1. O Direito e a ciência
As relações entre o pensamento acadêmico e a prática científica são complexas. Em poucos campos do conhecimento tais relações são ainda mais problemáticas como no do Direito. [1]
Antes de tudo, pode ocorrer alguma subestimação, ainda que inconsciente, da presença de premissas verdadeiramente científicas nas disciplinas ligadas às chamadas ciências humanas, como se somente tal ocorresse nas disciplinas ligadas às ciências naturais.
Sem dúvida, deve-se a Kelsen boa parte do esforço intelectual pelo qual, hoje, logrou-se desmistificar os dogmas jurídicos como produto da ciência pura (como se tratassem de meras operações lógico-dedutivas), quando, na realidade, toda argumentação jurídica está necessariamente embasada em premissas valorativas. Direito não é matemática e, assim, pode-se dizer que uma das importantes tarefas da ciência jurídica seja justamente a de discernir quais as premissas valorativas subjacentes a todo discurso jurídico (inclusive na decisão judicial). Se não é admissível a simplificação inocente de qualificar o discurso jurídico como “certo” ou “errado” (sob a óptica matemática), tampouco faz qualquer sentido pretender qualificá-lo como “justo” ou “injusto” de um ponto de vista meramente subjetivo, ainda que supostamente “universalizado” ao abrigo de determinada abordagem filosófica (como, por exemplo, o direito natural).
Ocorre que, exorcizado o fantasma do farisaísmo jurídico pelo qual decisões fundadas em escolhas axiológicas (e, assim, de conteúdo político determinável) são apresentadas como inquestionáveis verdades matemáticas, há o risco de se cair no extremo oposto, ou seja, o do voluntarismo judicial. Assim, é igualmente um equívoco se pensar a decisão judicial como produto do exclusivo critério valorativo do magistrado (ou de sua suposta “descoberta” ou “iluminação” estritamente pessoal e, assim, igualmente inquestionável), desligado de qualquer lógica jurídica que, sistematicamente, integre todo o ordenamento jurídico e se componha dentro de um concreto poder judicial.
Assim, se pode ter como pressuposto o fato de que, em todo discurso jurídico, há uma base minimamente científica para a crítica, seja esta dirigida ao seu suporte axiomático, seja à eventual incongruência dentro de um determinado sistema lógico. Entretanto, a quem e onde tal crítica pode ser exercida com maior legitimidade ou proveito para a sociedade toda?
2.A jurisprudência e a crítica
Ao assistir determinada palestra sobre julgamentos de “casos difíceis”, ocorreu questionar em quais situações haveria um maior interesse e utilidade em conhecer o entendimento da jurisprudência dos Tribunais do que assistir uma aula com professor ou estudioso do tema jurídico em exame e, ao contrário, em quais outras situações a exposição do professor seria mais proveitosa.
Por certo, aqui não se trata de disputar qual a profissão mais relevante para o desenvolvimento do conhecimento ou do aperfeiçoamento social, mas claramente compreendermos qual é o exato e peculiar papel social que juízes e professores desempenham, sendo induvidoso que ambas as atividades são imprescindíveis para a nossa sociedade.
Ocorre que alguma confusão nesse tema pode comprometer o melhor desempenho de tão importantes funções sociais, seja através de juízes que prolatem sentenças com alguma pretensão professoral ou de professores que venham a utilizar a cátedra como instrumento de “parajurisprudencia”.[2]
Não se pode esquecer, é claro, que a sentença também tem uma função pedagógica, na medida em que, implicitamente, referenda ou penaliza determinados comportamentos sociais. Haveria, aqui, sim, um pequeno espaço para determinado proselitismo judicial, que utilizaria a sentença como veículo privilegiado. Entretanto, é preciso lembrar que tais orientações devem ser extremamente cuidadosas e moderadas, destinando-se precipuamente ao jurisdicionado e à sociedade em geral.[3] Por outro lado, não cabe ao juiz utilizar a sentença, espaço especial de exercício da jurisdição, em uma demonstração da ilustração jurídica individual ou como instrumento de demonstração e justificação de suas convicções pessoais mais profundas.
É preciso reconhecer que existe ainda (infelizmente) muito pouca crítica, no melhor sentido da palavra, a respeito das decisões judiciais. É comum ouvir-se o comentário leigo de que “sentença não se discute”. Se a expressão é correta no sentido de que “sentença não se discute porque se cumpre”, ela é bastante equivocada quando é interpretada como vedação da necessária e salutar crítica da sociedade à atividade jurisdicional.
A opinião da sociedade é fundamental ao aperfeiçoamento do Judiciário e um exercício democrático de cidadania. Maria Fernanda Salcedo Repolês, professora de Filosofia do Direito, diz, em suas “respostas provisórias” sobre o papel a ser desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal (o que, sem dúvida, vale para todo o Poder Judiciário): “A sociedade, como pare dos processos judiciais, deve poder sustentar seus pontos de vista morais, políticos, procurando desenvolvê-los autonomamente, sem precisar renunciar a eles em favor do aparato estatal. (…) Ser ‘guardião da Constituição é garantir a inclusão por via da argumentação judicial, capaz de fazer com que a decisão não seja do ministro tal ou qual, mas a sociedade se reconheça na decisão”. [4]
Por outro lado, a crítica construtiva não se confunde com a contestação pouco responsável (do ponto de vista democrático) e destrutiva das instituições judiciais, freqüentemente destituída de base racional, que pretende, em geral, benefícios políticos de conteúdo demagógico.[5] Em tal contexto, o pensamento acadêmico pode desempenhar um papel precioso, na medida que representa uma manifestação técnica e qualificada, através da qual a sociedade pode instrumentalizar suas críticas ao conteúdo das decisões judiciais.
3.A jurisprudência e a academia
Na atividade jurisprudencial será sempre essencial identificar a “justiça concreta” de uma decisão como expressão de uma operação logicamente consistente de eleição de valores implicitamente identificados, baseados em um sistema legal concreto e que responde à determinada demanda social dentro de uma perspectiva de pacificação dos conflitos e de harmonização da sociedade, com vistas ao seu aperfeiçoamento. A crítica política aos valores escolhidos, bem como a crítica lógico-formal, tem relevante papel a desempenhar na ciência jurídica e, através dela, democraticamente se conjura o risco da pretensão de que a sentença seja fruto exclusivo da suposta onisciência do magistrado. Um dos pontos mais interessantes dessa crítica é justamente apreciar a sentença como parte inserida e integrante do sistema judicial, do qual se espera a consistência interna das mesmas respostas para casos idênticos.
Igualmente, ao juiz incumbe a missão de superar as lacunas e imperfeições das normas, adaptando-as ao caso concreto e à mutante realidade cotidiana. Nada pode ser mais inadequado à justiça concreta do que a generalização indiscriminada que elimina a especificidade de casos individuais, como se fosse possível a produção em série da decisão judicial quando a identidade dos problemas é apenas aparente. Nesses casos, a “aplicação impessoal da lei” pode ser profundamente injusta, sendo de se recordar a máxima latina do “summum ius, suma iniuria”.
Assim, é indevida a pretensão de criticar em concreto determinada decisão judicial fora da apreciação completa de todos os elementos dos autos e fora do contexto da situação real trazida pelo processo. Aqui, a pretensão onisciente a ser criticada é a de hipotético professor que, afastando-se do adequado papel de crítico sistêmico, aventure-se a se transformar, no mínimo, um voluntarista judicial informal e espontâneo ou, mesmo, em um juiz paralelo, insuficientemente informado dos detalhes do caso em exame, pois baseado apenas em suposições apriorísticas e/ou pré-concebidas.
4. Os casos concretos
As expectativas de Robert Alexy, por exemplo, relativamente a uma teorização sobre os direitos fundamentais, por parte do Tribunal Constitucional Federal, da Alemanha, estão expressas e são bem menos pretensiosas do que se pode imaginar, num primeiro momento. Neste particular, o autor, inicialmente, aponta o terreno mais amplo e “movedizo de la flisofía política y social” e inclusive específico de “cambiantes y diferentes teorías de derechos fundamentales”. Tentando perceber o contexto mais amplo, antes referido, como bom observador, retorna ao tema e reconhece a existência de “una teoría compleja que contiene más principios iusfundamentales que sólo el principio liberal (libertad jurídica/igualdad jurídica)”. Ao final, sintetiza que “no hay que esperar demasiado de una teoría material de los derechos fundamentales. Lo único que puede exigirse de ella es que estructure la argumentación iusfundamental de una manera materialmente aceptable en la mayor medida posible”.[6]
Por óbvio, sabe-se que em toda decisão judicial há uma teoria subjacente objetivamente determinável. Na verdade, o texto antes transcrito também e apenas revela a dificuldade de construção de uma teoria sobre o próprio tema em exame, ou seja, os direitos fundamentais. Nesta situação, igualmente e mais ainda, é oportuno verificar o que é desejado e esperado dos juízes e dos professores.
De cada ator social, se pode ter uma ou outra exigência. Do professor, por certo e sem dúvida, se deve esperar o conhecimento mais completo possível, inclusive dos rumos e direção do aperfeiçoamento social. Muito mais do que para as possíveis soluções, provisórias, aos casos singulares, dele se necessita para a descoberta e construção, mais plena e duradoura, de futuras alternativas a todos.
Quanto aos juízes, Mauro Cappelletti salienta a necessidade de uma atuação que respeite os limites do caso, porque nestes limites e apenas nestes, estão os olhos e interesses das partes envolvidas na disputa. Diz que “A verdadeira natureza do processo judicial é altamente participativa, uma vez que o papel dos juízes baseia-se em casos da vida real e somente podem ser exercidos sobre e dentro de limites dos interesses e da controvérsia das partes. Nesse sentido, constata-se uma alta potencialidade de um contínuo contato do Judiciário com os reais problemas, desejos e aspirações da sociedade”. [7]
Na verdade, a decisão judicial atende precipuamente ao interesse das partes e da sociedade em determinada situação concreta. As partes desejam e mesmo necessitam que se resolva um concreto conflito de interesses. As partes, até mesmo, podem ter um menor desejo inclusive do próprio aperfeiçoamento das relações sociais, o qual pode estar envolto nas névoas das emoções do caso particular, nem sempre bem conhecidas. Não é fácil fazer a sociedade “reconhecer-se na decisão”, como seria esperado.
Também aqui, espera-se da academia que auxilie no devido balizamento do labor do magistrado quanto ao aperfeiçoamento social, mas que não pretenda usurpar o direito exclusivo das partes à “crítica efetiva” quanto à adequação da sentença ao caso concreto e que se expressa no recurso à superior instância.
5. Construção “artesanal” da História
Toda consolidação jurisprudencial em precedentes deve ser feita com redobrada cautela, tendo-se presente seus efeitos sociais (de difícil mensuração), seu impacto negativo sobre a criatividade jurisprudencial e os riscos do embotamento da primordial função judicial de adequação das normas aos casos concretos.
Sabe-se que em Portugal foram abandonados os antigos “assentos”, seja com a Constituição de 1982 ou mais adiante em 1996.[8] Em momento mais recente, talvez como substituto, tem-se o “recurso ampliado de revista”(ainda que pouco utilizado), através do qual o Presidente do Tribunal pode levar uma decisão ao plenário da Corte, evitando a decisão de algum órgão fracionário da mesma e buscando a uniformização. Naquele País, já se pode constatar o crescimento dos riscos do engessamento da jurisprudência, com o comprometimento da melhor prestação jurisdicional. Miguel Teixeira de Sousa, diz que “A uniformização jurisprudencial assim obtida apresenta as vantagens da igualdade, da estabilidade e da previsibilidade das decisões dos tribunais, mas também pode contribuir para dificultar, ou até impedir, a decisão justa do caso concreto”.[9]
Anteriormente, em dois textos, já se teve a oportunidade de abordar temas semelhantes. Num primeiro, buscou-se ver a diferença entre a função social de uma decisão de primeiro grau e outra, de segundo grau. [10] Num segundo texto, tentou-se ver a diferença entre o significado de um julgamento e de uma súmula.[11] Agora, imagina-se conseguir perceber com maior nitidez o conteúdo central de um julgamento e o de uma aula, repetindo-se que são diversos. Ambos os delineamentos são necessários e o relativo ao papel dos juizes, apesar de não mais relevante, provavelmente seja mais urgente.
Ovídio Baptista da Silva, reconhecendo o papel essencial da doutrina na construção do Direito, chega a indicar que “os grandes doutrinadores do common law são em geral magistrados, ao passo que, no sistema continental europeu, a doutrina é basicamente obra de teóricos e professores universitários”.[12] O ilustre advogado e professor recorda que “O Direito Romano que chegou até nós é formado realmente pela solução de casos concretos dada porém, não pelos juízes, mas pelos jurisconsultos, na forma de pareceres. Diz Fritz Schulz que a maneira “quase matemática” de expressarem-se os juristas romanos, dando ao problema jurídico a impressão de que estavam a tratar de um “direito natural”.
Mais adiante, já tratando da atualidade, o mesmo atento professor, advogado com larga militância, expressa, com aguda percepção, a preocupação com os riscos da massificação da prestação jurisdicional. Diz, comentando as nossas limitações e imperfeições do momento, que convivemos uma ideologia autoritária “incapaz de lidar com a diferença, com a riqueza do individual e, conseqüentemente, com os casos concretos”.
Conclui Ovídio Baptista da Silva que “apreende-se o fato histórico na sua individualidade, não pelos métodos das ciências experimentais e menos através de mensurações, como na física, que nos permitam formular regras universalmente válidas. A compreensão dos fenômenos históricos decorre da capacidade que temos de comparar coisas semelhantes, situações análogas, surpreendendo o que, em cada uma delas, expresse a respectiva singularidade que a torne diferente”. Acertadamente, propõe que ao juiz deve interessar “o individual, as diferenças, não as regras. Aqui, torna-se imperiosa a distinção entre ciências da descoberta e lógica da argumentação, ou da compreensão”.[13]
Não se desconhece que todo magistrado, em seu trabalho cotidiano, constrói sua “teoria” – e esse fato não é pouco expressivo.[14] Este ímpeto individual há de ser reconhecido e respeitado, mas imprescindível será a explicitação, na decisão, das teses adotadas pelo juiz, as quais se submete à crítica social e ao inconformismo das partes no processo através dos recursos previstos em lei. O centro de tais críticas, independentemente das boas intenções do magistrado e das excelência das teses doutrinárias adotadas, será sempre a adequação ou não da decisão judicial ao caso concreto.
6.Descobertas Coletivas e Construção Individual
Francisco Rossal de Araújo já percebeu que “a força da criação jurisprudencial é tão forte que não se deixou influenciar pela tendência da codificação, predominante no sistema romano-germânico”.[15] Dito de outro modo, adentrando mais ainda no tema, cada juiz, até mesmo pela sua condição de ser humano, necessita verificar, na prática, o acerto de seus conhecimentos teóricos. De construir a sua coerência, bem como registrá-la, tanto quanto possível, na decisão. [16]
O reconhecido até aqui, nas linhas anteriores, não pode afastar a exata percepção sobre os limites do poder delegado ao juiz, ou seja, resolver os casos um a um. As exceções, de uniformização da jurisprudência, por exemplo, tem regras legais e constitucionais próprias Tampouco se percebe como possa uma jurisprudência ser “uniformizada” antes de chegarem aos tribunais as variadas controvérsias de um número razoável de casos semelhantes.[17]
Ponto especialmente delicado é o das situações de soluções coletivas, ainda que possam/devam ser aperfeiçoadas e alargadas. [18] Acaso fossemos examinar a realidade dos processos nos Estados Unidos, maior proveito haveria no estudo das “class action”, e suas regras bem detalhadas, as quais certamente nos serviriam em algum aprimoramento processual para as diversas ações coletivas. Evitaríamos, provavelmente, de reforçar a crença, demasiadamente exagerada, sobre a autoridade dos “precedentes” naquele País.
A “teoria”, na área do Direito, é construída por muitos atores e não somente pelos profissionais desta área, tendo as partes jurisdicionadas um papel relevante.[19]
Sabe-se que o próprio ritmo da história torna-se mais intenso em determinados momentos. Talvez seja incumbência de todos a percepção de tais alterações e possibilidades. Tal constatação, de qualquer modo, não pode servir para nos afastar da vivência das questões colocadas pelo cotidiano e suas necessidades mais urgentes. [20]
Quanto melhores definidos estiverem os papéis dos juízes e dos professores, um e outro melhor poderão cumprir suas importantes missões sociais. Os desacertos de uns e outros re-alimentam-se. Os acertos, ainda que não tão visíveis, tem um potencial imensamente maior.
Notas:
Informações Sobre os Autores
Ricardo Carvalho Fraga
Juiz do Trabalho no TRT RS
Coordenador do Fórum Mundial de Juízes
Luiz Alberto de Vargas
Desembargador do Trabalho do TRT 4ª. Região