Conduta, responsabilidade… Kant e a imputação objetiva no Direito Penal

Resumo: O presente artigo visa analisar o fundamento do direito em Kant relacionando o pensamento kantiano a alguns aspectos da Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal. Em Kant, a obrigatoriedade das leis vem da razão e não da experiência, tendo o direito como fundamento a liberdade, no sentido transcendental que este empresta ao vocábulo. Igualmente, Kant concebe que uma pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. Assim, um fato recebe o nome de ação enquanto se encontra submetido às leis da obrigação e o sujeito nele é considerado como autor quando previamente tenha conhecido a lei em virtude da qual está atrelado por uma obrigação moral. Nesse sentido, para Kant haveria dois tipos de imputação: uma moral e outra jurídica. Já a Teoria da Imputação Objetiva entende que ainda que uma conduta possa estar formalmente adequada ao tipo penal, é necessário saber se esta é ou não relevante para o Direito Penal, do ponto de vista objetivo, tendo em vista as peculiaridades e circunstâncias existentes. Em suma, para a teoria em comento um resultado só será imputável quando constituir uma ação jurídico-penalmente relevante.


Palavras-chave: conduta, responsabilidade, imputação. 


Abstract: This paper aims to analyze the fundament of the law in Kant by relating Kant’s conception to some aspects of the Objective Imputation Theory in Criminal Law.  In Kant, the obligatority of laws comes from reason and not from experience, the law being the fundament of freedom, under the transcendental sense that he gives this word.  Likewise, Kant considers that a person is the one whose actions are susceptible to imputation.  Thus, a fact is given the name of action when it is submitted to the obligation’s laws and the person is considered as the author when he has previously known the law as a result of which he is compelled by a moral obligation.  In this way, for Kant there would exist two types of imputation:  a moral one and a juridical one. The Objective Imputation Theory understands that while a behavior may be formally adequate under the penal type, it is necessary to know if this is relevant or not to the Criminal Law, under the objective viewpoint, taking into consideration the existing peculiarities and circumstances. In short, under such theory a result will only be imputable when it constitutes a relevant penally-juridical action.


Keywords:  behavior, responsibility, imputation


Sumário: Introdução. Considerações históricas. A conduta moral em kant. O direito na concepção kantiana. Imputação objetiva e responsabilidade. Considerações finais. Bibliografia


INTRODUÇÃO


A história da Humanidade nos revela diversos episódios nos quais o homem utilizou sua liberdade, ora atuando no âmbito dos limites estabelecidos por normas de conduta, ora em detrimento destas, ficando ao alvedrio de cada época o julgamento da justiça ou injustiça das ações resultantes desse livre atuar humano.


Um conhecido exemplo do indevido uso da liberdade humana pode ser vislumbrado nos primeiros capítulos do Gênesis, onde o homem livre no paraíso e repleto de possibilidades de escolha a seu talante, resolve comer justamente o fruto proibido por Deus, violando, assim, a norma que preceituava: “…da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás.”.[1]


Segundo Kant, Adão pecou quando, na máxima de sua ação, subordinou a lei aos impulsos sensíveis; e isso com liberdade.  É o que a Escritura quer exprimir quando nos mostra Adão e Eva sucumbindo a uma sedução misteriosa.  Neste contexto, o homem não está, pois, corrompido essencialmente, muito embora não possamos compreender porque optou pelo mal.[2]


Cabe aqui a assertiva de que foi justamente devido a este lado sombrio da personalidade humana, cujo pendor para o mal é tão ou mais forte que sua disposição para o bem, que se fez necessário o surgimento de uma força reguladora capaz de estabelecer regras de conduta para a vida dos homens em sociedade, muito embora esta acepção não se esteja de acordo com a concepção de Kant, que entende que a obrigatoriedade das leis morais e jurídicas vem da razão.[3]  Para Kant, embora a máxima da ação seja subjetiva, a lei moral é objetiva. Eis aí o que Kant chama de princípio da autonomia da vontade.  Obedecemos à lei, segundo ele, porque somos nós mesmos que nos damos a lei.  Por esta razão, rejeita a idéia de uma moral externa, que para ele dependeria da vontade, ou seja, da adesão do sujeito para ser válida.  A liberdade da vontade é, para Kant, autonomia, ou melhor, autonomia da vontade, propriedade da vontade de ser lei para si mesma, inerente a todos os seres racionais.


Entretanto, esta idéia de liberdade como autonomia não é totalmente inovadora em Kant. Rousseau anteriormente já preconizava que o homem no estado civil é livre porque é autônomo, vez que obedece às leis que ele mesmo se dá.  Assim, para Rousseau, “A liberdade consiste na obediência à lei que prescrevemos a nós mesmos.”[4]


Igualmente, partindo da idéia do sentimento da responsabilidade da experiência da obrigação moral, Kant preconiza que a obrigação implica em liberdade, ao passo que a necessidade a exclui. Destarte, o fundamento da moral não está, pois, no prazer ou na felicidade, que sendo externos não podem criar o dever. Kant entende desta forma, que para agir moralmente não basta a mera concordância com o dever. O motivo da ação moral é o próprio dever, que gera no homem o sentimento moral que não é externo, muito menos oriundo da sensibilidade, é um sentimento produzido pela razão. Nesta concepção, o fundamento do direito em Kant, bem assim da moral, é, pois, a liberdade.


CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS


Para uma melhor compreensão do pensamento de Kant, convém situá-lo historicamente, de modo a melhor captar a realidade que norteou sua obra, bem como algumas concepções filosóficas de sua época e as principais influências que sofreu.


De 1755 a 1770 suas idéias pessoais ainda não haviam tomado forma, muito embora Kant comungue das idéias filosóficas predominantes na Alemanha desta época, a saber: do racionalismo dogmático de Leibniz.  Mas, ao ler Hume (que o fez compreender a idéia de repensar toda a metafísica), entendeu que o dogmatismo racionalista não apresentava proposições capazes de resistir à crítica do filósofo escocês.


No decurso desses anos lê Newton, Jean-Jacques Rousseau (de quem sofreu notória influência), dentre outros.  Newton deu-lhe o fundamento sólido para o exercício da razão, vez que um dos móveis da Crítica da Razão Pura (1781) foi justamente o de justificar a crítica newtoniana contra o empirismo e o ceticismo.  De Rousseau herdou a idéia de liberdade civil, e sua influência orientou os pensamentos de Kant mais aos problemas do que às soluções, como pode ser observado na Metafísica dos Costumes (1797) e na Crítica da Razão Prática (1788).


Na concepção de Kant, Rousseau realizou na ordem humana o que Newton fez na ordem natural: “descobriu a natureza do homem escondida no fundo da pluralidade das formas humanas manifestadas, e suas leis.” [5]


A liberdade enquanto autonomia, como pensava Rousseau, é o centro da filosofia prática de Kant, que desenvolve essa idéia com maior profundidade filosófica, superando as influências empíricas que ainda estavam presentes em Rousseau[6].


Em 1797 escreveu a primeira parte da Metafísica dos Costumes com o nome de Doutrina do Direito.  Este livro situa-se logo após alguns dos eventos da Revolução Francesa que ganharam projeção de fatos universais: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a proclamação da República (1792), a condenação do Rei Luís XVI (1793), sem falar nas primeiras vitórias sobre os austríacos (1796-97), tudo representando o avanço das idéias iluministas e rousseaunianas sobre o velho regime da monarquia absoluta.


Nesse sentido, Kant se faz eco com os acontecimentos que impulsionaram sua época, sendo fácil perceber que o mesmo é um fiel defensor do “estado de direito” e contrário a qualquer forma de alteração da vida constitucional e jurídica com base em procedimentos violentos ou revolucionários.


Cabe ressaltar que Kant é um homem do século XVIII imbuído de espírito crítico e positivo, bem como de forte idealismo moral; é, enfim, um homem que reflete o individualismo de seu tempo.


A CONDUTA MORAL EM KANT


A ação moral é, para Kant, aquela que não tem outra preocupação senão respeitar os ditames da razão.  A moral kantiana exclui a idéia de que possamos ser regidos por outra autoridade além de nós mesmos, ou seja, ela exclui a heteronomia, colocando a pessoa humana como medida e fonte do dever.


O dualismo kantiano implica ser o homem racional e também sensível. Enquanto ser racional o homem conhece a lei moral, embora não se possa dizer que a esta obedecerá, vez que pode ser afetado pela sensibilidade, pelas sensações.


Kant parte da idéia de que o homem, por ser livre, está submetido à lei moral (livre e submetido à lei moral são sinônimos).  A partir da lei moral consideramo-nos como livres, isto é, como autolegisladores, para depois concluirmos, a partir da liberdade, que estamos submetidos à lei moral.[7]  


Cabe salientar aqui, que na concepção de Kant não é o conteúdo material do ato que determina o juízo moral, mas sim a intenção, a boa vontade, ou seja, a vontade não afetada pelas inclinações, mas sim a vontade de agir por dever.  Por exemplo, o comerciante que atende lealmente aos fregueses age em conformidade com o dever, mas não por dever, se não tem em vista seu próprio interesse.  Do mesmo modo, a pessoa que leva uma vida feliz e se esforça em conservar a vida age em conformidade ao dever, pois a conservação da vida é um dever.  Ao invés, quem se esforça em conservar uma vida a que já não tem amor, este sim, age por dever. Ser benfazejo por prazer é, igualmente, agir em conformidade ao dever, mas não por dever.[8]  Por outro lado, quem pratica a beneficência, mesmo sem sentir-se inclinado a isso, possui um valor moral maior do que aquele que é benevolente por temperamento. Este valor maior lhe vem precisamente do fato de que ele faz o bem não por inclinação, mas por dever.


A sensibilidade do homem, que o expõe às sensações, não pode dar a máxima da ação, que deve ser buscada na razão, que cria para este, segundo Kant, a obrigação moral, que se expressa através dos imperativos categóricos, de modo a superar o conflito entre a razão e a sensibilidade.  Tais imperativos nada mais são do que proposições que prescrevem condutas éticas, como a que preceitua: “Procede de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio.”[9]


O fundamento da moral para Kant não está, pois, no prazer ou na felicidade, vez que, conforme aludido anteriormente, a moral kantiana exclui a heteronomia, a idéia de que o homem possa ser dirigido por algum outro fator externo a ele. Logicamente, o homem deve preocupar-se com sua felicidade, apenas não deve de modo algum levá-la em consideração quando se fala em dever. O agir com sentimento moral, ou seja, pelo dever, é o fator que nos tornará dignos da felicidade.


O DIREITO NA CONCEPÇÃO KANTIANA


Kant entende o direito como um ideal de justiça, ao qual qualquer legislação deve adequar-se para ser considerada justa. Dentro dessa concepção, Kant concebe o direito  não  como  este  efetivamente  é, mas sim  como deveria ser.[10] A este respeito, vale aqui demonstrar que a distinção entre ser e dever ser já existia no dualismo platônico, no qual Platão identifica ser e dever ser, concebendo que a idéia é o próprio ser de toda realidade.


Em Kant, a obrigatoriedade das leis, tanto as morais quanto as jurídicas, vem da razão, e não da experiência.  A Ética, como entende Kant, não pode ser empírica, isto é, não pode ser fundada em princípios da experiência do homem, mas sim em princípios outros, constituídos a priori pela razão.


O pensamento jurídico de Kant visa fundamentar o direito como liberdade, um dos fundamentos teóricos do próprio Estado liberal.  A liberdade e a igualdade vinculam o conteúdo da ordem jurídico-positiva, e o direito só será justo se nelas for fundado.


Há, pois, duas espécies distintas de legislação a se considerar: uma de ordem interna (moral) e outra externa (jurídica).  A liberdade interna de cada indivíduo seria a geradora da obrigação moral, ao passo que a liberdade exteriorizada geraria a obrigatoriedade de respeito às normas jurídicas, que seriam garantidas por um sistema de coação.[11]


Em relação ao ato ilícito, este representa para Kant um abuso da própria liberdade individual, com o qual é invadida a esfera de liberdade do outro. Kant considera a lei penal um imperativo categórico e considera infeliz aquele que não obedece a seus ditames. Assim, Kant entende que a pena não pode nunca ser aplicada como um simples meio de se obter um outro bem, nem ainda em benefício do culpado.[12]


O rigorismo kantiano em relação à lei penal pode ser observado em diversos aspectos, apontando até mesmo a morte como forma de livrar a sociedade do malfeitor. Assim, no tocante à responsabilização pela prática de um ato contrário à lei, Kant legitima a pena capital em diversas hipóteses, justificando-a como um ato da razão, ato este que, em sua concepção, deve ser querido e desejado por aquele que delinqüiu.


Todavia, Kant considera injustos determinados comportamentos conforme a lei, como é exemplo o estado de necessidade, caso em que, segundo ele, há a coação sem o direito correspondente. Pondera, ainda, que a lei em determinadas hipóteses pode ser injusta, como a pena de morte a ser aplicada à mãe que praticou infanticídio por motivo de honra,[13] visto que, na sua acepção, “a legislação não pode apagar a mancha de uma maternidade fora do matrimônio”, e a mãe que mata nestas condições, ainda que mereça uma punição, não deveria sofrer a pena capital, pois a criança, nesta hipótese, está fora do amparo da lei.


Entende Kant que a coação seria uma espécie de remédio amargo usado com o propósito de reconstruir, em favor do outro, a esfera de liberdade injustamente invadida com a prática do ato ilícito, sendo perfeitamente compatível com sua concepção do direito como fundamento da liberdade externa, vez que, para o filósofo, tudo que é contrário ao direito se constitui como um obstáculo à liberdade.  Igualmente, a coação não pode ser entendida como fundamento do direito, senão como nota essencial das normas jurídicas, justamente para garantir o convívio dos arbítrios.


IMPUTAÇÃO OBJETIVA E RESPONSABILIDADE


O pensamento positivista do século XIX concebia o princípio natural segundo o qual a todo conseqüente correspondia um antecedente preciso e determinado. Com o advento do século XX, porém, a teoria da relatividade colocou em xeque essa regra, apontando para o critério da probabilidade, segundo o qual há sempre uma margem de indeterminação nas relações, não se podendo considerar nada como absoluto.


Trazida a discussão para as ciências sociais, esclareceu-se que não era admissível falar em causalidade diante dos fatos sociais, uma vez que nestes há essencialmente o fenômeno da interação, sendo inadequado estabelecer uma relação de causa e efeito.


Por outro lado, a maneira de se conceber a Ciência do Direito está intimamente ligada à idéia de dever ser e, conseqüentemente, ao princípio da imputação.[14] Ao contrário do que ocorre com as leis da natureza, as proposições jurídicas não expressam uma relação de causa e efeito. Quando se afirma que o “metal aquecido dilata-se”, este juízo, que enuncia uma lei da natureza, rege-se pelo princípio da causalidade.  Ocorrendo a causa, necessariamente ocorrerá o efeito.  Ao contrário, a proposição jurídica que reza: “aquele que matar alguém deverá ser punido com pena de reclusão de seis a vinte anos”, não está afirmando que aquele que matar será necessariamente apenado, mas sim que deverá ser punido com a referida pena.[15]


Com o escopo de superar o dogma causal que entendia ser causa tudo que contribuiu para a produção do resultado lesivo, surgiu a teoria da imputação objetiva, que procede de Larenz e Honig (1927-1930) e tem atualmente em Roxin e Jakobs seus mais destacados representantes, teoria que, embora pese o nome, não tem propriamente o objetivo de imputar resultado, mas sim o de delimitar o alcance do tipo objetivo.[16]


Com efeito, o dogma da causalidade precisava ser revisto, uma vez que depender apenas da ausência de dolo ou de culpa já se mostrava insuficiente. Nasceu, então, a idéia de limitar o nexo causal, conferindo-lhe um conteúdo jurídico e não meramente naturalístico.[17] Não bastaria mais o simples elo físico ditado pelas leis da causa e efeito, pois se o nexo causal não tiver relevância jurídica, não haverá causalidade e, logo, não haverá imputação.


Cabe aqui ressaltar que a teoria em comento nada tem a ver com responsabilidade sem dolo ou culpa, ou sem culpabilidade, muito menos com imputabilidade penal.  Consiste tal teoria em atribuir um fato típico a seu autor do ponto de vista da causação objetiva, ou seja, atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico, num processo mental de adequação.


É sabido que viver em sociedade comporta determinados riscos, haja vista o progresso tecnológico e a agitação da vida moderna. Daí determinados riscos serem concebidos como riscos permitidos,[18] que nada mais são do que os riscos socialmente tolerados. Se permitido o risco, não caberá a imputação de uma conduta típica; se não permitido, porém, como regra, terá lugar a imputação objetiva do tipo.


Importa mais o conceito social e normativo definidor dos limites de cada atuação do que a capacidade pessoal do autor, de modo que o motorista que se conduz em excesso de velocidade incorre em um desvio de conduta, não interessando se assim procede dada a sua extrema perícia.  Por outro lado, se A, apesar de conduzir veículo automotor observando rigorosamente as regras de trânsito, vem a atropelar B, não haverá, malgrado a relação causal, a imputação objetiva do tipo de homicídio culposo, posto que A atuou dentro do risco permitido inerente ao tráfego viário.


Convém ressaltar que a relevância social de determinada ação será considerada não apenas em função da gravidade do dano ou da importância do bem jurídico, mas também de acordo com o grau de agressão ao conceito de justiça do homem comum, ou seja, será socialmente inadequada a conduta que venha a colidir com o sentimento geral de justiça, empregando-se aqui o senso comum, que toda pessoa medianamente equilibrada possui.


Vale, neste contexto, trazer Kant para esta realidade da teoria da imputação objetiva do Direito Penal, não sem antes lembrar de que suas idéias a respeito de condutas contrárias ao direito e imputação são as de um homem do século XVIII, e que certas proposições apresentadas pela teoria em comento, como é o caso do aludido risco socialmente permitido, possivelmente não seduziriam Kant.


Kant entende que uma pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. [19]Segundo ele, um fato recebe o nome de ação enquanto está submetido às leis da obrigação, por conseguinte, enquanto o sujeito nele é considerado segundo a liberdade de seu arbítrio.  O agente é considerado com relação a esse ato como autor do fato material, e este fato e a própria ação podem ser-lhe imputados, se previamente se tenha conhecido a lei em virtude da qual ambos entranham uma obrigação moral.[20]


Não se pode esquecer que Kant considera a existência de duas legislações: uma moral (de ordem interna) e outra jurídica (de ordem externa). Trata-se, aqui, do critério de distinção entre moral e direito que, segundo Kant, é o que se fundamenta na liberdade interna e na liberdade externa. Desse critério nasce a característica do dever jurídico de referir-se a uma ação pela qual eu sou responsável frente aos outros.[21]  Exatamente daí é que surge o fato de que os outros têm o direito de me obrigar a cumpri-lo. A interioridade do dever moral revela um caráter subjetivo, logo, ninguém pode me obrigar a cumpri-lo.  Em sentido contrário, o dever jurídico, sendo externo, no duplo sentido de que não impõe a ação pelo dever, mas somente a ação conforme o dever, e que impõe uma ação pela qual sou responsável frente aos outros, suscita nos outros o direito de obrigar e não exclui o fato de poder ser cumprido somente pelo impulso do medo de coerção.[22]


Na concepção kantiana, a aparente antinomia entre direito como liberdade e coerção é resolvida nos seguintes termos: a minha liberdade termina onde se inicia a dos outros, logo, um ato ilícito corresponde a uma não-liberdade para o outro e, exatamente por este gozar da mesma liberdade que eu, ainda que com uma liberdade limitada (pelo Estado), tem o direito de repelir o meu ato de não-liberdade.


Importante aqui aduzir que Kant entende haver dois tipos de imputação: uma moral e a outra jurídica.  A primeira consiste no juízo pelo qual se declara alguém como autor de uma ação. Se este juízo implica ao mesmo tempo em conseqüências jurídicas, derivadas dessa ação, a imputação é jurídica.  Para Kant, as boas ou más conseqüências de uma ação que deveria ocorrer em direito e as conseqüências da omissão de uma ação meritória não podem ser imputadas ao sujeito.  Logo, dentro deste raciocínio anterior, um motorista que trafega em alta velocidade com um automóvel cujos freios estão gastos e dá causa a uma colisão com a traseira de um caminhão, no momento que conduzia ao hospital uma senhora, idosa e doente, não responderia por crime algum na concepção de Kant, vez que sua ação meritória é passível de tornar irrelevante sua omissão (troca dos pneus). Ocorre que Kant leva em conta a intenção do sujeito, que neste caso era nobre, ou seja, corria porque visava salvar a vida da senhora idosa, ceifada bruscamente no acidente.  Já para a teoria da imputação objetiva, o motorista, ainda que coberto de boas intenções, não receberia sobre si a excludente de seu bom desígnio, vez que, ao ser negligente com o estado de conservação dos pneus e trafegar com estes em lamentável estado, criou para si e para sua acompanhante um risco socialmente relevante. A sua desídia causou uma morte que, objetivamente, lhe será imputada.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


O indivíduo na concepção kantiana é o sujeito cujas ações são passíveis de imputação, pois o mesmo está submetido às leis da razão que ele mesmo criou. Nesse sentido, sua conduta implica liberdade e é justamente esse arbítrio que o torna imputável e responsável frente aos outros. Por ser senhor de seus atos e possuidor de uma moral interna este indivíduo se submete às leis por sua própria vontade e porque dotado de razão e autonomia, ou melhor, autonomia da vontade. Desse modo, a imputação além de moral é um ato da razão que deve ser atribuída ao sujeito não somente pelo impulso do medo da coerção, mas como ser racional. A aparente antinomia entre direito como liberdade e coerção é resolvida no momento em que o indivíduo toma consciência de que seu ato ilícito viola a liberdade do outro. É nesse momento que o indivíduo autônomo transcende o plano da moralidade sendo capaz de ser responsável por seus atos diante da lei. A Teoria da Imputação Objetiva, a seu turno, não busca uma responsabilização do indivíduo por sua conduta no tocante à moral de um ato, muito menos subjetivamente, como quer Kant, mas sim objetivamente. Assim, imputável é o resultado que pode ser pensado conforme seu fim, deslocando a imputação da esfera ontológica para a normativa. 


 


Bibliografia

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BOBBIO, Norberto.  Direito e Estado no pensamento de Emmanuel Kant. (trad. Alfredo Fait). São Paulo: Mandarim, 2000.

GOMES, Alexandre Travessoni.  O fundamento de validade do direito – Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

KANT, Emmanuel.  Doutrina do direito. (Trad. Edson Bini). São Paulo: Ícone, 1993.

LUÑO PEÑA, Enrique.  Derecho natural – t. I.  3. ed. Barcelona: La Horniga de Oro, 1954.

PASCAL, Georges.  O pensamento de Kant.  (Trad. Raimundo Vier). Petrópolis: Vozes, 1983.

PIERANGELI, José Henrique. Escritos jurídicos penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

ROXIN, Claus.  Derecho penal.  Parte general – t. I. (Trad. Diego Manuel Luzón Peña et alii). Madrid: Civitas, 1997.

SALGADO, Joaquim Carlos.  A idéia de justiça em Kant, seu fundamento na liberdade e na igualdade.  Belo Horizonte: UFMG, 1995.

TAVARES, Juarez. Teorias do delito: variações e tendências. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980.

 

Notas:

[1] Gênesis, 2,16: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”

[2] Apud, Pascal, Georges (1983).

[3] Luño Peña, Enrique (1954) afirma que o racionalismo jusnaturalista de Kant “convierte a la razón em fuente de toda norma moral y jurídica” (p. 27 et seq.).

[4] Apud,  Bobbio, Norberto (2000, p. 74).

[5] Salgado, Joaquim Carlos (1995, p. 229).

[6] Conforme Salgado, “em Rousseau, os conceitos de ser e dever ser não são diferenciados; a natureza é o estado originário de que sai o homem e, ao mesmo tempo, o fim a que ele se volta; isso não se conforma com o pensamento analítico de Kant, quanto ao distanciamento conceptual de ser e dever ser” (op. cit., p. 230).

[7] Apud  Gomes, Alexandre Travessoni (2002, p.66).

[8] Observa-se que Kant submete a vontade humana à lei do dever, tirando a espontaneidade das ações humanas. Já não basta, pois, o cumprimento de um dever de forma espontânea e natural, vez que o mérito maior recebe aquele que cumpre seu dever mesmo sem alegria, ainda que de forma enfadonha. O mérito moral é, nesse contexto, medido pelo esforço que o indivíduo faz ao submeter sua natureza humana às exigências do dever.

[9] PASCAL, Georges (1993; p. 123-124). Vale apontar aqui que, de acordo com essa máxima, a escravidão seria condenável (vez que o escravo é meio, e não fim), bem como qualquer forma de exploração do homem pelo homem.

[10] Salgado, Joaquim Carlos (1995, p. 170). Embora Kant conceba o direito como dever ser, dá precedência ao dever sobre o valor, oferecendo um plus ao dever ser: a liberdade. Nesta sua concepção, Kant inverteu a ordem aceita por toda a Axiologia moderna, segundo a qual um ato deve ser cumprido porque vale.

[11] Observa-se nesta passagem que Kant não se preocupa “se” é possível o direito, mas “como” é possível, e a resposta é que ele só é possível se o próprio homem concebe a si mesmo como um ser autônomo, capaz de dar a si mesmo sua própria lei.

[12] Kant, Emmanuel (1993, p. 176). Nesta passagem, Kant demonstra, dentro de sua concepção, que a pena não deve possuir um caráter corretivo, mas deve, apenas e tão-somente, livrar a sociedade daquele que delinqüiu.

[13] Diz respeito ao infanticídio honoris causa, ou seja, em razão da honra, não agasalhado pela legislação penal brasileira  atual. O Código Criminal do Império, de 1830, previa penas reduzidas para a mãe que matasse o filho recém-nascido para ocultar desonra própria, bem como para terceiro que o fizesse, imbuído de semelhante propósito.

[14] Na concepção dos clássicos, representada, basicamente, por Carrara, a ação não desempenhava qualquer papel, como conceito isolado. Operava-se, então, quase que unicamente, com o princípio da imputação, que servia para fundamentar a responsabilidade do homem pelo delito que praticasse. Esta noção de imputação veio dos práticos e se prolongou no Direito Penal da Itália e da Europa até recentemente. In Tavares, Juarez, 1980, p. 7-8.

[15] “Da mesma forma que a definição dos fatos da natureza não pode se passar sem o princípio constitutivo da causalidade, as ciências normativas, segundo Kelsen, só são possíveis graças ao princípio da imputação” (Sosoë apud Gomes, Alexandre Travessoni, 2000, p. 138).

[16] Esta teoria surgiu com a finalidade de solucionar problemas não resolvidos pelas outras teorias da causalidade. Para alguns autores, a utilidade da teoria resume-se aos crimes culposos, para outros, também para os crimes dolosos. Muito embora se afirme encontrar-se em Hegel as raízes desta Teoria, para quem só se pode viabilizar-se uma imputação com os aspectos do evento naturalístico, que possam ser reconhecidos como próprios do autor, não se pode deixar de reconhecer a influência de Von Liszt (Pierangeli, José Henrique, p. 369).

[17] O termo mais apropriado seria o de teoria da não-imputação, uma vez que a aludida teoria visa evitar a imputação objetiva (do resultado ou do comportamento) do tipo penal a alguém, limitando o alcance da teoria dos antecedentes causais, sem, contudo, abrir mão desta.

[18] Roxin, Claus (1997, p. 371). Para Roxin, a expressão risco permitido deve ser entendida como uma conduta que cria um risco juridicamente relevante, mas que de um modo geral (independentemente do caso concreto) está permitida e, por isso, à diferença das causas de justificação, exclui a imputação do tipo objetivo.

[19] Kant, Emmanuel (1993, p. 37).

[20] Ibidem

[21] Ibidem

[22] Ibidem


Informações Sobre o Autor

Vany Leston Pessione Pereira

Advogada, professora de Direito Penal na Sociedade Unificada de Ensino Superior e Cultura, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Candido Mendes (Rio de Janeiro), Mestre em Direitos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilha), membro de Instituto de Estudos Criminais do Estado do Rio de Janeiro e doutoranda em Direito pela Universidad Del Museo Social Argentino (Buenos Aires).


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