Resumo: O princípio da boa-fé vem ao longo do tempo sofrendo constantes mutações e se enriquecendo constantemente, de forma que defini-lo de forma definitiva torna-se impossível. No Direito Civil Brasileiro atual incorpora na sua tríplice função uma gama de valores éticos e morais que buscam atender a uma visão contemporânea de contrato e aos princípios constitucionais da dignidade humana e da solidariedade social.
Palavras-Chave: Contratos. Boa-fé. Direito Civil.
Abstract: The good-faith comes along the time suffering constant mutations and constantly getting rich, so that defining him/it in a definitive way becomes impossible. In the current Brazilian civil law it incorporates in your triple function a range of ethical values that look for to assist to a contemporary vision of contract and the constitutional beginnings of the human dignity and of the social solidarity.
Keywords: Contracts. Good-faith. Civil law.
Sumário: 1. Os novos paradigmas contratuais: a perspectiva contemporânea de contrato e a boa-fé objetiva; 2. O Princípio da Boa-Fé: Conceito e Breve Nota Histórica; 3. As Funções da Boa-fé no Direito Civil Brasileiro; Conclusão; Referências.
1. Os novos paradigmas contratuais: a perspectiva contemporânea de contrato e a boa-fé objetiva.
A concepção tradicional dos Contratos tem como base a idéia da autonomia da vontade. A formação da doutrina da autonomia da vontade tem como fator decisivo o Direito Canônico. Como assevera Cláudia Lima Marques,
“O Direito Canônico contribuiu decisivamente para a formação da doutrina da autonomia da vontade e, portanto, para a visão clássica do contrato, ao defender, a validade e a força obrigatória da promessa por ela mesma, libertando o direito do formalismo exagerado e da solenidade típicos da regra romana. O simples pacto faz nascer a obrigação jurídica, como fruto do ato do homem.”[1]
Dessa forma, a palavra dada conscientemente pelo contratante, criava uma obrigação que tinha como fundamento moral de que a promessa criava expectativas de proceder, que por isso, deveriam ser cumpridas.
É o direito natural que lança as bases teórico-filosóficas da concepção tradicional dos contratos, pois considera a liberdade para contratar como parte da liberdade natural, própria da existência do homem. Além disso, com a revolução francesa e as idéias que lhe deram azo, a visão tradicional dos contratos ganha novos ingredientes, já que segundo aquelas o Estado só existiria por concessão da vontade dos indivíduos. É a vontade dos indivíduos unida (contrato) que irá gerar o Estado. Mais do que fonte de obrigações, o contrato é a chave de toda autoridade. Assim, na vigência do Estado Liberal clássico do Século XIX, o princípio da autonomia da vontade tem seu auge, excluindo a intervenção do estado e permitindo que a liberdade de contratar – de modo que os integrantes das relações contratuais as regulassem da maneira que melhor os conviesse – fizessem circular as riquezas.
No entanto, os abusos cometidos pelos detentores do poder econômico que provocaram reações e a evolução da sociedade para uma sociedade industrializada, marcada pela produção e pelo consumo em massa, causaram transformações nessa visão que até então predominara no liberalismo.
A sociedade industrial do século XX, que tem como característica de seus negócios a produção e o fornecimento de produtos e serviços em grandes quantidades, tornou o comércio impessoal e fez com que as empresas se colocassem num patamar de superioridade em relação aos indivíduos consumidores, permitindo que fossem ditadas unilateralmente os termos contratuais por quem detinha o poder econômico. Com a vigência da ampla liberdade para contratar, o direito do Estado Liberalista simplesmente reconhecia a supremacia de quem detêm o poder econômico, o que terminaria por desequilibrar a sociedade. Assim, a concepção clássica de contrato entrou em crise, pois deixou de atender a realidade sócio-econômica que despontou no século XX.
Como relata Cláudia Lima Marques,
“Em muitos casos o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro o desnível entre os contratantes – um autor efetivo das cláusulas, outro, simples aderente – desmentindo a idéia de que assegurando-se a liberdade contratual, estaríamos assegurando a justiça contratual.”[2]
Junte-se a esse quadro o fato de que a concepção do Estado Liberal ausente entra em declínio, incapaz de atender as reivindicações da sociedade, principalmente das parcelas menos privilegiadas, dando lugar ao Estado Social atuante, que passa a intervir nas relações sociais e econômicas, mediante a prestação de inúmeras atividades sociais, atuando inclusive nas contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões e desequilíbrios.
Surge então nova concepção de contrato, a chamada Concepção Social do Contrato, que além de levar em conta a vontade das partes, também leva em conta as condições sociais e econômicas dos contraentes e se interessa pelos efeitos que o mesmo causará na sociedade. O direito passa então a exercer uma função limitadora da autonomia da vontade, levando em conta outros aspectos, inclusive a boa-fé dos contratantes.
Cláudia Lima Marques, ao se referir aos ensinamentos de Emilio Betti, diz que,
“a autonomia da vontade não seria a fonte única da obrigação. Na sua famosa definição, a autonomia de vontade deveria ser entendida como auto-regulamentação dos interesses particulares. O contrato seria um ato de auto-regulamentação de interesse das partes e, portanto, por excelência, um ato de autonomia privada, mas este ato só seria realizado nas condições permitidas pelo direito, pois só assim a lei dotaria de eficácia jurídica o contrato. A posição dominante, portanto, é a da lei.”[3]
Assim, o direito aparece em posição de primazia, podendo o contrato, reconhecido pela ordem jurídica, exercer sua função na auto-regulamentação dos interesses privados, em posição secundária, pois deve estar adequado ao direito.
O principal parâmetro a ser usado na aplicação dessa visão social dos contratos, em nossos tempos de sociedade industrializada e massificada, é o princípio da boa-fé objetiva, dentro de sua nova função e interpretação: Como limitador de direitos subjetivos nos contratos, como fonte de deveres de conduta em todas as fases contratuais e como fonte de interpretação dos contratos.
“Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.”[4]
Ainda segundo Cláudia Lima Marques, a imposição do princípio da boa-fé pela nota teoria contratual na formação e execução dos contratos, teve como resultado inicial a função de modificar o modo de visualizar estaticamente a relação contratual. Essa passa a ser vista como uma espécie de relação interconectiva, que “nasce, vive e morre” vinculando as partes contratantes num feixe de obrigações múltiplas e recíprocas.
2. O Princípio da Boa-Fé: Noções e Breve Nota Histórica.
Etimologicamente, o termo boa-fé tem como origem a expressão “bona fides” que quer dizer: fidelidade, crença, confiança, sinceridade, posicionando antagonicamente a má-fé que quer dizer engano, malícia, dolo. O princípio da Boa-Fé tem raízes no Direito Romano, uma vez que já na antiguidade se preocupavam os romanos com o estabelecimento de princípios na aplicação do direito. Apesar de nunca terem construido uma teoria geral do negócio jurídico, pode perceber que entre a vontade declarada e a vontade interna, inclinaram-se para a primeira em detrimento da vontade externa, pois “na maioria de suas instituições buscaram sempre o animus, affectus, ou consensus, ou seja, a verdadeira voluntas.”[5]
MENEZES CORDEIRO relata a origem da boa-fé na fides romana. A fides romana se concretizava nas relações entre a clientela e os patrícios[6]. A clientela era um tipo de extratificação social, um grupo de pessoas que se situavam entre o cidadão livre e o escravo, que em troca da promessa de proteção e favores (fides promessa), se submetiam a certos deveres de lealdade e obediência (fides poder). Progressivamente desaparecem os elementos de sujeição e da idéia de fides promessa evolui o elemento que vai importar para o Direito Civil, a idéia de garantia, ligada à palavra dada.[7] No entanto, ainda em Roma o instituto da boa fé dilui-se passando a identificar situações jurídicas distintas sem contornos claros quando visto de forma isolada. A situação é patente quando se migra do Direito das Obrigações para os Direitos Reais: o instituto da usucapio tem como requisito a bona fides, querendo dizer o estado de ignorância por parte do possuidor de vício ocorrido na aquisição do bem, sobre o qual será constituído o direito real.
Na cultura germânica, a fórmula do treu und glauben demarcam o sentido de boa-fé. Treu (lealdade) e glauben (crença), analisadas no contexto medieval dos juramentos de honra e das tradições cavalheirescas, traduzem um significado completamente diferente da boa-fé romana. A garantia de manutenção e cumprimento da palavra dada não se vincula mais a uma ótica subjetiva (do garante ou cliente), mas a uma perspectiva ética, objetiva, ligada à confiança geral estabelecida em nível de comportamento coletivo. “ ‘Fiadores e defensores’, como Lancelot, os chevaliers não agem por interesse próprio, mas tendo em vista os interesses do alter – da sua dama, do seu soberano, da sua coletividade”.[8]
No Direito canônico, a idéia de boa-fé estava completamente atrelada à idéia de pecado. À palavra dada e a promessa era atribuído valor moral, porque na cultura cristã a mentira é considerada pecado. Assim, a boa-fé passa a ter um significado unificado, cuja substância se encontra na idéia de “ausência de pecado”. Enfraquece-se o seu significado ético do direito obrigacional e é fortalecida a dimensão subjetivista. Esta última é fortalecida com a vinculação a idéia do pecado porque não basta mais a mera ignorância do vício é necessária a consciência íntima da ausência do pecado, de se estar agindo corretamente.[9]
O conceito de boa-fé da contemporaneidade tem início na França, com a promulgação do Código Civil dos Franceses em 1804, também conhecido como Código de Napoleão, como noção fundamental do direito dos contratos, que chegou a ter disposição expressa segundo a qual “as convenções devem ser contratadas e executadas de boa-fé”.[10] No entanto o Código Civil dos Franceses sob uma ótica hodierna teve seu dispositivo negligenciado, em razão das idéias liberalistas da autonomia da vontade, do medo da sua transformação em um dogma absoluto, ou da aplicação arbitrária dos juízes, como acontecia no antigo regime. A boa-fé volta a aparecer no Código Civil Alemão no fim do século XIX, mas sempre com projeção muitíssimo limitada no restante do mundo, ante o positivismo jurídico dominante.
Para a grande maioria dos legisladores do passado, princípios, entre eles o da boa-fé, eram vagos e imprecisos. A técnica legislativa nascente na revolução francesa primava por utilizar termos precisos, que não deixassem dúvidas quanto à obrigatoriedade das convenções, pois havia o medo da liberdade dada ao arbítrio judicial. A burguesia, enquanto classe social ascendente que assumia cada vez mais poder econômico, social e político desejava estruturas inclusive jurídicas capazes de atender a seus interesses e concepções que incluía medo do ancien régime.
“O temor de um “governement des juges” pairava como uma sombra sobre as reformas francesas pós-revolucionárias, lançando suas matizes sobre o processo de codificação. A ênfase na completa separação de poderes, com todo o processo legislativo alocado na legislatura eleita, foi uma forma de assegurar que ao judiciário seria negado o poder de elaborar o direito. A experiência com as corte do período pré-revolucionário provocara aos franceses preocupações de que os juízes pudessem ditar o direito sob o disfarce de interpretação jurídica. Em razão disto, alguns autores argumentavam que se deveria negar aos juízes até mesmo o poder de interpretar a legislação”.[11]
Na esteira desse pensamento e na ideologia liberal e individualista que permeou todo o século XIX, o princípio da boa-fé, apesar de presente na Codificação francesa em seu art. 1134, quando não é ignorado é empobrecido. Deixa de constituir um instrumento flexibilizador dos negócios jurídicos com o qual o interprete pode em certos casos limitar a autonomia privada e passa a ser sobretudo um instrumento de consolidação da ideologia dominante onde boa-fé passa a ser acima de tudo um instrumento de consolidação da autonomia da vontade e confirmador do pacta sunt servanda.
A boa-fé era apenas um princípio geral do direito, e sempre foi usado secundariamente, para sancionar ações desleais ou contrárias a equidade.
Somente na segunda metade do século XX, a partir dos anos 60 é que começa-se a transformar o conceito de boa-fé, diante das mudanças ocorridas na sociedade, do desenvolvimento do comércio internacional e do crescimento cada vez maior do consumo em massa e da preocupação com a proteção a parte mais frágil no contrato. A boa-fé passa a ter um fundo solidarista e de consciência ética da sociedade. Nos dizeres de LOUREIRO,
“a boa-fé agrega uma exigência ético-social que é, ao mesmo tempo, de respeito à personalidade alheia e de colaboração com os demais. Ela se distingue de outras exigências da convivência, em seu aspecto positivo, pois impõe, não simplesmente uma conduta negativa a respeito, senão um ativa colaboração com os demais, encaminhada a promover seu interesse.”[12]
Assim, por tratar-se de um conceito simples e amplo, pode ser aplicado dentro de qualquer negócio jurídico, vinculado a regras que destinem a sancionar um comportamento repreensível ou anormal. “A contratação de boa-fé é a essência do próprio entendimento entre os seres humanos, é a presença da ética nos contratos”.[13]
A boa-fé aparece primeiramente no Brasil no Código Comercial de 1850 em seu art. 131 que previa que sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, entre outras regras deveria se basear na inteligência simples e adequada, que fosse mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, devendo prevalecer ante a rigorosa e restrita significação das palavras. No entanto, tal dispositivo não teve grande apelo perante a doutrina e os tribunais. O Código Civil de 1916, de inspiração no direito francês, não consagrou a boa-fé expressamente como fazia o Código Comercial de 1850.
Apesar da aplaudida inovação do Código Civil de 2002, de consagrar expressamente o princípio da Boa-fé tem vários de seus dispositivos, preconizando que o mesmo deve ser guardado tanto na conclusão como na execução contratuais, o referido princípio sempre teve – como ainda o tem – pouca utilização ou sendo esta limitada. Os tribunais pátrios utilizam a boa-fé como fonte complementar do contrato, como fonte limitativa, mas tem resistência em que seja usada para revisar o contrato, insistindo na preponderância da obrigatoriedade do contrato. Outro ponto importante a se salientar é fato de que o legislador se referiu expressamente a obrigatoriedade dos contratantes em guardar a boa-fé e a probidade na conclusão e na execução do contrato, mas acabou por deixar de fora as fases pré e pós-contratuais, o que, no entanto, não quer dizer que o princípio não deva ser aplicado nas fases pré e pós-contratuais, cabendo uma interpretação extensiva do dispositivo legal.
MENEZES CORDEIRO em sua tese de doutoramento refuta qualquer tentativa de definição lapidar da boa-fé, pois acredita que a mesma não opera como um conceito comum e uma definição qualquer que seja, não expressaria o alcance e a riqueza reais do instituto. Para ele, “a boa fé traduz um estágio juscultural, manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio de certa ordem jurídica.” [14]
Da mesma forma que no Direito Civil Português, a boa-fé tem uma presença múltipla no Direito Civil Brasileiro, de modo que parece ser correto tal apontamento. No Código Civil de 2002 são vários artigos remetem à boa-fé. Ela também aparece associada ao Abuso de Direito, à Formação dos Contratos, à Posse, a Constituição de Direito Real, ao Casamento entre outros.
Estando tão presente em todo o Direito Privado e em razão da riqueza que sua construção histórica proporcionou através do tempo, arriscar-se em uma definição da boa-fé significa também arriscar a empobrecê-la, mutilá-la ou reduzir seu alcance dentro do ordenamento, enquanto idéia e valor jurídico.
Com efeito, a noção de boa-fé objetiva no contexto atual do Direito Contratual está profundamente ligada ao valor ética, e nesse sentido, dá juridicidade a idéias como lealdade, correção, veracidade e justa expectativa, que compõe o substrato da ética nos contratos, repercutindo dessa forma sobre todo o universo dos contratos inclusive sobre os demais princípios princípios contratuais.
O fundamento constitucional do princípio da boa-fé se encontra no próprio princípio da dignidade da pessoa humana (proclamado no inciso III do art. 1 da Constituição) e na construção de uma sociedade justa e solidária como objetivo constitucional (art. 3, I da Constituição Federal). A visão conjunta desses dois dispositivos constitucionais nos remete necessariamente a visão do ser humano como um indivíduo, mas um indivíduo inserto num núcleo maior, a comunidade, onde a dignidade de cada indivíduo e a comunidade como um organismo justo e solidário se constroem em todas as relações jurídicas com base em valores éticos.
“A tutela da personalidade não é orientada apenas aos direitos individuais pertencentes ao sujeito no seu precípuo e exclusivo interesse, mas, sim, aos direitos individuais sociais, que têm uma forte carga de solidariedade, que constitui o seu pressuposto e também o seu fundamento. Eles não devem mais ser entendidos como pertencentes ao indivíduo fora da comunidade na qual vive, mas, antes, como instrumentos para construir uma comunidade que se torna, assim, o meio para a sua realização.”[15]
Assim, a boa-fé como princípio contratual implica numa superação do individualismo da mera autonomia da vontade concebida na perspectiva tradicional dos contratos e a reconstrução das relações contratuais sob uma ótica da valorização do indivíduo enquanto ser humano, onde a sua inserção na comunidade socialmente solidária é mecanismo de sua realização.
3. As Funções da Boa-fé no Direito Civil Brasileiro.
Ante a riqueza que o princípio da boa-fé expressa, considerando-se ainda a dificuldade de lhe atribuir um conceito bastante e que ela expressa hoje uma série de idéias que vão ter como centro o valor ética, é comum para se compreender a sua operabilidade e efetividade no Direito Civil a tripartição da boa-fé em três funções, conforme. Essas três funções são a Função Hermenêutica-integrativa, a Função Extensiva de deveres jurídicos e a Função Restritiva de Direitos Subjetivos, a que se passa a analisar em separado.
A) A função Hermenêutico-Integrativa.
A boa-fé objetiva exerce importante função como elemento de interpretação do contrato. Das chamadas funções da boa-fé objetiva, é função hermenêutico-integrativa e a única que se encontra claramente expressa no Código Civil, nos seus artigos 113 e 421, não obstante as demais se encontrarem implícitas.
Conhecendo a riqueza do instituto e sabendo que o mesmo comporta uma gama de idéias que impedem até uma conceituação definitiva, fica fácil entender que a boa-fé vai impregnar completamente a relação contratual, desde os momentos pré-negociais até a fase pós-contratual onde se tem efeitos reflexos dos contratos. Normal que em todos esses momentos tenha-se o desenrolar de situações que nem sempre são previstas ou previsíveis pelos contratantes e que também não encontram referências nas disposições legais.
“A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à necessidade de qualificar esses comportamentos, não previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos efeitos correspondentes ao programa contratual objetivamente posto.”[16]
Nessa função específica, boa-fé significa um critério hermenêutico objetivo de que o juiz deve se valer na busca da supressão das lacunas da relação contratual, de forma a preservar as justas expectativas das partes contratantes, sempre tendo como foco último as finalidades econômicas e sociais do contrato.
Assevera JUDITH MARTINS COSTA que o princípio da boa-fé
“deve ser compreendido, neste específico campo funcional, o mandamento imposto ao juiz de não permitir que o contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista do seu escopo-econômico social, seria lícito esperar”[17]
Essa função, embora não se possa dizer ser a mais importante, pois todas vão ter papel essencial à concreção da ética nos contratos é sem dúvidas essencial, pois permite que se evidenciem as demais funções que a boa-fé irá exercer na relação contratual.
B) A Função Extensiva de Deveres Jurídicos.
MENEZES CORDEIRO, em seu trabalho sobre a boa-fé objetiva alvitra a complexidade das relações obrigacionais.
“A complexidade intra-obrigacional traduz a idéia de que o vínculo contratual abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta”[18]
Essa realidade composta, se observada do ponto de vista ético nos contratos, implica muitas vezes em extrapolar os deveres dispostos no texto contratual de forma a buscar a proteção das partes contratantes e de suas razoáveis expectativas. A par dos deveres já explicitados no texto contratual, a boa-fé tem o papel de ampliar as obrigações contratuais, integrando-as com obrigações instrumentais de conservação e respeito ao direito alheio, chamados deveres anexos. “Deveres de cooperação e proteção dos recíprocos interesses”, e se dirigem a ambos os participantes do vínculo obrigacional, credor e devedor”.[19]
Assim, tem-se por exemplo o dever do sigilo, como nas situações em que as partes devem guardar segredos sobre informações e situações que tomaram conhecimento em razão do contrato ou das negociações pré-contratuais, quando a difusão da informação possa ser prejudicial à parte contratante; O dever da informação, para que as partes tenham pleno conhecimento das recíprocas contraprestações oferecidas e das circunstâncias que as envolvem, dever que ganha relevo numa sociedade de consumo de massa e em que os objetos contratados muitas vezes envolvem conhecimento técnico além da capacidade do cidadão comum; O dever da colaboração, como os da prestação de assistência técnica na utilização de determinado produto que exija conhecimento técnico especializado, ou o dever de não dificultar o pagamento da obrigação, como na situação em que a empresa vendedora envia o boleto bancário para pagamento de forma que chegue com antecedência razoável ao consumidor; O dever do cuidado e proteção, como o do guardião de coisa que não se limita a guardar o bem, mas também tomar todo o cuidado necessário para a conservação da coisa com o seu adequado acondicionamento.
Esses deveres, recíprocos à ambas as partes, vale ressaltar não são destinados a diretamente permitir o desenvolvimento da relação contratual principal, como ocorreria com uma garantia real num contrato de mútuo. Tratam-se de deveres que tem o escopo de atender justa expectativa das partes, obrigando-as por esse motivo a realizar todos os atos necessários para que seja alcançado o fim desejado, ainda que tal comportamento não tenha sido explicitado como obrigação contratual, tendo em vista as finalidades econômico-socias específicas do contrato e que não se onere excessivamente nenhuma das partes.
C) Função Restritiva de Direitos.
Sob a ótica dessa função, a boa-fé assume função semelhante à figura do abuso de direito, não admitindo condutas que contrariem o mandamento de agir com lealdade e probidade, pois somente assim o contrato alcançará a funções sócio-econômicas que lhe são cometidas.
De se observar primeiramente que a Função Restritiva de Direitos da boa-fé objetiva não se confunde com a figura do abuso de direto. Construído inicialmente pela doutrina francesa[20] o abuso de direito acontece quando há o desvio ou a extrapolação da função ou finalidade social do direito. Assim, o limite do direito subjetivo é o seu próprio objetivo, de forma que se configurará o abuso de direito todas as vezes que esse limite for ultrapassado. Toda regra do ordenamento jurídico que cria um direito subjetivo, tem uma finalidade social que também é o elemento que justifica a existência dessa regra, a partir do momento em que é extrapolada essa finalidade, tem-se configurada a figura do abuso de direito.
A função restritiva da boa-fé objetiva, embora abarque também a restrição a comportamentos abusivos, tende a ter um efeito muito mais amplo do que a mera limitação daqueles. Ao exigir um padrão leal e honesto de conduta, termina alcançar situações que estão além do abuso de direito. Exemplos cabais disso são os casos de Adimplemento Substancial do Contrato e a Vedação ao Comportamento Contraditório.
Não se pode dizer que aquele que exige a rescisão contratual de um contrato que foi substancialmente adimplido, age com abuso de Direito. Assim, a teoria do abuso de direito é insuficiente para alcançar e proteger contra determinado credor aquele devedor que deixou de pagar 2 de 360 prestações devidas. Por outro lado, tomando-se por base os deveres de lealdade e cooperação, inerentes à boa-fé, é possível se inibir uma resolução contratual no exemplo.
Da mesma forma no caso da Vedação ao comportamento contraditório. O venire contra factum proprium consubstancia-se na existência de dois comportamentos mantidos por uma pessoa, de forma diferida no tempo que, individualmente considerados são lícitos. Ocorre que o primeiro comportamento é contrariado pelo segundo. Assim tem-se situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, comporta-se de determinada maneira, gerando expectativas em outra de que seu comportamento permanecerá inalterado.
Em vista desse comportamento, existe um investimento, cria-se uma confiança de que a conduta será a adotada anteriormente, mas depois de certo tempo, a conduta é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objetiva (que tem como um dos fundamentos básicos a tutela da confiança e da justa expectativa).
“(…) o reconhecimento da necessidade da tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos de sua adoção. Passa-se da obsessão pelo sujeito e pela sua vontade individual, como fonte primordial das obrigações, para uma visão que, solidária, se faz atenta à repercussão externa dos atos individuais sobre os diversos centros de interesses, atribuindo-lhes eficácia obrigacional independentemente da vontade ou da intenção do sujeito que os praticou.”[21]
Ensina ainda Menezes Cordeiro:
“A locução “venire contra factum proprium” traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esse exercício é tido, sem contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível.”[22]
Não existe uma relação necessária entre o comportamento contraditório e o Abuso de Direito. É possível que um contratante adote diversas conduta lícitas e que não exceda aos fins teleológicos do direito objetivo. No entanto, se observadas essas condutas no contexto da confiança e da justa expectativas também consubstanciadas no princípio da boa-fé, mesmo escapando à teoria do Abuso de Direito é possível evitar-se que um contratante se valha de direito estabelecido em lei ou em cláusula contratual de forma a frustrar os objetivos do contrato e a justa expectativa da outra parte.
Conclusão
È inegável a importância do princípio da boa-fé dentro das relações da sociedade moderna.
A sociedade hodierna é marcada pelas rápidas modificações das relações sociais que sofre e pela constante evolução técnica, o que faz com que o direito tenha que se adaptar de forma que possa cumprir seu papel.
As relações contratuais contemporâneas são marcadas basicamente pelo consumo de produtos e serviços em massa, despersonalizado e anônimo, caracterizado pela disparidade de condições daqueles que fornecem e daqueles que adquirem o produto, de ordem econômica, social e de conhecimento técnico. A exigência de padrões éticos nas relações contratuais torna-se instrumento de busca de equilíbrio jurídico nas relações sociais, buscando o comportamento probo e cooperativo, atendendo dessa forma a proteção da pessoa humana e sua dignidade e a construção de uma sociedade justa e solidária como objetivos da república.
Informações Sobre o Autor
João Emilio de Assis Reis
Mestre em Direito Privado pela UNIFLU-RJ, Doutorando em Direito pela PUC-SP, Professor de Direito Civil no UNASP-SP