Natureza Jurídica das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas


No que se refere à natureza jurídica das decisões proferidas pelo TCU, é importante esclarecer que há vários estudos que procuram compreendê-las, sendo que uma corrente de pensamento sustenta a função jurisdicional, enquanto outra restringe as decisões à mera manifestação de vontade administrativa.


A questão não é meramente acadêmica, apresentando relevantes conseqüências práticas no que concerne, especialmente, aos limites de revisibilidade das decisões dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário. Para a corrente defensora da função jurisdicional, somente caberia o exame extrínseco do ato e a verificação de sua conformidade, ou não, com a Lei, pelo Judiciário. Para a segunda, a revisão poderia, inclusive, adentrar no mérito do ato deliberativo da Corte.


Tudo parece indicar que o ponto nodal da questão repousa na acepção do termo julgamento, utilizado pela Constituição Federal, para designar a decisão do Tribunal de Contas. O Tribunal de Contas não é simples órgão administrativo, mas exerce uma verdadeira judicatura sobre os exatores, os que têm em seu poder, sob sua gestão, bens e dinheiros públicos.


O Tribunal de Contas é órgão auxiliar e de orientação do Poder Legislativo, embora a ele não subordinado, praticando atos de natureza administrativa, concernentes, basicamente à fiscalização.


Pontes de Miranda sustenta que “a função de julgar as contas está claríssima no texto constitucional. Não havemos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro Juiz as rejulgue depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem”.


O debate tem prosperado, notadamente, porque os estudiosos costumam analisar a questão apenas pela perspectiva do Direito Constitucional ou do Direito Administrativo, faltando à reflexão uma visão abrangente e mais atualizada da restrita tripartição das funções do Estado.


Essa posição, muito bem se entende, se for considerado que a teoria da separação dos poderes de Montesquieu jamais foi adotada em seu sentido estrito. O já citado Pontes de Miranda menciona que “uma coisa é a distinção das funções do Estado em legislativa, executiva e judiciária e outra a separação absoluta dos poderes segundo tal critério distintivo”.


O silogismo fundamental para a correta equação assenta-se nas seguintes premissas:


1) a separação das funções legislativa, administrativa e judiciária não é absoluta, nem é restrita aos órgãos do respectivo Poder. Verifica-se torrencial exemplificação na própria Constituição Federal:


Poder Executivo – exerce funções legislativas quando se lhe comente a iniciativa de leis (art. 84, III) ou editar medidas provisórias, com força de lei (art. 84, XXVI), sancionar, promulgar e vetar leis (art. 84, IV), e também funções judiciais, como comutar penas e conceder indulto (art. 84, XII);


Poder Legislativo – além das funções legislativas, constitucionalmente lhe foi deferida competência judiciária para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República e outras autoridades (art. 52, I e II) e funções administrativas, como a de dispor sobre sua organização (art. 51, IV);


Poder Judiciário – foi-lhe conferida a competência administrativa de organizar suas secretarias (art. 96, I, b), e legislativa, para propor leis (art. 96, II) ou declarar a inconstitucionalidade de leis (arts. 97 e 102, I, a) e impor a sentença normativa em dissídio coletivo (art. 114, § 2º).


2) O Poder Judiciário não tem competência para a ampla revisibilidade dos atos não judiciais estritos


Arrimando-se no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, os menos atentos pretendem erigir o princípio da revisibilidade judicial como norma absoluta. A simples leitura desse dispositivo demonstra que é vedado a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão. De fato, a interpretação sistemática dos preceitos constitucionais revela que, em alguns casos, o próprio estatuto político delineia a competência para outros órgãos procederem ao julgamento de determinadas questões tal como ocorre com o julgamento do impeachment e dos Tribunais de Contas. De outra parte, admitindo-se, ad argumentandum, que a deliberação das Cortes de Contas fosse mero ato administrativo e não judicante, mesmo assim não poderia o Poder Judiciário adentrar ao exame de mérito desse ato, ficando restrito ao exame da legalidade formal.


Nesse contexto, compreende-se facilmente que a jurisdição não é monopólio do Poder Judiciário, sendo função também exercida pelos outros poderes.


Os efeitos do julgamento – como tal entendida a possibilidade de dizer o direito nos casos concretos – pelas Cortes de Contas prevaleceriam frente aos órgãos do Poder Judiciário? Estariam os condenados sujeitos ao cumprimento forçado da decisão das Cortes de Contas?


As decisões das Cortes de Contas, no Brasil, são expressões da jurisdição. Não jurisdição “especial” ou seguida de qualquer adjetivação que pretenda diminuir sua força, mas apenas jurisdição, à qual se pode, em homenagem ao órgão prolator, referir-se como jurisdição de contas.


Conseqüentemente, uma vez que o constituinte, repetindo Constituições anteriores, empregou a expressão julgar para algumas deliberações do Tribunal de Contas, e tendo em linha de consideração que, quando são empregados termos jurídicos, deve crer-se ter havido preferência pela linguagem técnica, os julgamentos das Cortes de Contas devem ser acatados pelo Poder Judiciário, vez que não podem rejulgar o que já foi julgado.


O julgamento sobre as contas, decidindo a regularidade ou irregularidade, é soberano, privativo e definitivo, observados, obviamente, os recursos previstos no âmbito desses colegiados. Esgotados os recursos ou os prazos para a interposição, a decisão é definitiva, não sujeita à revisibilidade de mérito pelo Poder Judiciário.


Assim, sem laivo de dúvida, funções das Cortes de Contas se inserem como judicantes, inibindo o reexame pelo Judiciário. Nesse sentido já pronunciou a Justiça Federal: o TCU só formalmente não é órgão do Poder Judiciário. Suas decisões transitam em julgado e têm, portanto, natureza prejudicial para o juízo não especializado.


Nesse prisma é que se colocam os Tribunais de Contas, que a Constituição Federal reteve como Cortes diferenciadas, exercentes de uma jurisdição sobremodo especializada, como deflui à leitura do art. 70 da Constituição Federal. Conquanto as Cortes de Contas não figurem no rol dos órgãos componentes do Poder Judiciário (CF, art. 92, I a VII), é indisputável que elas exercem com independência, autonomia e exclusividade o segmento específico da Jurisdição em matéria de fiscalização ‘contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial’ (art. 70), como órgão de controle externo, acoplado ao Legislativo (art. 71). A circunstância de suas decisões poderem, eventualmente, ser objeto de contraste ulterior pelo Poder Judiciário (por exemplo, em ação popular em que se discuta matéria antes decidida por Tribunal de Contas) não enfraquece o caráter coercitivo de seus julgamentos, porque, de um lado, aquele contraste advém por outra razão, a saber, a inafastabilidade do controle jurisdicional (dito princípio da ubiqüidade da Justiça: CF, art. 5º, XXXV); de outro lado, sendo certo que impende preservar a desejável harmonia entre as competências constitucionalmente estabelecidas, é forçoso admitir que aquela revisão judicial não se dá necessariamente, e quando ocorra, não poderá implicar uma singela ‘substituição’ dos critérios adotados pelo juiz de contas, por aqueles que acodem o juiz togado.


Pelo que se depreende, segundo as idéias transcritas, os Tribunais de Contas, inobstante o fato de não constarem no elenco constitucional dos órgãos providos de jurisdição, teriam tal condão, ou seja, poderiam fazer a dicção do direito a ser aplicado nos casos por eles analisados, não se constituindo, por isso mesmo, “instância inferior” ou “primeiro grau” em relação ao Poder Judiciário.


Deixando-se de lado o critério técnico correto do que seria jurisdição e partindo-se para a análise da função jurisdicional num sentido amplo, poder-se-ia acatar a idéia de que os Tribunais de Contas teriam, digamos assim, uma “jurisdição material”, haja vista que exercem algumas funções típicas, pois uma das suas atribuições é o julgamento de contas dos responsáveis com imparcialidade, independência, ampla defesa, dentre outras garantias. Todavia, formalmente, no sentido técnico da palavra, a doutrina majoritária acredita que os Tribunais de Contas não possuem função jurisdicional, já que dentre outros motivos, suas decisões não produzem coisa julgada, de forma que resta impossibilitado tal enquadramento como órgão jurisdicional ou detentor de jurisdição.


Todavia, em um passado não muito distante, o Pretório Excelso prolatou decisões nas quais limitava as possibilidades de revisão, pelo Judiciário, das decisões ofertadas pelos Tribunais de Contas.


Conclui-se, portanto, que o Tribunal de Contas não exerce uma função jurisdicional em relação às contas do Presidente (âmbito federal). Ele não julga pessoas, julga contas, e o efeito de suas decisões não fazem coisa julgada, pois são de cunho administrativo. O Tribunal de Contas é um órgão auxiliar do Legislativo, emitindo um parecer técnico a respeito das contas a ele apresentadas.


Em suma, pode-se entender, de acordo com a doutrina majoritária, que não há permissão de que o Judiciário aprecie, quanto ao mérito, decisões advindas do TCU como, por exemplo, no que tange a processos de tomada e prestações de contas, visto que são decisões administrativas por excelência, constituindo, igualmente, função privativa da Corte de Contas.


Deste modo, é conferida a este Tribunal autonomia em certas hipóteses de não haver exame judiciário acerca de suas deliberações.


No entanto, sempre que houver ato administrativo eivado de ilegalidade, caberá ao Poder Judiciário apreciação desse ato, uma vez que o art. 5º, inciso XXXV, da Carta Magna, reza que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.



Informações Sobre o Autor

Camillo Soubhia Netto

Advogado, especializado na área do Direito Público, pós graduando em Direito Tributário, sócio do escritório Soubhia Netto Advogados Associados, membro da Associação dos Advogados de São Paulo.


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