Resumo: Trata a presente pesquisa do trabalho infanto-juvenil como negação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. A Constituição de 1988 trouxe avanços por estipular a idade mínima para o trabalho em 14 anos, e com a Emenda Constitucional n° 20, alterou-a para 16 anos. Finalmente a promulgação da Lei n° 8.069 de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, representa um marco na tutela e na busca da erradicação do trabalho infanto-juvenil. O Estado Brasileiro, segundo o artigo 1° da Constituição, tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Este conjunto de atributos que orientam todas as ações e políticas subseqüentes é a base do Estado Democrático de Direito brasileiro. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é pressuposto na compreensão da abrangência dos direitos fundamentais. Daí a necessidade da previsão constitucional de sua garantia posto que o ser humano precede o Direito e o Estado. Tratar de trabalho infanto-juvenil é tratar de dignidade da pessoa humana.
Sumário: 1. Introdução; 2. Trabalho Infanto-juvenil: Um Breve Relato Histórico e Evolução Legislativa no Brasil; 3. As Garantias Constitucionais do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Consolidação das Leis do Trabalho em relação ao trabalho infanto-juvenil; 4. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: aspectos destacados; 4.1. A Dignidade da Pessoa Humana: elementos conceituais e evolutivos; 4.2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: princípio fundamental e influências internacionais; 5. O Trabalho Infanto-juvenil como Negação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 6. Conclusão; 7. Referência.
1. Introdução
O presente artigo possui como objeto o estudo do trabalho infanto-juvenil como negação ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Nele se expõe que o Estado Democrático está obrigado a atuar positivamente no sentido de garantir à criança e ao adolescente os direitos já consolidados em normativas internacionais, vez que a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, adota a doutrina da proteção integral e elegeu a dignidade da pessoa humana como um dos seus fundamentos.
O estudo foi dividido em três etapas, abordando-se primeiramente o trabalho infanto-juvenil através de um breve relato histórico e sua evolução legislativa. Após, analisou-se os direitos da criança e do adolescente à luz da Constituição da República Federativa do Brasil, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Consolidação das Leis Trabalhistas e algumas Convenções e Recomendações da Organização internacional do Trabalho.
Em uma segunda etapa abordou-se o princípio da dignidade da pessoa humana quanto aos aspectos conceituais, evolutivos e sua constitucionalização.
Por fim, o artigo apresenta uma crítica em relação ao trabalho infanto-juvenil como negação ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana dada a condição brasileira de Estado Democrático de Direito.
2. Trabalho Infanto-juvenil: Um Breve Relato Histórico e Evolução Legislativa no Brasil
Tratar dos direitos da criança e do adolescente implica na compreensão de uma leitura histórica sobre o tema do trabalho infanto-juvenil, bem como na verificação da legislação evolutiva.
Para o artigo foi fixado como marco a invasão portuguesa no Brasil e a introdução de hábitos e costumes europeus na exploração de crianças e adolescentes por facilitar a compreensão da realidade brasileira hoje, além de muitos dos mitos que foram construídos com o passar dos anos.
Segundo Veronese[1]
“O trabalho infanto-juvenil estava inserido num conjunto de códigos repassados ao longo das gerações que relacionam desenvolvimento/autonomia com responsabilidade/aprendizado, fatores determinantes para a inserção precoce das crianças no mundo do adulto.”
Destaca-se que as crianças que chegavam nas embarcações no Brasil colônia, já o chegavam como trabalhadores, denominados como grumetes e pagens[2].
Com a chegada dos jesuítas houve a inserção de uma nova cultura, da qual as punições corporais faziam parte. Tal novidade indignou a população indígena que não tinha o costume de bater nas crianças. Entretanto o sistema de controle e vigilância constante implantado pelos jesuítas teve o papel significativo na construção inicial de uma primeira imagem concreta da criança no Brasil deixando para trás a concepção de seriam apenas um pouco mais que animais.[3]
Ainda no século XVI nascem as primeiras ações de caráter assistencial no Brasil. Contudo, seja através da Roda dos Expostos ou na recepção de crianças abandonadas salienta-se que o interesse oculto era pelo trabalho infanto-juvenil.[4]
Também no século XIX, a criança, segundo Priore, permanece sob o estigma da escravidão e “[…] enquanto pequeninos, filhos de senhores e escravos compartilham os mesmos espaços privados: a sala e as camarinhas. A partir dos sete anos, os primeiros iam estudar e os segundos trabalhar. “[5]
Somente com a República, no século XX, que conta com o fim do sistema escravocrata, surge a preocupação contra a exploração do trabalho infanto-juvenil. Durante este século algumas normas que visavam a proteção contra a exploração do trabalho de crianças e adolescentes estavam longe de serem efetivadas.
A primeira tentativa no Brasil de regulamentação contra o trabalho infanto-juvenil inicia-se com o Decreto n° 1.313, de 1891, que abordava a proteção às crianças e aos adolescentes nas fábricas. Contudo não obteve êxito quanto à regulamentação e suas diretrizes não foram colocadas em prática.
Da mesma forma o Projeto n° 4-A, de 1912, que deveria regular o trabalho industrial, não foi aprovado.
Já o Decreto Municipal n° 1.801, de 1917, que instituía medidas de tutela às crianças e adolescentes operários e o Decreto n° 16.300, de 1923, que fixava a duração da jornada de trabalho das pessoas com idade inferior a 18 anos no limite máximo de 6 horas, a cada 24 horas, embora aprovados não lograram êxito quanto à sua efetivação.
Somente em 1927 o Decreto n° 17.943-A, Código de Menores, foi declarado o trabalho infanto-juvenil proibido para menores de doze anos de idade.
Com a Constituição de 1934 é que se inicia uma fase de constitucionalização da proibição laborativa aos que contavam com idade inferior à 14 anos. A Constituição de 1937 manteve tal proibição.
Em 1943 entrou em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho regulamentando que a idade mínima para o trabalho era 14 anos, além dispor sobre a tutela e proteção ao trabalho infanto-juvenil.
Lamentavelmente a promulgação da Constituição de 1967 representou um verdadeiro retrocesso legislativo por diminuir para 12 anos a idade mínima para o trabalho.
Em 1979, o Decreto n° 6.697 aprovou o novo Código de Menores, mas não trouxe nenhuma inovação em relação à regulamentação do diploma legislativo anterior quanto ao trabalho infanto-juvenil. Até esta legislação havia uma grande discrepância entre o idealizado e a realidade.
A Constituição de 1988 trouxe avanços por estipular a idade mínima para o trabalho em 14 anos, e com a Emenda Constitucional n° 20, alterou-a para 16 anos.
Finalmente a promulgação da Lei n° 8.069 de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, representa um marco na tutela e na busca da erradicação do trabalho infanto-juvenil que analisaremos no próximo item.
3. As Garantias Constitucionais do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Consolidação das Leis do Trabalho em relação ao trabalho infanto-juvenil
A proteção à criança e ao adolescente encontra-se na Constituição da República Federativa do Brasil, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Consolidação das Leis do Trabalho.
Na Constituição da República consta o restabelecimento da idade mínima para o trabalho em 16 anos. Dispõe seu art 7°, inciso XXXIII: “XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. Assim, à luz da teoria da proteção integral, o artigo diz expressamente o direito da criança de não trabalhar.
Quanto a tutela à criança e ao adolescente, a Constituição também traz em seu artigo 227, que
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”[6]
Em relação ao parágrafo 3° do artigo supra, apesar de se referir a idade mínima de quatorze anos para admissão no trabalho, determina que seja observado o disposto no artigo 7°, XXXIII. Com a alteração advinda da EC n° 20/98, impera, portanto, a idade mínima de 16 anos para ingresso na atividade laboral, salvo na condição de aprendiz, permitida a partir dos 14 anos.
No Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 1990, vez que fundamentado na doutrina da proteção integral, visa promover a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
O Estatuto dispõe que é considerada criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre 12 e 18 anos incompletos. Observa-se já no seu artigo 3° a referência à doutrina da proteção integral quando dispõe que
“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.[7]
Nesta esteira, o Título V, que trata do direito à profissionalização e à proteção no trabalho, dispõe o artigo 60 do Estatuto que é proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Há que se interpretar este dispositivo com a alteração trazida pela Emenda já citada, portanto elevando para 16 anos a idade.
A Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-lei n° 5.452, de 1943, em seu Capítulo IV do Título III, trata das normas especiais de tutela do trabalho, e mais especificamente dispõe sobre “Da proteção do trabalho do menor”.
Em relação à situação da criança e o trabalho, a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 403, estabelece que: “É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos”.
No âmbito internacional a Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o organismo internacional, criado em 1919, pelo Tratado de Versalhes, que objetiva a justiça social entre os povos e a erradicação do trabalho infantil.
Das várias Convenções e Recomendações da OIT, importante salientar a Convenção n° 138, de 1973 e a Recomendação n° 146, por ambas tratarem da erradicação da utilização da mão-de-obra infantil e da necessidade de se elevar a idade mínima para admissão no emprego a um nível apropriado a condição peculiar de ser em desenvolvimento[8] da criança e do adolescente. Também a Convenção n° 182, de 1999 e a Recomendação n° 190 merecem ressalva por que objetivam eliminar as piores formas de trabalho infantil, a ação imediata para sua eliminação e a indicação de programas.
A Convenção n° 182 e a Recomendação n° 190 foram incorporadas pelo ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto-legislativo n° 178, de 1999.
4. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: aspectos destacados
A dignidade da pessoa humana tem recebido grande destaque dada a tendência a abrigar o ser humano como centro e fim do direito.
A análise de sua origem, evolução, conceituação e eficácia, evidenciam que o ser humano deve ser o primordial das mais variadas formas de organização social. Isto porque a dignidade humana está diretamente relacionada com o conceito de democracia visto que o respeito e a exaltação do humano representa um dos principais parâmetros de aferição de democracia ao mesmo tempo em que a concretiza.
4.1. A Dignidade da Pessoa Humana: elementos conceituais e evolutivos
A configuração de qualquer sociedade está diretamente ligada ao conceito de pessoa humana e a sua posição no ordenamento jurídico. Sendo a pessoa humana o fundamento primordial do direito, é fonte primeira dos conteúdos e justificação última de sua obrigatoriedade uma vez que a busca pelo bem comum contempla o crescimento e desenvolvimento integral da pessoa humana.
A conceituação do termo dignidade da pessoa humana é classificada como uma das mais complexas. Para Sarlet[9] a complexidade decorre
“[…] da circunstância de que se cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigüidade e porosidade, assim como por sua natureza necessariamente polissêmica, muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente atribuídos à dignidade da pessoa humana. Uma das principais dificuldades reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana, mas, sim, de uma qualidade como inerente a todo e qualquer ser humano […]”.
Sabe-se que a dignidade independe de circunstâncias concretas, já que inerentes a toda e qualquer pessoa humana. Assim qualquer ser humano, por mais indignas e criminosas que sejam suas ações, não poderá perder jamais sua dignidade.
Por outro lado há autores consideram que a dignidade da pessoa não deve ser ponderada exclusivamente como inerente à natureza humana por possuir também um sentido cultural.
A dignidade da pessoa humana também envolve toda uma questão comunitária por serem todos iguais em dignidade e direitos. Kant afirma o caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana, sublinhando inclusive a existência de um dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos.
No dicionário Aurélio[10] o verbete “dignidade” é assim conceituado
“Dignidade. (‘Do lat. Dignitate’.) S. f. 1. Cargo e antigo tratamento honorífico. 2. Função, honraria, título ou cargo que confere ao indivíduo uma posição graduada. 3. Autoridade Moral; honestidade, respeitabilidade, autoridade. 4. Decência, Decoro. 5. Respeito a si mesmo; amor-próprio, brio, pundonor.”
Na acepção de Silva[11], a partir da filosofia de Kant, explica dignidade como
“[…] é atributo intrínseco, da essência da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim, a dignidade entranha se confunde com a própria natureza do ser humano.”
Por derradeiro, encerrando esta etapa da pesquisa, Sarlet[12] em uma proposta de conceituação jurídica da dignidade da pessoa humana conceitua dignidade como
“A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
Passando-se para uma análise da evolução do princípio da dignidade da pessoa humana não se pretende esgotar o assunto, dada a extensão e complexidade que o tema impõe.
Etimologicamente, o termo pessoa deriva do latim persona que significa máscara, ou seja, a forma como se apresenta diante da sociedade.
Na Grécia o ser humano era um animal político ou social, um cidaão educado para servir a comunidade. Neste sentido corrobora Wolkmer[13]: “o homem não é um ser totalmente livre, mas está preso ao seu destino […]”.
O conceito de pessoa humana como categoria que possui valores, direitos e dignidade surge com o Cristianismo, com a filosofia Patrística, aprimorada pelos escolásticos.
“[…] são as formulações tomistas sobre Direito natural, justiça e bem-comum as que melhor expressam a filosofia jurídica da época. Mais do que nunca, constrói-se uma concepção transcedental de dignidade humana a partir da mudança de rumo proporcionada pelo cristianismo, ao estabelecer que o bem maior não é o Estado, mas o ser humano integrado à sociedade.”
Uma vez que a filosofia grega permitiu uma racionalização do ser humano, colocando-o, bem como sua relação com a natureza, como centro de reflexão, foi somente com o pensamento cristão que se iniciou uma concepção sobre dignidade humana. Aqui o ser humano é concebido como imagem e semelhança de Deus. Destaca-se o pensamento de São Tomás de Aquino por ter sido o primeiro a referir-se expressamente ao termo dignidade humana.
O pensamento tomista acerca do ser humano é definido por Nogare[14]: “[…] o homem é composto de matéria e espírito, que formam uma unidade substancial, mas que apesar disto não impede a alma humana de ser imortal”. Observa-se que a noção de pessoa em nada se parece com a máscara de teatro grega, mas sim as características individuais de permanência e invariabilidade. O teocentrismo jusfilosófico medieval, marcado pelo verticalismo espiritual e pelo dogmatismo canônico trás em Santo Tomás de Aquino o caráter único do ser humano que o distingue das demais criaturas que é a racionalidade.
Nos séculos XVII e XVIII, a dignidade da pessoa humana é marcada por formulações doutrinárias do jusnaturalismo racionalista e do contratualismo social.
Em uma concepção liberal, Kant, representando o ápice da melhor tradição do Iluminismo Ocidental, em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, afirma que a pessoa humana é o fim em si mesma e a sua dignidade é o seu primeiro direito fundamental na seguinte afirmação
“Os seres cuja existência depende não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, que dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio ( e é um objeto de respeito).”[15]
Portanto, para Kant, somente as pessoas são um fim em si mesmo por serem racionais, mas ressalva que mesmo os seres irracionais possuem um valor, embora relativo. Em Kant a dignidade constitui um valor interno da pessoa humana que não admite substituto equivalente.
Já no início do século XX, o filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre trabalhou a questão da dignidade da pessoa humana. As idéias de Sartre, de inspiração marxista, são de que o homem existe para si e não foi criado a partir de uma essência anterior, como, por exemplo, a divina, assim não está sujeito a nenhum determinismo. Dispõe Sartre[16] que: “O homem está condenado a ser livre. Condenado por que não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”. Afastando-se de Santo Tomás de Aquino, para Sartre a dignidade humana reside justamente na construção da existência humana, recusando a existência de uma natureza humana que o conduza. O ser humano em Sartre é consciente e responsável por sua situação no mundo, e, portanto, o existencialismo é a única alternativa capaz de conferir-lhe dignidade por não o reduzir a um determinismo que faria dele um objeto.
Ainda no século XX destaca-se o pensamento de Hannah Arendt que através de seus inúmeros estudos sobre o totalitarismo, as experiências nazistas e stalinistas, igualdade e liberdade, alertou para a banalização da dignidade humana.
A filósofa relata que o totalitarismo reflete uma falta de comprometimento com a evolução das relações políticas e sociais, e principalmente, com o ser humano, dada a inexistência de qualquer critério razoável de justiça. Investir na promoção da democracia, da igualdade e da liberdade é permitir a plenitude da dignidade humana.
Em um Estado Democrático de Direito[17] como o brasileiro deve ser primordial a preservação e promoção da dignidade da pessoa humana, de forma que a constitucionalização como princípio reflete o supremo valor que lhe é dado. Daí discorrer a seguir sobre o princípio na constituição do Brasil, seu processo de constitucionalização e influências recebidas.
4.2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: princípio fundamental e influências internacionais
A compreensão da inserção da dignidade da pessoa humana na Constituição da República, de 1988, requer, como etapa prévia, a análise da diferença entre as expressões direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais, vez que se observa que em alguns casos são utilizadas como se sinônimos fossem, e não o são.
Na acepção de Sarlet[18] a expressão direitos do homem designa de maneira mais ampla e abstrata os direitos naturais ainda não positivados. Em relação aos direitos humanos, estes se referem aos já positivados, mas de âmbito internacional. E, por fim, os direitos fundamentais abarcam aqueles direitos que já foram constitucionalizados.
Tal distinção importa na compreensão dos elementos caracterizadores dos direitos fundamentais e que estes variarão de acordo com a cultura de cada região. Daí porque parafraseando Comparato[19] a afirmação histórica dos direitos fundamentais se confunde com a evolução do conceito de Estado, do constitucionalismo moderno e, posteriormente, com o do constitucionalismo social.
Outro aspecto relevante no presente artigo é em relação aos princípios constitucionais. Neste sentido dispõe Canotilho[20] que
“A eficácia, concretização e atualização dos princípios constitucionais, na contemporaneidade, dependem, estreitamente, da concepção metodológica que se tenha de Direito Constitucional, sob o risco de perder-se a força dogmático-conceitual das categorias jurídicas em perspectivas metodológicas historicistas, comparativistas, sociologistas e exegéticas, que pouco explicam e muito confundem a idéia de princípios jurídicos como princípios constitucionais.”
Ressalta-se que os princípios constitucionais são considerados normas vinculantes, dotados de plena juridicidade e dada a sua generalidade, primariedade, atualidade e poliformia, podem ser aplicados a diferentes casos e em diversas situações por acompanharem a evolução social sem provocar qualquer ruptura com a constituição.
Feitas estas considerações sobre os princípios constitucionais explana-se que o princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se na categoria de princípio fundamental.
Para Canotilho os princípios constitucionais classificam-se em princípios jurídicos fundamentais; princípios políticos constitucionalmente conformadores; princípios constitucionais impositivos e em princípios-garantia.
Em uma breve análise da classificação e características definidas pelo autor, constata-se que o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana pode ser considerado um princípio jurídico fundamental vê que historicamente construído e em função de sua amplitude foi positivado refletindo, assim, a ideologia da constituição brasileira.
Os princípios fundamentais identificam-se com os valores supremos previstos em todas as constituições por traduzirem suas intenções. Desta forma o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é um norteador das relações e mesmo que não envolvido diretamente na solução jurídica de um caso concreto poderá ser invocado.
Trata-se de um marco evolutivo na história das constituições brasileiras e na confirmação do Estado Democrático de Direito. Dado o exposto, cabe neste ponto da pesquisa ponderar o princípio da dignidade da pessoa humana na constituição brasileira atual. Isto implica na verificação do próprio conceito de constituição como oriunda de um movimento histórico denominado Constitucionalismo.
Em relação ao constitucionalismo é importante destacar que se trata de uma teoria que, segundo Canotilho[21]
“[…] ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. […] o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. É, no fundo, uma teoria normativa da política.”
Observa-se que a Constituição tem uma força normativa vinculante que exerce influência na sociedade.
A Constituição da República, de 1988, foi a primeira a tratar expressamente da dignidade da pessoa humana e de conceder o status de princípio fundamental. Destaca-se que inúmeros ordenamentos jurídicos influenciaram tal posicionamento, tais como o mexicano, o alemão, o espanhol, o italiano e o português.
Primeiramente, salienta-se que a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 são tidos como marcos do constitucionalismo social. Ambos foram as primeiras constituições que efetivamente concretizaram dispositivos expressam que impunham uma conduta ativa por parte do Estado para que viabilizasse para todos os cidadãos a titularidade e a efetivação dos direitos fundamentais. Inicia-se com elas a fase do constitucionalismo social.
Em uma escala evolutiva, ainda em relação à influência alemã, sua Constituição, de 24 de maio de 1949, foi a que primeiramente abordou de modo expresso e como uma formulação principiológica a dignidade da pessoa humana. Isto porque o Estado nazista havia desconsiderado totalmente a concepção de dignidade através da prática de aterrorizantes crimes em nome do Estado, conforme Silva[22]. Este seria o marco para reestruturação do ordenamento constitucional germânico.
A Constituição da Espanha trata do princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 10 nos seguintes termos: “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito á lei e ao direito dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social”. A Constituição considera a dignidade da pessoa humana como um valor superior do ordenamento jurídico espanhol.
Promulgada em 1947, a Constituição Italiana, embora não contemple expressamente a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental no ordenamento jurídico italiano, concede à pessoa humana em seus artigos 2° e 3° uma consideração privilegiada.
Do mesmo modo que a Constituição Alemã, a Constituição de Portugal de 1976 dispôs expressamente sobre a dignidade humana. Assim a Lei Maior lusitana seria interpretada à luz da dignidade humana que não integra seus direitos fundamentais, pois representa muito mais, é um princípio de valor discorre Silva[23].
Por derradeiro, no Brasil em face das influências das constituições internacionais e devido os horrores das torturas e demais tratamentos desumanos praticados durante o regime militar, em um resgate à dignidade, ao humano, insere o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Contudo é importante ressaltar que a dignidade da pessoa humana não deve se exaurir nos dispositivos constitucionais. Este princípio fundamental possui uma noção ampla e em aberto que serve de interpretação ao reconhecimento de novos direitos.
Realizas estas ressalvas, examinaremos a seguir, o alcance da tutela da dignidade da pessoa humana no âmbito da Constituição e do Estado da Criança e do Adolescente em face do trabalho infanto-juvenil.
5. O Trabalho Infanto-juvenil como Negação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O tema trabalho infanto-juvenil, ou seja, aquele desempenhado por crianças e adolescente que ainda não atingiram a idade mínima permitida, é uma questão complexa. Questão esta associada, embora não esteja restrita, à desigualdade, à pobreza e à exclusão social, além de fatores de ordem cultural.
Tratar de trabalho infanto-juvenil é tratar de dignidade da pessoa humana.
O Estado Brasileiro, segundo o artigo 1° da Constituição, tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Este conjunto de atributos que orientam todas as ações e políticas subseqüentes é a base do Estado Democrático de Direito brasileiro.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é pressuposto na compreensão da abrangência dos direitos fundamentais. Daí a necessidade da previsão constitucional de sua garantia posto que o ser humano precede o Direito e o Estado.
Nesta linha, é importante ressaltar que não basta ao Estado reconhecê-los formalmente, deve buscar concretizá-los e que o referido princípio implica em os titulares dos direitos não precisarem esperar uma autorização para poder exercê-los.
O desafio contemporâneo é buscar respostas que assegurem a estabilidade jurídica e o bem estar social em longo prazo. O Estado Democrático de Direito deve atentar para a condição de prioridade absoluta de que goza a criança e o adolescente.
Sabe-se que toda criança e adolescente são sujeitos de direitos e que o Brasil, tanto na esfera internacional como nacional, assumiu dar prioridade absoluta. Contudo, não há necessidade de pesquisas mais profundas para se constar a exploração do trabalho infanto-juvenil. Seja na zona rural com a impressionante “inclusão” no trabalho doméstico, nas colheitas e fábricas de tecelagem, seja na zona urbana a constante exploração em indústrias dos mais diversos ramos, dos quais destacam-se as têxteis e de calçados, além do trabalho na rua tais como vendedores ambulantes, engraxates, catadores de lixo, jornaleiros, etc, a realidade persiste.
Cite-se, ainda, as duas piores formas de trabalho infantil muito comum na modernidade, que são a exploração comercial sexual e a exploração pelo narcotráfico, o que demonstra a total falta de implementação de políticas públicas no sentido da prevenção e da reversão.
A quebra de paradigma inicia-se por se rejeitar que tais atividades apresentam-se como normais de serem desenvolvidas por estes “adultos em miniaturas” que sequer contam com alguma dignidade. É o rompimento deste senso comum o primeiro passo de respeito ao ser em desenvolvimento.
É importante salientar que quando crianças e adolescentes estão envolvidos com atividades laborais encontram-se afastados do ensino e muitas vezes sujeitos a situações de perigo e danosas à sua saúde. Ao contrário, quando desenvolve atividades lúdicas, exercita sua imaginação e sua criatividade, que são fundamentais para a resolução dos diversos desafios próprios do processo de desenvolvimento do ser humano.
O mito de que o trabalho dignifica a criança e o adolescente, ora mantido pelo interesse econômico, ora por pura insistência da herança colonial brasileira, continua a ser incrementado.
A criança e o adolescente que são afastados das atividades que seriam indicadas para a fase em que se encontram ficam com danos irreversíveis que dificilmente poderão ser recuperados, tanto fisicamente, como emocional e intelectualmente.
A modernidade trouxe consigo o desejo de consumo. Para que se possa alimentar essa cultura, a produção deve reduzir custos. Neste contexto, nada melhor que a mão-de-obra infanto-juvenil, de baixa escolaridade, estimulada pelos pais e desinformada de direitos básicos. Carentes de levar o sustento para casa, por vezes vêem no labor um raio de independência, sem tem a mínima noção da armadilha que lhe tolhe o presente e o futuro.
Some-se a isto um Estado ausente, omisso em proporcionar opções de lazer, de esporte, de cultura. Ineficaz na fiscalização e despreocupado (ou bem ciente) com a questão. O trabalho infantil sequer é crime.
A partir da Constituição de 1988 o trabalho infanto-juvenil passou a ser encarado formalmente como um problema. O desafio é esclarecer as conseqüências que o trabalho precoce trazem à criança e ao adolescente, às populações econômica e socialmente excluídas, bem como sensibilizar o Estado e as Organizações.
O modo como um Estado trata suas crianças e seus adolescentes é o melhor indicador de como esse Estado se compromete com o respeito aos direitos humanos e com a dignidade de sua população. O Brasil ainda tem um longo caminho a trilhar, considerando o hiato que existente entre os compromissos legais assumidos e a repudiante realidade do trabalho infanto-juvenil, que precisa ter um fim.
6. Conclusão
O trabalho infanto-juvenil deve ser um dos principais desafios a serem enfrentados em um Estado Democrático de Direito. O compromisso do Estado, da sociedade e da família em relação às crianças e aos adolescentes previsto na Constituição da República Federativa do Brasil deve basear a busca pela efetivação de seus princípios fundamentais.
Arraigado às questões econômicas, sociais e culturais, o trabalho infanto-juvenil vem conquistando uma atenção cada vez maior na busca pela dignidade das crianças e adolescentes, posto que abarcados pela Doutrina da Proteção Integral e por encontrarem-se na condição peculiar de ser em desenvolvimento.
A criança e o adolescente que são afastados das atividades que seriam indicadas para a fase em que se encontram ficam com danos irreversíveis que dificilmente poderão ser recuperados, tanto fisicamente, como emocional e intelectualmente.
Tratar de trabalho infanto-juvenil é tratar de dignidade da pessoa humana. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é pressuposto na compreensão da abrangência dos direitos fundamentais. Daí a necessidade da previsão constitucional de sua garantia posto que o ser humano precede o Direito e o Estado.
Em conclusão, combater o trabalho infanto-juvenil é uma tarefa complexa, importa a todos e muito ainda há para ser alcançado.
Informações Sobre o Autor
Mônica Nicknich
graduada em Administração de Empresas pela ESAG/UDESC, em Direito pela UnC/Curitibanos, mestre em Administração pela ESAG/UDESC e mestre em Direito pela UFSC e servidora pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina