A morte brutal de João Hélio Fernandes, de apenas seis anos, reacendeu pela enésima vez a discussão sobre a redução da maioridade penal. Vivemos em um “direito penal espasmódico”, em que novas leis são imaginadas sempre que acontece um fato que indigna a opinião pública. O endurecimento da lei penal baseia-se muito mais na necessidade de satisfazer o clamor popular do que em dados concretos[1]. Nesse sentido, é trazida uma contribuição ao debate, ditada pela necessidade de que, em tempos de irracionalidade coletiva, o óbvio deve sempre ser lembrado.
O art. 27 do Código Penal dispõe que os menores de 18 anos são inimputáveis sendo submetidos às regras da legislação especial. O art. 228 da Constituição tem dispositivo de semelhante teor. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) é a legislação especial que trata dos crimes e das contravenções cometidos pelos menores (chamados de atos infracionais). O Estatuto considera como criança: o menor de 12 anos, e adolescente, o maior de 12 e menor de 18 anos.
Para as crianças que cometem atos infracionais, são previstas apenas medidas protetivas (art. 101 do ECA), como: colocação em família substituta, abrigo em entidade e inclusão em programa de auxílio a alcoólatras e toxicômanos. Os adolescentes infratores são submetidos às medidas socioeducativas previstas no art. 112 do ECA, que vão desde a advertência até a internação em estabelecimento educacional.
Boa parte da doutrina explica a inimputabilidade dos menores de 18 anos como uma presunção absoluta da lei de que as pessoas, nessa faixa etária, têm desenvolvimento mental incompleto (critério biológico), por não haverem incorporado inteiramente as regras de convivência da sociedade. Tal argumento nunca foi comprovado pela ciência psiquiátrica. Ao contrário, a evolução da sociedade moderna tem possibilitado a compreensão cada vez mais precoce dos fatos da vida. Trata-se, na verdade, de uma ficção jurídica ditada por uma necessidade político-criminal: tratar os menores de acordo com sua específica condição etária e psicológica[2]. É uma conseqüência do princípio da isonomia: os iguais devem ser tratados igualmente, e os desiguais, desigualmente.
Além disso, advogar a pura e simples diminuição da maioridade penal esbarra em dois seriíssimos entraves: primeiramente, a previsão constitucional de inimputabilidade do menor de 18 anos é um direito individual do menor, sendo, portanto, cláusula pétrea que não pode ter seu alcance restringido, nos termos do art. 60, § 4°, IV, da Constituição. Em segundo lugar, deve se considerar também a total ineficácia dessa providência, pois os menores entre 12 e 17 anos recebem sanções da mesma natureza daquelas previstas no Código Penal. Nesse sentido, é o magistério de José Heitor dos Santos:
“Vale lembrar, nesse particular, que a internação em estabelecimento educacional, a inserção em regime de semi-liberdade, à liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade, algumas das medidas previstas no Estatuto da Criança e do adolescente (art. 112), são iguais ou muito semelhantes àquelas previstas no Código Penal para os adultos que são: prisão, igual à internação do menor; regime semi-aberto, semelhante à inserção do menor em regime de semi-liberdade; prisão albergue ou domiciliar, semelhante a liberdade assistida aplicada ao menor; prestação de serviços à comunidade, exatamente igual para menores e adultos.”[3]
Há, porém, dois dispositivos do ECA que precisam ser urgentemente revistos, pois tutelam de modo desproporcional os menores de alta periculosidade, deixando a sociedade desprotegida. O primeiro deles limita o tempo de internação a três anos (art. 121, § 3°), período por demais breve tratando-se de crimes graves, como homicídio, extorsão mediante seqüestro e estupro, todos com penas que podem chegar a 30 anos. O segundo (o § 5° do mesmo artigo) prevê que “a liberação será compulsória aos 21 anos”. Ora, alguém que lograsse escapar da ação da polícia, seria automaticamente “anistiado” quando completasse 21 anos, constituindo um completo absurdo.[4]
Além disso, um ponto que tem passado à margem das discussões jurídicas é a interface entre a psicopatia e a menoridade. Em nossa obsessão em ressocializar e reeducar (de preferência de forma rápida – no máximo três anos), esquecemos do simples fato de que existem limites a esse objetivo; como existem, aliás, em qualquer empreendimento humano. Algumas pessoas simplesmente não são “ressocializáveis” ou “reeducáveis”, pois portam transtornos mentais que requerem tratamento socioterápico especializado.
Dentre esses transtornos, avulta-se a psicopatia, caracterizada por:
“Diminuída capacidade para remorso, frieza emocional, pobre controle de impulsos e reincidência criminal. Isso leva a ausência de identificação e desconforto com o medo e o sofrimento de outras pessoas, assim como ausência de sentimentos de culpa.” [5]
Existem pesquisas indicando a existência de alto índice de psicopatia entre adolescentes que cometem crimes violentos. Além disso, os portadores desse distúrbio têm “resposta insatisfatória aos tratamentos disponíveis” [6]. Nessa situação, deve-se optar pelo tratamento padrão dado aos semi-imputáveis e inimputáveis: aplicação de medida de segurança por tempo indeterminado, permanecendo o criminoso preso até que cesse sua periculosidade. Assim, a presença de psicopatia determinaria qual o melhor tratamento a ser dado aos adolescentes infratores.
A morte de João Hélio é também uma demonstração da absoluta necessidade de se combater o crime de forma mais eficiente no Brasil. Cinqüenta mil homicídios anuais é uma estatística inaceitável em qualquer país, mesmo naqueles em guerra. Devemos ressaltar, porém, que o combate ao crime deve ser feito respeitando-se os marcos garantidores do Estado de Direito, sem os quais estaríamos à mercê não apenas dos criminosos, mas também do próprio Estado. Ao contrário do que é comumente disseminado, violência (do crime) combate-se com violência (da punição)[7], mas, como um remédio, deve ser usada na medida estritamente necessária para se debelar ou atenuar o mal. Seu uso em doses inadequadas provoca efeitos colaterais que aumentam o problema a pretexto de diminuí-lo. Não se pode tratar os criminosos como animais raivosos, impondo-lhes condições subumanas e ainda requerer que passem a se comportar como seres humanos perfeitamente civilizados.
Por fim, devemos evitar o lugar-comum segundo o qual “o problema da criminalidade do menor deve ser debatido”. Essa questão já foi exaustivamente debatida no Brasil e no mundo. As soluções já foram devidamente apresentadas por juristas, psicólogos, psiquiatras, sociólogos e antropólogos. Urge implementá-las antes que a morte de João Hélio seja esquecida. Não se trata de agir pela emoção, mas de aproveitar o momento para transformar tantas idéias em fatos concretos. A outra opção é esperar pelo próximo crime hediondo cometido por menor, seguido de outra onda estéril de indignação.
Notas:
[1] Se considerarmos que apenas um dos cinco acusados de cometer o crime é menor, veremos a carga reducionista com que a idéia é vendida. Ao invés de soluções ditadas pela razão e pelo bom senso, arrumam-se panacéias desvinculadas da realidade.
[2] O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) chega a ser tautológico ao afirmar que deve se levar em consideração “a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” (art. 6°).
[3] Redução da maioridade penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 11, n. 125, p. 2, abr. 2003. Por conta disso, o autor afirma no mesmo texto: “No Brasil, a maioridade penal já foi reduzida: começa aos 12 anos de idade”.
[4] Nesse sentido, Roberto Delmanto advoga que “nos atos infracionais praticados dolosamente por menor dos quais resultasse morte ou lesão gravíssima, o limite máximo de internação e o prazo para a liberação compulsória pudessem ser razoável e proporcionalmente dilatados. Mas sendo sempre inferiores aos prazos de prisão previstos na legislação penal para os maiores de dezoito anos, em situações semelhantes.” in Maioridade penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.8, n. 99, p. 6, fev. 2001.
[5] SCHMITT et al. Personalidade Psicopática em uma Amostra de Adolescentes Infratores Brasileiros in Revista de Psiquiatria Clínica 33 (6); 297-303, 2006.
[6] Idem, ibidem.
[7] A usual afirmação das “causas sociais” da criminalidade é apenas uma estratégia utilizada por políticos e intelectuais para transferir a responsabilidade do fato do criminoso para a sociedade e impossibilitar a solução do problema, pois, nesse raciocínio, o crime só seria debelado quando o Brasil se transformar em um “paraíso social-democrata”.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar
Procurador do banco Central em Brasília e professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista