Resumo: Esta tese acadêmica tem por finalidade esclarecer alguns aspectos essenciais ao duplo grau de jurisdição e gerar uma discussão acerca da natureza jurídica desse princípio, tema controverso e cindido entre aqueles que classificam tal instituto como uma garantia constitucional e aqueles que o consideram uma mera previsão de nossa legislação ordinária. Inicialmente, serão analisados a origem e o desenvolvimento do duplo grau de jurisdição no decorrer da história jurídica. Posteriormente, será examinado, sucintamente, o conteúdo do princípio, a polêmica doutrinária acerca da necessidade da manutenção do princípio, bem como o princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional, a disciplina legislativa do princípio no Brasil. Por fim, analisaremos os óbices à efetivação da garantia do duplo grau de jurisdição.
Palavras-chave: Duplo grau de jurisdição – Recurso – Garantia constitucional – Legislação ordinária.
Abstract: This academic thesis aims to clarify some essential aspects to the two levels of jurisdiction and generate a discussion about the legal nature of that principle, and controversial topic split between those who classify such institute as a constitutional guarantee and those who believe our forecast of a mere ordinary legislation. Initially, will be analysed the origin and development of two levels of jurisdiction in the course of legal history. Subsequently, it will be considered, briefly, the content of the principle, the doctrinal controversy about the need of maintaining the principle and the principle of two levels of jurisdiction and constitutional guarantee,. The principle of legislative discipline in Brazil. Finally, examine the obstacles to making the guarantee of two levels of jurisdiction.
Keywords: Two levels of jurisdiction – Appeal – Constitutional guarantee – Ordinary legislation.
Sumário: Introdução. 1. Origem histórica. 2. Conteúdo do princípio. 3. A polêmica doutrinária acerca da necessidade da manutenção do princípio. 4. Disciplina legal. 4.1. O princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional. 4.2. O tratamento constitucional do princípio no Direito comparado. 4.3. A disciplina legislativa do princípio no Brasil. 4.4. Óbices à efetivação da garantia do duplo grau de jurisdição. Conclusão. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
É missão do processo a pacificação social através da Justiça, valor fundamental que só se realiza uma vez observados os valores fundamentais da certeza e da segurança.
Se é certo que inexistem certeza e segurança absolutas, menos certo não é que o Direito deva oferecer o máximo possível de certeza e segurança para a vida social, concretizando a maior probabilidade de justiça.
Ao decidir uma lide, pode o julgador cometer erros substanciais ou formais que impliquem um resultado injusto e, com isso, contrariar a função primordial do Direito, que é a de garantir os valores da sociedade.
Por isso, já Ulpiano reconhecia a necessidade de reexame das decisões judiciais, princípio que se cristalizou mundialmente com a previsão legislativa de formas recursais destinadas à impugnação dos atos decisórios.
Admitida a natureza recorrível, mutável, da sentença de primeiro grau, uma dúvida sempre perseguiu os doutrinadores: o reexame da decisão impugnada deveria, necessariamente, fazer-se por julgadores de hierarquia superior à daquele que proferiu o julgado ou poderia, sem prejuízo, ser feito por juízes de igual hierarquia funcional?
Carnelutti contava-se entre aqueles que afirmavam poder o reexame do processo ser feito por juízes de igual hierarquia, o que se convencionou chamar de duplo exame.
Apesar das críticas e dissensões, têm as legislações adotado como regra, em todo o mundo, o princípio do duplo grau de jurisdição, por meio do qual é privilegiada a dualidade de instância, recebendo a decisão pronunciada pelo juízo a quo novo julgamento por um juízo ad quem, de hierarquia funcional superior.
A regra, no entanto, não é absoluta, reservando os diversos sistemas jurídicos a possibilidade de interposição de alguma formas recursais em face do próprio juízo prolator da decisão impugnada, ou perante órgão colegiado do mesmo nível hierárquico, tal como acontece nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Definida a atividade recursal como tendente a proporcionar certeza e segurança para garantia do justo, torna-se profundamente relevante a questão que envolve a necessidade de saber se deve o princípio do duplo grau de jurisdição ter status constitucional.
Essa é, basicamente, a questão central da análise ora iniciada, cingindo-se o tema ao tratamento a ela concedido pelo sistema jurídico brasileiro.
A análise crítica e reflexiva pretende aferir a adequação da postura adotada pelo legislador constitucional quanto ao princípio do duplo grau de jurisdição e seus reflexos na legislação infraconstitucional, posta como questão fundamental a de encontrar resposta para a grande indagação sobre dever ou não esse princípio revestir-se do caráter de garantia constitucional.
Para o atingimento do objetivo colimado torna-se necessária a revisão das fontes históricas universais e nacionais do duplo grau de jurisdição, bem como a verificação do tratamento dispensado ao princípio pelo Direito Comparado.
A abordagem geral da doutrina permitirá, a final, a particularização e a detecção, no sistema jurídico brasileiro, da existência do duplo grau de jurisdição, a verificação de sua aplicabilidade e importância e a proposta de soluções para os problemas encontrados.
1. ORIGEM HISTÓRICA
Qualquer análise histórica do princípio do duplo grau de jurisdição no processo civil deve aliar-se àquela relativa à apelação, visto ser esta a forma recursal que, consagrada no axioma appelatio est provocatio ad maiorem judicem, mais justifica sua existência.
Não se identifica, no chamado período primitivo do Direito processual, que via dos tempos mais remotos até o advento do Direito romano, a figura da apelação.
Geralmente teocráticas, as civilizações antigas aplicavam um Direito extremamente rudimentar, baseado na invocação, pelos reis, do poder divino e na aplicação de penas atrozes, exercido o poder de julgar pelos sacerdotes e pelo soberano.
A primeira notícia que se tem de previsão de ocorrência de erro judiciário vem do art. 5º do Código de Hamurabi, que assim prescrevia:
“Se um juiz dirige um processo e profere uma decisão e redige por escrito a sentença, se mais tarde o seu processo se demonstra errado e aquele juiz, no processo que dirigiu, é convencido de ser causa do erro, ele deverá então pagar doze vezes a pena que era estabelecida naquele processo, e se deverá publicamente expulsá-lo de sua cadeira de juiz. Nem deverá ele voltar a funcionar de novo como juiz em um processo”.
À norma estabelecedora da sanção ao juiz não corresponde, no texto que se convenciona rotular como o mais prodigiosos da civilização antiga, nenhuma outra que indique a forma pela qual se chegaria à constatação do erro judiciário, o que não permite pressupor a existência de recurso interposto pela parte prejudicada.
Já o Direito mosaico permitia a impugnação da sentença criminal por qualquer pessoa que não o acusado, prevendo a possibilidade de o mesmo crime ser julgado até cinco vezes. Fora do campo penal, no entanto, não há indicação da existência de recursos.
No Código de Manu, formulado dez séculos depois do de Hamurabi, está presente a idéia de justiça como forma de vingança, o que era usual, e nenhuma alusão é feita à possibilidade de ser contrariada a decisão dos brâmanes que compunham a Corte Suprema, sujeitos os súditos à imposição dos castigos, geralmente violentos, aplicados pelo rei.
Relativamente às antigas cidades-Estado gregas, dois momentos processuais merecem destaque: a legislação ateniense de Sólon e o Código de Gortina cretense. Embora este ultimo muito tenha legado ao nascimento e desenvolvimento da ciência processual, principalmente com a divisão do processo em duas fases — fixação da lide e investigação dos fatos controvertidos — e com a criação das astreintes, não era nele, e sim no conjunto de leis atenienses, que se encontrava presente a previsão de um sistema recursal.
Em seus primórdios, o mundo romano experimentou um Direito rudimentar, não escrito e aplicado exclusivamente aos patrícios, excluídos os princípios da igualdade e da tutela da liberdade, vigorando a ordo judiciarum privatorum, ou seja, um sistema de Justiça privada, até o ano 342 a. C.
A aplicação da Justiça, como era costumeiro à época, fazia-se como ato de vingança, sendo desconhecida a função social do Direito durante os períodos das legis actionis (ações da lei) e per formulam (formulário), nos quais vigoraram os princípios da Justiça privada.
Em ambos os períodos o procedimento desenvolvia-se em duas etapas: a presença das partes, precedida da citação do réu feita diretamente pelo autor, perante o pretor, ou magistrado, que caracterizava a fase in iure, e o encaminhamento da causa, se contestada (infitatio), ao árbitro, ou juiz, inicialmente escolhido pelas partes, depois público, encarregado de examinar as provas e prolatar a sentença, nessa época irrecorrível.
O sistema de justiça pública romano, ou da cognitio extra ordinem, vigorou de 342 a. C. até a morte de Justiniano, em 568 d. C.
Notabilizou-se esse período pela supressão da instância dupla de julgamento, com o aparecimento do juiz único investido do poder estatal, pela adoção da revelia e da sucumbência, citação por oficial de justiça, predominância da prova escrita, valorização do contraditório e publicação, em audiência, da sentença escrita, todos legados indiscutíveis à ciência processual.
No que interessa à análise que se inicia, foi o período da cognitio extra ordjnem que marcou o aparecimento da apelação recebida com efeito suspensivo, como forma de impugnação das sentenças definitivas, instituído o preparo como condição de admissibilidade recursal.
Costuma-se admitir que o nascimento do sistema recursal no Império Romano deveu-se mais a uma inspiração hierárquico-autoritária que à preocupação com a garantia de Justiça, visto que a aplicação das leis pelo imperador, que inicialmente constituía a instância recursal, garantia-lhe um enorme controle sobre toda a sociedade, em face da inegável concentração de poder que representava[1].
A posteriori, a evolução do próprio Direito romano encarregou-se de atribuir a responsabilidade pelo julgamento dos recursos a outros juízes que não os prolatores das sentenças impugnadas.
Duas características do sistema recursal romano cumpre ressaltar para o que interessa à análise em questão: primeira, não só o duplo grau de jurisdição restava garantido a partir do estabelecimento da justiça pública em Roma, como também a pluralidade de instâncias, o que permitia à parte apresentar mais de uma apelação; e, segunda, a existência de limitações ao direito de recorrer em razão do grau hierárquico do prolator da sentença.
O processo romano, já grandemente desenvolvido, colidiu, no entanto, com as precárias instituições das tribos bárbaras que dominaram a Europa no século IV, aniquilando a hegemonia do Império Romano[2].
Postulando a idéia retrógrada de Justiça como ato de vingança, utilizavam-se das ordálias e juramentos como meios de prova, e o juiz não manifestava sua livre convicção, limitando-se a dirigir os debates.
A par do choque de sistemas, impunha-se ainda o princípio da personalidade do direito adotado pelos bárbaros, o que resultou numa intrincada miscelânea no que tange à aplicação de leis diversas e de diferentes matizes.
A supremacia do pensamento romano, contudo, influenciou positivamente os dominadores, que assimilaram conhecimentos e práticas, incorporando, também, os princípios do seu Direito.
À medida que os territórios iam sendo reconquistados, eram criados condados, ligados por laços de vassalagem ao Reino de Leão, estando aí a gênese do Condado Portucalense, que originou o Reino de Portugal, cuja independência foi proclamada por D. Henrique.
No século XI, a Escola de Bolonha fez ressurgir os estudos de Direito romano a partir do Corpus Juris Civilis, transformando a Itália num centro continental de estudos jurídicos e propiciando o surgimento de três grandes escolas de pensamento jurídico: a dos glosadores, a dos pós-glosadores e a humanista, conforme comentassem as instituições romanas com fidelidade absoluta ao Corpus Juris consoante o fizessem com criatividade em busca de um Direito útil na solução para casos concretos ou conforme cultivassem o antigo com desprezo pelas interpretações dos integrantes das duas primeiras escolas.
Para o Direito Processual, esse período marca a era do judicialismo, da divisão da jurisdição em temporal e espiritual, cessada a interferência do Direito canônico nas questões de Estado.
Ao elegerem a prática forense como elemento central do desenvolvimento da ciência jurídica, os práticos dos séculos XVI a XVIII propiciaram o surgimento da confusão entre Direito material e Direito processual, fazendo com que o pensamento processual se quedasse em estado de semiletargia.
Para o Direito português, no entanto, a contribuição dos praxistas foi relevante, já que popularizaram o Direito, tornando-o acessível às pessoas comuns, procuraram entender o processo como desenvolvimento da relação processual, desenvolveram estudos aprofundados sobre apelação e instância, seja comentando as Ordenações, seja analisando as decisões dos tribunais, seja ainda produzindo obra doutrinária sobre matéria processual.
Os movimentos revolucionários do final do século XVIII, impregnados da ideologia de liberdade e igualdade, promoveram uma profunda reformulação da disciplina jurídica a partir das Declarações de Direitos.
Embora o direito de apelar fosse antigo na história do Direito francês, quando da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, após a Revolução Francesa, digladiavam-se, do ponto de vista ideológico, os grupos que se manifestavam a favor ou contra sua manutenção.
Enquanto seus defensores invocavam o critério de justiça como norteador de sua posição, seus opositores preferiam ver a questão sob um prisma político, considerando o recurso como forma de elitismo dos juízes dos tribunais superiores e perpetuação da inspiração original de afirmação do poder.
Os cahiers de doléances dessa época registravam a reivindicação popular no sentido de manutenção de somente dois graus de jurisdição[3].
As divergências permitiram, então, que, na França pós-revolucionária, o direito a recurso contra sentenças de primeiro grau fosse assegurado pelo Decreto de l de maio de 1790 como princípio fundamental da organização jurisdicional, para, depois, ser suprimido pela Constituição de 1793, que só reservou ao Tribunal de Cassação competência limitada para o exame da violação das formas, e nova mente ser admitido pela Constituição de 1795.
Com a edição do Código de Processo Civil francês da era napoleônica, que, embora não inovasse tanto, procedeu à necessária separação das normas de Direito material e Direito Processual, iniciou-se a era procedimentalista do processo civil, marcada pela fixação em matéria de organização judiciária, competência e procedi mento e pelo tecnicismo em matéria probatória.
A essa era seguiu-se, a partir da segunda metade do século XIX, o período que determinou a compreensão da atividade processual como fenômeno científico e, com isso, sua autonomia científica, com a separação definitiva do bojo do Direito Civil e o estabelecimento de sua natureza de direito público.
O Brasil, descoberto em 1500 e submetido à colonização portuguesa, regeu-se, de início, pelas Ordenações lusitanas já referidas. Com a Independência, passou a reger-se pela Constituição de 1824, que, em seu art. 158, estabelecia:
“Para julgar as causas em segunda e última instância haverá nas províncias do Império as relações que forem necessárias para comodidade dos Povos”.
Ao mesmo tempo que a nova nação, nascia também a garantia do duplo grau de jurisdição no Brasil.
Ainda que até 1890, em evidente anacronismo, o processo civil brasileiro continuasse regulado pelas Ordenações Filipinas de 1603, a disciplina dos recursos interponíveis no âmbito cível coube, depois dessa data, à legislação infraconstitucional, primeiramente o Regulamento n. 737, de 1850, depois os Códigos de Processo Civil dos Estados da Federação, o Código de Processo Civil de 1939 e, finalmente, o Código de Processo Civil de 1973, com as profundas alterações introduzidas a partir de 1994.
2. CONTEÚDO DO PRINCÍPIO
A razão de ser do princípio do duplo grau de jurisdição encontra-se na persecução da segurança como elemento ínsito da Justiça, que se concretiza por meio do pronunciamento do órgão jurisdicional.
O próprio Direito, que se realiza através da atuação jurisdicional, consubstancia-se como exigência de Justiça e segurança, na medida em que é expressão do respeito devido à dignidade imanente à condição humana.
Valor moral por excelência, apoiada nos ideais de liberdade e igualdade, depende a Justiça, para sua efetivação, da materialidade do valor segurança.
Ao Direito, tradutor da ordem social, o que interessa, portanto, é o justo, que se perfaz com o certo, o seguro.
Nesse passo, a grande questão que se impõe para a justificativa da existência do direito à impugnação de uma decisão é a de situar o grau de segurança e, portanto, de justiça, que se obtém com o provimento único.
Certamente, a imposição do princípio da Justiça no provimento jurisdicional leva à conclusão de que este deve ser o resultado de um exame acurado e exaustivo dos fatos e das provas que se contêm no processo.
Por outro lado, é imperioso admitir, como já se afirmou, que a justiça tardia não conduz aos fins colimados pelo exercício da atividade jurisdicional, porque o processo deve produzir o máximo resultado e proveito prático, que é a pacificação social segundo os critérios de segurança e justiça, com o mínimo dispêndio de tempo e energia.
Garantir, a um só tempo, a segurança na justiça e a presteza com que as situações desavindas devem ser recompostas é que constitui o desafio, só ultrapassável com a moderação pela conciliação e pelo balanceamento dos valores envolvidos.
Somente com o equilíbrio das características de certeza, segurança, economia e celeridade é que se chega ao conceito de Justiça ideal. Em outros termos, a efetividade do ordenamento jurídico justo, que ao processo compete garantir, significa justiça rápida e segura, como sinônimo de decisões justas.
Por isso, a tendência dos ordenamentos jurídicos é de manter o direito à impugnação das decisões dentro de limites de racionalidade e razoabilidade que permitam o desenvolvimento do processo com atendimento de seus objetivos básicos, assim como de buscar um ponto de equilíbrio entre a liberdade individual e a ordem social.
A questão, portanto, longe de ser política, de mera escolha legislativa, como pensam alguns, é essencialmente jurídica, porque indelevelmente ligada ao escopo-síntese da atividade jurisdicional e, por conseqüência, aos valores do Estado Democrático de Direito.
Visto, assim, o direito ao duplo grau de jurisdição como garantia inerente às instituições político-constitucionais do regime democrático, é mister revelar seus contornos.
Trata-se da possibilidade de reexame, de reapreciação da sentença definitiva proferida em determinada causa, por outro órgão de jurisdição que não o prolator da decisão, normalmente de hierarquia superior, vindo dessa circunstância a utilização do termo grau, na denominação do princípio, a indicar os níveis hierárquicos de organização judiciária.
A rigidez hermenêutica, contudo, nunca é boa companheira da verdadeira Justiça, o que implica interpretar a locução com extrapolação de seus limites literais.
De Carnelutti vem a lição precisa acerca do conteúdo do duplo grau de jurisdição:
“A função da apelação está em submeter a lide e o negócio a um segundo exame que ofereça maiores garantias que o primeiro, já que se serve da experiência deste e realiza um oficio superior; porém este não é um caráter essencial, já que a apelação pode ser feita também perante um juiz de grau igual àquele que pronunciou a sentença impugnada; o essencial é que se trata de um exame reiterado, isto é, de uma revisão de tudo quanto se fez pela primeira vez, e essa reiteração permite evitar os erros e suprir as lacunas em que eventualmente incorreu o exame anterior[4].
Daí se dessumem, claramente, os elementos configuradores do instituto e justificadores de sua existência: um segundo exame que permita a correção de erros e o suprimento de lacunas, com vistas à garantia do direito em jogo.
Não importa que o reexame seja feito por órgão jurisdicional colegiado de hierarquia igual ou superior à do prolator da sentença.
Cuida-se mais, então, de um duplo exame que, propriamente, de um duplo grau.
Pode-se ainda acrescer aos já elencados o elemento consistente na preocupação dos ordenamentos em evitar, com a sujeição à revisão de seu ditame, a possibilidade de haver abuso de poder por parte do juiz.
Por qualquer ângulo que se examine, então, o princípio do duplo grau de jurisdição, evidencia-se ser ele de ordem pública, inerente aos postulados do Estado de Direito.
Nasce com o prejuízo ou lesão que entenda ter sofrido a parte seu interesse em provocar o reexame da decisão desfavorável, o que envolve a manifestação de sua vontade. É atividade informada, por tanto, pelo princípio dispositivo.
Assim, cabe inteira razão a Nelson Nery Junior quando afirma ter o recurso “natureza jurídica de prolongamento, dentro do mesmo procedimento, do exercício do direito de ação, compreendido este em seu sentido mais amplo[5].
Sentença e decisão interlocutória são espécies do gênero decisão. Somente às sentenças, nos feitos de competência do juízo singular, sejam elas terminativas ou definitivas, aplica-se o duplo grau de jurisdição como garantia. Por isso, afirmou-se ser inerente à do duplo grau a noção de apelação. Contudo, quando os órgãos jurisdicionais colegiados atuam em feitos de sua competência originária, os acórdãos neles proferidos submetem-se à mesma regra.
A ordem constitucional brasileira contempla, inclusive, a figura do recurso ordinário interposto ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal relativamente a certas causas julgadas em única instância pelos tribunais, o que importa em afirmar ter ele o mesmo contorno que confere à apelação a característica de recurso vetor da garantia do duplo grau.
Tanto a sentença definidora do direito das partes quanto aquela que não defina esse direito, desde que extingam o processo principal, sujeitam-se ao duplo grau.
É a apelação, segundo Carnelutti, tipicamente uma impugnação de rescisão ilimitada ou necessária[6], o que acresce à tese de que a legislação, obediente aos parâmetros de justiça e igualdade, não pode limitar o acesso ao recurso, principalmente se o postulado do duplo grau de jurisdição estiver constitucionalmente positivado.
Não se confunda, porém, a impropriedade da limitação recursal fundada em questões tidas, geralmente, como “de relevância” com os pressupostos de admissibilidade recursal.
Os pressupostos, à semelhança das condições da ação, já que admitida a natureza jurídica do recurso como prolongamento do direito de ação, precisam estar presentes para que o juízo ad quem possa proferir o julgamento do mérito do recurso, não traduzindo sua exigência a figura anômala da apelação limitada.
Já o critério de relevância, por se ligar à idéia de importância, não pode, no campo jurídico, ater-se senão à matéria discutida ou à posição jurídica das pessoas envolvidas.
Não é por outra razão que os ordenamentos jurídicos, em regra, reservam competência funcional a órgãos de hierarquia superior para o exame de questões que envolvam matérias de interesse público ou social e para julgar agentes da alta administração do Estado.
Em matéria recursal, no entanto, é usual a utilização do caráter pecuniário da demanda para restringir o acesso aos meios recursais.
Em sede de apelação, que é o meio pelo qual se efetiva a garantia do duplo grau de jurisdição, qualquer limitação é inadmissível, e dentre elas há que se considerar como odiosa a que distingue pela pecúnia, só erigível à qualidade de critério relevante quando beneficia o jurisdicionado, como, v. g., na criação de Juizados Especiais Cíveis e Criminais para apreciação das causas de reduzido valor econômico.
Nesse caso, longe da violação ao princípio da igualdade observável nas restrições à apelação por razões de alçada, o que está bem contemplado é o amplo princípio do acesso à Justiça, garantia indispensável da era contemporânea.
De toda a sorte, e felizmente, a legislação processual civil infra-constitucional brasileira não oferece qualquer tipo de restrição à interposição da apelação, o que, lamentavelmente, ocorre em outros ramos do Direito pátrio.
Pela apelação, dirige o inconformado a impugnação contra a decisão do juízo, manifestada quanto ao pedido de mérito, ou contra a que extinguiu o processo sem examiná-lo, em decorrência de circunstâncias impeditivas dessa apreciação.
É, portanto, recurso de cognição ampla que permite a correção dos errores in judicando e dos errores in procedendo da sentença, bem como o reexame da prova produzida[7].
Sendo interposta contra sentença definitiva, a apelação devolve ao conhecimento do órgão ad quem o mérito da causa, em todos os seus aspectos, constituindo a matéria impugnada a declaração relativa ao pedido formulado.
Extinto o processo sem julgamento do mérito, é vedado ao órgão jurisdicional recorrido conhecer dos fatos e das provas, porque não pode fazê-lo sem que o juízo inferior o tenha feito. A questão é de pura lógica, resultando a admissão da hipótese em violação de norma de competência.
Solução diversa merece, no entanto, o processo extinto com julgamento do mérito por ocorrência de prescrição ou decadência, pois, se o tribunal negar uma ou outra, poderá apreciar os restantes aspectos da lide sobre os quais o juiz não chegou a se pronunciar[8].
Examinadas as características do princípio, volta-se à questão da utilidade e necessidade de sua previsão, tornando-se imprescindível retomar o curso do raciocínio conciliatório relativamente à aparente anteposição dos conceitos de justiça e celeridade. Trata-se de discernir se à menor rapidez deva preferir-se a provável maior justiça da decisão, ou vice-versa.
Para resolver a questão, parece razoável e racional admitir que dois graus de exame são suficientes para assegurar o máximo de probabilidade de justiça e segurança da decisão, firmando-se, com isso, posicionamento no sentido de que a previsão da possibilidade de utilização ilimitada (no sentido de conteúdo) do recurso de apelação contra as sentenças extintivas do processo constitui a característica do princípio do duplo grau de jurisdição.
3. A POLÊMICA DOUTRINÁRIA ACERCA DA NECESSIDADE DA MANUTENÇÃO DO PRINCÍPIO
Embora a ordem jurídica mundial contemple o direito à apelação, em sede constitucional ou infraconstitucional, debate-se já de há muito sobre a conveniência de sua abolição ou da sensível limitação de sua incidência.
É principalmente na Itália que se concentra o maior foco de discussões a respeito do tema, provocadas pela posição assumidamente iconoclasta de Cappelletti, que, levando a extremos a defesa de sua bem-sucedida teoria relativa ao acesso à Justiça, transformou-se no mais ardoroso defensor da eliminação, pura e simples, do recurso de apelo da legislação italiana.
Seus argumentos baseiam-se, todos, na hipótese de a garantia ao duplo grau de jurisdição, conformada ao direito de apelar, afrontar o princípio do acesso à justiça e os seus corolários.
Por essa razão, aponta a inconstitucionalidade da previsão normativa do recurso de apelo, pugnando por sua supressão sumária ou, pelo menos, por sua limitação ao exame dos erros de direito em que incorreu o juiz de primeiro grau.
Seguindo a lógica de seu pensamento, o mestre italiano afirma que há uma idolatria do direito à impugnação a ser expurgada, um excesso de órgãos colegiados a ser mitigado, e que a garantia constitucional do acesso à Justiça inclui a exigência de uma duração não excessiva do procedimento, o que não acontece na presença de dois juízos repetitivos sobre o mérito, por força da excessiva duração do apelo, responsável por um processo mais longo.
Aduz com esses argumentos que a abolição do apelo favorece os princípios fundamentais da imediatidade, oralidade e concentração, já que o primeiro grau outra coisa não é senão uma longa, extenuante e penosa antecâmara para chegar, a final, ao apelo, verdadeiro juízo, pelo menos para a parte que possa economicamente se conceder o benefício.
Ainda que mais moderados, Pizzorusso e Ricci também se aliam à corrente que se volta contra o duplo grau, sob o argumento de que a apelação reflete historicamente uma concessão hierárquico-autoritária da jurisdição e do Estado, não atuando o princípio com absoluta e plena coerência, em função de não favorecer a economia processual, posto que oneroso e fonte de complicações.
Não postulando embora sua plena derrogação, Ricci deixa claro seu apoio a uma pretensa tendência evolutiva dos ordenamentos modernos de restringir a incidência do duplo grau.
Outras vozes somam-se às dos ilustres processualistas italianos para tentar demonstrar a inutilidade ou a impropriedade da previsão da garantia recursal, sob argumentos diversos.
Contra a manutenção do princípio nos ordenamentos jurídicos invocam a exigência ínsita ao valor da certeza jurídica de que a decisão seja proferida de uma vez, posto que a reforma da sentença dá margem a dúvidas quanto à aplicação do direito, produzindo incertezas e apontando divergências de interpretação, desprestigiando o Judiciário.
Diversamente, se a decisão do segundo grau confirma a do primeiro, é flagrante sua inutilidade, segundo seu entendimento.
Além disso, dizem, o princípio da oralidade e seus consectários favorecem o juízo de primeiro grau no que toca ao conhecimento dos fatos por meio da instrução probatória, permitindo que sua decisão seja mais consentânea com a realidade do que aquela proferida por um tribunal que não manteve contato com as partes e as provas.
Alegam, ainda, que também os juízos de hierarquia superior são falíveis, podendo cometer erros e injustiças, o que não acresce ria ao fator segurança.
Entendem, por fim, que se podem restringir as hipóteses de admissibilidade recursal sem ofensa às garantias constitucionais do processo, porque o duplo grau não traduz relação de dependência ou continência com o devido processo legal, nem se relaciona com os direitos de ação e defesa.
A todas essas teses contrapõem-se, vigorosamente, as que defendem não só a manutenção do princípio do duplo grau de jurisdição, como a sua constitucionalização e o alargamento de sua incidência.
Para manter a coerência da análise, é preferível expor, primeiramente, a linha de argumentação desenvolvida por Allorio para neutralizar as posições de Cappelletti, Pizzorusso e Ricci, quando da realização do XII Convegno dell´Associazione fra gli Studiosi dei Processo Civile, em Veneza em outubro de 1977[9].
Para Allorio, nenhum dos críticos do apelo civil pensou no verdadeiro e central problema relativo ao duplo grau, que é o de a sua presença favorecer, e até que ponto, a consecução de uma sentença justa.
É o princípio útil a um resultado de justiça? Essa é a primeira indagação que se faz, e a ela responde com o argumento de que o critério que preside a um instituto como a apelação é mais de lógica do pensamento que de lógica do processo.
Para estabelecer a verdade em torno de uma situação dúbia e controvertida, primeiro enfrenta-se o problema aprofundando a indagação. Ao fim, enuncia-se um juízo pelo confronto dos elementos pesquisados e por uma reta razão. Numa felicíssima comparação com o método científico experimental, que permite a comprovação das hipóteses nas demais ciências, equivale o primeiro juízo, ou a sentença de primeiro grau, a uma primeira série de experimentos científicos, seguida de um segundo estágio de pesquisas e estudos, que, não partindo mais dos fatos objeto da primeira investigação, avaliam e criticam o primeiro resultado. Tal é, segundo o mestre italiano, o trabalho a que procede o segundo julgador relativamente à sentença de primeiro grau. A seu juízo, a crítica sobre a primeira tentativa de solução vem mais serena do que a feita quando o caso era virgem, inexplorado, e, se a serenidade e a objetividade são maiores, então é mais provável que se consiga chegar ao grau de verdade que “al povero uomo è dato di conseguire su questa terra”.
Dessa forma, a jurisdição de segundo grau beneficia-se de todo um trabalho de pesquisas e discussões feito em primeira instância, de tal sorte que o debate fica mais esclarecido, o que faz pensar que a decisão do segundo juiz será melhor que o julgamento do primeiro.
Servindo-se de sua militância prática, aponta como recorrentes no cotidiano do primeiro grau a superficialidade da análise, a pressa e a precipitação do aprofundamento quanto aos elementos da lide, ensejadores de erros que podem e devem ser reparados.
Outra questão que merece ataque veemente por parte do opositor das posições de Cappelletti, Pizzorusso e Ricci diz respeito à alegada ofensa ao princípio do acesso à Justiça.
Acesso à Justiça! Que Justiça? É o que se pergunta. Para Allorio, não há Justiça quando se produz uma conseqüência tão grave quanto a coisa julgada, com a única preocupação da rapidez, ou quando se fabrica uma certeza veloz, sem resguardo da efetiva correspondência entre o direito substancial lesado e o conteúdo da disciplina judicial que deve refleti-la.
Entre a rapidez e a possibilidade de geração de injustiça julga ser preferível um processo mais lento, mais cuidadoso, o qual, provavelmente, estará menos exposto ao erro.
Em suas ponderações, não nega que também o tribunal é passível de erros, mas admite que o único ônus do apelante é demonstrar que a situação contenciosa de direito substancial é diversa daquela refletida na sentença de primeiro grau.
Ao argumento de autoritarismo que se atribui à apelação, replica com as próprias armas dos adversários, que não o vinculam ao recurso de cassação, aduzindo que a apelação não é a reclamação contra o juiz inferior, mas simplesmente o meio de passar a um outro exame da causa, o que afasta a possibilidade de o tribunal recorrido agir de outra forma senão no uso de sua atribuição de derrogação.
No que diz respeito à alegada tendência evolutiva no sentido da derrogação do duplo grau, embora não haja resposta direta de Allorio, a linha de seu pensamento e a afirmação de que “o povo não considera uma justiça nem bem organizada, nem tranqüila se não contemplar a possibilidade de apelar” permite deduzir que sua ideologia converge para a concepção de um ordenamento jurídico que reflita os anseios da sociedade cujas relações deve regular, e que, considerando essa sociedade a segurança e a justiça como valores a serem respeitados pela via recursal, é impensável sua supressão.
Aos argumentos elencados, justificadores não só da existência como da imprescindibilidade do duplo grau de jurisdição, muitos outros podem somar-se, ênfase dada ao mais recorrente, qual seja, o da presença da falibilidade como fator inerente à condição humana.
Admitida sua condição de ser falível, não é dado ao juiz o privilégio de supor-se imune ao cometimento de erros, principalmente considerando a importância dos atos decisórios que, como quais quer outros, estão sujeitos a questionamentos e censuras. Sendo obra humana, também a justiça é falível, e a sentença de primeiro grau pode ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir-se sua reforma em grau de recurso.
Além disso, é de todo conveniente dar-se ao vencido uma oportunidade para o reexame da sentença com a qual não se conformou, visto que, sendo também inata ao ser humano a reação imediata ao sentimento de perda, no sentido da recuperação de um bem da vida que lhe foi subtraído, não se pode negar-lhe a pretensão a um novo julgamento sobre a mesma questão quando a sentença lhe é desfavorável. Oferecer a todos os litigantes a possibilidade de sub meter sua causa ao conhecimento de duas jurisdições sucessivas atende, destarte, ao critério da razoabilidade, segundo Perrot[10].
Outro argumento que favorece, em muito, a permanência do duplo grau de jurisdição nos ordenamentos jurídicos diz respeito à experiência dos integrantes dos órgãos colegiados, o que, pelo menos teoricamente, oferece maior segurança à concretização do ideal de justiça.
É essa experiência, aliás, que atenua o risco de ocorrência de erros, que, embora possível, é menos provável. A tese é mitigada, contudo, na hipótese de duplo exame no mesmo grau de jurisdição, a não ser sob o prisma da segurança propiciada pela decisão colegiada.
Risco real e verdadeiro correr-se-ia, no entanto, com a instituição de juiz único, porque este, sabedor da inexistência de qualquer tipo de controle sobre seus atos, poderia ser tentado a cometer arbitrariedades. Ademais, quando sabe que sua decisão poderá ser revis ta pelos tribunais hierarquicamente superiores, o magistrado torna- se mais cuidadoso na apuração dos fatos, na subsunção destes às normas e na fundamentação de seu decisório, circunstância psicológica essa que já se encontra devidamente demonstrada.
Ademais, o magistério sempre preciso de Calmon de Passos adverte para a existência de duas espécies de parcialidade: a presumida pelo legislador, que enseja o dever do magistrado de escusar- se e o direito da parte de excluí-lo da relação processual; e aquela que se evidencia apenas com o julgamento, com o comportamento do juiz em face do caso concreto. Esse desvio na imparcialidade do juiz, segundo o abalizado doutrinador, “pode ir de um erro de valoração dos fatos ao erro na aplicação do direito, chegando até aos graves limites do que constitui ilegalidade ou abuso de poder a ser viço do dissimulado arbítrio”[11], afastando da decisão os imprescindíveis postulados da justiça e da segurança.
O caráter dialético do processo determina que sua marcha seja marcada por contradições que só serão superadas pelo ato decisório. Não é improvável, porém, que essa sintetização não se dê de forma ideal por ocasião do primeiro julgamento, principalmente se a causa for complexa e qualquer dos outros fatores já enumerados contribuir para uma decisão não consentânea com a exata realidade dos fatos e do ordenamento jurídico. A própria dinâmica de que é dotado o processo impõe, então, a evolução do exame, a fim de que no julga mento de segundo grau o litígio apareça com toda a sua amplitude, permitindo uma visão mais clara e completa da causa.
Outra característica presente no sistema processual é a racionalidade, que, por óbvio, informa também a atividade recursal. Se o que se espera do processo é que da produção de seus atos resulte o máximo proveito no sentido da busca da verdade e da concretização da justiça, é racional que da sentença final caiba apelação, porque é próprio do sistema proporcionar amplo e pleno debate sobre a lide[12].
A coerência da afirmação de que a natureza jurídica do recurso é o prolongamento do direito de ação leva forçosamente a admitir que uma sentença desfavorável cria uma lesão nova que não pode ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário, sob pena de infringência das garantias constitucionais do processo.
De ordem pública é o último argumento a favor do duplo grau de jurisdição.
Presta-se o processo, no Estado Democrático de Direito, à garantia de todos a uma ordem jurídica justa, salvaguarda dos direitos funda mentais, e a um processo igualmente justo, efetivador desses direitos.
Segundo Satta, o juiz monocrático é um magistrado ao qual são atribuídos poderes incontrolados, sendo o órgão colegiado, ao contrário, aquele que constitui o princípio da maioria aplicado à justiça. Como o princípio da maioria é base do processo democrático, o juízo colegiado é, a seu sentir, aquele que verdadeiramente satisfaz às exigências democráticas no plano concreto entre sujeito e autoridade[13].
Além disso, uma justiça muito rápida tende fatalmente a ser sumária e a ficar, por isso, à margem da Constituição e da democracia nela assegurada[14].
De tudo quanto se analisou a respeito do alcance e da utilidade do princípio do duplo grau de jurisdição resta a conclusão de que quanto mais se examina uma sentença, mais perfeita é a distribuição da justiça, o que equivale a dizer que o princípio não só constitui garantia fundamental de boa justiça, como se revela essencial à organização judiciária.
Talvez por todas essas razões seja acolhido pela generalidade dos sistemas processuais, pelo menos em sede infraconstitucional.
4. DISCIPLINA LEGAL
4.1. O princípio do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional
Uma vez demonstradas a importância e a indispensabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição para uma correta e eficaz distribuição da justiça, resta enfrentar o problema da necessidade ou da propriedade de sua constitucionalização.
Corrente hoje minoritária, talvez pouco afeiçoada à moderna doutrina das garantias processuais constitucionais, nega ao duplo grau de jurisdição caráter de garantia constitucional, ao argumento de que se trata de mera regra de organização judiciária, não contingente e não dependente da cláusula do devido processo legal, da qual não é elemento essencial, mas acidental.
Tal raciocínio, no entanto, não se sustenta cientificamente, por que se afasta inapelavelmente da concepção de Estado de Direito como promotor do bem comum e de Direito como projeto de justiça, volta dos ambos à consagração dos valores inerentes à condição humana.
Residindo nas garantias processuais constitucionais as condições que permitem ao processo ostentar sua feição de instrumento hábil para a concretização dos ideais sócio-político-jurídicos da nação, pela via da realização da segurança na Justiça, e sintetizando-se todas essas garantias fundamentais legitimantes do exercício da jurisdição na cláusula do devido processo legal, é forçoso relembrar seus contornos, para se proceder a uma análise concludente acerca do alcance constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição.
Conforme já se afirmou, o devido processo legal é uma garantia constitucional fundamental e característica do Estado de Direito que, contra qualquer forma de arbítrio, assegura os direitos funda mentais consagrados pela Constituição sob dois prismas: o da regularidade e justiça da elaboração legislativa e o da regularidade e justiça da elaboração judicial.
E é nessa condição de garantia das garantias constitucionais, repita-se, que o devido processo legal protege a vida, a liberdade e os bens na sua mais ampla acepção.
Ao conceito de vida corresponde, hoje, todo o complexo relativo à sua qualidade: saúde, educação, segurança, família, trabalho, alimentação, moradia, cultura, meio ambiente, turismo, lazer, consumo, bem-estar; assim como por liberdade deve entender-se seu aspecto mais abrangente, que inclui todas as manifestações próprias à dignidade humana.
Quando se alude a bem quer-se compreender na locução todo e qualquer bem da vida, corpóreo ou incorpóreo, nesta última categoria apreendida não só a noção patrimonial economicamente mensurável, mas também aquela que constitui o patrimônio emocional, intelectual e social do ser humano, os direitos que as pessoas têm sobre as coisas, sobre os produtos de seu intelecto ou contra outras pessoas.
Não é absurdo, destarte, incluir nessa categoria a decisão judicial favorável como um bem da vida desejado por qualquer dos contendores. Assim considerada, a aspiração a uma sentença favorável é bem incorpóreo protegido pela cláusula due process of law, que, por sua abrangência, admite a interpretação em seu elastério.
Da cláusula não é o duplo grau, assim, elemento acidental, mas essencial, posto que relativo à sua própria substância e essência.
Se sob esse aspecto não é difícil justificar o duplo grau de jurisdição como garantia decorrente do devido processo legal, fazê-lo com base no fundamento de condição essencial para a consecução do objetivo de pacificação social com justiça e segurança é ainda mais fácil.
De fato e de direito, consubstancia-se o devido processo legal na garantia de um processo regular, adequado e justo, que permita atingir o desiderato da efetivação dos direitos através da prestação jurisdicional. Compreendida esta como a síntese de um complexo de atos, tem-se que devam todos eles, em relação de estreita conformidade com a cláusula maior, ser regulares, adequados e justos. A garantia não se esgota, assim, na simples regularidade formal dos atos processuais, mas com ela persegue ideal muito mais meritório para o conjunto da sociedade, que é a concretização da justiça.
Atingir pelo processo o ideal de realização da justiça com segurança em cada caso concreto significa extrapolar os lindes acanhados dos interesses particulares, para se transmutar em interesse público, porque a pacificação social é elemento constitutivo do Estado de Direito, e realizá-la a contento é seu objetivo inafastável.
Ocorre, como já se examinou, que é mais provável não estarem os critérios de justiça e segurança presentes numa decisão única, comprometendo, essa ocorrência, a própria identidade do Estado de Direito quanto aos seus fins.
Um reexame da decisão torna-se, então, imperativo, e é nesses limites, de assegurar ao vencido uma única revisão da sentença que lhe foi desfavorável, que se considera o duplo grau de jurisdição como garantia de ordem constitucional diretamente derivada da cláusula do devido processo legal e, conseqüentemente, indispensável à consecução dos fins últimos do Estado pelo afastamento da possibilidade de manifestação do arbítrio.
Nesse sentido, a lição concludente de Calmon de Passos:
“Eliminar qualquer tipo de controle da decisão é, inquestionavelmente, violar a garantia do devido processo legal. É da essência do Estado de Direito existirem controles para os atos dos órgãos detentores de poder, colocando-se os da Administração Pública sob o crivo da fiscalização do Legislativo, do Judiciário e da opinião pública, mediante o processo eleitoral, num sistema de representatividade e participação; também submetido a controles políticos e jurisdicionais está o Poder Legislativo; o Judiciário, entretanto, apresenta-se quase imune a controles políticos que resultem do processo eleitoral e revelam-se bem frágeis os que sobre ele são efetiváveis pelo Legislativo e pelo Executivo. Destarte, a existência, no míni mo, de controles internos ao próprio Judiciário se mostra como indeclinável, sob pena de se desnaturar uma característica básica do Estado de direito, privilegiando-se, no seu bojo, agentes públicos que pairam acima de qualquer espécie de fiscalização ou disciplina quanto a atos concretos de exercício de poder por eles praticados”[15].
Tão evidente é esse caráter público do princípio que a Convenção de São José da Costa Rica o prevê expressamente, ainda que somente no âmbito penal, tendo o Conselho Europeu dos Direitos do Homem, em decisão de 1989, determinado que o duplo grau não fique sem proteção constitucional, evidenciando, assim, a tendência de sua universalização, ao contrário do que afirmam os pregoeiros de sua supressão.
Contudo, esteja a cláusula expressamente prevista ou não, de corre ela direta e imediatamente do devido processo legal, sendo, inegavelmente, garantia constitucional que permite o acesso à decisão justa e, conseqüentemente, à ordem jurídica justa.
Em razão disso, não se pode concordar com a tese de que sua inclusão no texto constitucional depende de uma escolha legislativa; o imperativo é, isso sim, de ordem jurídico-constitucional, imantado aos escopos do Estado e da jurisdição.
Da mesma forma, não se pode admitir a hipótese de limitação do recurso de apelação pela legislação infraconstitucional, ainda que a garantia não esteja expressa na Constituição[16]. Em qualquer circunstância, está assegurado ao jurisdicionado o alcance do duplo grau, consistente na possibilidade de uma revisão, com base nas provas e no Direito, do acerto da sentença extintiva do processo originariamente proferida.
Esse reexame, como já se afirmou, pode ser procedido por órgão jurisdicional colegiado de hierarquia igual à do prolator da decisão ou superior, porque o que se busca preservar é a segurança contida numa segunda e mais abrangente visão dos fatos, das provas e do Direito, a elaboração de um raciocínio mais completo e, portanto, mais justo.
O que não se admite é que o relator da apelação, por despacho monocrático, negue seguimento ao recurso sem que haja exame da matéria argüida pelo colegiado[17].
4.2. O tratamento constitucional do princípio no Direito comparado
A questão da constitucionalidade do princípio do duplo grau de jurisdição no Direito brasileiro perpassa, para o prudente estabeleci mento de seu alcance, por aquela outra de sua universalização, ou seja, do tratamento que recebe dos demais ordenamentos constitucionais.
Com o intuito de fixar o instituto nos exatos limites de sua importância sócio-político-jurídica é que se examina sua incidência nos mais diversos sistemas constitucionais mundiais, tomadas por parâmetros suas diferenciações em termos de concepções ideológicas, econômicas, religiosas e jurídicas.
Das mais de quarenta Constituições analisadas pôde-se depreender que a garantia do devido processo legal é recepcionada quase que unanimemente pelas ordens jurídicas de nações dos mais diversos matizes.
Está presente, por exemplo, nas Cartas Políticas da Alemanha, Angola, Uruguai, Argentina, Panamá, baque, Marrocos, Congo, Coréia do Sul, Japão, Omã, Espanha e, naturalmente, Estados Unidos.
Já a expressa previsão do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional merece atenção especial.
Ausente das Constituições da grande maioria dos países de tradição democrática, ou daqueles grandemente desenvolvidos, é maciçamente recepcionado pelas Cartas Magnas das nações recém-criadas e que, principalmente, viveram longo tempo sob regime de opressão.
Assim, o duplo grau de jurisdição encontra-se enunciado como garantia constitucional na Rússia, Chechênia, Estônia, Macedônia, Polônia, Eslovênia, Angola, Croácia e Bielorússia.
Das nações que não se incluem nesse bloco, somente Chile, Irã, Austrália, Nova Zelândia, Finlândia e Dinamarca contemplam a garantia em suas Constituições.
China e Cuba, por razões óbvias, não prevêem sequer a existência do devido processo legal, daí decorrendo a ilação de que inexiste qualquer garantia ao reexame das sentenças nesses países.
Também a grande maioria dos países cujas Constituições foram examinadas não estabelece em seu texto a competência dos tribunais, como o faz a Carta Magna brasileira, remetendo à legislação ordinária a organização de sua Justiça. Nessa categoria encontram-se Uruguai, Marrocos, Madagascar, Índia, Coréia do Sul, África do Sul, Espanha e Portugal.
Outros nem mesmo mencionam os tribunais, estabelecendo que sua criação se faz mediante leis ordinárias. Tal é o caso da Argentina, do Panamá, de Cuba, Kuwait, Taiwan e Japão.
Casos excepcionais são representados pelas Constituições australiana e irlandesa. Enquanto a primeira estabelece competência específica da High Court para apelação de todas as sentenças, a segunda prevê a figura do duplo exame no mesmo grau de jurisdição.
Da análise se dessume que pelo menos quarenta por cento das Constituições examinadas contemplam, expressamente, o direito ao reexame das sentenças.
Considerando o fato de que outros cinqüenta por cento delas adotam a cláusula do due process of law, ainda que algumas o façam com certa mitigação, é de se ver, pela amostragem, que o duplo grau de jurisdição é garantido pela maioria das nações, se não expressa, pelo menos implicitamente, por decorrência do devido processo legal.
4.3. A disciplina legislativa do princípio no Brasil
Tendo já se afirmado a natureza garantístico-constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, e verificada a tendência uni versal de cultuá-lo como tal, cumpre explicitar sua posição no quadro do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
Embora não o preveja expressamente, é a própria Carta Magna de 1988 que se encarrega de demonstrar, à evidência, que o duplo grau erige-se em garantia constitucional.
Primeiramente, porque a Constituição adota não só a dualidade de graus de jurisdição, como sua pluralidade, indicando a existência de competência recursal dos tribunais como característica da existência do direito de recorrer.
Além disso, atribui expressamente a vários órgãos colegiados competência recursal, como o faz, v. g., no art. 108, II:
“Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
II—julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição”.
Trata-se aí, evidentemente, de recurso destinado ao reexame da matéria decidida por sentença extintiva, e imaginar pudesse a Constituição Federal atribuir competência recursal para revisão de sentença de primeiro grau a alguns órgãos jurisdicionais e não a outros componentes do sistema judiciário importaria em admitir violação ao princípio da isonomia.
Diante da igualdade substancial não se pode discriminar subjetivamente, e, no caso, os litígios só se diversificam subjetivamente[18], o que implica afirma que, estando previsto o duplo grau de jurisdição para a Justiça Federal, implícita e obrigatoriamente está contemplado também para a Justiça Estadual.
Pensar de outro modo significaria avalizar comportamento legislativo discriminatório em termos de garantias processuais, o que é inadmissível. Todos aqueles que ingressam em juízo devem ter, em igualdade de condições, a possibilidade de pleitear a revisão da sentença.
Além de ter sido expressa quanto à existência do duplo grau na esfera da Justiça Federal e de ter previsto competência recursal do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal para a revisão de causas decididas em única instância por outros tribunais, a Carta Magna enunciou, no art. 125, que “Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”.
Tais princípios são os informativos da organização do sistema judiciário e da atividade processual, os quais, para atender aos propósitos nobilitantes do exercício jurisdicional, devem estar em per feita harmonia.
Pretender que seja lícito atribuir competência recursal a um órgão jurisdicional e não a outro significa estabelecer a desarmonia do sistema e comprometer suas finalidades.
Tomando-se a questão por outro prisma, vê-se que a regra do art. 125 remete a organização da Justiça Estadual à garantia do devi do processo legal, princípio escultor, como visto, de toda a regularidade do processo a ser desenvolvido perante os órgãos detentores do poder jurisdicional. Demonstrado que o princípio do duplo grau de jurisdição, ainda que não expresso, é manifestamente consectário do devido processo legal, tem-se como imanente à função de julgar a de fazê-lo em grau de recurso, pelo menos para garantir um reexame da sentença de primeiro grau.
Em outros de seus dispositivos, acentua ainda a Constituição Federal a existência autônoma, embora implícita, do duplo grau de jurisdição como garantia.
Assim é que estabelece o § 2 do art. 5
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Maior clareza, impossível. Outros princípios que se mostrem coerentes com o sistema de garantias processuais constitucionais e que se revelem indispensáveis à realização da ordem jurídico-constitucional estão incluídos de modo implícito no elenco. Acresça-se a isso o fato de que o Brasil é signatário da Convenção de São José da Costa Rica, na qual está expressamente contemplado o princípio do duplo grau, e tornar-se-á evidente a certeza de que seu status no sistema brasileiro é de garantia constitucional.
O princípio do duplo grau de jurisdição é, sob todos os aspectos já analisados, indispensável à boa administração da Justiça, objetivo do Estado, e, como tal, decorrente legítimo da garantia maior do devido processo legal. É também, portanto, garantia constitucional no preciso teor do art. 5°, § 2°, da Constituição Federal.
Nesses termos é a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem “O dispositivo em exame significa simplesmente que a Constituição brasileira ao enumerar os direitos fundamentais não pretende ser exaustiva. Por isso, além desses direitos explicitamente reconhecidos, admite existirem outros, decorrentes dos regimes e dos princípios que ela adota, os quais implicitamente reconhece”[19].
É ainda no art. 5° da Carta Política brasileira que outros argumentos podem ser encontrados para reforçar a afirmação do duplo grau de jurisdição como garantia constitucional.
Examine-se, agora, o princípio da inafastabilidade, ou do direito de ação, expresso no inciso XXXV do art. 5°, como um veto a qualquer ato legislativo que impeça o acesso à tutela jurisdicional. Seu alcance, como já se afirmou, é mais amplo do que parece, pois, além de instrumento de ativação do processo, constitui direito ao exercício da função jurisdicional, e, sendo a natureza do recurso a de procedimento em continuidade, é claro que a função jurisdicional não se esgota com o primeiro provimento.
Autoriza a garantia da inafastabiidade do controle judicial, assim, a afirmação de que o direito de recorrer é inerente ao do exercício da função jurisdicional, sendo, por isso mesmo, certeza de regularidade processual e de consecução dos objetivos da atividade jurisdicional.
Por fim, a redação do inciso LV do art. 50 permite outra ilação a favor da concretude do duplo grau como garantia constitucional, quando estabelece:
“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Nessa sede poder-se-ia até privilegiar a argumentação lingüística em detrimento da jurídica, posto que suficiente essa análise para demonstrar a intenção do legislador ao ligar, com a aditiva e, os termos meios e recursos. Quisesse igualá-los como sinônimos, o legislador constituinte teria utilizado a alternativa ou, o que implica que quis diferenciá-los pela necessidade de ser preciso.
Os dicionários tanto definem a palavra meio como recurso, método, expediente empregado para atingir determinado fim, quanto designam pela palavra recurso o meio, o expediente, a proteção, o auxilio.
Assim, enquanto o vocábulo meio é empregado no artigo no sentido de designar todos os expedientes necessários à prática dos atos processuais, a palavra recurso tem conotação menos ampla, de instrumento destinado à prática específica de determinado ato, que é o de recorrer da decisão desfavorável.
A análise jurídica do inciso, no entanto, não se torna despicienda, e permite adentrar-se no alargado sentido da ampla defesa como determinante mais da satisfação das exigências de justiça, considerada lato e stricto sensu, que da satisfação dos interesses dos litigantes. Só quando uma verdade alcança iguais possibilidades de convencimento é que está plenamente assegurada a ampla defesa[20], e isso, obviamente, pode não ocorrer antes de um segundo exame da causa, quando do prolongamento do processo pela via recursal.
Sem dúvida alguma garantia processual constitucional implícita ao sistema constitucional brasileiro, decorrente da cláusula do devido processo legal, o duplo grau de jurisdição, no que tange à esfera processual civil, é expressamente previsto pela legislação infraconstitucional através da dicção cogente do art. 513 do Código de Processo Civil, que assim estabelece: “Da sentença caberá apelação”.
Aí se encontra, sem limitações de qualquer espécie[21] e, por tanto, em toda a sua pureza, a garantia tal como deveria estar enunciada na Constituição Federal.
Ocorre que, mesmo sem previsão expressa pela Carta Magna, a característica de garantia imanente do duplo grau de jurisdição veda ao legislador infraconstitucional a possibilidade de limitação do âmbito de incidência do recurso de apelação. Nenhuma restrição, portanto, pode ser oposta à possibilidade de o sucumbente recorrer, uma vez, a outro órgão jurisdicional, de igual ou superior hierarquia, para que seja procedida à revisão da sentença.
O mesmo não acontece com as demais formas recursais, que podem não só sofrer restrições, desde que não violadoras das garantias fundamentais, como também ser suprimidas.
Quanto aos recursos constitucionalmente previstos, são intocáveis pela legislação infraconstitucional, só podendo ser suprimidos por via da emenda constitucional, sendo a restrição de seu âmbito de incidência perfeitamente discutível pela possibilidade de infringência a determinadas garantias constitucionais do processo.
Não se inclui na proteção do duplo grau de jurisdição, nem o caracteriza, o reexame necessário previsto pelo art. 475 do Código de Processo Civil.
Na verdade, nem se trata de recurso, por faltarem-lhe os pres supostos de tipicidade, voluntariedade, dialeticidade, interesse em recorrer, legitimidade, tempestividade e preparo[22].
Instituto anacrônico, cuja existência não mais se justifica, o reexame necessário das sentenças proferidas contra a União, o Estado e o Município, das que anulam o casamento e das que julgam procedente a execução de dívida ativa da Fazenda Pública infringe violentamente os princípios da isonomia e do devido processo legal, tanto ao determinar que a remessa dos autos se faça ex officio quanto ao condicionar a eficácia da sentença à revisão pelo órgão hierarquicamente superior.
4.4. Óbices à efetivação da garantia do duplo grau de jurisdição
No Brasil dos últimos tempos, tem-se creditado ao grande número de recursos interpostos junto aos tribunais a origem da crise de eficiência que assola o Poder Judiciário.
Por isso propugna-se, desde 1992, por uma ampla reforma que inclua desde a descentralização e a horizontalização da Justiça, com a criação de tribunais em cidades do interior, até a revisão do sistema recursal e a adoção da vinculação das súmulas do Supremo Tribunal Federal, via emenda constitucional, e dos demais órgãos colegiados, através da alteração da disciplina da uniformização da jurisprudência.
Atribuir à atividade recursal a culpa pela pletora de feitos judiciais e a conseqüente morosidade judicial é tentar deturpar a realidade do Poder Judiciário nacional, historicamente jungida a problemas de ordem estrutural, verdadeiros responsáveis pela crise em que se debate há anos, com evidentes reflexos sobre a credibilidade da população na Justiça.
Recente levantamento elaborado conjuntamente pelo Supremo Tribunal Federal e pela Associação dos Magistrados Brasileiros[23] deu conta da situação de penúria em que se encontra mergulhada a estrutura do Judiciário brasileiro, refletida na absurda proporção de um juiz para cada vinte e três mil habitantes.
Não bastasse esse dado alarmante, visto que a média mundial situa-se na faixa de um juiz para cada seis mil habitantes, a pesquisa revela um perfil desanimador do Judiciário. Vinte e cinco por cento dos cargos de juiz estão vagos, e para isso concorrem dois fatores igualmente graves: os jovens profissionais possuem formação acadêmica deficiente e não logram aprovação nos concursos públicos para a magistratura, o que inviabiliza o preenchimento das vagas, e os baixos salários da carreira, aliados à intensa carga de trabalho, não atraem os mais experientes. Com isso, inúmeras pequenas comarcas estão sem juiz e incontáveis Varas das Capitais e de grandes cidades contam com trabalho esporádico de juízes substitutos.
Alie-se a isso a demonstração, pela pesquisa, de que os juízes em atividade são jovens, inexperientes e não se preocupam em in vestir na formação pessoal, e tem-se instalada a situação de caos.
E, nessas circunstâncias, o que costuma acontecer no País é a proposta de soluções que, em vez de afrontarem as reais causas desencadeadoras da problemática detectada, buscam caminhos tortuosos que, via de regra, levam à infringência de algum postulado constitucional, em detrimento dos direitos dos cidadãos.
Não residem no acesso dos jurisdicionados os problemas da Justiça brasileira; são eles, antes, reflexo do descaso para com a questão fundamental da distribuição da Justiça, e, portanto, estruturais.
Resolvê-los é só uma questão de vontade política, tal qual a de rever o percentual de um por cento do orçamento-geral da União destinado ao Poder Judiciário, de criar tantas Varas quantas sejam necessárias para atender de maneira racional e eficiente ao objetivo de prestação da Justiça, de multiplicar o número dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, de tomar atraente a carreira para os profissionais mais experientes, de descentralizar a atividade de segundo grau, de transformar o Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional, entre outras do mesmo jaez.
Tais soluções, no entanto, se alvitradas, nunca são implementadas. Outras, porém, que acabam por impedir o acesso da população à jurisdição, merecem atenção toda especial e implementação expedita.
Dezenas de ações legislativas e administrativas nesse sentido poderiam ser elencadas; contudo, como o tema do presente trabalho cinge-se aos problemas ligados à atividade recursal, é mister delimitar os entraves postos à plena efetivação da garantia do duplo grau de jurisdição em nosso país como sinal de alerta para a incorreta definição de rumos que vêm tomando as tentativas de solução da crise do Judiciário nesse particular.
Três graves questões podem, então, ser analisadas: a do preparo prévio, a do despreparo da maioria dos juízes para o exercício de sua função e a da sumulação vinculante.
O preparo prévio é considerado como requisito extrínseco de admissibilidade recursal; constitui o pagamento de quantia determinada por cada Estado da Federação, a título de custas, para processamento do recurso. Estando ausente o preparo, o recurso é considerado deserto e não é conhecido.
Como o recorrente tem que demonstrar, no momento da interposição, o pagamento do preparo, por meio da guia autentica da, vigora a regra do preparo imediato com efeito de preclusão consumativa no direito processual civil brasileiro, exceção feita à Justiça Federal, para a qual vigora regra especial consistente no preparo efetuado até cinco dias a contar da interposição do recurso.
Colocada à parte a questão de que a Justiça, uma vez pública, deveria fornecer gratuitamente seus serviços, como acontece em vários países, centra-se a atenção sobre o valor atribuído às custas relativas ao preparo.
Em determinados Estados da Federação, o valor abusivo, porque alheio a qualquer critério lógico de determinação, torna-se proibitivo da intenção de recorrer. O Estado de Minas Gerais, v. g., editou, em 30 de dezembro de 1997, a Lei n. 12.729, que autorizava aumento extraordinário do valor das taxas judiciárias, tomada como base de cálculo a mesma utilizada para os impostos, o que é vedado pela Constituição Federal. Interposta ação direta de inconstitucionalidade pelo Conselho Federal da OAB, concedeu o ministro relator, seis meses depois, medida liminar suspensiva dos efeitos da lei, com invocação de infringência ao art. 5 da Constituição. Nesse período, contudo, boa parte da população mineira viu-se privada do acesso à Justiça, seja para postular, seja para recorrer. Situação semelhante ocorreu, à mesma época, no Estado da Paraíba, com igual desfecho.
No campo da administração da Justiça pela União, a situação não é diferente. Embora a especialidade da Justiça do Trabalho fuja do âmbito da presente análise, é tentador não deixar passar ao largo a constatação de que nela o recorrente deve depositar, a título de preparo, o valor da condenação ou, sendo este muito alto, uma cifra igualmente impeditiva da interposição do recurso ordinário.
Quanto às razões que levam o Estado, promotor da paz social pelo exercício da jurisdição, a atribuir às custas judiciais valores absurdos, não condizentes nem com a realidade socioeconômica da população, nem com os nobres objetivos da Justiça, só se pode conjecturar que ou a intenção é cercear o acesso à atividade recursal, ou o objetivo é travestir a atividade judicial em arrecadadora.
Qualquer das hipóteses que seja a real leva à violação de garantias constitucionais, visto que tolhem o acesso à Justiça e impedem o regular desenvolvimento do processo.
Segundo óbice a ser analisado, o despreparo dos juízes de primeiro grau para o exercício de sua importantíssima função pode resultar em duas conseqüências igualmente graves: a incorreção da decisão e a instalação do autoritarismo.
Ambos os problemas são recorrentes no cotidiano da Justiça brasileira. Decisões mal formuladas, resultado de instruções malfeitas; desatenção à supremacia da norma constitucional; desconheci mento das modernas vertentes do pensamento jurídico; despotismo na condução do processo e no tratamento das partes e dos advoga dos, numa manifestação de subversão da autoridade.
A evidência que se tentava ocultar vem agora à tona, com a divulgação do levantamento a que se aludiu. A maioria dos juízes brasileiros encontra-se verdadeiramente despreparada para a função, como já há muito se percebia, e, o que é pior, não demonstra intenção de adequar-se às necessidades reclamadas. O levantamento, aliás, revelou o dado alarmante de que a maioria dos juízes de primeiro grau entende deva ser dispensável a atuação dos advoga dos no processo, o que revela sua pouca disposição democrática e a insensibilidade para a real função do processo.
Resulta a combinação do despreparo com o autoritarismo numa arma infalível contra o postulado do devido processo legal, porque, inevitavelmente, provoca as situações de injustiça que ele busca evitar.
Veja-se, por fim, a proposta de introdução da figura da vinculação das decisões no Brasil.
Emenda constitucional de início abrangente, que atribuía poder vinculante a todos os tribunais, reduziu-se, após intenso debate nacional, na vinculação das súmulas do Tribunal Federal. O Projeto de Lei n. 3.804/93, que prevê a alteração dos arts. 478 e 479 do Código de Processo Civil, depois de considerado inconstitucional pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara dos Deputa dos, em 1994, renasceu das cinzas e volta à cena das discussões.
Justificadas pela avalanche de recursos que sufoca os membros dos tribunais, as medidas mascaram uma realidade que tem por vilão o próprio Estado, responsável por setenta por cento dos recursos interpostos.
Seus efeitos perversos, contudo, dirigem-se à ordem jurídico- constitucional e ao jurisdicionado; são, por isso, inconstitucionais.
Negam o sistema sobre o qual se apóia a ordem jurídica nacional, na medida em que a subsunção dos fatos passa a fazer-se à súmula, e não à lei; violam o princípio da separação dos Poderes, dado que a súmula com poder vinculativo das decisões de hierarquia inferior assume feição de prescrição normativa; acarretam a perda das garantias fundamentais do direito de ação, do direito de impugnação, do acesso à Justiça, do princípio da motivação e do duplo grau de jurisdição; e contribuem para que o Judiciário se amesquinhe e involua pela imobilização do pensamento e pelo impedimento do processo jurídico.
Apontados os principais obstáculos hoje detectados em desfavor da efetivação da garantia do duplo grau de jurisdição, é deprimente constatar que todos eles têm sua gênese no próprio Estado, que, por missão, vocação e dever, há de proporcionar à população Justiça da melhor qualidade, como forma de garantir seus mais altos valores.
CONCLUSÕES
1. O ser humano é a medida de todas as coisas, regendo-se a vida humana pela pauta axiológica gerada pelas consciências individual e coletiva ao longo da história; conseqüentemente, é na realização dessa pauta que devem situar-se os mais altos fins do Estado e do Direito.
2. Consubstanciam-se a missão precípua do Estado de Direito, consistente na promoção do bem comum com desenvolvimento integral da personalidade humana, e seu dever de assegurar a ampla liberdade individual com igualdade de oportunidades na prática da Justiça por meio do exercício do poder, exigindo a adoção da supremacia do Direito pelo primado da Constituição, do culto à Justiça e da instituição do Poder Judiciário como guardião da Lei Maior e dos valores e garantias por ela enunciados.
3. O Direito, concebido como projeto, e não como gerador de Justiça absoluta ou perfeita, é o meio adequado para a efetivação do modelo estatal, sendo o processo o instrumento realizador da ordem jurídica justa, mediante a garantia na preservação da autoridade do ordenamento jurídico, no cumprimento do direito objetivo material e no favorecimento da paz social.
4. O processo deve ser apto a cumprir integralmente sua função, atingindo em toda a plenitude os seus escopos institucionais, ao garantir a todos o acesso à ordem jurídica e à tutela jurisdicional justas.
5. O duplo grau de jurisdição consubstancia-se na necessidade de um segundo exame que permita a correção de erros e o supri mento de lacunas, com vistas à garantia do direito em jogo, não importando que o reexame seja feito por órgão jurisdicional colegiado de hierarquia igual ou superior à do prolator da sentença.
6. O duplo grau de jurisdição é garantia fundamental de boa justiça e essencial à organização judiciária, porque são maiores as probabilidades de atingimento do ideal de uma correta e eficaz distribuição da Justiça quando a causa é mais detidamente examinada.
7. Esteja o duplo grau expressamente previsto ou não, decorre ele direta e imediatamente do devido processo legal, porque a aspiração a sentença favorável é bem incorpóreo protegido pela cláusula due process of law, que, por sua abrangência, admite a interpretação em seu elastério.
8. Somente às sentenças terminativas ou definitivas aplica-se o duplo grau de jurisdição como garantia, sendo suficientes dois graus de exame para assegurar o máximo de probabilidade de Justiça e segurança da decisão.
9. Descabe a limitação do recurso de apelação pela legislação infraconstitucional, ainda que a garantia não esteja expressa na Constituição. Em qualquer circunstância, está assegurado ao jurisdicionado o alcance do duplo grau, consistente na possibilidade de uma revi são, com base nas provas e no Direito, do acerto da sentença extintiva do processo originariamente proferida.
10. Os principais óbices à efetivação da garantia do duplo grau de jurisdição, no Brasil, encontram-se na atuação do Estado, que não provê suficientemente a estrutura judiciária e onera os jurisdicionados com o elevado custo do preparo recursal.
11. A adoção da vinculação das súmulas representa, sem dúvida alguma, um atentado contra a garantia do duplo grau de jurisdição.
Informações Sobre o Autor
Thicianna da Costa Porto Araujo
Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes; Oficiala de Promotoria I do Ministério Público do Estado da Paraíba; Juíza Conciliadora da Justiça Federal na Paraíba, subsecção Campina Grande