1- Exposição
A doutrina perfilhada no Estatuto, de
Proteção Integral, em conformidade aliás, com a
Convenção sobre os direitos da criança, adotada pela ONU e subscrita pelo
Governo Brasileiro em 26 de janeiro de 1990 ( texto aprovado pelo Decreto
Legislativo nº 28 14.09.90 e promulgado pelo Decreto
Executivo nº 99.710, de 20.1190), nos traduz que a
criança e o adolescente sempre terão a prioridade.
Criança e adolescente sempre uma
prioridade, é sem dúvida alguma um tema sempre atual.
O espírito norteador do Estatuto da
Criança e do Adolescente, pulverizou a malfadada
‘doutrina da situação irregular’. Como muitos fazem a
analogia, o Estatuto da Criança e do adolescente está para o século XXI como a
lei Áurea esteve para o século atual. Não deixa de ser uma lei civilizatória.
Entretanto, aos 13 dias do mês de julho
próximo passado o Estatuto fez 10 anos, restando a
reflexão: O que mudou? Será que cada um de nós, membros do Ministério Público,
da Magistratura, advogados, ONGs.
e sociedade em geral, temos cumprido o nosso papel? Em nossa Comarca já
podemos contar com os Conselhos de Direitos e Tutelar?
Temos estabelecimentos adequados para cumprimento de medida sócio educativa?
Devemos manter acesa em todos nós a
chama que deu vida ao Estatuto. A luta dos movimentos populares, de juristas e
técnicos de várias instituições não foi em vão, pois através desta lei,
crianças e adolescentes conquistaram a condição de sujeitos de direito, de
pessoa em desenvolvimento e de prioridade absoluta.
Parece que a exemplo da lei Áurea, cujo
impulso abolicionista parou na libertação jurídica dos escravos, já que à
imensa maioria deles e de seus descendentes não foram garantidos os meios
indispensáveis ao exercício da cidadania: o acesso à
terra, à educação, à profissionalização, à moradia digna, à cultura etc, o quadro atual de nossos adolescentes empobrecidos,
tem muito a ver com essa “abolição incompleta”. Os rostos dos meninos jogados
nas ruas de nossas cidades, nos internatos-prisões,
nas jaulas das Delegacias, nas prisões para meninos e nas
penitenciária e prostíbulos de todo o país.
É evidente a clareza da ruptura do
Estatuto com toda a tradição legislativa latino-americana sobre a matéria.
Mas será que progredimos? Onde
progredimos?
Quem pretende transitar com segurança
pela seara da criança e do adolescente deverá ter sempre presente o princípio
maior insculpido no dispositivo 1º da Lei nº
8.069/90, pois no aludido dispositivo floresce toda a doutrina de proteção integral- concepção do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Carta Magna assegurou. E está expresso no Art. 227 da Constituição Federal.
O “caput” do Art. 227 concretiza
e expressa essa postura do movimento social e do legislador constituinte,
quando estabelece que:
“É dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança e ao adolescente, com ABSOLUTA PRIORIDADE, o
direito:
– à vida,
– à saúde,
– à alimentação
– à educação
– ao lazer
– à profissionalização
– à cultura
– à dignidade
– ao respeito
– à liberdade
– à convivência familiar e comunitária
Além de colocá-los à
salvo de toda forma de:
DEFESA DE DIREITOS ( Proteção
especial)
– negligência
– discriminação
– exploração
– violência
– crueldade
– e opressão”
O § 3º do supra
citado artigo ainda assegura:
“O direito a
proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
omissis
obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de
liberdade
Vemos que mais de dez anos depois, após
revogar o velho paradigma, representado pelas leis nº
4.513/64 ( Política Nacional de Bem- Estar do Menor) e
nº 6.697/79 ( Código de Menores) o Estatuto, que
criou condições legais para que se desencadeasse uma verdadeira revolução,
tanto na formulação das políticas públicas para a infância e juventude como na
estrutura e funcionamento dos organismo que atuam na área, deixa muito a
desejar.
Ao início de mais um milênio,
observa-se que o homem pouco avançou no conhecimento de suas origens e de seu
destino, não evitando o desencadeamento de uma violência e de uma insegurança
nunca dantes conhecidas.
Vê-se um abalo constante dos padrões da
justiça, revelado na atual realidade penitenciária, tipicamente criminalizante, no contexto de um sistema arcaico propício
para a internalização dos apodrecidos valores da vida
carcerária, sempre a fomentar, dia a dia, malefícios que, na teoria se propõe a
evitar.
É chegado o início do novo século e
nenhum país pôde mostrar, com clareza, que conseguiu resolver os problemas da
prisão, com ou sem ela. Sair da prisão é sempre encontrar a possibilidade de
abandonar um processo de morte por outro de vida.
Se a ciência penal não souber recuperar
o seu prestígio, ela jamais conseguirá eficiência para atingir o ideal expresso
na bela lição de Nelson Hungria, que bradou por um “Direito Penal caminhando
para o chão do átrio, onde ecoa o rumor das ruas, o vozeio da multidão, o
estrépito da vida, o fragor do mundo, o bramido da tragédia humana”.
Infelizmente mesmo ao final de mais um
século ainda não é possível afirmar com tranqüilidade se algum dia a humanidade
chegará à perfeição que lhe permita abolir a prisão. De qualquer modo, o fato é
que não podemos passar sem ela. A quem pretenda infringir a lei é preciso
oferecer um contra estímulo, um motivo para não fazê-lo.
O espetáculo é deprimente, pois enviuva a esposa de marido combalido, orfana
filhos de pai vivo, desadapta o encarcerado à
sociedade, suscita graves conflitos sexuais; onera o Estado; amontoa seres
humanos em jaulas sujas úmidas, onde vegetam em olímpica promiscuidade.
É a realidade. O fato é que não há
privação de liberdade feliz. Ela não permite nenhuma modificação interior, não
permite equilíbrio entre corpo e espírito, em ambiente de intensa carga
negativa onde as pessoas estão sempre mostrando dor e sofrimento, na batalha
diária da sobrevivência.
A privação de liberdade continua a
procurar um futuro novo capaz de viabilizar medidas práticas na sua execução
penal que correspondam aos anseios da reinserção
social e moral. Tamanhas dificuldades indicam ser imprescindível a determinação de se levar a termo a execução de medidas
sócio educativa, reservando a privação de liberdade aos casos em que o infrator
represente perigo concreto e contínuo à tranqüilidade social.
O propósito maior deve ser o banimento
da promiscuidade, a fim de que o adolescente tenha suporte para alimentar o
amor à sua própria dignidade, preparando o futuro para, em liberdade, prover
com honradez e autonomia sua subsistência.
É necessário que arregacemos as mangas
e partamos à luta. É necessário que todos nós, que trabalhamos diretamente com
os jovens, possamos dar nossa parcela de contribuição e façamos assegurar pelo
menos à garantia à convivência familiar e comunitária.
É necessário que haja a mudança de
mentalidade e possamos incentivar a aplicação de outras
medidas sócio educativas, priorizando as de regime aberto.
A medida de Privação de Liberdade é a última das medidas sócio educativas previstas no Estatuto.
Devemos priorizar as demais.
1.1 – Doutrina da proteção integral
O Povo brasileiro consciente de que a criança e o adolescente constitui-se seu maior patrimônio
garantiu-lhe a proteção integral.
A solução para os problemas da infância
e da juventude deixou de ser tarefa exclusiva dos poderes públicos e passou a
ser responsabilidade da família, da sociedade e por fim do Estado.
1.2 – Prioridade absoluta
O Art. 4º do estatuto
praticamente transcreve o Art. 227 da Constituição Federal, que determina que
primeiro a família e, supletivamente o estado e a sociedade, têm o dever de
assegurar, por todos os meios, de todas as formas e com absoluta prioridade,
todos os direitos inerentes à constituição de um ser humano.
Por absoluta prioridade, devemos
entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na
escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro devem ser
atendidos todas as necessidades das crianças e adolescentes, por serem o maior
patrimônio de um povo.
Por absoluta prioridade, entende-se que
na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos de
saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e
trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir
praças, sambódromos, monumentos artísticos etc. porque a vida, a saúde, o lar,
a prevenção de doenças são mais importantes do que as obras de concreto que
ficam para demonstrar o poder dos governantes”( Wilson Donizete Liberati,
1991).
1.3 – Mecanismos de Exigibilidade
O Estatuto também indica os mecanismos
de sua exigibilidade. Desta feita a “garantia de prioridade” compreendida no
parágrafo único do Art. 4º será promovida e fiscalizada pelo Ministério
Público, nos termos de suas funções institucionais, gravadas no inciso II do
artigo 129 da Constituição Federal.
Não se pode restringir o empenho dos
Representantes do Ministério Público em defesa dessa proteção universal a
determinadas situações.
O Ilustrado Hugo Nigri
Mazilli adverte:
“Cumpre deixar claro, posto
óbvio, não é apenas o Promotor da Justiça da Infância e da Juventude o único
Órgão do Ministério Público que zela direitos e
interesses ligados à proteção dos menores. O Promotor criminal, o Curador de
família, o curador dos incapazes, o Procurador de justiça, enfim, toda a
Instituição, na forma e nos limites da lei local de organização do Ministério
Público, está investida na proteção da infância e juventude”( in revista de
Informação legislativa- Senado Federal, Brasília, 1997, n.114, pag. 176) .
1.4 – Cometimento de ato infracional
Não obstante o Estatuto prevê a
doutrina de proteção de integral, isto não quer dizer que o adolescente autor
de um ato antijurídico não será responsabilizado.
O Estatuto considera ato infracional a
conduta descrita como crime ou contravenção penal (Art. 103)
Ao cometimento de tais infrações,
descritas no Estatuto como Ato Infracional,
corresponde a aplicação da competente medida sócio
educativa, previstas no Art. 112 do Estatuto.
Assim temos as
seguintes medidas sócio educativas:
– Advertência;
– obrigação de reparar o dano;
– prestação de serviços à comunidade
– liberdade assistida
– inserção em regime de semiliberdade;
– internação em estabelecimento
educacional;
– qualquer uma das previstas no Art.
101, I a VI.
A medida a ser aplicada ao adolescente
levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade
da infração.
A medida sócio educativa além de proteger o infrator, com a
assistência psicológica e social tem por objetivo reverter o seu potencial criminógeno para que venha a se tornar um cidadão útil e
integrado à sociedade.
O Estatuto impõe o período máximo de
internação de três anos, aos adolescentes autores de infração penal, só podendo
ser aplicado no entanto, quando tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a
pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves, ou por
descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
Entretanto, não é o que se observa.
Temos uma tendência muito grande a aplicar unicamente a
última medida prevista, a de privação de liberdade.
E o resultado é o que nossos jornais e
televisão mostram todos os dias. Fugas e motins tornaram-se fatos corriqueiros
do cotidiano.
Muitos adolescentes, que praticam ato infracional sem graves conseqüências estão misturados com
outros mais perigosos e “escolados”, favorecendo assim, uma maior troca de
experiências negativas.
A situação é mais preocupante ainda,
quando se vê que nestes estabelecimentos, que deveriam zelar pelo
desenvolvimento potencial do adolescente, observa-se um sem número de
adolescentes aglomerados, num mesmo ambiente, sem qualquer divisão em razão do
ato infracional cometido.
Por essa razão é que defendemos a tese,
de que devemos disseminar e propagar, que os adolescentes respondem sim por
seus atos, e que verificada a prática de ato infracional,
poderão ser aplicadas qualquer uma das medidas sócio
educativas previstas no Art. 112, na proporção em que são colocadas,
preferindo-se as em regime aberto.
É necessário que
comecemos a tratar o adolescente no próprio meio natural, evitando a
internação, condenada pelos males que acarreta, como o hospitalismo,
a avitaminose efetiva e a propensão para a delinqüência.
1.5 – A liberdade assistida como proposta
A liberdade assistida proveio da probation, instituto anglo- americano,
cuja aplicação é enfaticamente preconizada pela ONU, e já plenamente aceita
pela legislação comparada, inclusive pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
no artigo 118.
O instituto foi disciplinado pelo
Código Melo Matos, com a denominação de liberdade vigiada, nos artigos 92 a 100. O Código de 1979 a denominou liberdade
assistida, no artigo 38. Previu a aplicação da medida nos casos do menor com
desvio de conduta e autor de infração penal.
No Estatuto da Criança e do Adolescente
em vigor foi mantida a mesma denominação. Trata-se da medida sócio-educativa
prevista no artigo 112, item IV.
O artigo 118 do ECA
dispõe:
“A liberdade assistida será adotada
sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar,
auxiliar e orientar o adolescente”.
A Liberdade assistida é uma das
modalidades de tratamento em meio livre e consiste na colocação do adolescente
no seu meio natural, sem afastá-lo do lar, da escola e do trabalho, sob a
supervisão do orientador qualificado.
Trata-se de medida aplicada na decisão
final, após rigoroso contraditório, assegurando-se a ampla defesa. Pode da mesma forma ser aplicada, quando ao adolescente for
concedida a remissão.
É considerada como peça fundamental na
reeducação do adolescente autor de ato infracional.
1.5.1 – Objetivos da liberdade assistida
O objetivo da liberdade assistida é a
reeducação do adolescente e sua reinserção social.
Visando o bem estar do adolescente, como uma alternativa do regime fechado, proteção
da comunidade e contribuição para o aprimoramento da administração de proteção
integral consagrada pelo Estatuto.
Permite assim, que o adolescente,
durante o cumprimento da medida sócio educativa de liberdade assistida
permaneça na comunidade, sem se afastar da família, do trabalho e da escola.
Outro objetivo fundamental, o da
prevenção especial, consiste em eliminar ou reduzir as possibilidades da
reincidência, procurando-se impedir a repetição da conduta anti-social.
Entretanto, a fim de que o valor seja
frutífero deve-se levar em conta o pessoal especializado, que seleciona e
assiste o adolescente. A medida terá que ser precedida de observação. Para seu
sucesso, dependerá de serviço especializado para o estudo do caso; metodologia
de supervisão; organização técnica do mecanismo de aplicação; e designação do
agente de prova devidamente qualificado.
Na liberdade assistida o adolescente é
posto sob o controle e seguimento de “Pessoa capacitada para acompanhar o caso,
a qual poderá ser recomendada por entidade ou programa de atendimento” (art.
118, § 1º do ECA), ou seja, por assistente
social, educador especializado, pessoa ligada a um dos conselhos previstos pelo
Estatuto ou pessoa da comunidade, com formação qualificada, investida da
particular função de educação ou reeducação, mas sob a autoridade do Juiz da
Infância e da Juventude.
2. Conclusão
No plano científico cabe à regra
jurídica disciplinar o processo de reeducação e reinserção
social, para garantia dos direitos da pessoa humana do adolescente, da família
e da comunidade. Na dimensão organizacional, incumbe-lhe
regular, além da metodologia da aplicação da liberdade assistida, a seleção do
pessoal, sua admissão, carreira e realização de cursos de formação contínua,
desde o ingresso até a promoção ou ascensão funcional.
É imperioso concluir:
Em face dos princípios norteadores do
Estatuto da criança e do adolescente, assegurados na Constituição Federal, o
Membro do Ministério Público, o Magistrado, advogados, Defensores Públicos e a
sociedade, devem zelar para que seja assegurado ao adolescente infrator o
direito a convivência familiar e comunitária;
Dentre as medidas previstas no ECA, por ter sido demonstrada na prática a mais eficiente
à ressocialização do adolescente autor de ato infracional o Promotor da Infância e da Juventude deve dar
ênfase a aplicação da medida sócio educativa de liberdade assistida.
O Membro do Ministério Público, como
fiscal da Lei, deve zelar pelo cumprimento de todos os direitos assegurados ao
adolescente e impostos como obrigação do estado, a fim de que possa propiciar o
sucesso da medida sócio educativa.
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Notas
1 Trabalho acerca do tema foi
apresentado pela autora, na oficina de teses, durante o 18º Congresso
da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e da Juventude
realizado em Gramado
Informações Sobre o Autor
Elaine Castelo Branco Souza
Promotor de Justiça da Infância e da Juventude de Marabá/PA