(Resumo de palestra proferida na abertura do Maringá
Forense 2001, de 6 a 9 de junho de 2001)
O avanço vertiginoso das ciências
biológicas, notadamente no campo da biologia molecular e, mais precisamente,
com notável feito do Projeto Genoma quanto aos estudos e aprimoramentos da
cartografia do gene humano, nos remete a uma reflexão mais profunda do que isso
representa nas relações jurídicas contemporâneas, e mais: como o direito
propiciará fundamentos para sua discussão doutrinária e como o operador jurídico
encaminhará suas razões nos pleitos apreciados pelos Tribunais.
Certamente isto não será fácil a
partir da concepção de que os assuntos da biotecnologia são intricados e que
pertencem a um acervo muito reduzido de pessoas, as quais guardam tais
informações de forma muito pessoal. Por outro lado, existe uma tradição em
nosso ordenamento jurídico que questões desta ordem sejam de garantir quase de
forma absoluta os que promovem programas nesta área do conhecimento. A tradição
tem sido legislar e arbitrar a partir de uma opção consensual e anuente, e não
sobre o que deriva das soluções mais controvertidas.
Ainda que se diga que tais projetos
devam estar contidos em legislações específicas e rigorosas, faz-se mister
repetir que a qualidade da lei depende muito da contribuição cada vez maior do
conjunto da sociedade da participação cada vez maior da comunidade científica
consciente como meio de purificar a lei,
Difícil também é saber como esta
contribuição deve ser feita, levando em conta toda complexidade do tema, a
forma de organização da comunidade científica e a maneira de aplicação de todo
esse acervo à racionalidade prática do ordenamento jurídico. Só vemos um
caminho: o da estruturação e o da regulamentação de um Direito Médico, a partir
do momento que se entenda ser o direito
de ser protegido contra as doenças, o direito à vida, o direito à integridade
biológica e a obrigação do Estado para com a saúde numa sociedade organizada
seja tutelada por normas. A razão é simples: a existência humana, seja ela considerada
de forma individual ou coletiva, será sempre a maior das referências de todos
os bens e valores juridicamente protegidos. Mesmo que esta idéia não seja ainda
consensual na doutrina vigente.
Este formidável e extraordinário
avanço das ciências biológicas, notadamente no campo genético-molecular,
significa uma indiscutível proposta em favor do homem de amanhã, mas este
domínio sobre a natureza pode nos aproximar do abismo da destruição da vida. Os
horrores da especulação médica em experimentações humanas nos campos de
concentração nazistas é uma lamentável prova de que há um risco de descompasso
entre as Ciências e a Moral. A má utilização da ciência pode despencar para a
programação arbitrária de pessoas, o controle abusivo da sociedade e o domínio
abjeto da natureza.
Isto não quer dizer que se excluam
das necessidades do homem atual e do futuro as vantagens do progresso da
ciência e a efetiva e vantajosa participação do pesquisador. Não. Desde que o
cientista não se renda a uma visão tecnicista do mundo, pois o homem, antes de
tudo e apesar de tudo, quer viver bem.
Nesta concepção de modelo, não se vê
apenas a necessidade de abrigar princípios admitidos como pré-positivos, como o
do respeito à dignidade da pessoa humana, mas a de contemplar num corpo de
doutrinário tudo aquilo que diz respeito num quadro compatível dos interesses
das ciências biológicas e da ordem pública e social. Assim, por exemplo, não é
justo impedir o mapeamento competente do DNA humano, codificando toda sua
estrutura e armazenando esses dados no
computador, quando isto tem o propósito de relacionar certas doenças genes a um
determinado quadro patológico. Não e a mesma coisa utilizar estes dados no
sentido der utilizar este material genético pata especular ou na criação de
bancos de dados para interesses inconfessáveis.
Tudo isto, acreditamos, é motivo
bastante para se redefinir alguns conceitos do Direito, criando-se um espaço de
discussão para o Direito Médico, pois é inegável que estes fatos e
conseqüências se discutidos de forma esparsa e aleatória, além de se perder a
conexão que o assunto impõe, permite-se a desconsideração do progresso da
ciências biológicas e do que isto representa e interessa a toda humanidade.
Para alguns a expressão “Biodireito”
seria mais apropriada, a qual abrangeria toda licitude da atividade científica
no campo da biomedicina, mesmo que importasse
na sua discutível “jurisdiciarização”. Todavia, consideramos tal
vertente como uma seção jurídica da Bioética. O Biodireito estaria mais voltado
aos requisitos jurídicos da proteção da dignidade humana e nas regras de
convivência social enfocadas na esfera da Bioética, que estabelecem a qualidade
de “ser humano”, tomando como enfoque uma visão ética e política. Enquanto o
Direito Médico se concentraria no aspecto doutrinário e normativo das relações
humanas e institucionais nas questões que envolvem os interesses sobre a vida e
a saúde do homem e as condições de habitalidade do meio ambiente, tendo como
proposta de concepção legalista do ordenamento jurídico. Uma permeada pelos
princípios fundamentais da Bioética; outro, baseado em tutelas preventivas,
coativas e indenizatórias. Uma, volta mais ao direito “constituendo”;
outro, integrado no direito “constituído”.
A compreensão mais ajustada do
Direito Médico se torna mais imperiosa a partir do momento em que se tornam
mais e mais possíveis certas manipulações no campo das ciências biológicas, o
que importa não só uma reformulação e uma adaptação das ciências do
comportamento, mas também da regração jurídica. E nisso vai se tratar não
apenas do direito à integridade física e moral assegurado constitucionalmente a
cada homem e a cada mulher, como o direito de não sofrer torturas e sevícias ou
de não ser submetido a outras formas de tratamento ou castigo cruel, mas principalmente
do direito de ser protegido contra intervenções biológicas com interesses
condenáveis, como as experiências especulativas e as manobras reprováveis em
torno da reprodução humana e das desordens genéticas.
Não é de hoje que se pergunta: o corpo
do homem pode ser objeto de manipulação biológica indiscriminada? Qual o limite
do cientificamente possível e do eticamente válido? A moral hodierna e o direito constituído são claros ao assegurar o
uso devido das inovações da moderna biotecnologia? Quem vai controlar o
manipulador?
Para assegurar respostas imediatas a
tantas questões, seria indispensável, além da discussão de ordem doutrinária a
cada uma das situações apresentadas, ter-se regras muito transparentes e
objetivas, pelo menos sobre assuntos como: o destino dos embriões congelados
após o uso da reprodução chamada assistida; a decisão sobre o regime de
filiação e da sucessão na heteroprocriação dita artificial; a licitude da
clonação com a produção de indivíduos iguais e em série; a possibilidade da
gravidez masculina, da fecundação entre gametos humanos e animais e da gestação
de embriões humanos em animais; a modificação intencional do código genético
humano para formação de um individuo “melhorado”; entre outros.
A primeira coisa a ser considerada,
portanto, no que se refere ao direito à integridade biológica, é que essas
intervenções ocorrem sobre o homem e que elas podem afetar não apenas seu
corpo, mas sua dignidade. Não se trata, pois, de uma simples questão moral ou
de uma opinião política, senão da preservação do próprio ser humano, no seu
contexto mais amplo.
O perigo está, por isso, mais para
diante, em se estender o conceito utilitarista de pessoa, que hoje já exclui os
nascituros e os pacientes terminais, ou estimular a “coisificação” do corpo
humano, divorciando o conceito de pessoa de sua estrutura corporal, ou
estimulando qualificações entre o individuo da espécie humana e pessoa.
Há certas áreas de pesquisa – entre
elas a da pesquisa genética em fetos e embriões, que não receberam ainda um
cuidado mais imediatos nos seus aspectos éticos e legais, certamente porque não
são seres humanos considerados como pessoas.
Estamos sob a égide de uma
Constituição que orienta o estado no sentido da dignidade da pessoa humana,
tendo como normas a promoção do bem comum, a garantia da integridade física e
moral do cidadão e a proteção incondicional do direito à vida. Torna-ser
evidente a necessidade do controle das manipulações biológicas com normas mais
específicas, como fator indispensável na manutenção da ordem pública e dom
equilíbrio social. Seu fim precípuo é a criação de meios e condições para que
as pessoas sejam protegidas em todos os seus valores e que possam desenvolver
plenamente todas as suas aptidões e ocupar o lugar que está destinado a cada um
de nós.
Mesmo que as ciências biológicas
sejam uma área do conhecimento viva e dinâmica, não são valores absolutos a que
todos os outros estejam sistematicamente subordinados. Começam eles a merecer
objeções quando comprometem o individuo ou os interesses de ordem social. Essa
proteção, portanto, não visa apenas a defesa da própria pessoa, mas, antes de
tudo, ao interesse ético-político da coletividade.
Qualquer ameaça à integridade física
ou à saúde de um único homem numa intervenção especulativa, é,
indubitavelmente, um ato de lesa-humanidade, um atentado contra todos os
homens.
Uma situação bastante duvidosa, não
tanto pela intenção, mas pelos possíveis resultados, é a da terapia genética.
Seu fundamento é transferir genes de um organismo para outro, a fim de que se
tornem perfeitamente adequados ao novo hospedeiro, e como meio de substituir
uma informação genética anômala, causadora de perturbações por desordens
genéticas.
O problema está na integração desse
novo material, como capaz de gerar danos irreversíveis no gene essencial
da célula hospedeira, pois qualquer dano subseqüente, em vez de encerrar-se com
o indivíduo, continuará e marcará as gerações seguintes. Ademais, o grande
risco na política da tecnologia gene+tica é transformar isso numa ameaça em
grande escala, visando a interesses econômicos ou políticos, através de
alterações gênicas arbitrárias. Ou mesmo permitindo a existência de programas
paralelos, caracterizando verdadeiros mercados negros biológicos.
Desse modo, existe uma considerável
demanda de situações novas a exigir do Direito respostas e soluções nestes
intricados assuntos da biotecnologia. Mesmo sabendo-se que tais temas pertencem
a um acervo muito recente do conhecimento
humano, tal contribuição será insuprível na regulamentação das técnicas
e no destino das aplicações às
necessidades da população – sem esquecer que existe uma tradição de
deixar acontecer para depois regular.
Pelo menos, no que tange à
reprodução assistida, será necessário que se criem normas específicas mais
precisas e uma política de controle sobre as intervenções genéticas, evitando
os tribunais paralelos da eugenia, como já se vem fazendo no “controle de
qualidade dos bebés”, através do exame no líquido amniótico, descartando-se os
“fetos de má qualidade” ou aperfeiçoando os considerados “fora de padrão”, por
meio do chamado aborto eugênico.
Espera-se do nosso legislador, a
exemplo do que ocorre em outros países, a elaboração de normas sobre ética e
segurança em torno de experimentos biológicos, com regras bem definidas e
proibições abrangentes a respeito de: patentes de genes; terapias genéticas e
alterações gênicas em animais, que lhes causem sofrimento ou defeitos
orgânicos; manipulação, produção e conservação de embriões humanos;
patenteamento de seqüência de DNA; modificação do material genético de pessoas
vivas, exceto para tratamento de doenças; e liberação da natureza de partículas
do DNA ou de organismos geneticamente transformados capazes de vida livre
independente.
Mesmo que se diga ser esses projetos
de legislação específica e rigorosa, faz-se mister dizer que é muito importante
a participação de todos nesta discussão, porque ninguém pode ficar fora desta
responsabilidade, pois estão em jogo a sorte das liberdades individuais e o
destino da pessoa humana como espécie.
Bibliografia
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Informações Sobre o Autor
Genival Veloso de Franca
Professor Convidado dos Cursos de Graduação e Pós-graduação do Instituto de Medicina Legal de Coimbra (Portugal).
Membro Titular da Academia Internacional de Medicina Legal e Medicina Social.
Trabalho publicado em SAÚDE, ÉTICA & JUSTIÇA, 1 (2):17-28, 1998.