Democracia e socialismo

Resumo: O presente artigo tem por escopo a análise da democracia, como forma de governo, e a compatibilidade do sistema econômico denominado socialismo com um governo democrático. Demonstrar-se-á as variadas definições de democracia, assim como se fará uma breve exposição acerca do socialismo/comunismo de Marx e Engels. Serão apresentadas algumas críticas, tanto ao sistema capitalista, como ao socialista, concluindo-se que um país só poderá ser verdadeiramente democrático com uma economia socialista, ainda que de árdua e quimérica efetivação.


Palavras-chave: Democracia – socialismo – capitalismo – governo – economia.


Sumário: 1 – Introdução 2 – Democracia 3 – Democracia e socialismo 4 – Conclusão


Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos. (Karl Marx e Friedrich Engels)


Introdução


Passados os surtos autoritários, que contaram com apoio popular em diversos países no século passado, a democracia estabilizou-se, pelo consenso quase unânime, como a melhor forma de governo.


Embora detidos em uma análise da democracia na América Latina, Marcelo Cavarozzi et al. fazem uma afirmação categórica que abarca todo o mundo: “atualmente não há nenhum modelo ideológico internacional alternativo para a democracia”[1].


De fato, lembram os autores, os modelos alternativos como o fundamentalismo islâmico, o autoritarismo asiático e o modelo “revolucionário” cubano, ou fracassaram ou são de insuficiente repercussão. Hoje há organizações internacionais e forças sociais, bem como organizações não-governamentais – ONGs – e mesmo ações dos Estados e organizações intergovernamentais – vide cláusulas democráticas no Mercosul e na OEA – que promovem a democracia.


Percebe-se, assim, que há uma coalizão mundial em defesa da democracia.


Quanto aos sistemas econômicos, todavia, a situação não é a mesma. Os clássicos sistemas rivais, capitalismo e socialismo, ainda hoje disputam adeptos, procurando os teóricos seguidores de um e outro mostrar as qualidades e as vantagens da adoção daquele de sua preferência.


Mas como a democracia é universalmente aceita, para que possam angariar seguidores, os defensores desses sistemas econômicos têm por principal tarefa convencê-los de que tal ou qual sistema favorece-a com vantagem sobre o outro.


Esse trabalho tem por objetivo procurar demonstrar que o socialismo é compatível com a democracia e que pode constituir uma alternativa viável e superior ao capitalismo nos dias de hoje, em que pese o fracasso do modelo adotado no passado, muito embora seu sucesso conte com o ceticismo de muitos cientistas políticos e economistas.


Democracia


O estudioso do tema deparar-se-á com diversos conceitos de democracia. Em Kelsen[2], é definida como a síntese dos princípios da liberdade, vista como autodeterminação política do indivíduo, e da igualdade, pressupondo, modernamente, a liberdade religiosa, de opinião, de expressão e de ciência, como consectárias do pensamento liberal.


Robert Dahl[3] afirma que a característica principal da democracia é a “contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais”, ressaltando, ainda, a importância da possibilidade de existência de rivalidade entre governo e oposição.


Dahl enumera os requisitos para que um governo mantenha essa qualidade de responsividade a todos os cidadãos igualmente, que, para tanto, devem ter plenas oportunidades de formular suas preferências (constituídas por: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; direito de líderes políticos disputarem apoio e fontes alternativas de informação), de expressar suas preferências a seus pares e ao governo, individual ou coletivamente (através das seguintes garantias institucionais: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos políticos; direito de líderes políticos disputarem apoio; fontes alternativas de informação e eleições livres) e de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo (por meio das garantias de: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e votos; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas e instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência).


Todavia, por acreditar que tal sistema não existe no mundo real plenamente, o autor prefere designar de poliarquia os sistemas, fáticos e observáveis, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública.


Marcelo Cavarozzi et al.[4] destacam que a democracia não é um tipo de sociedade, mas um tipo de regime político, consubstanciado pela observância a certos princípios éticos e mecanismos específicos como o sufrágio universal, as leis, os direitos humanos, a alternação de poder, o pluralismo ideológico e político e a desconcentração do poder. Definem regime político como aquele que descreve padrões institucionais de governança, estabelecendo como a sociedade se relaciona com o Estado e de que maneira as demandas e os conflitos sociais são processados.


Joseph Schumpeter[5] ressalta a dificuldade de se chegar a um conceito de democracia, haja vista a fórmula “governo do povo” comportar diversas interpretações. A definição de povo é variante, abarcando situações em que há a exclusão dos escravos, das mulheres, dos loucos, dos menores, entre outros. Por outro lado, a forma como procede qualquer governo é difícil de ser explicada, porque até mesmo um monarca ou um ditador podem governar em obediência à vontade do povo, ao menos em alguns pontos.


Sem embargo, outra dificuldade para a adoção da definição “governo do povo” se avulta, desta feita, de ordem técnica: como é possível, na prática, o povo governar?


Como numa sociedade complexa a democracia direta é inviável, desenvolveu-se o conceito de governo aprovado pelo povo. Há que se atentar, no entanto, que muitos governos ditatoriais contam com o apoio de ampla maioria da população, não podendo, pois, esse critério, servir de discrímen.


Havendo infinitas formas pelas quais o governo aprovado pelo povo pode ser exercido, afirma, qualquer definição do termo governar que se pretenda exclusiva será arbitrária.


Por fim, Schumpeter enfatiza que a democracia, como método político, deve ser defendida independentemente das decisões que sob ela são tomadas em determinado período histórico. Como método, não produz sempre os mesmos resultados, nem promove os mesmos interesses ou ideais, em diferentes períodos e regiões.


Já Juan E. Méndez et al.[6] enfocam um conceito de democracia que leva em conta a questão social. Afirmam que os autores que adotam uma definição estritamente política, considerariam democrático um país em que são realizadas eleições periodicamente, de forma competitiva, das quais os indivíduos podem participar, inclusive através de partidos políticos, onde há liberdade de expressão, com uma imprensa razoavelmente livre, etc, mas que apresenta uma vasta pobreza e um grau de desigualdade assustador. Essa é a visão da democracia como um tipo de regime político, que independe das características do Estado e da sociedade.


Por outro lado, aqueles que vêem a democracia como um atributo sistêmico, irrealizável sem um determinado grau de igualdade socioeconômica, ou sem uma organização política e social orientada para esse fim, certamente qualificariam esse país de não democrático.


Alertam, todavia, para o perigo do conceito social, que pode favorecer o autoritarismo, visto que, desse ângulo, nenhum país é verdadeiramente democrático. Ressalta, porém, que o componente politicista, baseado unicamente no regime, é necessário, mas insuficiente para uma definição adequada de democracia.


Sobrelevam, então, ainda segundo Juan E. Méndez et al., para o conceito de democracia, certos aspectos da igualdade entre indivíduos considerados como pessoas legais, como cidadãos, no sentido de serem portadores de direitos e obrigações, por pertencerem a uma comunidade política e por lhes ser atribuído um grau de autonomia pessoal e, pois, de responsabilidade por seus atos.


 De fato, se, numa situação de pobreza extrema, os cidadãos não são efetivamente livres para exercerem suas autonomias, não se pode dizer que vivem em uma democracia, e nem mesmo que sejam cidadãos, pois não bastam os direitos políticos, o indivíduo deve poder exercer seus direitos civis.


“Se a privação de capacidades decorrente da pobreza extrema significa que muitos enfrentam enormes dificuldades para exercer sua autonomia em muitas esferas de sua vida, parece haver algo errado, em termos tanto morais quanto empíricos, na proposição de que a democracia não tem nada a ver com esses obstáculos socialmente determinados. Em realidade, dizer que ela não tem nada a ver é muito forte: os autores que aceitam uma definição baseada no regime advertem com freqüência que, se essas misérias não forem enfrentadas de algum modo, a democracia, mesmo numa definição estreita, estará ameaçada. Esse é um argumento prático, sujeito a testes empíricos que, de fato, mostram que as sociedades mais pobres e/ou mais desigualitárias têm menor probabilidade de ter poliarquias duradouras.”[7] 


Daí a correlação feita por Boaventura de Sousa Santos[8] entre direitos humanos de baixa intensidade e democracia de baixa intensidade, único binômio possibilitado e tolerado pelo capitalismo.


Nessa mesma toada, Ellen Meiksins Wood[9] afirma que as concepções modernas de democracia procuram confundir ação política com cidadania passiva, despolitizando a política.


Ensina que a origem da palavra expressava um governo dos pobres trabalhadores, que, constituindo a maioria, sujeitavam a elite. A ênfase era dada à cidadania ativa e seu enfoque sobre a distribuição do poder de classe.


As diversas lutas populares no decorrer da história fizerem com que à elite não restasse outra saída que não a atribuição de direitos políticos à classe trabalhadora. Mas para que isso fosse possível, ao invés de correrem o risco de intitularem-se antidemocráticos, promoveram algumas mudanças no conceito histórico de democracia, com o que a universalização dos direitos políticos não afetou sobremaneira a classe dominante. Essa alteração deu-se fundamentalmente com a separação entre poder político e poder econômico, antes completamente interdependentes. De fato, os capitalistas não mais necessitam do poder do Estado, já que os trabalhadores são obrigados a vender-lhes sua força em troca do salário. Esse processo não está sujeito ao controle democrático ou à prestação de contas.


“Los padres fundadores de EE.UU. redefinieron la democracia. Efectivamente, redefinieron sus dos componentes esenciales – el demos o pueblo y el kratos o poder. El demos perdió su significado de clase y se convirtió en una categoría política antes que social. Y el kratos fue compatibilizado com la alienación del poder popular; es decir, fue convertido en lo opuesto a lo que significaba para los antiguos atenienses.”[10]


Nessa “democracia representativa” que criaram, o voto individual substitui qualquer tipo de poder coletivo; o demos ateniense se torna uma massa de indivíduos isolados, com uma identidade política discrepante de suas condições sociais.


As mutações no conceito de democracia são contínuas. No século XIX, ainda segundo Ellen M. Wood, a democracia significou uma ampliação dos princípios constitucionais, ao invés de buscar-se uma ampliação do poder popular. O foco era a limitação do poder político, a proteção contra a tirania e a liberdade individual frente ao Estado. Não se pensava mais na disputa entre ricos e pobres, classe exploradora e classe explorada.


Desde a 2ª Grande Guerra, as sociedades capitalistas avançadas têm agregado uma nova dimensão à idéia de democracia, sob a forma de assistência social – uma espécie de “cidadania social”. A autora critica essa tendência, que, visando a corrigir os males causados pelo capitalismo, assenta, mais uma vez, apenas direitos passivos.


Democracia e socialismo


Em “O Manifesto Comunista”[11], Marx e Engels afirmam que o Executivo no Estado moderno serve apenas para gerir os negócios da classe burguesa, que substituiu a exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas da época feudal, por uma exploração escancarada e brutal.


Estabelecem como objeto imediato do comunismo a constituição do proletariado em classe, a derrubada da supremacia burguesa e a conquista do poder político pelo proletariado. Seu fim maior é a supressão da propriedade privada.


“Assim, quando o capital é transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em propriedade social. O que se transformou foi o caráter social da propriedade. Esta perde seu caráter de classe.”[12]


Marx e Engels querem suprimir o caráter miserável da apropriação pessoal sobre os produtos do trabalho, sem permitir um lucro líquido que gere poder sobre o trabalho alheio. Evita-se, assim, que o operário só viva para aumentar o capital e na medida em que o exigem os interesses da burguesia. “Os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham”.[13]


Segundo eles, a primeira fase da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, o que significa a “conquista da democracia”.[14] De posse dessa supremacia política, o proletariado expropriará aos poucos o capital burguês, transferindo os instrumentos de produção para o Estado, que, em última análise, é constituído pelo próprio proletariado reunido como classe dominante.


Gradualmente desaparecerão as diferenças de classes e o poder público perderá seu caráter político – “o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”.[15] A fase final do projeto, o comunismo, prescindirá de qualquer forma de Estado.


Reconhecem que essas medidas só serão possíveis, num primeiro momento, se realizadas de forma despótica, mas que servirão para transformar radicalmente todo o modo de produção. Após a experiência de várias gerações sob o regime socialista, todavia, a fase comunista será aceita com naturalidade.


Apesar de dizerem que trabalham pela união e pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países, assentam que seus objetivos só podem ser alcançados pela “derrubada violenta de toda a ordem social existente.”[16]


Kelsen[17] afirma que os marxistas fazem uma dicotomia entre o que denominam democracia formal burguesa, em oposição à democracia social, que defendem. A democracia social ou proletária é uma ordem social que garante aos indivíduos não só uma participação igual na formação da vontade da coletividade, como uma igualdade com relação aos bens materiais.


Todavia, para ele, consoante já acentuado, é a liberdade e não a igualdade que define a idéia de democracia. Aliás, salienta, a igualdade material pode talvez ser melhor realizada em regimes ditatoriais. O que os marxistas querem, conclui, é substituir o postulado da liberdade pelo de justiça – igualdade –, utilizando-se do termo democracia, em razão do forte apelo ideológico que subjaz a ele, para, na verdade, construir um sistema de ditadura política.


O significado original do termo “democracia”, prossegue Kelsen, criado pela teoria política da Grécia antiga, é o de “governo do povo” (demos = povo e kratein = governo), e designa a participação dos governados no governo. A doutrina comunista e do nacional-socialismo tentou, então, deturpar esse conceito em prol de suas ideologias, afirmando-se que democracia é o governo “para o povo”.


De fato, pondera Kelsen, o governo do povo é desejado por ser, supostamente, para o povo. Mas definir o que seria interesse do povo não é tarefa das mais fáceis. Pode ser aquilo que o povo acredita ser de seu interesse, ou o que o governo diz que é. Um governo do povo, se exercido por homens sem preparo para tanto, pode revelar-se um governo contra o povo. Muitos autores políticos tentaram demonstrar que uma autocracia é um governo para o povo melhor que o governo do povo. Isso demonstra que governo do povo não é o mesmo que governo para o povo e que, visto poder haver um governo para o povo autocrático, essa característica não pode ser um dos elementos da definição de democracia.


Na esteira do pensamento kelseniano, a democracia, como sistema ou processo, é uma forma de governo. O argumento do formalismo usado para desacreditar o regime democrático camufla o desejo de instaurar uma autocracia, fazendo com que o povo desista de participar do governo e confie que sua vontade será satisfeita se o governo agir em seu interesse. Com esse governo “para o povo”, então, se alcançaria a verdadeira democracia e não aquela meramente formal, que pressupõe o sufrágio universal, igualitário, livre e secreto.


Kelsen ressalta que essa manipulação de conceitos foi utilizada pela doutrina soviética, que, preconizando a ditadura do proletariado, se intitulava baluarte da verdadeira democracia – a democracia para o povo, em oposição à democracia burguesa, ou para os ricos. Do mesmo modo, os ideólogos do partido nacional-socialista, não querendo demonstrar que se voltavam contra a democracia, utilizaram o recurso de denegrir o sistema político democrático da Alemanha, que seria uma plutocracia, ou uma democracia apenas formal, e permitia a uma minoria rica que governasse a maioria pobre. Exaltavam o partido nazista que, fazendo parte da elite, tinha por fim realizar a verdadeira vontade de seu povo, que era a grandeza e a glória da raça alemã. Dá como exemplo, ainda, o fascismo, sobre o qual Mussolini afirmava que “opõe-se à democracia, que equipara a nação à maioria, rebaixando-a ao nível dessa maioria; não obstante, é a mais pura forma de democracia (…)”[18].


Explicitamente favorável ao sistema capitalista, Kelsen afirma que a questão da essência da democracia não deve ser confundida com a da eficiência do governo democrático. Tem-se que, do mesmo modo que não é possível associar a essência da democracia a um sistema religioso determinado, que asseguraria a um governo democrático um grau de eficiência mais alto do que qualquer outro, não se pode fazê-lo com relação a um certo sistema econômico.


Respondendo à questão sobre se existe relação essencial entre democracia e os sistemas econômicos rivais, capitalismo e socialismo, Kelsen afirma que nenhum dos dois sistemas estão relacionados por natureza a um sistema político específico, já que, por definição, um sistema político é um processo ou método para a criação e aplicação de uma ordem social, enquanto um sistema econômico constitui o conteúdo da ordem social.


Pondera, porém, que é possível, no que tange à eficiência, que a democracia favoreça mais o capitalismo e que a autocracia seja mais benéfica ao socialismo. Mas destaca que essa é uma opinião própria, fundada na experiência histórica, não possuindo base científica.


Outrossim, continua, para que se instaure a chamada “ditadura do proletariado”, intitulada de a “verdadeira democracia”, faz-se necessário que essa classe tome o poder e isso, historicamente, faz-se pelo uso da força. Para manter esse poder, recorre-se com freqüência a medidas ditatoriais como um forte aparato repressivo, representado por uma polícia secreta e uma organização militar. Ademais, conclui, o fim último da doutrina socialista é a abolição do Estado e, por conseguinte, da forma de Estado denominada democracia. Assim, politicamente, o socialismo marxista é anarquismo.


Por outro lado, Marcelo Cavarozzi et al.[19] assinalam que é discutível a existência de uma relação necessária e de apoio mútuo entre o sistema democrático e o capitalista de livre mercado. Respondendo aos defensores do liberalismo econômico, que afirmam que um sistema aberto e democrático é o mais congruente com um contexto político de livre mercado e que os mercados livres acabam produzindo sistemas democráticos, asseveram:


“Embora uma democracia consolidada nunca tenha existido na prática em uma economia controlada e não seja possível que venha a existir por causa das limitações impostas em relação à manutenção de uma sociedade civil independente e a sustentação de uma oposição política ativa, tampouco ela pôde emergir em mercados completamente livres e sem controles, devido às mesmas razões teóricas: faz-se necessário o poder do Estado para estabelecer e manter os mercados e para corrigir suas falhas; assim, um Estado democrático e responsável deve regular os mercados, no sentido de superar as desigualdades e a fragmentação de forças por ele geradas.” 


Também Ellen Meiksins Wood[20], como socialista, aponta a incompatibilidade entre democracia e capitalismo e afirma, ao contrário do que pensava Kelsen, que a convivência entre ambos foi viabilizada pelas mutações que sofreu o conceito de democracia, que passou a ser qualificada de “democracia formal”, identificada com o constitucionalismo, com a proteção das liberdades civis e com um governo limitado, estando o poder popular de fora dessa definição.


A noção de democracia hodierna leva em conta apenas os direitos passivos do indivíduo, não cogita da distribuição de poder entre as classes sociais. O poder é o poder político, que sobreleva uma cidadania passiva, na qual o cidadão é despolitizado, se comprometendo apenas no momento do voto, visto como mais um direito passivo.


Para a autora, foi o capitalismo que introduziu essa noção formal e limitada de democracia, pois não existe um capitalismo governado pelo poder popular, no qual as vontades da maioria do povo prevaleçam sobre os imperativos da necessidade de maximização dos lucros.


Afirma, ainda, que jamais existiu uma sociedade capitalista na qual a riqueza ou a elite não tenha tido um acesso privilegiado ao poder e que democratização deve significar “desmercantilização” e, pois, o fim do capitalismo.


Assevera que existem, hoje, aqueles que defendem que é possível a convivência da democracia com um “capitalismo reformado”, no qual as grandes sociedades empresárias têm consciência social e prestam contas à população, e certos serviços sociais são fornecidos por instituições públicas. Todavia, sentencia, essa concepção é mais anti-liberal, ou anti-globalização do que anticapitalista.


Por outro lado, há os que crêem, como ela, que independentemente de qualquer reforma que seja perpetrada, o capitalismo é sempre incompatível com a democracia.


Adam Przeworsky[21] também levanta a questão sobre se é possível aos governos controlar uma economia capitalista e, ainda, se há como conduzir a economia contra os interesses dos que controlam a riqueza produtiva.


A resposta dos socialistas à indagação é negativa, pois acreditam que a soberania popular resta prejudicada quando os recursos produtivos são propriedade privada. A razão estaria com eles?


Assevera Przeworsky que, embora a teoria marxista clássica afirme que o capital governa independentemente da vontade do Estado e se desenvolve por si próprio, teorias que surgiram entre 1960 e 1970 (o chamado marxismo funcionalista) pregam que a sobrevivência do capitalismo somente foi possível graças ao papel desempenhado pelo Estado.


“Dado o crescimento dos oligopólios, a taxa decrescente de lucros, a escala crescente de investimentos, as recorrentes crises de demanda, as crescentes dificuldades de legitimação e a militância da classe trabalhadora, o capitalismo não poderia ter sobrevivido sem que políticas de Estado promovessem a acumulação e a legitimação.”[22]


A estrutura do Estado, então, funcionaria para reproduzir o capitalismo, em evidente afronta aos ditames democráticos. O porquê de tal situação é explicado por diversas teorias, indo desde a sustentação de que os administradores do Estado internalizam os objetivos dos capitalistas, usando a máquina estatal para alcançá-los (teoria da elite no poder); passando pela alegação de que o Estado não controla os meios de produção, os investimentos ou o consumo, o que o torna incapaz de tomar certos tipos de decisões (teoria da seletividade); chegando até a teoria da dependência estrutural do Estado ao capital, cujas características não cabe discutir neste trabalho.


A teoria da elite no poder usa um argumento de Marx de que a igualdade formal não é capaz de superar a desigualdade real numa “ditadura da burguesia”. Desse modo, os mais ricos, usando de seu poder econômico, inclusive através da propaganda paga, ganham eleições honestas, universalistas e igualitárias e usam suas vitórias para perpetuar sua condição econômica.[23] Resultado: no capitalismo a democracia sucumbe.


Joseph Schumpeter[24] ensina que, até mais ou menos 1916, era senso comum a interligação entre socialismo e democracia. Afirmava-se que o controle privado dos meios de produção conduzia não somente à exploração do trabalho pelos capitalistas, como à imposição de seus interesses sobre as escolhas políticas, e que uma democracia meramente política era um simulacro. Com a extirpação desse poder, o homem não seria mais explorado e surgiria o chamado governo do povo.


Para o autor, afora o fato de ser errônea a definição do poder individual e do poder de grupo em termos puramente econômicos, o argumento falha também na forma com que essa “extirpação” seria feita. Destarte, recorre-se sempre, para tanto, às palavras revolução e ditadura. Entre a implantação do socialismo e a observância dos ditames democráticos, há sempre a prevalência do primeiro, afinal, “não se estava realmente desviando do caminho verdadeiramente democrático, pois, para fazer nascer a verdadeira democracia, é necessário remover os galhos venenosos do capitalismo que a asfixiam”.[25]


Todavia, como pondera Schumpeter, não se pode – por mais que se acredite e que se possa até mesmo estar correto – forçar as pessoas a acatar o que não desejam, ainda que posteriormente venham a gostar.


Ademais, esse hiato ditatorial não tem termo final pré-definido, e pode, por arranjos políticos e de interesse, que deturpem o real significado da democracia, durar séculos.


Analisando a experiência dos partidos políticos socialistas (particularmente os russos), o autor identifica traços antidemocráticos, como a existência de partido e candidato únicos, aprovação de seus estatutos e programas sem qualquer discussão prévia e julgamentos exemplares dos dissidentes.


Ressalva, porém, que existem grupos socialistas comprometidos com os ideais democráticos. Não há, todavia, um único e verdadeiro socialismo, já que essa afirmação só pode derivar de preferências pessoais, sem cunho objetivo.


Mas, constatado que o regime socialista pode ser antidemocrático, permanece a indagação: existem regimes socialistas democráticos? Schumpeter afirma que os partidos socialistas adotam a democracia “se, enquanto e na medida em que sirva a seus ideais e interesses”.[26]


Segundo ele, entre socialismo e democracia – caracterizada pela oportunidade de o povo aceitar ou recusar as pessoas designadas para governá-lo, através de livre competição entre líderes potenciais pelo voto do eleitorado – não há qualquer relação necessária, mas também não há incompatibilidade.


Voltando, então, à pergunta sobre se o socialismo é capaz de fazer funcionar o método democrático, ensina Schumpeter que a ideologia socialista clássica deriva da burguesa, com a qual compartilha o substrato racionalista e utilitarista e muitas das idéias e ideais da doutrina democrática clássica.


Mas, se teoricamente socialismo e democracia são compatíveis, deve-se perquirir como operacionalizar um regime democrático socialista. O autor assevera que há que se ter em mente que, verbis:


“(…) a ampliação do alcance da administração pública não implica uma correspondente extensão da administração política. Pode-se conceber que a primeira seja ampliada de modo a absorver os negócios econômicos da nação e a última permaneça ainda dentro dos limites estabelecidos pelas limitações do método democrático.”[27]


Como a sociedade socialista depende sobremaneira de uma administração eficiente, pois sua falta significará falta de pão, os órgãos que operam a máquina econômica podem ser organizados e operados de modo a ficarem livres da interferência de políticos e dos cidadãos em suas atividades cotidianas. As ineficiências da burocracia podem ser amenizadas por uma concentração adequada de responsabilidades individuais e de um sistema de incentivos e penalidades, com métodos de designação e promoção.


Acredita Schumpeter que eleições gerais, partidos, parlamentos, gabinetes e primeiros-ministros podem ser instrumentos ainda melhor aproveitados por uma agenda socialista. Pondera que, muito embora o Ministério da Produção, a título exemplificativo, influencie politicamente por suas medidas legislativas no que tange à condução da máquina econômica e pelo poder de designar ocupantes de cargos, essa intervenção não precisa ter uma extensão que obstaculize a eficiência, intervindo internamente no funcionamento das indústrias.


Para que um sistema como o descrito funcione na prática, faz-se imprescindível uma sociedade que se desenvolva sob uma ordem socialista democrática e uma burocracia de postura e experiência adequadas.


Uma democracia, assinala, para viger satisfatoriamente, deve contar com o apoio da maioria da população ao fundamental de sua estrutura institucional. Como hoje falta esse comprometimento com o modelo capitalista, é possível ao socialismo preencher esse vazio ideológico e restaurar a força democrática.


A eliminação de interesses capitalistas em choque, a ausência do “homem do dinheiro”, purificarão a vida política. Embora a fonte de discordância entre os indivíduos não seja unicamente econômica, deve-se concordar que diminuirão substancialmente as controvérsias.


Alerta Schumpeter, todavia, para a importância e a probabilidade de desvios. Como manter a diretriz democrática é tarefa árdua, a tentadora saída autoritária sempre acena aos líderes socialistas.


“Afinal de contas, a administração eficiente da economia socialista significa ditadura não do, mas sobre o proletariado na fábrica. É bem verdade que esses homens, tão estritamente disciplinados, podem ser soberanos nas eleições. Mas, da mesma forma que podem usar essa soberania para reduzir disciplina na fábrica, também os governos – precisamente aqueles que trazem no coração o futuro da nação – podem aproveitar-se dessa disciplina para restringir tal soberania.”[28]


E sentencia, pragmático e desesperançoso:


“Como questão de necessidade prática, a democracia socialista pode acabar sendo um simulacro maior ainda do que a democracia capitalista.


De qualquer forma, essa democracia não significará maior liberdade pessoal. E, mais uma vez, não significará aproximação em relação aos ideais socializados pela doutrina clássica.”[29]


Nessa mesma linha, Przeworsky cita Milaband[30], para quem a competição política reconduz a classe dirigente aos seus cargos, mas eventualmente a esquerda ganha eleições. Afirma que, nesses casos, há costumeiramente a cooptação dos líderes da classe trabalhadora, que, diante da difícil decisão entre as alternativas de dedicar esforços para abolir o capitalismo ou sucumbir ao poder do capital, acabam cedendo a essa última.


As falhas humanas, sem embargo, não podem ser imputadas ao sistema econômico, máxime quando ocorrem diuturnamente no modelo oposto, o capitalista.


Przeworsky[31] conclui afirmando que as imperfeições do processo político, a autonomia das instituições estatais e a propriedade privada dos recursos produtivos constituem potenciais ameaças à democracia e que a liberdade e a participação convivem com a pobreza e a opressão. Constata que mesmo uma democracia perfeita processualmente pode ser insuficiente para liquidar a pobreza e a opressão ante às ameaças decorrentes da propriedade privada.


Para ele, “uma democracia madura exige instituições eleitorais que sejam representativas, instituições estatais responsivas à democracia e mecanismos de alocação de recursos que obedeçam ao processo democrático.”[32]


Ellen M. Wood[33] prevê que, nas condições do capitalismo global atual e do novo imperialismo, a democracia pode deixar de ser meramente formal e converter-se em uma verdadeira ameaça.


Sustenta que, num mundo globalizado, o capital internacional precisa mais que nunca de um sistema de estados locais que administre o capitalismo global. Nesse cenário, as lutas democráticas que visem a modificar a balança do poder das classes dentro e fora do Estado podem produzir efeitos devastadores.


Conclusão


Como se pôde ver pela exposição dos diversos pontos de vista, dos mais variados filósofos políticos, a questão está longe de ser pacificada. Conclui-se, no entanto, que não há qualquer incompatibilidade entre o sistema socialista e o regime democrático.


As divergências giram em torno da eficiência dos sistemas para promover a democracia e, principalmente, com relação ao conceito de democracia, que pode ser formal, exigindo-se apenas o sufrágio universal em eleições competitivas e livres, ou social, pelo qual é imprescindível a satisfação de condições sociais de dignidade humana, que propiciem o exercício efetivo e consciente da cidadania.


Em que pesem os argumentos contrários ao socialismo, esse sistema desponta como o único sinceramente capaz de legitimar um governo democrático, na medida em que busque erradicar as desigualdades sociais e construir uma sociedade justa, igualitária, sem miséria ou opressão.


De fato, como previa Marx, o próprio capitalismo cria mecanismos de contradição que podem levar à sua superação. A contradição hoje consiste em saber como, numa sociedade dita democrática, podem conviver, legitimamente, liberdade e opressão, igualdade e miséria.


A sociedade é formada por classes, por forças antagônicas que levam a processos de ruptura, que, por sua vez, constituirão uma sociedade nova e assim sucessivamente. Nada fica estagnado.


Para se ter uma sociedade socialista, é necessário, porém, o apoio da maioria. Em eleições democráticas, havendo maciço convencimento de que esse é o melhor sistema econômico, o socialismo será implantado sem que se precise lançar mão de meios violentos ou despóticos e assim, pacifica e democraticamente, governará, enquanto persistir o consenso em torno do regime.


Eleições democráticas também auxiliarão no controle do Governo (enquanto este for necessário), que poderá ser destituído – pelo voto popular – caso cometa abusos.


As experiências anteriores fracassadas devem servir de exemplo a não ser seguido, sendo plenamente possível a adoção de um modelo eficiente economicamente, nos moldes descritos por Schumpeter, no qual os órgãos que operam a máquina econômica sejam independentes e a burocracia tenha postura e experiência adequadas.


O homem que não precisar se preocupar mais com sua subsistência, como na luta travada diariamente no sistema do capitalismo predatório, terá mais tempo para cuidar dos assuntos políticos de maior relevância.


A ameaça da corrupção ronda não só os governos socialistas, mas também, como a realidade bem demonstra, os capitalistas, devendo-se eleger a vigilância e a punição como vigas mestras de qualquer governo que se pretenda democrático.


Por mais que a ampla adesão popular e a efetivação de um tal governo socialista saibam a utopia, parafraseando o poeta, não é de sonhos que se vive a vida?


 


Referências bibliográficas

CAVAROZZI, Marcelo et al. América Latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007.

DAHL, Robert, Poliarquia. São Paulo: Edusp, 1997.

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WOOD, Ellen Meiksins. La Teoria Marxista Hoy. Problemas y Perspectivas. Buenos Aires: Clacso, 2006.

 

Notas:

[1] CAVAROZZI, Marcelo et al. América Latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica. p. 75-76.

[2] KELSEN, Hans. A Democracia.

[3] DAHL, Robert, Poliarquia. p. 25/27 e 31.

[4] CAVAROZZI, Marcelo et al. América Latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica. p. 15.

[5] Schumpeter, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. p. 305/312.

[6] MÉNDEZ, Juan E. et al. Democracia, Violência e Injustiça. O Não-Estado de Direito na América Latina. p. 340-341.

[7] Ibid., p. 340/341.

[8] SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. p. 441.

[9] WOOD, Ellen Meiksins. La Teoria Marxista Hoy. Problemas y Perspectivas. p. 396/400.

[10] Ibid., p. 403.

[11] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. p. 42.

[12] Ibid., p. 53.

[13] Ibid., p. 54.

[14] Ibid., p. 58.

[15] Ibid., p. 59.

[16] Ibid., p. 69.

[17] KELSEN, Hans. A Democracia. p. 254/268.

[18] Ibid., p. 190.

[19] CAVAROZZI, Marcelo et al. América Latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica. p. 92-93.

[20] WOOD, Ellen Meiksins. La Teoria Marxista Hoy. Problemas y Perspectivas. p. 395-407.

[21] PRZEWORSKY, Adam. Estado e Economia no Capitalismo. p. 87/129.

[22] Ibid., p. 88.

[23] Ibid., p. 116/117.

[24] Schumpeter, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. p. 295/296.

[25] Ibid., p. 297.

[26] Ibid., p. 301.

[27] Ibid., p. 372.

[28] Ibid., p. 376.

[29] Ibid., p. 376.

[30] PRZEWORSKY, Adam. Estado e Economia no Capitalismo. p. 117.

[31] Ibid., p. 133.

[32] Ibid., p. 133/134.

[33] WOOD, Ellen Meiksins. La Teoria Marxista Hoy. Problemas y Perspectivas. p. 406/407.


Informações Sobre o Autor

Daniela Mendonça de Melo

Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestranda em Direito pela PUC-Rio. Advogada da União.


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