1. DELIMITAÇÃO DO TEMA
Introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e regulamentado pela Lei nº 11.418, de 19/12/2006, o instituto da repercussão geral, ao permitir a filtragem das questões constitucionais a serem apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na órbita do controle difuso, produziu profunda transformação na sistemática de processamento e julgamento do recurso extraordinário.
Por se tratar de instituto jurídico inovador e de recente previsão no sistema processual brasileiro[1], a repercussão geral ainda demanda investigação detalhada acerca dos reflexos produzidos na ordem processual, decorrentes de sua utilização pelo STF.
Presente essa circunstância, o presente trabalho tem por objeto investigar se, nos recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida, as regras processuais atinentes ao impedimento e à suspeição do juiz têm incidência e, em caso afirmativo, em que extensão, tendo em vista o efeito transcendente resultante do julgamento a ser proferido pela Suprema Corte, cujos reflexos se farão sentir para além dos limites da relação jurídica existente entre as partes em litígio.
2. DO IMPEDIMENTO E DA SUSPEIÇÃO
Situada no rol dos pressupostos processuais de validade, a imparcialidade do juiz é a primeira e mais importante qualidade do julgador, constituindo verdadeira garantia da ordem pública. Tamanha é a sua relevância, que a Suprema Corte dos Estados Unidos proclamou, como garantia fundamental ínsita ao due process of law, a existência de um tribunal competente e imparcial.[2] Por essa razão, pode-se afirmar com Celso Agrícola Barbi que “o despreparo cultural ou a morosidade do juiz podem preocupar o litigante. Mas o fator que é realmente capaz de intranquilizá-lo, de fazê-lo descrer na justiça humana, é a falta de confiança na isenção do juiz”.[3]
A imparcialidade do julgador, entretanto, não é aferida de acordo com a livre discrição dos contendores. Muito pelo contrário. Ela resulta de circunstâncias expressamente previstas na legislação, em numerus clausus, e que deverão estar ausentes em relação ao magistrado. Nos artigos 134 e 135 do Código de Processo Civil encontram-se tipificadas as situações aptas a contaminar a isenção do juiz, que são ali agrupadas em dois níveis distintos, de acordo com respectiva gravidade: o impedimento e a suspeição.
O impedimento, que acarreta na proibição dirigida ao juiz de funcionar na causa, dá ensejo à nulidade absoluta dos atos praticados, pois assenta-se em presunção juris et de jure de que o magistrado não possui condições de atuar com imparcialidade.[4] Trata-se de vício de tamanha gravidade, que o legislador elencou como uma das causas aptas a dar ensejo à rescisão do julgado (CPC, art. 485, II).
A suspeição, por sua vez, se configura por circunstâncias em que o julgador tem o dever de se afastar a causa. Se o magistrado não o fizer de ofício, por não se considerar suspeito, caberá à parte, no prazo e forma legais, alegar a suspeição, sob pena de, no seu silêncio, operar-se a preclusão, fazendo com que o defeito deixe de produzir qualquer consequência jurídica no processo.[5]
Pode ser afirmar, portanto, com base na síntese magistral de Pontes de Miranda, que, “quem está sob suspeição está em situação de dúvida de outrem quanto ao seu bom procedimento. Quem está impedido está fora de dúvida, pela enorme probabilidade de ter influência maléfica para a sua função”.[6]
Em tipificação taxativa, o Código de Processo Civil (CPC) estabelece as hipóteses em que há impedimento (CPC, art. 134), bem como as situações configuradoras de suspeição (CPC, art. 135), in verbis:
“Art. 134 – É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:
I – de que for parte;
II – em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha;
III – que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão;
IV – quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau;
V – quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das partes, em linha reta ou, na colateral, até o terceiro grau;
VI – quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.
Parágrafo único – No caso do nº IV, o impedimento só se verifica quando o advogado já estava exercendo o patrocínio da causa; é, porém, vedado ao advogado pleitear no processo, a fim de criar o impedimento do juiz.”
“Art. 135 – Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:
I – amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
II – alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau;
III – herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;
IV – receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio;
V – interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.”
Examinando-se os dispositivos legais referidos, pode-se agrupar as hipóteses de impedimento e de suspeição basicamente em três categorias, quais sejam:
a) as relativas à situação pessoal do juiz (CPC, art. 134, I, II e III);
b) as pertinentes à relação do juiz com as partes do processo (CPC, arts. 134, IV, V, IV, e 135, I, II, III e IV); e
c) as pertinentes ao interesse em litígio (CPC, art. 135, V).
Importante observar que as situações tipificadas em lei têm íntima relação com o processo tradicional, de feição subjetiva, em que a decisão judicial, ao resolver o conflito, produz efeitos no âmbito restrito do interesse das partes em litígio. Por essa razão, de modo a preservar a igualdade entre os litigantes no caso em concreto, conferindo-lhes paridade de armas, é que o legislador discrimina uma série de situações que reclamam o afastamento do julgador parcial, por serem capazes de quebrar a equidistância que necessariamente deve haver entre o Estado-juiz e a apreciação do direito vindicado pelos contendores.
3. DO PROCESSO OBJETIVO. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS GERAIS
O conceito de processo objetivo está intimamente ligado ao controle de constitucionalidade em sua feição concentrada, levado a cabo pelo STF, com vistas à defesa em abstrato da ordem constitucional.[7] Trata-se de processo em que não figuram partes, “mas entes legitimados a atuar institucionalmente, sem outro interesse que não o da preservação do sistema de direito”. Por essa razão, a tutela de relações jurídicas concretas e individuais constitui matéria estranha aos seus domínios.[8] Diz-se, em realidade, que o STF atua como legislador negativo, no exercício de um controle político da Constituição.
Por não se destinar à solução de litígios em torno da defesa de direitos subjetivos ou pela aplicação de direito subjetivamente relevante, pode-se afirmar que o processo objetivo não se sujeita aos princípios do contraditório[9] e da ampla defesa[10].
Gabriela E. Córdoba, em síntese memorável, esclarece que: “[…] el procedimiento de control abstracto de constitucionalidad es un procedimiento objetivo, independiente de todo derecho subjetivo, que persigue la protección de la Constitución. Exclusivamente orientado hacia la preservación del derecho objetivo, no se trata de un procedimiento contradictorio en el que existen partes que litigan por derechos subjetivos, sino de un procedimiento tendiente a preservar el derecho constitucional. Por conseguiente, en este tipo de procedimiento no hay partes contrarias ni sujetos procesales en sentido estricto[…].”[11]
Como consequência das características referidas, no processo objetivo não se admite, em regra, arguição de impedimento ou de suspeição[12], ressalvada a hipótese de Ministro do Supremo Tribunal Federal que já tenha oficiado no feito na condição de Procurador-Geral da República[13] e de Advogado-Geral da União[14].
Em diversas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal houve por bem declarar essa diretriz[15]. Nesse sentido, revela-se paradigmático o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4-7, ocasião em que o Ministro Moreira Alves consignou em seu voto que: “[…] em processo objetivo, como é a ação direta de inconstitucionalidade, não há possibilidade de haver suspeição, porque não há interesse subjetivo em jogo. E, em matéria de impedimento, sempre entendi que só ocorre quando o Ministro figura nos autos como autor, réu ou representante do Ministério Público Federal”. Na mesma assentada, o Ministro Néri da Silveira igualmente salientou que: “[…] não há impedimentos em ação direta de inconstitucionalidade, pela própria natureza da ação, salvo em se tratando de juiz que, como Procurador-Geral da República, haja manifestado a respeito da causa”.[16]
4. DA REPERCUSSÃO GERAL
De modo a fazer frente à sobrecarga de processos em curso no STF, quando do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, entre outras medidas voltadas a conferir celeridade e efetividade à atividade jurisdicional, foi implementado o instituto da repercussão geral.
Por seu intermédio, cabe ao recorrente demonstrar, por ocasião da interposição do recurso extraordinário, que a controvérsia gira em torno de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e que ultrapassam os interesses subjetivos da causa (CPC, art. 543-A, § 2º).
As questões constitucionais impugnadas, portanto, devem atender a dois critérios simultaneamente. Assim, além daquelas relevantes, somente ensejarão o acesso à Suprema Corte, pela via do recurso extraordinário, as questões dotadas de transcendência[17], ou seja, que repercutirem para além das fronteiras do caso em concreto a ser julgado.
Como corolário lógico do adjetivo “geral”, que compõe a locução que denomina o instituto, a solução emprestada às questões constitucionais objeto do recurso extraordinário deverão alcançar, em maior ou menor dimensão e intensidade, um expressivo segmento da coletividade, um dado setor produtivo ou mesmo a coletividade em sua integralidade[18]. Pode-se, assim, afirmar com Bruno Dantas, que “a repercussão geral se refere à necessidade de que as questões constitucionais impugnadas no RE tenham a qualidade de fazer com que parcela representativa de um determinado grupo de pessoas experimente, indiretamente, sua influência”[19].
Presente essa circunstância, é perfeitamente possível afirmar que essa transcendência em relação aos direitos e interesses diretos e imediatos das partes, decorrente do instituto da repercussão geral, é a resultante de um processo de objetivação do recurso extraordinário[20], marcado pela desvinculação do julgamento em relação ao caso em concreto, com vistas à fixação de um posicionamento geral e abrangente a uma pluralidade de casos idênticos[21].
Esse fenômeno fica evidente quando se examina a regra inscrita no artigo 543-B do CPC[22], voltada à solução de controvérsias constitucionais idênticas, objeto de múltiplos recursos extraordinários. Mediante procedimento denominado por Barbosa Moreira de “recursos extraordinários por amostragem”, procede-se à seleção de recurso representativo da controvérsia constitucional, de modo a evitar que o Supremo Tribunal Federal tenha que apreciar repetidas vezes a repercussão geral das mesmas questões suscitadas pelos recorrentes.[23]
Relevante frisar que, mesmo quando a repercussão geral é negada, revela-se presente a transcendência. É o que se infere do § 2º do artigo 543-B do CPC, segundo o qual “negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos”.
Fixados os contornos gerais do instituto da repercussão geral, cabe examinar a sua compatibilidade com as disposições processuais pertinentes ao impedimento e à suspeição.
5. DO IMPEDIMENTO E DA SUSPEIÇÃO. LIMITES DE SUA COMPATIBILIDADE COM O INSITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL
Quanto às hipóteses de impedimento e suspeição relacionadas com a situação pessoal do juiz (CPC, art. 134, I, II e III) e com o interesse do magistrado em relação ao objeto do litígio (CPC, art. 135, V), não temos dúvidas em concluir pela sua total compatibilidade com o instituto da repercussão geral.
Realmente, não se revela adequado sob o prisma ético-jurídico, que o magistrado participe do julgamento de processo em que figure como parte (CPC, art. 134, I). A ninguém é dado ser juiz em causa própria. Assim, mesmo que o impedimento não se materialize no processo representativo da controvérsia submetido ao crivo do STF, mas em outro de idêntico objeto, deverá o magistrado afastar-se, forte no imperativo constante do artigo 134, I, do CPC.
Idêntica é a conclusão em relação às hipóteses previstas no artigo 134, II e III, do CPC. A anterior participação do magistrado no caso representativo da controvérsia, como decorrência do exercício anterior de outra função, contamina-lhe a isenção, quando a atividade exercida teve influência no resultado do processo. Assim, se oficiou nos autos na condição de mandatário de uma das partes, como órgão do Ministério Público, como perito ou testemunha, ou se proferiu julgamento no feito em grau de jurisdição inferior, estará configurado o impedimento. É de se ressaltar que mesmo no processo de fiscalização em abstrato da constitucionalidade, de índole puramente objetiva, o Supremo Tribunal Federal tem direcionado pela existência de impedimento em situações similares às previstas nos dispositivos em análise[24], de sorte que na repercussão geral não se poderá cogitar de solução diversa.
O mesmo se diga quando o magistrado for interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes (CPC, art. 135, V). A suspeição, no caso, assenta-se em interesse decorrente de vantagem material ou moral que o juiz possa vir a aferir como decorrência do resultado do processo.[25]
Em razão do processo de objetivação do recurso extraordinário, contudo, provocado pelo instituto da repercussão geral, as causas de impedimento e suspeição pertinentes à relação do juiz com as partes do processo (CPC, arts. 134, IV, V, IV, e 135, I, II, III e IV) não se revelam, em princípio, pertinentes.
Realmente, o fato, por exemplo, de o magistrado apresentar-se como detentor de parentesco com o advogado ou com a própria parte em determinado processo, ainda que seja aquele representativo da controvérsia (CPC, art. 543-B), não o torna suspeito para o debate, em tese, da questão constitucional submetida ao regime da repercussão geral, na medida em que há uma despersonalização do julgamento, cujos reflexos incindirão sobre os sujeitos dos múltiplos processos em jogo.
Entender-se de forma diversa implicaria na declaração de impedimento ou suspeição do magistrado, indistintamente, em relação a todos os processos que tenham por objeto a questão constitucional submetida à repercussão geral, ainda que neles inexista qualquer grau de parentesco com as respectivas partes ou advogados.
6. CONCLUSÃO
As hipóteses de impedimento e de suspeição podem ser agrupadas em três categorias, quais sejam: (a) as relativas à situação pessoal do juiz (CPC, art. 134, I, II e III); (b) as pertinentes à relação do juiz com as partes do processo (CPC, arts. 134, IV, V, IV, e 135, I, II, III e IV); e (c) as pertinentes ao interesse em litígio (CPC, art. 135, V).
Em razão do processo de objetivação do recurso extraordinário, contudo, provocado pelo instituto da repercussão geral, as causas de impedimento e suspeição pertinentes à relação do juiz com as partes do processo (CPC, arts. 134, IV, V, IV, e 135, I, II, III e IV) não se revelam pertinentes.
Por isso mesmo, nos recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida, as regras processuais atinentes ao impedimento e à suspeição do juiz não incidem em toda a sua extensão, mas apenas nas hipóteses em que a parcialidade decorrer de questão relativa à situação pessoal do juiz (CPC, art. 134, I, II e III) ou quando este tiver interesse na solução do litígio, como no caso previsto no art. 135, V, do CPC.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Simões Lindoso
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em Brasília perante os Tribunais Superiores.