Resumo: Este estudo teve como objetivo demonstrar que o direito penal não pode nem deve ser utilizado como medida de prevenção ou mesmo de correção para incrementar políticas de diminuição de diferenças que gerem desigualdades. Para isto foi escolhido como paradigma a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha ou da Violência Doméstica e seus efeitos ao longo dos 4 (quatro) anos de sua vigência.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha; violência doméstica; igualdade e diferença de gênero; políticas públicas.
Abstract: This study aimed to demonstrate that criminal law can not be used as a measure of prevention or correction to improve policies to decrease differences that generate inequality. To this was chosen as a paradigm Law 11340/2006, known as the Maria da Penha Law or the Domestic Violence and its effects throughout the 4 (four) years of its validity.
Keywords: Lei Maria da Penha; domestic violence; equality and gender difference; public policy.
Sumário: I. Introdução; II. Elementos normativos da Lei 11.340/2006; III. A igualdade e as diferenças de gênero; IV. Medidas protetivas, assistenciais e preventivas (?); Conclusões; NOTAS.
I. Introdução
“Un sistema penal está justificado si y únicamente se minimiza la violencia arbitraria en la sociedad. Este fin es alcanzado em la medida en la cual él satisfaga las garantías penales y procesales del derecho penal mínimo. Estas garantías, por lo tanto, pueden ser concebidas como otras tantas condiciones de justificación del derecho penal, en el sentido que sólo su realización es válida para satisfacer los fines justificantes”. Luigi Ferrajoli[1]
A Lei 11.340/2006, conhecida popularmente por “Lei Maria da Penha” em homenagem a farmacêutica Maria da Penha, desde que entrou em vigor, no dia 22 de setembro de 2006, acirrou as mais acaloradas polêmicas e, longe de encontrar-se um equilíbrio, encontramos e encontraremos na doutrina e na jurisprudência os mais diversos entendimentos e aplicações, principalmente por conta de sua constitucionalidade tópica (de alguns artigos polêmicos, como o art. 41), da igualdade de gênero, da falta de técnica jurídica e legislativa e da aplicação de suas medidas cautelares e protetivas.
Quanto ao estudo de sua constitucionalidade, na doutrina, remetemos a leitura de artigos de autores que optam pela constitucionalidade[2] e pela inconstitucionalidade[3], adiantando que juridicamente a questão foi levantada por iniciativa do Presidente da República, através do Advogado Geral da União, na ADC no 19/DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgada no dia 21 de dezembro de 2007, que em decisão monocrática negou a liminar requerida, entre outros motivos alegados[4] pela exigência da Lei nº 9.868/99 que prevê, estabelecendo o artigo 21 que o “Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, consistente na determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo”, remetendo per saltum a questão para a apreciação do Plenário no ano de 2008, não havendo notícia até o momento de seu julgamento definitivo.
Contudo adiantou o Ministro Marco Aurélio em seu voto:
“Repito, mais uma vez, eventual aplicação distorcida da Lei evocada pode ser corrigida ante o sistema recursal vigente e ainda mediante a impugnação autônoma que é a revelada por impetrações. Que atuem os órgãos investidos do ofício judicante segundo a organização judiciária em vigor, viabilizando-se o acesso em geral à jurisdição com os recursos pertinentes”.
A Lei 11.340/2006, foi elaborada após debates com varias entidades, conforme texto oficial[5]:
“O novo texto legal foi o resultado de um longo processo de discussão a partir de proposta elaborada por um consórcio de ONGs (ADVOCACY, AGENDE,CEPIA, CFEMEA, CLADEM/IPÊ e THEMIS). Esta proposta foi discutida e reformulada por um grupo de trabalho interministerial, coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, e enviada pelo governo federal ao Congresso Nacional. Através da relatoria do projeto de lei foram realizadas audiências públicas em assembléias legislativas das cinco regiões do país, ao longo de 2005, que contaram com intensa participação de entidades da sociedade civil e resultaram em um substitutivo acordado entre a relatoria, o consórcio de ONGs e o executivo federal que terminaria aprovado por unanimidade no Congresso Nacional e sancionado pela Presidência da República. Em vigor desde o dia 22 de setembro de 2006, a Lei Maria da Penha dá cumprimento à Convenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, da OEA (Convenção de Belém do Pará), ratificada pelo Estado brasileiro há 11 anos, bem como à Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da ONU”.
O objetivo desse estudo é estabelecer o âmbito de incidência da Lei 11.340/2006 sob os aspectos da igualdade e diferença de gêneros, das medidas cautelas e protetivas e da aplicabilidade na sociedade brasileira, no seio de suas famílias, e sua aceitação, deixando de lado a questão da constitucionalidade, tendo em vista que o órgão com competência responsável pela decisão final ainda não se pronunciou, e abordando a análise a partir de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de outros tribunais estaduais.
Faz-se necessário antes de realizar uma análise filosófica descrever os principais elementos da lei e como eles vêm sendo tratados pela doutrina e pela jurisprudência, para isso valemo-nos da descrição em relação ao § 9.o do artigo 129 do C. Penal:
“Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Aumento de pena
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)”
Os elementos a serem descritos, e que nos interessam, são: sujeito ativo, sujeito passivo, relações homoafetivas, âmbito de incidência e ação penal, procedibilidade e segurança jurídica.
Estudaremos depois os aspectos das diferenças de gênero e das medidas protetivas, assistenciais e preventivas em relação às vítimas de violência doméstica, com intuito de verificar se houve um incremento de benefícios e tutelas de direitos através dos mecanismos de inserção e apoio as mulheres vítimas de violência doméstica, no âmbito da igualdade, da justiça social e das políticas de prevenção.
II. Elementos normativos da Lei 11.340/2006
1. Sujeito ativo
Anteriormente à introdução da lesão corporal qualificada em relação à violência doméstica, § 9o do art. 129 do CP, qualquer pessoa poderia ser sujeito ativo de lesão corporal, pois não havia vinculo ou relação que especificasse que determinada pessoa em virtude desse vínculo ou relação fosse o autor, contudo com o advento da nova redação do citado parágrafo, tal condição se tornou uma exceção, pois se exige que o sujeito ativo tenha alguma relação ou vínculo com o sujeito passivo, não podendo ser um sujeito qualquer, qualquer pessoa, como iremos demonstrar.
Na primeira parte da redação do parágrafo, se a lesão corporal é praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, o sujeito ativo só, e somente, poderá ser um descendente, ascendente, irmão, cônjuge, companheiro ou com quem conviva ou tenha convivido, respectivamente, logo, como é obvio, um sujeito qualquer, um estranho, jamais poderá ser o sujeito ativo da lesão corporal qualificada com relação à violência doméstica, sendo impossível que um estranho que agride o irmão de alguém, sem que com eles não haja nenhum vínculo parental ou afetivo ou de relação doméstica, seja considerado sujeito ativo. Nesse caso temos como exemplos, agressões de irmãos contra irmãos, pais contra filhos e filhos contra pais, tios contra sobrinhos e vice-versa, cônjuges, um contra o outro, companheiro contra companheiro, ex-companheiro contra ex-companheiro, enfim, inúmeras relações de parentesco ou afetividade.
Na segunda parte do artigo a lesão corporal é praticada pelo agente que se prevalece das relações domésticas, de coabitação ou de hospedagem, identicamente o sujeito ativo não poderá ser qualquer um, terá que ser aquele que em sua casa recebe e aquele que é recebido para diversas relações, ou aquele que permite coabitar e aquele que coabita, e, aquele que oferece hospedagem e aquele que hospeda, um estranho que agredir um hóspede de alguém não pode ser sujeito ativo, posto que está fora da relação de hospedagem doméstica, pois esta se dá bilateralmente entre o hospedeiro que acolhe o hóspede em sua casa e o hóspede que é acolhido na casa de seu hospedeiro, assim se um vier a lesionar fisicamente o outro, quaisquer dos dois poderá ser o sujeito ativo, não um terceiro qualquer. Exemplos de sujeitos nesses casos são: patrões contra empregados domésticos e estes contra seus patrões (incluindo-se qualquer um que more na casa); pessoas que morem juntos sem que necessariamente tenham parentesco, umas contra as outras; hospedeiros contra hóspedes, em relação doméstica, não comercial (exclui-se hotéis, pousadas, estalagens etc.), logo, relações de âmbito doméstico entre as pessoas.
Portanto, errada a assertiva “A lei penal não individualiza determinado sujeito ativo para o crime de lesões corporais..”[6], uma vez que o § 9o do art. 129 do Código Penal, introduzido pela Lei no 10.886/2004, com redação modificada pela Lei 11.340/2006, qualificou a lesão corporal relativa à relação doméstica e determinou o sujeito ativo, individualizando e exigindo uma condição especial, qual seja, a exigida na sua redação e exposta nos parágrafos acima.
Logo, o sujeito ativo não poderá ser uma pessoa qualquer, terá que ser, necessariamente, uma das pessoas que mantêm o vínculo parental ou afetivo estabelecido na lei, e neste caso, a palavra afetividade foi semanticamente relacionada à convívio, pois este é o caso, p. ex., da relação de hospedagem, e logicamente da relação conjugal ou de namoro.
O Superior Tribunal de Justiça por diversas enfrentou a questão e proferiu decisões sempre no sentido da relação afetiva ou de intimidade, não sendo necessária a coabitação:
“Informativo nº 0384 – Período: 16 a 27 de fevereiro de 2009.
Terceira Seção
COMPETÊNCIA. AGRESSÃO. NAMORO.
Discute-se, em conflito de competência, se o disposto na Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é aplicável às relações entre namorados. Para a Min. Relatora, como o art. 5º da citada lei dispõe que a “violência doméstica” abrange qualquer relação íntima de afeto e dispensa a coabitação, cada demanda deve ter uma análise cuidadosa, caso a caso. Deve-se comprovar se a convivência é duradoura ou se o vínculo entre as partes é eventual, efêmero, uma vez que não incide a lei em comento nas relações de namoro eventuais. No caso, o suposto fato delituoso não se amolda aos requisitos exigidos na Lei Maria da Penha. Dessa forma, a Seção declarou competente o juízo de Direito do juizado especial criminal, o suscitado. Precedente citado: CC 85.425-SP, DJ 26/6/2007. CC 91.979-MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 16/2/2009.”
2. Sujeito passivo
No caso do art. 129, § 9o, do CP, o sujeito passivoé qualquer um que mantenha o mesmo vínculo estabelecido para o sujeito ativo acima, sendo seu gênero igualmente equivalente, podendo ser masculino ou feminino, homem ou mulher.
No caso do sujeito passivo ser feminino o tipo será regulado pela Lei 11.340/2006, que especifica várias situações que, nesse caso, não se aplicam ao sujeito passivo masculino.
O sujeito passivo descriminado no § 9o do art. 129 do CP: “… ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”; refere-se a qualquer gênero, masculino ou feminino.
Isto porque a redação oficial, curiosamente não mencionou o gênero, gramatical, feminino, pois há casos de gêneros comuns, como cônjuge (a ou o), ascendente (a ou o) e descendente (a ou o) e casos de gênero masculino, como irmão (o), e companheiro (o), não havendo previsão unívoca para o gênero feminino, como irmã ou companheira, mas, lógico, refere-se a irmão, p. ex., um irmão contra outro, seja homem contra mulher, mulher contra mulher, homem contra homem, ou mulher contra homem, bastando que o vínculo de parentesco seja o de irmão, mutatis mutandi para companheiro, sendo a de um companheiro contra o seu companheiro, homem ou mulher, o gênero do sujeito passivo tanto pode ser o masculino quanto pode ser o feminino, ele poderá ser um homem ou uma mulher, em sentido correto na doutrina: “Não houve qualquer referência à exclusão do homem de seu âmbito de proteção”[7], o que irá mudar será o tipo de ação penal quanto ao sujeito passivo, como veremos.
Porém, como alertado, todas as vezes que o sujeito passivo for feminino, mulher, não se aplica o § 9o do art. 129 do CP, aplica-se a Lei 11.340/2006, conforme determina o seu 1o artigo:
“Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”
3. Relações Homoafetivas
Nas relações homoafetivas, reconhecidas como de união estável ou sociedade de fato na jurisprudência[8], sendo formada por dois homens, tanto o sujeito ativo quanto o sujeito passivo são masculinos, ou seja, um homem, não incidindo a Lei no 11.340/2006[9], já que esta se refere à mulher, entretanto se a relação se der entre duas mulheres, tanto o sujeito ativo quanto o sujeito passivo, será necessariamente uma mulher, logo incidirá a Lei no 11.340/2006.
Cumpre informar que as relações homoafetivas são tratadas como de companheirismo ou convivência e mesmo que não o fossem estariam enquadradas na coabitação, quando esta se demonstrasse efetiva.
Na posição da ilustre doutrinadora Maria Berenice Dias[10] o espectro de incidência é abrangente ao ponto de abarcar as mais diversas combinações familiares e opções de gêneros sexuais:
No que diz com o sujeito passivo, há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Nesse conceito encontram-se as lésbicas, os transgêneros, as transexuais e as travestis, que tenham identidade com o sexo feminino. A agressão contra elas no âmbito familiar também constitui violência doméstica.
Ousamos discordar, mas o fato de se identificar com o sexo feminino não se faz legitimo para se considerar mulher quem é homem, se fosse assim as lésbicas, que são mulheres, por se identificarem com o sexo masculino, poderiam ser tratadas como se fossem homens? E por que o homem que não é transexual, travesti ou transgênero, mas é o sujeito “feminino” na relação, o “passivo”, não pode ser considerado também identificado com o sexo feminino? Será por que não veste calcinha e vestidos ou usa cabelos longos e maquiagem?
4. Âmbito de incidência
A norma penal, por conter comandos imperativos e cogentes, prevendo sanções de natureza coercitiva à liberdade, não pode ser interpretada com discricionariedade.
Segundo o escólio de Carlos Maximiliano[11]: “A exegese deve ser criteriosa, discreta, prudente: estrita, porém não restritiva. Deve dar precisamente o que o texto exprime, porém tudo o que no mesmo se compreende; nada de mais, nem de menos”.(grifos no original)
Em outras palavras, não se deve estender a interpretação, nem restringi-la, apenas formular-se um “meio termo” que seja adequado à aplicação.
Assim, podemos conjeturar a incidência da norma em estudo em duas vertentes: i) quanto ao local do fato e ii) quanto à relação dos envolvidos.
i) Quanto ao local do fato.
Novamente teremos que separar a redação do parágrafo em duas partes, ou seja, na primeira parte a lesão é praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge, companheiro, pessoa com quem conviva ou tenha convivido, e a segunda parte a lesão é praticada contra pessoas que mantém relação doméstica, ou coabitam, ou sejam hóspedes do sujeito ativo (= agente que pratica a lesão).
Sobre a primeira parte já advertimos que os vínculos que expressam a relação do sujeito ativo com o sujeito passivo são de natureza: (a) parental, quanto aos ascendentes, descendentes e irmãos, e, (b) afetiva, quanto aos cônjuges, companheiros e pessoas com quem conviva ou tenha convivido.
Desse modo, o vínculo que os une, no primeiro caso (parental), é indissolúvel enquanto um deles se mantiver vivo, posto que ninguém pode deixar de ser parente de seu parente, e no segundo (afetivo), o texto legal se incumbiu de solidificar o laço, a ponto de mantê-lo por tempo indeterminado, pois pessoa com quem tenha convivido, poderá ser ex-marido ou ex-companheiro.
Quanto à ex-namorado temos na jurisprudência julgados que não admitem que ex-namorado seja enquadrado na violência doméstica:
“Agressão de ex-namorado contra antiga parceira não configura violência doméstica, portanto não se enquadra na Lei n. 11.340/06, conhecida como Maria da Penha. Com esse entendimento, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, declarou competente o juízo de direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais, para julgar e processar ação contra agressor da ex-namorada. No caso, o homem encontrou a ex-namorada na companhia do atual parceiro e praticou a agressão. Ele jogou um copo de cerveja no rosto dela, deu-lhe um tapa e a ameaçou. O Ministério Público entendeu ser caso de violência doméstica e, por isso, considerou que deveria ser julgado pela Justiça comum. Acatando esse parecer, o juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete encaminhou os autos para a 1ª Vara Criminal da cidade. Porém, a Vara Criminal levantou o conflito de competência por entender que não se tratava de violência doméstica e, por essa razão, a questão deveria ser julgada pelo Juizado Especial. Em sua decisão, o relator, ministro Nilson Naves, destacou que a Lei Maria da Penha não abrange as conseqüências de um namoro acabado. Por isso, a competência é do Juizado Especial Criminal. Acompanharam o relator os ministros Felix Fischer, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Maria Thereza de Assis Moura, Jorge Mussi e Og Fernandes. O ministro Napoleão Nunes Maia Filho divergiu do relator e foi acompanhado pela desembargadora convocada Jane Silva. Segundo ela, o namoro configura, para os efeitos da Lei Maria da Penha, relação doméstica ou familiar, já que trata de uma relação de afeto.” STJ – 3a Seção – CC 91.980/MG, Rel. Min. Nilson Naves, j. 08/10/2008. (grifei)
E, temos as decisões que interpretam através do caso concreto, nexo causal e conduta dirigida a realizar a agressão em virtude do vínculo afetivo individual mantido pelo agressor que incorformado com o rompimento da relação age como esta ainda existisse no plano das paixões não correspondidas, aplicando ao problema da rejeição projetos de vingança, tais como ameaças, perseguições, agressões físicas e psicológicas et.
“Informativo nº 0388 – Período: 23 a 27 de março de 2009.
Terceira Seção
LEI MARIA DA PENHA. EX-NAMORADA. RELAÇÃO ÍNTIMA. AFETO.
Na espécie, foi lavrado termo circunstanciado para apurar a conduta do réu, suspeito de ameaçar sua ex-namorada. O juízo de Direito declinou da competência para o juizado especial, aduzindo que a conduta narrada nos autos não se encontra dentro das perspectivas e finalidades inerentes à Lei da Violência Doméstica. Por sua vez, o juizado especial criminal entendeu por suscitar conflito perante o Tribunal de Justiça, pois o caso em análise enquadrar-se-ia na Lei Maria da Penha, e este declinou da competência para o STJ. A Min. Relatora entendeu que a Lei n. 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, em seu art. 5º, III, caracteriza como violência doméstica aquela em que o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Contudo é necessário salientar que a aplicabilidade da mencionada legislação a relações íntimas de afeto, como o namoro, deve ser analisada em face do caso concreto. Não se pode ampliar o termo “relação íntima de afeto” para abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico. In casu, verifica-se nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade existente entre agressor e vítima, que estaria sendo ameaçada de morte após romper o namoro de quase dois anos, situação apta a atrair a incidência da referida lei. Assim, a Seção conheceu do conflito para declarar a competência do juízo de Direito. Precedente citado: CC 90.767-MG, DJe 19/12/2008. CC 100.654-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 25/3/2009.”
Veja-se que dependerá do que falamos anteriormente, a afetividade, mesmo que unilateral, irradia-se enquanto perdurar a não aceitação do rompimento, uma vez que, através desse incorformismo o sujeito age e sente no direito de manter a relação de afetividade embora ela não mais exista, reciprocamente, ou seja, ela existe de modo unilateral e suas ações são afetadas e perpetradas tendo como nexo causal essa afetividade não correspondida, mas que guarda relação com uma relação concreta anterior.
Assim, o que implica na incidência de situação de violência doméstica nestes casos é o vínculo, e não o local aonde a violência é pratica, se dentro do domicílio ou fora deste, pois, o vínculo persiste em existir, seja dentro de casa ou fora até mesmo da cidade ou do Estado, por isso, sem razão na doutrina[12]:
“Significa que, fora do ambiente doméstico e familiar, se o marido agride intencionalmente a esposa, ferindo-a levemente, aplica-se o art. 129, caput, do CP, sendo imposta a pena de 3 meses a 1 ano de detenção (tipo simples); se, contudo, a agressão, causando ferimento leve, é cometida pelo marido contra a mulher no âmbito doméstico ou domiciliar, incide o § 9.º do art. 129, com pena de 3 meses a 3 anos de detenção (tipo qualificado)”.
Tal assertiva é equivocada, pois como já mencionamos o que importa e qualifica é o vínculo, não o local, o lócus, no julgamento do conflito de competência mencionado, sobre a agressão de ex-namorado (STJ. CC 91.980/MG), o cerne da questão não se tratou do local em que a agressão foi praticada, mesmo porque tal se deu fora do ambiente doméstico[13], mas sim, da relação, do vínculo de convívio entre sujeito ativo e sujeito passivo, como a Desembargadora convocada Jane Silva afirmou no seu voto no CC 91.980/MG:
“o namoro configura, para os efeitos da Lei Maria da Penha, relação doméstica ou familiar porque se trata de uma relação de afeto, e o artigo 5º, inciso III, da referida lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento ou dano, “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.
Logo, quando houver qualquer vínculo mencionado na primeira parte do parágrafo, referente a parentesco ou a afetividade, não importará o local da prática do ilícito, se fora ou dentro do ambiente domiciliar, mas sim, se a agressão foi ocasionada em virtude da relação afetiva ou em virtude do grau de parentesco com a vítima.
Seria o máximo absurdo, na verdade catatônico, se o marido iniciasse uma discussão com sua mulher, dentro do âmbito doméstico e, malemolente, atraísse sua mulher para fora de casa e do outro lado da rua iniciasse a agressão, por estar fora do âmbiente doméstico. Tal situação é teratológica e foge completamente da interpretação legal.
Sobre a segunda parte, em relação às pessoas que mantêm relações domésticas, coabitam ou se hospedam, faz-se mister denotar a abrangência que o texto impingiu e as consequências desta “discrepância”, vejamos:
1. O agente que se prevalece das relações citadas, p. ex., o patrão com a empregada doméstica, aquele que mora junto com outro, o sujeito que recebe o hóspede em sua casa, pode muito bem se prevalecer justamente de tais condições e em face delas, coagir, ameaçar e vir a agredir, a vítima seja ela quaisquer das figuras, patrão ou empregada, hospedeiro ou hóspede, e esta agressão acontecer em qualquer lugar, uma vez que a lei diz “prevalecendo-se o agente”, explicamos, a empregada que cuida do senhor de idade avançada, a pretexto de dar um passeio pela cidade, pode obrigá-lo a ir a uma agência bancária, fora do horário de expediente, a um caixa eletrônico e lá chegando ela poderá agredi-lo e forçar que este saque dinheiro para sua satisfação, indaga-se: neste caso a violência se deu prevalecendo-se o agente da relação doméstica? Sim, uma vez que se ela não fosse empregada doméstica desse senhor, se prevalecendo dessa condição, suas chances de conseguir seu intento se reduziriam substancialmente; o local em que a violência foi praticada era ambiente doméstico? Não, ela se prevaleceu da relação doméstica e de confiança para ludibriar seu patrão e forçar com que este se submetesse ao seu propósito.
2. Não haveria sentido, p. ex., que, advertido sobre a lei, a pessoa que hospeda alguém em sua casa, se prevalecendo da condição de hospedeiro, convide o hóspede, que nada conhece do lugar, para dar um passeio e conhecer a cidade, e, chegando à rua, fora de casa, passe a agredi-lo, pois desse modo estariam os dois fora do âmbito doméstico. Já vimos no exemplo anterior que o que qualifica o tipo é o agente se prevalecer da relação, ou seja, não importa se hospedeiro e hóspede estão na rua ou em casa, o que conta é o fato da agressão advir desta mútua relação de confiança, este vínculo que os une, condição sine qua non para caracterizar-se como violência doméstica.
3. A pessoa que mora junto com outra pessoa, aquele que coabita, pode se prevalecer desta relação e conduzir a outra pessoa a uma casa de um terceiro e lá vir a agredir seu mútuo coabitante, desse modo, aquele que coabita agrediu o que consigo coabita dentro da casa de um terceiro, assim, a casa não era dos coabitantes, mas a agressão, conforme dito, foi se prevalecendo da condição de coabitar.
Logo, o texto legal não especificou, nem dá margem para se interpretar, que o local da violência tenha que ser o âmbito doméstico caracterizado como dentro da residência dos relacionados, sujeito ativo e sujeito passivo, podendo então ser praticada em qualquer lugar, bastando que seja em decorrência do agente se “prevalecer” da relação especificada.
ii) Quanto à relação dos envolvidos
Grande parte da relação dos envolvidos foi visto no tópico anterior, contudo há algumas observações que merece serem destacadas, tais como:
a) Conviva ou tenha convivido
Merece destaque o verbo conviver, conforme Antônio Houaiss[14]:
“Verbo conviver
transitivo indireto e intransitivo
1viver em proximidade; ter convivência
transitivo indireto e intransitivo
2ter relações cordiais; dar-se bem
transitivo indireto
3adaptar-se, habituar-se a condições extrínsecas (físicas, culturais etc.)
transitivo indireto e intransitivo
4compartilhar do mesmo espaço; coexistir”
Como é de se notar, novamente, a abrangência do texto dá margem para as mais esdrúxulas interpretações, contudo, o Superior Tribunal de Justiça ao negar incidência da Lei para o caso de um ex-namorado deixou claro que esta abrangência deve ser restrita, sendo assim, não queremos crer que esteja no âmbito de incidência da Lei: amigos, vizinhos e namorados de curta duração de relacionamento,mas tudo dependerá do vínculo afetivo e, igualmente, da duração, da intensidade e do grau de comprometimento da relação.
b) Relações domésticas, coabitantes e hóspedes
Novamente uma enorme abrangência, relações domésticas envolvem os mais diversos sujeitos: empregados domésticos, pessoas que freqüentem a casa para realizar venda em domicílio etc.; coabitantes: pessoas que morem junto, agregadas ou que dividam a mesma casa de cômodos; hóspedes: pessoas que pernoitam, com permanência estável ou não, na casa de um hospedeiro.
Dependerá da interpretação do caso concreto, dos fatos, seus antecedentes e vínculos causais, afirmar quanto uma pessoa tem afinidade com a outra a ponto de ser considerada como de relação doméstica, coabitação ou hospedagem, p. ex., sua permanência no estado qualificador, se se hospedou por pouco ou muito tempo, se teve relação doméstica duradoura ou passageira, se mora junto ou de vez em quando dorme no local etc.
O fato é que não se pode mensurar, e o texto legal não fez previsão, o quanto de afinidade deve ser apurada nas relações em face de sua durabilidade ou estabilidade, ficando a cargo da jurisprudência a tarefa de nos revelar quem pode figurar como sujeito de tais relações.
5. Ação Penal, procedibilidade e segurança jurídica
Logo que foi editada a Lei 11.340/06 foi motivo de várias especulações em torno do tipo de ação penal a ser interposta nos casos de lesão corporal, principalmente nos casos de lesão corporal leve e culposa, posto que o citado diploma legal em seu art. 41[15] veda a aplicação da Lei 9.099/95 (Juizados Especiais), independentemente da pena prevista para o crime, porém a polêmica gerou em torno do art. 16[16], que versa sobre a renúncia “nas”[17] ações penais públicas condicionadas a representação da ofendida, assim entendeu Damásio E. de Jesus[18] que nas lesões corporais leves e culposas a ação seria pública condicionada a representação, em sentido contrário entendeu, entre outros doutrinadores, Maria Berenice Dias[19] que nas lesões corporais de quaisquer naturezas a ação seria pública incondicionada, mormente porque se a Lei 11.340/06 excluiu a aplicação da Lei 9.099/95, logo, o conteúdo do art. 88 da Lei 9.099/95, v.g., “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”, não possui validade nos casos em que a lesão for causada em relação de violência doméstica contra a mulher, uma vez que a Lei 9.099/95 inteira é inaplicável, como visto, por força do art. 41 da Lei 11.340/06.
Contudo, por conta do polêmico art. 41 da Lei 11.340/06, encontraremos decisões as mais diversas, como no voto do Desembargador Marcus Basílio da 1a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[20]:
“A Lei 11340/06 não é inconstitucional. O tratamento mais rigoroso nela previsto decorre da vontade política do legislador que entendeu que medidas específicas da Lei 9099/95 não se mostravam suficientes ao combate daquele tipo de criminalidade, mormente, por exemplo, a lavratura do termo circunstanciado e a subseqüente liberação do agressor que livremente retornava ao lar, em regra acompanhado da própria vítima. No tocante à regra disposta no artigo 41 da Lei nº. 11340/06 penso que a intenção do legislador foi impedir a aplicação das normas específicas da Lei 9099/95, ou seja, aquelas próprias do Juizado Especial Criminal, não se aplicando aos artigos 88 e 89 do mesmo diploma legal”. (grifei)
Ou seja, entendeu o eminente Desembargador que o art. 41 da Lei 11.340/06 deve ser interpretado restritivamente, afastando a interpretação literal quanto a todos os procedimentos especiais da Lei 9.099/95, admitindo a representação na ação penal de natureza leve ou culposa (art. 88) e a suspensão do processo quando a pena mínima cominada for igual ou inferior a 01 (um) ano (art. 89). Sendo esta sua posição reiterada.[21]
Já a 6a Câmara Criminal do TJRJ entendeu que a Lei 9.099/95 não se aplica e os arts. 16 e 17 da Lei 11.340/06 são interpretados literalmente[22], não cabendo a “retratação”.
A 8a Câmara Criminal do TJRJ entende que no caso de um homem ser agredido por sua esposa o juízo competente é o criminal[23], confirmando decisão vista anteriormente, e confirmando que os casos de violência doméstica, previstos no § 9o do art. 129 do Código Penal, deixaram de ser crimes de baixo potencial ofensivo.
Mas, quanto à lesão corporal de natureza leve e a lesão corporal culposa, afinal dependem ou não dependem de representação, ou seja, a ação pública é condicionada ou incondicionada?
No dia 12 de agosto de 2008, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que, independentemente da lesão corporal, seja ela de natureza leve, grave ou gravíssima, culposa ou dolosa, a ação é pública incondicionada, justamente pelos argumentos expostos anteriormente, inaplicação da Lei 9.099/95, o que ocasionou a mudança de paradigma para as lesões de natureza leve e culposa, pois em face do aumento de pena na qualificadora do § 9o do art. 129 do Código Penal, violência doméstica, quando esta for praticada contra a mulher, incide a Lei 11.340/06 que veda as condições discriminadas pela Lei 9.099/95:
“Informativo nº 0363 – Período: 11 a 15 de agosto de 2008.
Sexta Turma
LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA.
Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão que deu provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo MP, determinando que a denúncia, anteriormente rejeitada pelo juiz de 1º grau, fosse recebida contra o paciente pela conduta de lesões corporais leves contra sua companheira, mesmo tendo ela se negado a representá-lo em audiência especialmente designada para tal finalidade, na presença do juiz, do representante do Parquet e de seu advogado. Com isso, a discussão foi no sentido de definir qual é a espécie de ação penal (pública incondicionada ou pública condicionada à representação) deverá ser manejada no caso de crime de lesão corporal leve qualificada, relacionada à violência doméstica, após o advento da Lei n. 11.340/2006. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, denegou a ordem, por entender que se trata de ação penal pública incondicionada, com apoio nos seguintes argumentos, dentre outros: 1) o art. 88 da Lei n. 9.099/1995 foi derrogado em relação à Lei Maria da Penha, em razão de o art. 41 deste diploma legal ter expressamente afastado a aplicação, por inteiro, daquela lei ao tipo descrito no art. 129, § 9º, CP; 2) isso se deve ao fato de que as referidas leis possuem escopos diametralmente opostos. Enquanto a Lei dos Juizados Especiais busca evitar o início do processo penal, que poderá culminar em imposição de sanção ao agente, a Lei Maria da Penha procura punir com maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a saúde de sua família; 3) a Lei n. 11.340/2006 procurou criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres nos termos do § 8º do art. 226 e art. 227, ambos da CF/1988, daí não se poder falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atingir a mulher, em casos de violência doméstica, familiar ou íntima; 4) ademais, até a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, dada pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos à lesão corporal leve qualificada praticada no âmbito familiar, corrobora a proibição da utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando assim a exigência de representação da vítima. Ressalte-se que a divergência entendeu que a mesma Lei n. 11.340/2006, nos termos do art. 16, admite representação, bem como sua renúncia perante o juiz, em audiência especialmente designada para esse fim, antes do recebimento da denúncia, ouvido o Ministério Público. HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008.”
Entretanto, como visto, acertadamente, nas decisões da 4a e da 8a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no caso em que o sujeito passivo, vítima, é do sexo masculino, homem, não poderá ser aplicada a Lei 11.340/06, posto que esta foi promulgada para prevenir a violência doméstica, nos termos dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, contra a mulher. Neste caso, aplicar-se-á tão somente o § 9o do art. 129 do Código Penal, lesão corporal qualificada pela violência doméstica, não se aplicando a Lei 9.099/95 por não ser mais considerado crime de baixo potencial lesivo, haja vista cominar pena máxima de 03 (três) anos, entretanto, ressalve-se, entendemos que neste caso, a vítima é homem, aplicam-se os arts. 88 e 89 da Lei 9.099/95, sendo assim, é possível haver suspensão do processo e nos casos de lesão corporal leve ou culposa a ação penal é pública condicionada a representação da vítima.
Construindo-se um quadro ficaríamos então com as seguintes situações para lesão corporal leve ou culposa: quando ela for qualificada pela violência doméstica (a) e quando ela for “comum”, ou seja, sem predominância da relação doméstica (b)
a) lesão corporal qualificada pela violência doméstica, art. 129, § 9o do Código Penal (leve ou culposa):
b) lesão corporal não qualificada pela violência doméstica, art. 129, caput e § 6o, do Código Penal (leve ou culposa):
Essas decisões se repetiram reiteradamente no Superior Tribunal de Justiça durante os anos de 2008 e 2009, HC 108.098-PE[24] e HC 106.805-MS[25].
Contudo, as mais variadas decisões povoaram os tribunais pelo país afora, gerando uma enorme gama de recursos repetitivos, ou seja, pelos mesmos motivos e direitos questionavam a procedibilidade da ação penal ser pública e incondicionada à representação para os crimes de lesões corporais leves ou culposas, principalmente porque em várias situações havendo o entendimento entre a agredida e o agressor uma ação penal é fator desagregador para o bom entendimento familiar, não cabendo ao Estado fazer o papel de juiz nestes casos, por isso no início do ano de 2010, em 24 de fevereiro de 2010, a Terceira Seção, formada pela reunião da 5.a e 6.a Turmas, do Superior Tribunal de Justiça, resolveu, por maioria, que nos casos de lesões corporais leves é necessária a representação da vítima e por isso a ação é pública condicionada à representação:
“Informativo nº 0424 – Período: 22 a 26 de fevereiro de 2010. – Terceira Seção
REPETITIVO. LEI MARIA DA PENHA.
A Seção, ao julgar recurso sob o regime do art. 543-C do CPC c/c a Res. n. 8/2008-STJ, firmou, por maioria, o entendimento de que, para propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves (Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), pois se cuida de uma ação pública condicionada. Observou-se, que entender a ação como incondicionada resultaria subtrair da mulher ofendida o direito e o anseio de livremente se relacionar com quem quer que seja escolhido como parceiro, o que significaria negar-lhe o direito à liberdade de se relacionar, direito de que é titular, para tratá-la como se fosse submetida à vontade dos agentes do Estado. Argumentou-se, citando a doutrina, que não há como prosseguir uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com a definição de alimentos, partilha de bens, guarda e visitas. Assim, a possibilidade de trancamento de inquérito policial em muito facilitaria a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor. Para os votos vencidos, a Lei n. 11.340/2006 afastou expressamente, no art. 41, a incidência da Lei n. 9.099/1995 nos casos de crimes de violência doméstica e familiares praticados contra a mulher. Com respaldo no art. 100 do CP, entendiam ser de ação pública incondicionada o referido crime sujeito à Lei Maria da Penha. Entendiam, também, que a citada lei pretendeu punir com maior rigor a violência doméstica, criando uma qualificadora ao crime de lesão corporal (art. 129, § 9º, do CP). Nesse contexto, defendiam não se poder exigir representação como condição da ação penal e deixar ao encargo da vítima a deflagração da persecução penal. REsp 1.097.042-DF, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 24/2/2010.”
Por isso, quando citamos a segurança jurídica foi para mostrar que muitas vezes ela dependerá da fluidez entre uma interpretação restritiva ou outra mais abrangente, mais voltada para o caso concreto e para a verdadeira função do direito penal na sociedade, muitas vezes as mudanças se operam no seio social e vão evoluindo até os tribunais, como que costumeiramente o operador do direito, consegue se sensibilizar, e enxergar, a diferença que existe entre o que quer a lei e que quer a vida, não que haja má-fé ou má intenção legislativa, mas pode lhe faltar a racionalidade objetiva mais simples, que é a da vida cotidiana e dos efeitos que se fazem insurgir quando as mudanças abruptas oferecem, quaisquer que sejam, ameaças aos seus costumes tradicionais.
Em suma, numa sociedade machista e paternal, secular, que se construiu no jargão do “chefe de família” e da figura paterna como cabeça da união familiar, com a mulher cumprindo o papel de administradora do lar e dos filhos, com exceções das duplas jornadas, não seria de se esperar que uma mudança abrupta de natureza legislativa fosse penalizar as brigas e desavenças familiares, onde o homem, quase sempre, leva a discussão para a agressão física.
Desta forma o nosso quadro acima, quadro 1, válido para os anos de 2009 e 2010, sofre modificações para o ano de 2010 quando a lesão for de natureza leve, assim:
Por via das dúvidas o leitor atento vai guardar os três quadros, pois alternadamente eles podem vir a ser atuais, dependerá da composição das turmas e as decisões de seus julgadores ao longo do tempo, lembrando-se que se iniciou com o quadro 1 e quadro 2, não houve mudança quanto ao quadro 2, já o quadro 1 evoluiu para o quadro 3, ou seja, esse foi o percurso da segurança jurídica durante os anos de 2006 a 2010.
Curiosamente a “Lei Maria da Penha” protege a mulher no “ambiente doméstico”, não protege toda e qualquer mulher, explico, um estranho qualquer que venha a agredir uma mulher por um motivo qualquer que não seja relacionado com o trato doméstico, p. ex., numa discussão na rua, em torno de um mal-entendido qualquer ou numa briga de trânsito, dando-lhe um tapa no rosto, lesão corporal leve, responderá como demonstrado no quadro 2, ação pública condicionada a representação da vítima, juizado especial criminal, admitindo todas as prerrogativas da Lei 9.099/95.
Neste ponto, arrisco a afirmar que é desproporcional e porque não dizer preconceituosa em face da própria mulher, pois a mulher sozinha que trabalha duro para se sustentar e a seu filho “sem pai”, ou mesmo a que trabalho duro para sobreviver, constitui uma família, não é uma desamparada ou despossuída pelo fato de não contar com parentes, amigos ou um marido, companheiro, ou, seja lá o que for, não se vislumbra que a dignidade possa servir de tabula rasa para sopesar a situação de uma frente à outra, ambas são absolutamente mulheres, merecem, pois tratamento idêntico, independentemente de manterem ou não manterem relações domésticas ou afetivas, ou então, a “mulher da rua”, a moradora de rua, a nômade, sem local fixo, sem nenhuma relação doméstica, não será mulher? Não terá dignidade? Não é merecedora de proteção (pelo fato de estar “excluída”)? O fato de ser sozinha e não ter com quem contar, por si só, não justifica o dever do Estado em proteger?
A Lei 11.340/06 estabelece em seu art. 5o o âmbito de incidência de sua aplicação[26] e celebra em seu art. 17o o princípio da irretratabilidade material[27] nos casos de “violência doméstica e familiar” contra a mulher, ou seja, não admite que nesses casos a violência contra a mulher possa ser ressarcida pecuniariamente, contudo, como exposto acima, qualquer um pode bater numa mulher qualquer, fora do âmbito de incidência da violência doméstica e familiar, e pagar uma cesta básica ou multa, recordando a Roma Antiga (A.C.) na narrativa de Valdir Florindo[28]:
“que ao redor do ano 452 A.C., a indenização por danos equivalia a 25 asses. Devido à ínfima importância, Licius Veratius esbofeteava o rosto de cidadãos livres que encontrava na rua, vindo atrás de si um escravo entregando 25 asses a todos os em que o dominus batia”.
Ou seja, arriscamos dizer que a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, contém certas proposições normativas que não se adéquam ao ordenamento jurídico pátrio por conta da falta de apuro racional e realístico em consonância com a sociedade brasileira.
Cumpre ainda informar, para dirimir dúvida, que a Lei Maria da Penha, Lei 11.340/2006, refere-se não apenas aos crimes, ou seja, aquelas infrações penais em que são cominadas penas de detenção e reclusão, comuladas ou não com as penas de multa, assim os delitos referentes às vias de fato, p.ex., da Lei de Contravenções Penais, entende o STJ que mesmo sendo delito de contravenção penal, tendo sido este perpetrado por motivação de violência doméstica, deve ser enquadrado como violência doméstica, na forma da Lei 11.340/2006, sendo inaplicável a Lei 9.099/1995 – Juizados Especiais Criminais:
“Informativo nº 0402 – Período: 10 a 14 de agosto de 2009.
Terceira Seção
COMPETÊNCIA. CONTRAVENÇÃO. LEI MARIA DA PENHA.
No caso, o autor desferiu socos e tapas no rosto da declarante, porém sem deixar lesões. Os juízos suscitante e suscitado enquadraram a conduta no art. 21 da Lei de Contravenções Penais (vias de fato). Diante disso, a Seção conheceu do conflito para declarar competente o juízo de Direito da Vara Criminal, e não o do Juizado Especial, por entender ser inaplicável a Lei n. 9.099/1995 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, ainda que se trate de contravenção penal. Precedentes citados: CC 104.128-MG, DJe 5/6/2009; CC 105.632-MG, DJe 30/6/2009, e CC 96.522-MG, DJe 19/12/2008. CC 104.020-MG, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12/8/2009.”
III. A igualdade e as diferenças de gênero.
As democracias liberais adotaram estatutos pautados no princípio da igualdade de cunho antidiscriminatório, contudo estes estatutos não propiciaram a igualdade de gêneros e são de cunho meramente formais.
O problema da igualdade de gêneros é antes um problema da distribuição de oportunidades e benefícios em contrapartida aos deveres. Uma sociedade que foi construída e formatada pela ação contínua de pessoas do sexo masculino, que sempre ocuparam os cargos mais importantes em todas as esferas, principalmente os cargos políticos decisórios, essa sociedade não pode absorver completamente de uma hora para a outra uma igualdade material, que proclame que a partir de então “homens e mulheres são iguais e podem usufruir igualmente de todas as oportunidades”, mesmo porque está premissa seria inverídica e contraditória.
O jurista italiano Luigi Ferrajoli[29] relaciona igualdade e diferença através de quatro modelos jurídicos que são úteis para a interpretação jurídica dessas premissas.
O primeiro modelo é o da indiferença jurídica das diferenças, segundo este modelo as diferenças não se valorizam nem se desvalorizam, não se tutelam nem se reprimem, não se protegem nem se violam, devem ser ignoradas. É o paradigma hobbesiano do estado de natureza e da liberdade selvagem. É o estado de anomia, característico das sociedades paleoliberais singularizadas pelo caráter mínimo do direito e dos poderes do Estado e pelo jogo livre e irregular dos poderes privados.
O segundo modelo é o da diferenciação jurídica das diferenças, que se expressa na valorização de algumas identidades e na desvalorização de outras, ou seja, na hierarquização das diferentes identidades. É o paradigma discriminatório dos ordenamentos hierarquizados de casta ou de classes, próprio das fases mais arcaicas da experiência jurídica, predominante no mundo jurídico pré-moderno.
O terceiro modelo é o da homologação jurídica das diferenças, onde as diferenças são valorizadas e negadas, mas não porque umas são concebidas como valores e as outras como desvalores, mas porque todas resultam desvalorizadas e ignoradas em nome de uma abstrata afirmação de igualdade.
O quarto modelo é o da igual valorização jurídica das diferenças, baseado no princípio normativo de igualdade nos direitos fundamentais – políticos, civis, de liberdade e sociais – e ao mesmo tempo num sistema de garantias capazes de assegurar sua efetividade.
Após contrapor o quarto modelo aos três outros, afirma[30]:
A igualdade nos direitos fundamentais resulta assim configurada como o igual direito de todos à afirmação e a tutela da própria identidade, em virtude do igual valor associado a todas as diferenças que fazem de cada pessoa um indivíduo diverso de todos os outros e cada indivíduo uma pessoa como todas as demais.
Dois conceitos de igualdade são combatidos pelas feministas[31]: a igualdade como falsa universalização do sujeito masculino que também no plano normativo exclui – não contempla, despreza, ignora – o sujeito feminino, discriminando-o no gozo de muitos dos direitos que se dizem universais; a igualdade nos direitos do homem e do cidadão que é uma ficção de igualdade que deixa de fato sobreviver à desigualdade como produto do desconhecimento da diferença.
A igualdade abstrata, universal, no plano jurídico mascara a falsa comunicação de que todos são iguais e, por isso, não há necessidade de implementar garantias para as diferenças, o que só acontece, em relação a uma parte privilegiada de seres humanos arbitrariamente confundidos com a totalidade[32].
A igualdade formal, ao não reconhecer as diferenças, é desmentida no plano jurídico concreto, pelas situações reais de desigualdades geradas pelas diferenças.
Ou seja, no primeiro caso se nega que existam diferenças e no segundo afirma-se que elas não existem.
Muitos ordenamentos jurídicos contemporâneos operam com os dois conceitos jurídicos de igualdade e diferenças descritos acima, uns se negam a reconhecer as diferenças e outros afirmam que elas não existem, produzindo, como óbvio, as desigualdades.
Os principais problemas enfrentados pelas mulheres dizem respeito a uma condição natural do sexo feminino, a maternidade, que influi diretamente na colocação no mercado de trabalho e no preenchimento das oportunidades, assim como nos processos decisórios e na disponibilidade de horário e deslocamento, além de influenciar os salários.
Numa abordagem sobre o feminismo, o filósofo Will Kymlicka[33] resume as consequências sobre esta diferença com as seguintes palavras:
Essa incompatibilidade que os homens originaram entre a criação dos filhos e o trabalho remunerado tem resultados profundamente desiguais para as mulheres. O resultado é não apenas que as posições mais valorizadas da sociedade são ocupadas por homens, enquanto as mulheres encontram-se desproporcionalmente concentradas no trabalho de meio período e com salário mais baixo, mas também que muitas mulheres tornaram-se economicamente dependentes dos homens.
Ao se ignorar as diferenças que há entre homens e mulheres, por conta somente da condição de maternidade, ou mesmo afirmando que elas não existem, no plano jurídico concreto produz-se profundas desigualdades que determinam em perdas de liberdades, do gozo de direitos fundamentais, do gozo de direitos sociais e dependência em relação aos homens.
Por isso, se não utilizarmos de um modelo jurídico aonde a igualdade seja tratada como a condição a ser perseguida através da valoração das diferenças em seus planos jurídicos concretos e as políticas públicas sejam direcionadas para a efetividade da correção dessas diferenças por meio de garantias que tutelem os direitos dos grupos discriminados, estaremos fadados a conviver com uma igualdade formal, fictícia, abstrata e universalizada.
Neste diapasão, a violência contra a mulher sempre foi tratada com conivência e sob o manto do problema familiar, na base do jocoso jargão “briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Indiferente às diferenças, as políticas públicas de inclusão feminina sempre foi leniente ou nula, tornando a mulher cada vez mais dependente do homem e mais vulnerável a acatar humilhações e agressões físicas e psicológicas.
Com efeito, para se amenizar a situação de diferença, pois o número de agressões de homens contra mulheres é muito maior do que o inverso, foram tomadas medidas protetivas penais, contudo, pensamos que pouco foi feito para se tomar as medidas necessárias contra as diferenças de fato, quais sejam, a dependência da mulher em relação ao homem, por conta das desigualdades encontradas na vida real com relação aos cargos ocupados, salários, benefícios etc.
Para concluir afirmamos que as medidas que diferenciam e beneficiam as mulheres, antes de serem discriminatórias, são na verdade compensatórias, comprometidas em corrigir diferenças históricas, mas, insistimos, falta a outra ponta do fio condutor, enquanto houver níveis de diferença que tornem as mulheres dependentes dos homens não será o direito penal, somente, que nivelará estas diferenças, se não puder contar com a efetividade e continuidade de programas voltados para a inserção e independência das mulheres, mormente as vítimas de agressões domésticas, num mercado de trabalho que enxergue essas diferenças e abra prerrogativas, que na verdade são direitos contrapostos por tributação, para melhorar as condições de trabalho e salários das mulheres.
O objetivo desse breve ensaio não é propor programas ou propostas, mas podemos provar todas as afirmativas feitas neste sentido, através da análise numérica de dois delitos perpetrados contra mulheres, tomando-se em conta como paradigma o ano de 2006, ano de promulgação e vigência da Lei 11.340, até o ano de 2009, e verificar a sua evolução numérica para constatar se houve um grande avanço nas políticas de beneficiamento das mulheres e de aumento de oportunidades, garantias, efetivação de direitos fundamentais, liberdades, independência e respeito.
Os dados foram reproduzidos do dossiê Mulher 2010[34] elaborado pelo Instituto de Segurança Pública do governo do Estado do Rio de Janeiro.
Segundo as fontes numéricas reproduzidas acima, o número de homicídios dolosos no ano de 2006 foi de 6.323 e no ano de 2009 foi de 5.793, ainda segundo as mesmas fontes[35], o número percentual de mulheres vítimas de homicídio doloso em 2006 foi de 6,5%, numericamente quantificado em 411, e, o número percentual de mulheres vítimas de homicídio doloso em 2009 foi de 6,4%, numericamente 371, que nos fornece a diminuição entre os períodos, 2006-2009, de 40 vítimas, o que numericamente é ínfimo, ainda mais se levarmos em conta que o número de registros não informados -não se sabe se a vítima era homem ou mulher-, apenas em 2009 era de 12,3% (712), quase o dobro das vítimas mulheres.
Outro delito de cunho doméstico é a lesão corporal dolosa cuja evolução numérica é mostrada na tabela abaixo[36]:
Segundo as fontes numéricas reproduzidas acima, o número de lesões corporais dolosas no ano de 2006 foi de 73.506 e no ano de 2009 foi de 79.244, ainda segundo as mesmas fontes[37], o número percentual de mulheres vítimas de lesão corporal dolosa em 2006 foi de 58%, numericamente quantificado em 42.633, e, o número percentual de mulheres vítimas de lesão corporal dolosa em 2009 foi de 63,6%, numericamente quantificado em 50.399, que nos fornece o aumento entre os períodos, 2006-2009, de 7.766 vítimas.
De fato, a medida legislativa penal não foi inibitória ou mesmo protetiva e, de fato, não houve um incremento da igualdade ou mesmo uma diminuição nas diferenças por conta da Lei 11.340/2006, que justifique as críticas à sua discriminação de gênero e proteção à mulher no âmbito doméstico.
IV. Medidas protetivas, assistenciais e preventivas (?)
A Lei 11.340/2006 prevê muitas medidas protetivas que obrigam o agressor, tais como: suspensão de porte de armas, prisão preventiva, afastamento do lar e do convívio e proibição de certas condutas, como se aproximar da vítima, de testemunhas etc.
Tais medidas são denominadas negativas, pois são de cunho punitivo, com o condão de castigar, de punir, o agressor, o que resolve o problema da justiça do Estado e da sociedade sedenta de vingança.
Observe-se que em contrapartida não há no texto legal nenhuma medida de cunho positivo, no sentido de reeducar o agressor para que adquira através de apoio sociológico, psicológico e educacional a sua harmonia e equilíbrio emocional, tratando de aprender, como ser humano, o sentido de palavras como respeito, dignidade, compreensão e amor, ao invés de ser preso e remoer neste período todos os rancores que não foram desfeitos, tornando-se, sem sombra de dúvidas, um reincidente no crime, seja neste em comento ou em outros piores, aprendidos na melhor “universidade do ramo”, a prisão.
No que diz respeito às medidas protetivas de urgência em relação à vítima – ofendida, elas se dividem em medidas de natureza pessoal e patrimonial, versando o artigo 23, in verbis:
“Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV – determinar a separação de corpos.”
Trata o artigo 23, reproduzido acima, de medidas protetivas de natureza pessoal, em relação à pessoa da ofendida e seus dependentes, procurando dar atendimento de proteção oficial, procurando solucionar o problema da moradia e dos alimentos ou determinando a separação de corpos.
Entretanto, na vida real, sabemos que os programas de proteção às vítimas no Brasil são quase que uma sentença de morte, pois são de uma precariedade notória, pela falta de infraestrutura operacional e financeira, uma vez que é sabido, e torna-se lógico, que se a segurança pública em geral, polícia civil, federal e militar, não dispõe de contingente para prevenir e deter ações criminosas de maior porte, é óbvio que não possui disponibilidade para tratar de proteção adequada à vítima de qualquer que seja o crime.
Outro dado real e corrente é que as vítimas de violência doméstica e seus agressores, via de regra, provêm de famílias de baixa renda econômica e, via de regra, sem moradia própria, e, via de regra, possuem filhos para criar, e, via de regra, o cônjuge varão é o responsável pelos alimentos.
Por isso há uma grande diferença entre proclamar que, “todos tem direito a ter um milhão de dólares”, e, “todos tem o dever de ter um milhão de dólares”.
Na falta do varão, responsável pelo aluguel e do leite das crianças, muitas mulheres recebem o tapa já oferecendo a outra face e jamais sonhariam em ver seus maridos na prisão, simplesmente para não passar fome e não ter para onde ir, essa é a triste e lamentável, mas verdadeira, realidade nacional, terra brasilis.
O artigo 24 da Lei 11.340/2006 trata de proteger o patrimônio da sociedade conjugal e os particulares das mulheres, vítimas de agressão doméstica, o que é louvável e um grande avanço, para evitar que o varão dilapide patrimônio conjunto ou mesmo patrimônio alheio, protegendo, deste modo, aquilo que foi conquistado por direito, como descrito abaixo:
“Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.”
Este dispositivo legal é válido para a proteção de casais que possuem bens, ou só a mulher possua, ou seja, para pessoas que possuem patrimônio, deste modo, longe de ser pessimismo, como dissemos é louvável e avançado, mas serve somente para aqueles, poucos, que possuem bens, de resto, em nada se aproveita para àqueles, referidos no parágrafo anterior, que são muitos, que nada possuem além da vida, da liberdade, da dignidade (ferida) e dos direitos fundamentais (mitigados).
Descreve ainda a Lei 11.340/2006 medidas de assistência às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, sobre a já conhecida fórmula normativa de cláusula aberta e de abrangência generalizada:
“Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal.
§ 2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
I – acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta;
II – manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.
§ 3o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.”
Tais medidas, generalizadas nos princípios e diretrizes da Previdência, da Assistência e do SUS, esbarram no desleixo, que assistimos – novamente a mídia, neste caso a mídia do bem -, dia a dia, no descaso com que são tratados os povos carentes, que não possuem qualquer plano médico particular, na rede hospitalar pública, em todos os níveis, federal, estadual e municipal, ou seja, elas existem, os hospitais estão, fisicamente, no mesmo lugar, mas a questão da disponibilidade é inversamente proporcional a procura, que é diretamente proporcional a distribuição de oportunidades que gerem renda mínima e estável no Brasil, e sendo assim, é raro entrar num hospital público e conseguir atendimento e acompanhamento adequado se o seu caso não for de emergência e muitas vezes as primeiras unidades indisponíveis ou sem condições de funcionamento são justamente as emergências, logo, em vista da caótica situação em que se encontra a saúde pública em nosso país, salvo raras exceções dignas de lembrança, digo então, a saúde em massa, para todos, universalizada, generalizada e eficiente, não funciona como deveria e, por isso, as medidas descritas acima, em relação às vítimas de violência doméstica, serão efetivas na mesma medida em que a saúde pública for efetiva para todos em terra brasilis.
Fazendo um balanço do apurado, as únicas medidas que realmente são efetivas em seu alcance são as medidas de cunho repressivo ao agressor e as patrimoniais, estas são de efeito imediato e cogente e não dependem de outros fatores de disponibilidade ou operacionalidade, as demais, protetivas e assistenciais, dependem de diversos fatores, como visto, de natureza operacional ou de disponibilidade.
Sobre as medidas preventivas resta dizer que não há medidas de prevenção no sentido em que não há correlatamente à lei de cunho penal, Lei 11.340/2006, outras legislações e programas governamentais que ofereçam meios de inserção no mercado de trabalho para as mulheres se tornarem independentes dos homens, juntamente com uma política de salários iguais para mulheres e homens que ocupem as mesmas posições e, ainda, em matéria de saúde e assistência social temos uma legislação complexa, burocrática e ineficiente, que aliada a leniência, a corrupção, os desvios e desmandos da saúde pública, em terra brasilis, transforma qualquer medida bem intencionada em verdadeira falácia.
Conclusões
Os problemas relacionados às diferenças existentes entre homens e mulheres têm suas origens sociais enraizadas nas primeiras formas de civilização primitiva, em que os homens sempre foram os guerreiros, os caçadores, responsáveis pela chefia da família e, por um capricho natural, a mulher sempre foi a administradora da família em relação aos cuidados da prole e da manutenção do lar.
As evoluções feministas só começam a ser vertidas em vitórias no final do século IX e início do século XX, conquistando direitos políticos, laborais e educacionais, muito embora em razão de inferioridade em relação aos homens.
O princípio da igualdade entre os homens, no sentido de seres humanos, sem se levar em conta o sexo, traça uma diretriz formal que pode ser ignorada ou simplesmente homologada sobre a ótica da disfarça, como visto nos modelos traçados por Luigi Ferrajoli, isto porque não consegue, não quer ou não admite enxergar as diferenças.
Uma tendência contemporânea, mas vetusta – exercida pelos governos que não exercem políticas públicas de inserção de oportunidades aos povos diferentes, aceitando e enxergando essas diferenças -, é a de solucionar os problemas sociais, principais motivadores da violência, se utilizando de um exército de leis penais para combater um problema gerado pela falta de combate de outro problema que o gerou.
A Lei 11.340/2006 foi um avanço em matéria de proteção a uma situação que perdurou impunemente durante décadas na sociedade brasileira, a violência doméstica, ruim com ela, pior sem ela, pois com todos os seus defeitos técnicos, conceitos vagos e propostas que não passam de “boas intenções”, é um marco inicial que deveria servir como matéria legislativa para outras propostas de alcance efetivo de proteção às mulheres no âmbito de sua independência e liberdade para gozar de direitos fundamentais.
Contudo, somente a Lei 11.340/2006, sem as efetivas medidas que podem ser irradiadas de suas diretrizes:
1. Não resolve os problemas da violência contra a mulher, conforme foi constatado pelas estatísticas realizadas pelos órgãos oficiais de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, uma vez que os índices de violência não se fizeram diminuir, antes aumentaram.
2. Não é capaz de garantir a independência da mulher em relação ao homem, o que faz com que muitas vezes a mulher agredida volte a conviver com o agressor e até acostume e releve outras agressões.
3. Serve para punir o agressor, mas não prevê medidas para a sua reeducação, sua reinserção ao lar e ao seio da família, que por muitas vezes fica estigmatizada após os fatos.
4. No plano assistencial é dependente da frágil e precária estrutura da Previdência Social em terra brasilis.
5. Contém conceitos vagos e imprecisos sobre a relação de afetividade que mantém o vinculo ou nexo causal para seu enquadramento legal, o que causa falhas de interpretação em seu âmbito de incidência, como visto em diversas jurisprudências de tribunais que ora aceitam um tipo de ação, ora aceitam outro, ora aceitam relações terminadas, ora não aceitam, causando a insegurança jurídica no seio da sociedade e da comunidade jurídica.
Terminamos por insistir que o direito penal não resolve os problemas que os direitos sociais e as desigualdades causadas pelas diferenças não corrigidas não resolvem pela falta de políticas públicas voltadas para a efetividade de suas diretrizes formais.
Informações Sobre o Autor
Wladimyr Mattos Albano
Bacharel em Ciências Contábeis Bacharel em Química Perito Criminal Bacharel em Direito Especializado em Direito Público e Tributário