS)”.Em interessante declaração de voto sobre o mesmo tema, no AgRg no REsp 382.736/SC, Relator p/ acordão Min. Castro Meira, o Ministro Humberto Gomes de Barros fez o seguinte comentário: “Dissemos sempre que a sociedade de prestação de serviço não paga a contribuição. Essas sociedades, confiando na Súmula nº 276 do Superior Tribunal de Justiça, programaram-se para não pagar esse tributo. Crentes na súmula elas fizeram gastos maiores, e planejaram suas vidas de determinada forma. Fizeram seu projeto de viabilidade econômica com base nessa decisão. De repente, vem o STJ e diz o contrário: esqueçam o que eu disse; agora vão pagar com multa, correção monetária etc., porque nós, o Superior Tribunal de Justiça, tomamos a lição de um mestre e esse mestre nos disse que estávamos errados. Por isso, voltamos atrás. Nós somos os condutores, e eu – Ministro de um Tribunal cujas decisões os próprios Ministros não respeitam – sinto-me triste. Como contribuinte, que também sou, mergulho em insegurança, como um passageiro daquele vôo trágico em que o piloto que se perdeu no meio da noite em cima da Selva Amazônia: ele virava para a esquerda, dobrava para a direta e os passageiros sem nada saber, até que eles de repente descobriram que estavam perdidos: o avião com o Superior Tribunal de Justiça está extremamente perdido. Agora estamos a rever uma Súmula que fixamos há menos de um trimestre. Agora dizemos que está errada, porque alguém nos deu uma lição dizendo que essa Súmula não devia ter sido feita assim. Nas praias de Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme bóia, cheia de pessoas, é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha é fazer derrubar as pessoas montadas no dorso da bóia. Para tanto, a lancha desloca-se em linha reta e, de repente, descreve curvas de quase noventa graus. O jogo só termina quando todos os passageiros da bóia estão dentro do mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha. Nosso papel tem sido derrubar os jurisdicionados”.

[26] STF, Inf. STF 459, RE 381.964/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes.


Informações Sobre o Autor

Ana Paula Gonçalves Pereira de Barcellos

Professora Adjunta de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre e Doutora em Direito Público pela UERJ. Advogada no Rio de Janeiro


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