O fenômeno da mutação constitucional

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Resumo: Neste trabalho pretende-se abordar a lógica da mutação constitucional, analisando os aspectos positivos e negativos de tal fenômeno.


Palavras-chave: Mutação Constitucional.


1. Introdução


Segundo Paulo Bonavides: “O direito não é ciência que se cultive com indiferença ao modelo de sociedade onde o homem vive e atua. Não é a forma social apenas o que importa, mas em primeiro lugar a forma política, pois esta configura as bases de organização sobre as quais se levantam as estruturas do poder.”[1]


Como a sociedade é dinâmica e refaz seus entendimentos (ou constrói outros) com o passar do tempo, o ordenamento constitucional deve acompanhar essa evolução do pensamento social sob pena de ver-se tolhido do fundamento que lhe concede validade: a soberania popular.


Existe grande equívoco em se imaginar uma constituição como um ente imutável. A sociedade é dinâmica. Uma interpretação cristalizada no tempo tende a se demonstrar obsoleta. A esse respeito: “uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto o possível com o antigo”[2]


Sem possibilidade de adaptação à realidade social, a Constituição não passaria de uma folha de papel, sem concretização no meio social.[3]


Assim, seja rígida ou flexível, toda Constituição é passível de mudança, e até aconselhável que o seja, sob pena de ser tornar absolutamente ultrapassada, criando problemas incontornáveis para a comunidade que regra sua conduta conforme suas normas. Para tanto, utilizam-se os meios formais e os meios informais.


São meios formais: revisão constitucional e emendas à constituição. O tema em análise, contudo, mutação constitucional, constitui meio informal de alteração do conteúdo constitucional.


2. Conceito


Trata-se de fenômeno informal de alteração do conteúdo do Texto Constitucional. São “…alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação…”[4]


Segundo Uadi Lammêgo Bulos mutação constitucional é “…o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais.””[5].


Há profusa variação doutrinária no tocante à terminologia, sendo também utilizadas no sentido de mutação constitucional as expressões transição constitucional ou revisão informal[6], processos oblíquos[7]; processos não formais[8]; vicissitude constitucional tácita[9].


A doutrina alemã utiliza o termo Verfassungswandlung, na acepção de mudança de sentido de algum princípio do sistema constitucional vigente, de mudança de sentido que se realiza sem atingir o texto. Assim, “as inevitáveis acomodações do direito constitucional à realidade Constitucional realizam-se só de duas maneiras, às quais a teoria geral do estado deu o nome de reforma constitucional e mutação constitucional . Assim, uma Constituição não é jamais idêntica a si própria, estando constantemente submetida ao pantha rei heraclitiano de todo ser vivo”[10].


A simples alteração de sentido textual em decorrência de modificação do contexto não importa grande problema. A situação encontra-se abrangida pela interpretação constitucional. Ocorre, porém, que há quem defenda que a mutação constitucional é um fenômeno muito mais complexo.


Nesse sentido, Hsü Dau-Lin, sustenta que a mutação constitucional “…é uma incongruência entre as normas constitucionais, por um lado e a realidade constitucional, por outro, provocada: a) mediante uma prática estatal que não viola formalmente a Constituição; b) pela impossibilidade de se exercerem certos direitos estatuídos constitucionalmente; c) por uma prática estatal contraditória com a Constituição; ou, ainda, d) através de interpretação.”[11]


3. Natureza Jurídica


Insere-se a idéia de Mutação Constitucional como espécie de Reforma Constitucional sem supressão de texto.


4. Análise do Instituto


Para que se observe o devido alcance do fenômeno em estudo, faz-se necessário destacar inicialmente a interação do Direito com o ambiente social, sendo notório que eventuais alterações do entendimento social acerca de determinada matéria podem ter reflexos jurídicos.


A ciência jurídica não é estanque, com bem ressalta o prof. Paulo Bonavides:


“Trata-se, ao mesmo passo, de estruturas e bases inarredavelmente tributárias de uma certa tábua de valores, que definem a ideologia, o direito e a concepção de justiça vigentes em cada período da História.”[12]


Em que pese o positivismo de Hans Kelsen, resta evidente que existe uma ligação entre o direito e o corpo social. Consulte-se, por oportuno, o ensinamento de José Horácio Meirelles Teixeira:


“O ordenamento jurídico estatal, cuja cúpula é a constituição, somente pode encontrar seu fundamento fora do Direito positivo, porque o valor dos princípios, das normas constitucionais, não se pode explicar à base de considerações puramente jurídicas, mas de princípios e valores transcendentes ao Direito Positivo.”[13]


Em última análise, o direito, criado para regrar o corpo social, terá por alvo e limitação os interesses da própria sociedade. Sempre que o Direito assim não atue, será alvo de questionamentos:


“Um poder divorciado da sociedade e hostil à soberania popular tem por única alternativa a força com que manter a obediência e a dominação”.[14]


Assim, à guisa de introdução à análise do tema, observa-se que o Direito não pode ser analisado como uma realidade estanque. Ao contrário, deve servir ao grupo social, criador e destinatário final de suas normas.


Ora, uma vez demonstrado o relacionamento entre a sociedade e seu Direito, resta cristalino que só há Constituição lastreada pela soberania popular.


Nessa linha de idéias, para que o ordenamento jurídico constitucional continue cumprindo a sua finalidade de expressar os desejos da sociedade, é necessário que o grupo social tenha a mesma interpretação de determinados conceitos durante todo o tempo.


Tal fato, contudo, não ocorre. A sociedade é dinâmica, evolui (ou não), muda seus entendimentos, elabora novas construções.


Exatamente nesse ponto, na mudança valorativa da sociedade, que ocorre naturalmente com o tempo, faz-se necessário que o ordenamento constitucional acompanhe essa alteração do entendimento social.


Quando tal sincronia não ocorre, existe uma divergência entre a norma constitucional e seu elemento de validade, vale dizer, a soberania popular.


Como pode se efetivar esse reajuste entre a norma e a vontade do titular do poder constituinte? O método tradicional apresenta as Emendas à Constituição e a Revisão Constitucional. Uma visão mais vanguardista introduz uma mecânica mais ágil, mais flexível, porém mais apta a criar complicações: a mutação constitucional.


5. Mutação Constitucional e Constituição Rígida


Questão interessante a ser enfrentada é como se daria uma o fenômeno da mutação constitucional em uma constituição rígida como a Constituição da República de 1988.


Apesar de alguns questionamentos, pode-se inserir a atual Constituição entre as rígidas, conforme ensinamento do ilustre Alexandre de Moraes:


“rígidas são as constituições escritas que poderão ser alteradas por um processo legislativo mais solene e dificultoso do que o existente para a edição das demais espécies normativas (por exemplo:CF/88 – art. 60)”.[15]


Evidente que a rigidez constitucional tem por escopo garantir a supremacia das normas constitucionais, proporcionando mais estabilidade e segurança.


Ocorre que a rigidez constitucional não pode ser encarada de tal forma que se engesse o fim último de suas normas, que é salvaguardar os interesses do grupo social, criador, destinatário e intérprete último das normas constitucionais.


Não fosse assim, seria legitimada uma verdadeira “ditadura dos mortos sobre os vivos”, tendo em vista que a bagagem axiológica da presente geração pode não corresponder à de 1988.


6. O Reconhecimento do Fenômeno pelo Supremo Tribunal Federal


O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de debruçar-se sobre o tema em estudo por algumas vezes. Com efeito, por ocasião do julgamento do AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 450504/MG (Julgamento: 21/11/2006 Órgão Julgador: Primeira Turma), o Relator Min. Carlos Britto deixou claro que o STF já vinha reconhecendo o fenômeno da mutação constitucional.


Com razão o Ministro Carlos Britto ao afirmar que a julgamento anterior havia lançado mão da mutação constitucional. Basta uma leitura desarmada à ementa que ora se transcreve:


CC 7204 / MG – MINAS GERAIS. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. Relator(a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 29/06/2005  Órgão Julgador: Tribunal Pleno. EMENTA: CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA JUDICANTE EM RAZÃO DA MATÉRIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO, PROPOSTA PELO EMPREGADO EM FACE DE SEU (EX-)EMPREGADOR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ART. 114 DA MAGNA CARTA. REDAÇÃO ANTERIOR E POSTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/04. EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSOS EM CURSO NA JUSTIÇA COMUM DOS ESTADOS. IMPERATIVO DE POLÍTICA JUDICIÁRIA. Numa primeira interpretação do inciso I do art. 109 da Carta de Outubro, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, ainda que movidas pelo empregado contra seu (ex-)empregador, eram da competência da Justiça comum dos Estados-Membros. 2. Revisando a matéria, porém, o Plenário concluiu que a Lei Republicana de 1988 conferiu tal competência à Justiça do Trabalho. Seja porque o art. 114, já em sua redação originária, assim deixava transparecer, seja porque aquela primeira interpretação do mencionado inciso I do art. 109 estava, em boa verdade, influenciada pela jurisprudência que se firmou na Corte sob a égide das Constituições anteriores. 3. Nada obstante, como imperativo de política judiciária — haja vista o significativo número de ações que já tramitaram e ainda tramitam nas instâncias ordinárias, bem como o relevante interesse social em causa –, o Plenário decidiu, por maioria, que o marco temporal da competência da Justiça trabalhista é o advento da EC 45/04. Emenda que explicitou a competência da Justiça Laboral na matéria em apreço. 4. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito. É dizer: as ações que tramitam perante a Justiça comum dos Estados, com sentença de mérito anterior à promulgação da EC 45/04, lá continuam até o trânsito em julgado e correspondente execução. Quanto àquelas cujo mérito ainda não foi apreciado, hão de ser remetidas à Justiça do Trabalho, no estado em que se encontram, com total aproveitamento dos atos praticados até então. A medida se impõe, em razão das características que distinguem a Justiça comum estadual e a Justiça do Trabalho, cujos sistemas recursais, órgãos e instâncias não guardam exata correlação. 5. O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Magno Texto. 6. Aplicação do precedente consubstanciado no julgamento do Inquérito 687, Sessão Plenária de 25.08.99, ocasião em que foi cancelada a Súmula 394 do STF, por incompatível com a Constituição de 1988, ressalvadas as decisões proferidas na vigência do verbete. 7. Conflito de competência que se resolve, no caso, com o retorno dos autos ao Tribunal Superior do Trabalho. Decisão. O Tribunal, por unanimidade, conheceu do conflito e, por maioria, definiu a competência da justiça trabalhista, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, para julgamento das ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho, vencido, no caso, o Senhor Ministro Marco Aurélio, na medida em que não estabelecia a edição da emenda constitucional como marco temporal para competência da justiça trabalhista. Impende salientar, por oportuno, o entendimento da existência do fenômeno da mutação constitucional que direcionou, em 20 de setembro de 2007, o julgamento do EMB.DIV.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO – RE-EDv166791/DF, tendo como relator o Min. Gilmar Mendes, com a seguinte Ementa: 1. Embargos de Divergência em Recurso Extraordinário. 2. Anistia. Art. 8o do ADCT/1988. 3. Promoção de Militar e alcance do benefício constitucional. 4. RE conhecido e provido. 5. A jurisprudência do STF, que se firmara no sentido de excluir do âmbito de incidência do benefício constitucional da anistia tanto as promoções fundadas no critério de merecimento quanto aquelas que pressupunham aprovação em concurso e admissão e posterior aproveitamento em curso exigido por lei ou por atos regulamentares foi modificada a partir do julgamento do RE 165.438-DF, Rel. Min. Carlos Velloso, Pleno, DJ de 05.05.2006. 6. De acordo com o novo entendimento do Tribunal no que se refere à interpretação do art. 8o do ADCT, há de exigir-se, para a concessão de promoções, na aposentadoria ou na reserva, apenas a observância dos prazos de permanência em atividade inscritos nas leis e regulamentos vigentes, inclusive, em conseqüência, do requisito de idade-limite para ingresso em graduações ou postos, que constem de leis e regulamentos vigentes na ocasião em que o servidor, civil ou militar, seria promovido. 7. Embargos de divergência conhecidos e acolhidos para reconhecer o direito do embargante de ser promovido, também por merecimento, em decorrência da aplicação do art. 8o do ADCT/88, em conformidade com a nova orientação firmada no RE no 165.438/DF.”


O julgado a seguir apresenta interessante hipótese de alteração de competência por mutação constitucional:


HC-QO 86009 / DF – DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM NO HABEAS CORPUS. Relator(a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 29/08/2006 Órgão Julgador: Primeira Turma. Ementa. EMENTA: QUESTÃO DE ORDEM. HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE TURMA RECURSAL DE JUIZADO ESPECIAL. INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ALTERAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. REMESSA DOS AUTOS. JULGAMENTO JÁ INICIADO. INSUBSISTÊNCIA DOS VOTOS PROFERIDOS. Tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, modificando sua jurisprudência, assentou a competência dos Tribunais de Justiça estaduais para julgar habeas corpus contra ato de Turmas Recursais dos Juizados Especiais, impõe-se a imediata remessa dos autos à respectiva Corte local para reinício do julgamento da causa, ficando sem efeito os votos já proferidos. Mesmo tratando-se de alteração de competência por efeito de mutação constitucional (nova interpretação à Constituição Federal), e não propriamente de alteração no texto da Lei Fundamental, o fato é que se tem, na espécie, hipótese de competência absoluta (em razão do grau de jurisdição), que não se prorroga. Questão de ordem que se resolve pela remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, para reinício do julgamento do feito. Decisão. A Turma, resolvendo questão de ordem, tornou sem efeito o início do julgamento e determinou a remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, nos termos do voto do Relator. Unânime. 1ª. Turma, 29.08.2006.” (Os grifos não são do original).


7. Mutação Constitucional e Interpretação


O instituto da mutação constitucional demanda o uso da interpretação como meio de reforma constitucional. Trata-se de um instrumento que pode ser ao mesmo tempo eficaz e perigoso.


Com efeito, a mutação constitucional pode se mostrar eficaz para revigorar e vivificar a Constituição, preservando a sua principiologia e assegurando a sua longevidade.


É cediço que o arcabouço constitucional é permanentemente ameaçado pelas constantes Emendas constitucionais. Nesse sentido, a mutação constitucional pode ser utilizada com eficácia para preservação do conteúdo axiológico da Constituição.


Ora, a interpretação constitui atividade de mediação cuja finalidade é tornar concreta a norma jurídica abstrata. A Constituição é um sistema de normas aberto a várias soluções interpretativas. Assim, parece razoável oferecer como alternativa de reforma à Constituição a utilização da interpretação como instrumento de mediação entre o texto e a realidade constitucional.


Tal prática tem por objetivo dar ao texto constitucional seu verdadeiro sentido, no contexto de um sistema de normas aberto, imperfeito e incompleto e, por via de conseqüência, sujeito a integrações e alargamento de sentido.


Diante dessa realidade, o procedimento da interpretação tornaria desnecessárias as freqüentes violações e mutilações do texto constitucional elaborado pelo Constituinte Originário.


Substituindo a reforma à Constituição por uma interpretação voltada a concretizar direitos e princípios, adequando as mudanças sociais ao texto constitucional, manter-se-ia o equilíbrio entre o documento original da Constituição e a estrutura social.


Conforme afirmado anteriormente, a prática da mutação constitucional também pode se revelar perigosa. Isso porque pode afastar da Constituição o que há de mais significativo em um texto constitucional, vale dizer, o fato da Carta Magna reservar para si a função de regulamentar a sociedade.


Resta cristalino que a sobrevivência das Constituições depende da sua adequação à realidade social, em uma continuidade jurídico-política que se expressa graças a uma relação entre a força normativa e a realidade social formada por uma combinação harmoniosa entre texto e realidade.


Nenhuma Constituição resiste a violentas e sucessivas degradações de seu texto. Nesse sentido, as mutações constitucionais fruto de constantes mudanças sociais podem constituir verdadeiras fraudes ao texto constitucional.


O perigo reside exatamente em substituir o procedimento mais dificultoso escolhido pelo constituinte originário pela interpretação de alguns cidadãos.


Exemplo de como a utilização da mutação constitucional pode ser perigosa encontra-se na obra de Sandro José de Oliveira Costa[16]. Referido autor faz menção à proposta elaborada pelo Ministro Gilmar Mendes de retirar o papel do Senado do controle difuso de constitucionalidade, por meio de mutação constitucional. Tal proposta teria sido feita por ocasião do julgamento da Rcl – 4335.


Tratava-se de reclamação ajuizada contra decisões do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco-AC, pelas quais indeferira pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão em regime integralmente fechado em decorrência da prática de crimes hediondos. Alegava-se, na espécie, ofensa à autoridade da decisão da Corte no HC 82959/SP (DJU de 1º.9.2006), em que declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que vedava a progressão de regime a condenados pela prática de crimes hediondos — (Informativo 454). O Min. Eros Grau, em voto-vista, julgou procedente a reclamação, acompanhando o voto do relator, no sentido de que, pelo art. 52, X, da CF, ao Senado Federal, no quadro de uma verdadeira mutação constitucional, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, haja vista que essa decisão contém força normativa bastante para suspender a execução da lei. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 19.4.2007. (Rcl-4335)


Após o voto-vista do Senhor Ministro Eros Grau, que julgava procedente a reclamação, acompanhando o Relator; do voto do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, julgando-a improcedente, mas concedendo habeas corpus de ofício para que o juiz examinasse os demais requisitos para deferimento da progressão, e do voto do Senhor Ministro Joaquim Barbosa, que não conhecia da reclamação, mas igualmente concedia o habeas corpus, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Tal ocorreu em 19 de abril de 2007, não havendo notícia de nova data aprazada.


Na situação em tela, caso acolhida a tese do Ministro Gilmar Mendes, o Senado terá subtraída sua atribuição simplesmente por meio de uma “mutação constitucional” muito duvidosa.


8. Considerações Finais


Em que pese a necessidade de adequação realidade social/realidade normativa, deve-se ter cuidado com o fenômeno em estudo. Uma coisa é fazer uma leitura que, embora inovadora, ainda respeite o espectro dos significados aceitáveis de um texto jurídico. Outra é a criação sub-reptícia de novos preceitos pelo uso de interpretação totalmente dissonante do sentido literal possível dos enunciados jurídicos. O intérprete não pode criar normas, forte no fato de ostentar um déficit de legitimidade, ante a ausência de mandato para legislar.


Cabe destacar, por oportuna, a lição de Gilmar Ferreira Mendes, em que pese soar contrária a interpretações recentes, como a já referida em linhas anteriores:


“levadas a tais extremos, ou aceitas sem maior cuidado pela lei do menor esforço – afinal, todos sabem que novas interpretações, assim como as chamadas recepções, são formas abreviadas de criação do direito – essas mutações constitucionais acabam afetando o núcleo duro das constituições, aquele conteúdo essencial que as próprias cartas políticas, para não perder a identidade, cautelosamente protegem contra tudo e contra todos, mas, em especial, contra as tentações dos seus reformadores de plantão.”[17]


 


Referências Bilbiográficas

BONAVIDES, PAULO. Curso de Direito Constitucional, 11ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

BULOS, UADI LAMMÊGO. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra. Almedina, 1993

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo. Max Limonad, 1986

HÄBERLE, Peter. “Zeit und Verfassung”. In: Probleme der Verfassungsinterpretation, org: Dreier, Ralf/Schwegmann, Friedrich, Nomos, Baden-Baden, 1976. p. 295-296, 300, 312-313.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa, 1997. p. 495.

LASSALE, Ferdinand. Que es una constituición? Buenos Aires. Ediciones Siglo Veinte, 1946

LOEWENSTEIN, Kar. Teoria de la Constituición. Barcelona. Edciones Ariel, 1970

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 129

 

Notas:



[1]    Bonavides, Paulo; O direito constitucional e o momento político; Revista de Informação Legislativa, ano 21, nº 81, jan./mar. 1984, págs. 217 a 230.

[2]    BARROSO, Luís Roberto. Natureza jurídica e funções das Agências Reguladoras de serviços públicos. In Boletim de direito administrativo. Ano XV N.º 6, Junho/1999

[3]    LASSALE, 1985 p. 13

[4]    MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 129

[5] Mutação Constitucional; São Paulo: Saraiva, 1997, pág. 57

[6]  CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra. Almedina, 1993, p. 231

[7]  FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo. Max Limonad, 1986, p. 12

[8] BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Diritto costituzionale. Napoli. Dott, 1986, p. 86

[9] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra. Ed. Coimbra, 1991, p. 133

[10]  LOEWENSTEIN, 1970 p. 164/165

[11]  Hsü Dau-Lin, Mutacion de la Constitucion, Bilbao: Instituto Vasco de Administración Pública, 1998, p. 29 e 31. in MENDES, Gilmar Ferreira. Op. Cit., p. 131

[12]  Bonavides, Paulo; O direito constitucional e o momento político; Revista de Informação Legislativa, ano 21, nº 81, jan./mar. 1984, págs. 217 a 230.

[13]  Teixeira, José Horácio Meirelles; Curso de Direito Constitucional; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pág.199

[14]  Ibidem, pág. 219/220

[15]  MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 10ª edição, São Paulo: Atlas, 2001; pág. 37

[16]  COSTA, Sandro José de Oliveira. Questões Atuais de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Corifeu, 2007. p. 26

[17]  MENDES, Gilmar Ferreira. Op. Cit., p. 132


Informações Sobre o Autor

Sandro José de Oliveira Costa

Procurador Federal. Professor Universitário e Mestrando em Direito (Faculdade de Direito de Campos)


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