A lei federal nº. 9.433, de 08 de janeiro de 1997, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com o objetivo de assegurar um precioso bem: a água, às atuais e futuras gerações, em qualidade e disponibilidade que sejam suficientes à preservação deste recurso através da utilização racional e integrada, da prevenção e da defesa dos recursos hídricos.
O texto foi claramente influenciado pela Declaração Universal dos Direitos da Água, documento originado da Conferência Internacional Sobre Água e Meio ambiente: o Desenvolvimento na Perspectiva do Século 21, realizado em Dublin (Irlanda) em 1992, evento que antecedeu a ECO 92, sediada no Rio de Janeiro e um dos mais importantes e influentes fóruns já realizados sobre o meio-ambiente em âmbito internacional, onde foi recomendada a compreensão da água como bem de valor econômico e, portanto, passível de tributação, como um dos itens da Agenda 21.
A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), a fim de alcançar seus objetivos definidos no art. 2º do referido diploma legal, assim como fez a Lei 6.938/81, que trouxe a Política Nacional do Meio ambiente, traz instrumentos capazes de alcançá-los, enumerados nos incisos de I a VI do art. 5º, quais são o Plano de recursos hídricos, o Enquadramento dos corpos d’água em classes, segundo os usos preponderantes da água; a Outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; a Cobrança pelo uso da água; a compensação a Municípios e o Sistema de informações sobre Recursos hídricos.
À luz de ter sido criada à égide da Constituição “cidadã” de 1988, a PNRH, obedecendo tendências trazidas de outras ferramentas administrativas de inserção democrática tais como o orçamento participativo e as audiências públicas, como inovação, trouxe a criação dos Comitês de Bacias como forma de gestão dos recursos hídricos.
“Lei 9.433/97. Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: (…)
VI – a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.”
Ainda, na formação dos Comitês de Bacia Hidrográfica, para além de assegurar o direito de participação e representação da sociedade, limitou a representação dos Poderes Executivos à metade da composição desta.
“ Lei 9.433/97 Art. 39. Os Comitês de Bacia Hidrográfica são compostos por representantes:
I – da União;
II – dos Estados e do Distrito Federal cujos territórios se situem, ainda que parcialmente, em suas respectivas áreas de atuação;
III – dos Municípios situados, no todo ou em parte, em sua área de atuação;
IV – dos usuários das águas de sua área de atuação;
V – das entidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia.
§ 1º O número de representantes de cada setor mencionado neste artigo, bem como os critérios para sua indicação, serão estabelecidos nos regimentos dos comitês, limitada a representação dos poderes executivos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios à metade do total de membros. (…) (Grifo nosso)
Por se tratar de um recurso natural, que mesmo antes de existir uma lei que regulasse seu uso e um Plano Nacional que lhe estabelecesse diretrizes, a água já permeava direta ou indiretamente diversas outras áreas de importância social, econômica e/ou ambiental anteriormente reguladas. Áreas afins legisladas posteriormente tiveram o Plano Nacional de Recursos Hídricos como referência, tal é o caso da Lei nº. 11.445/07 que estabelece as diretrizes nacionais de saneamento básico, que traz em seu art. 2º, VI e XII, referências tácitas à PNRH:
“Art. 2º. Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios fundamentais: (…)
VI – articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o saneamento básico seja fator determinante; (…)
XII – integração das infra-estruturas e serviços com a gestão eficiente dos recursos hídricos.” (Grifo nosso)
O caput do art. 4º estabelece de forma clara um importante ponto acerca do processo de tributação pelo uso da água, assim como seu parágrafo único traz de forma expressa a referência ao diploma legal em questão, qual seja a Lei nº 9.433/97.
“Art. 4º. Os recursos hídricos não integram os serviços públicos de saneamento básico.
Parágrafo único. A utilização de recursos hídricos na prestação de serviços públicos de saneamento básico, inclusive para disposição ou diluição de esgotos e outros resíduos líquidos, é sujeita a outorga de direito de uso, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997, de seus regulamentos e das legislações estaduais.”
No entanto, algumas outras áreas afins aos Recursos Hídricos foram legisladas antes de 1997, portanto, precederam a PNRH, é o caso da Agricultura, que teve sua Política Nacional instituída através da Lei 8.171/1991.
Ainda assim é possível apreender deste diploma ordenamentos que se adéquam à Política de Recursos Hídricos, ainda que não expressamente presentes no texto legislativo. É o caso dos arts. 3º,V e 4º, IV
“Art. 3°. São objetivos da política agrícola: (…)
V – proteger o meio ambiente, garantir o seu uso racional e estimular a recuperação dos recursos naturais;” (…)
“Art. 4°. As ações e instrumentos de política agrícola referem-se a: (…)
IV – proteção do meio ambiente, conservação e recuperação dos recursos naturais;” (…)
O Capítulo VI do referido diploma trata da “Proteção ao Meio Ambiente e da Conservação dos Recursos Naturais”. Logo em seu primeiro artigo, traz obrigações conferidas pelo legislador ao Poder Público e no parágrafo único extende-se essa obrigação ao proprietário, possuidor e beneficiários da reforma agrária, no intuito de preservar o meio ambiente, estando presente neste ínterim, é claro, a questão hídrica.
“Art. 19. O Poder Público deverá:
I – integrar, a nível de Governo Federal, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios e as comunidades na preservação do meio ambiente e conservação dos recursos naturais;
II – disciplinar e fiscalizar o uso racional do solo, da água, da fauna e da flora; (…)
V – desenvolver programas de educação ambiental, a nível formal e informal, dirigidos à população; (…)
VII – coordenar programas de estímulo e incentivo à preservação das nascentes dos cursos d’água e do meio ambiente, bem como o aproveitamento de dejetos animais para conversão em fertilizantes.
Parágrafo único. A fiscalização e o uso racional dos recursos naturais do meio ambiente é também de responsabilidade dos proprietários de direito, dos beneficiários da reforma agrária e dos ocupantes temporários dos imóveis rurais.”
Com relação à integração da PNRH com a Política Nacional do Meio Ambiente, a criação dos Comitês de Bacia Hidrográfica, em que pese ser um grande instrumento de inserção popular nas decisões que afetam a sociedade e o meio ambiente, segundo o Prof. Edimur Ferreira de Faria[1] criou um sério entrave pois as águas sob sua tutela estão em território, competência das Municipalidades, a quem compete também a guarda do meio ambiente, enquanto a atuação dos Comitês insurgirá um claro conflito de competências.
Para o referido autor, uma nova forma de composição e articulação da organização municipal é necessária, prevendo a intermunicipalidade, cooperação entre municípios que vivam as consequências de uma determinada bacia hidrográfica comum com o Comitê de Bacia respectivo a fim de realizarem efetivamente a integração entre as políticas de recursos hídricos e meio ambiente, uma vez que é praticamente impossível dissociar estes dois elementos e que, na atual conjuntura administrativa brasileira, resultaria em desperdício de dinheiro público e ineficácia na realização dos objetivos propostos haja vista que a atuação de forma precária numa extensa área e tendo, muitas vezes, recursos alocados duplamente para o mesmo fim, se comum.
Como se vê, a gestão dos recursos hídricos não pode ser entendida à parte de suas componentes complementares que interagem entre si de forma indissociável. Com efeito, o art. 31 da própria Lei que institui a PNRH orienta:
“Lei n. 9433/97. Art. 31. Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, os Poderes Executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federal e estaduais de recursos hídricos.”
Além da Integração desta Política com a do Meio Ambiente e de Saneamento Básico, outras mais se apresentam necessárias para o equilíbrio hídrico na interação com atividades econômicas; é o caso da pesca, geração de energia, transporte hidroviário e política agrícola.
As necessidades, interesses e objetivos de cada época exigiram a evolução das normas e instituições dos recursos hídricos brasileiros. É interessante observar, neste contexto, que as primeiras constituições brasileiras tutelaram os recursos hídricos para assegurar os direitos de navegação e pesca, tendo em vista a relevância econômica destas atividades para o país (HENKES, 2003).
A partir da segunda metade do século XX, a aceleração do crescimento econômico brasileiro exigiu maior intensidade e diversificação da utilização da água. Desta forma, a legislação pátria, especificamente o Código de Águas, passou a tutelar os recursos hídricos visando assegurar a produção energética. Este entendimento é corroborado ao verificar-se o elevado número de usinas e centrais hidrelétricas criadas no país neste período e também pelo fato de que as disposições do Código de Águas referentes à preservação, conservação e recuperação dos recursos hídricos não foram regulamentadas, ao contrário das disposições referentes à produção energética (HENKES, 2003).
Assim, apreende-se que somente com a integração e sinconicidade dos elementos referentes ao solo, recursos hídricos, saneamento básico, meio ambiente, pesca, agricultura e sem prejuízo de outras matérias que porventura não tenham sido aqui elencadas e que sejam por sua vez estritamente conexas ao desenvolvimento sustentável, pode gerar resultados que satisfaçam o que preceitua o artigo 225 da Constituição Federal. A Preservação ambiental deve ser vista a partir de um prisma holístico, que englobe todos os elementos interligados entre si e que atinjam o fim comum de desenvolver o país sem que se sacrifique a vida futura.
“Constituição Federal/88. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
Nota:
[1] FARIA, Edimur Ferreira de. “Os desafios da integração da gestão ambiental com a gestão de recursos hídricos”. Disponível em <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/ anais/bh/ edimur_ferreira_de_faria2.pdf>. Acesso em 29/04/2010.
Informações Sobre o Autor
Winder Oliveira Garcia
Acadêmico de Direito pela PUC Goiás