Resumo: Dentre outras atribuições, o Tribunal de Contas Estadual acumula duas importantes funções: enviar ao Poder Legislativo parecer técnico acerca das contas do Chefe do Poder Executivo municipal e efetivamente julgar as contas dos demais gestores de recursos públicos. No primeiro caso, as contas de governo do Prefeito são julgadas politicamente pela Assembleia Legislativa, razão pela qual se revela de insofismável importância a emissão do opinativo técnico pela Corte de Contas. Já no segundo caso, em que se destaca a figura do ordenador de despesas, é o próprio TCE que desempenha a função de julgar as contas de gestão. Ocorre que na maioria dos pequenos municípios brasileiros, os Prefeitos municipais acumulam a função de ordenador de despesas, decorrendo de tal situação intrigante celeuma acerca do órgão competente para julgar as contas desse Prefeito ordenador de despesas. O presente artigo tem, portanto, o escopo de mitigar o questionamento ora proposto, além de esclarecer o importante papel desempenhado pelo Tribunal de Contas.
Palavras-chave: tribunal de contas, assembleia legislativa, prefeito, ordenador de despesas.
Abstract: Among other duties, the State Court of Accounts accumulates two important functions: send the Legislative a technical opinion on the accounts of the municipal government chief and effectively evaluate the accounts of other managers of public resources. In the first case, the accounts of the Mayor are judged politically by the Legislative Assembly – which is why it is unquestionable the importance of the technical opinion of the Court of Accounts. In the second case, in which stands the the person responsible for authorizing the expenditures, it is the Court of Accounts itself that plays the role of judging these management accounts. In most Brazilian towns, the Mayors accumulate the function of authorizing expenses, resulting in an intriguing situation about the competent body to judge the accounts of the Mayor that authorizes expenses. The present article has, therefore, two scopes: to mitigate the proposed inquiry and to clarify the important role played by the Court of Accounts.
Keywords: court of accounts, legislative assembly, Mayor, authorizing expenditure.
Sumário:1. Introdução. 2. Órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas. 2.1. Câmara Legislativa: órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito. 2.2. Tribunal de Contas: órgão competente para julgamento das contas de gestão. 2.3. Órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas à luz do STF. 3. Considerações finais. Referências.
1. Introdução
Polêmica questão que tem despertado especial atenção dos juristas brasileiros concerne ao caso do Prefeito Municipal ordenador de despesas. Doutrina e jurisprudência digladiam no intento de solucionar a dúvida acerca do órgão competente para o julgamento do Prefeito, quando este acumula a função de ordenador de despesa.
A Constituição Federal de 1988, respeitando a dualidade do regime de contas públicas, atribuiu ao Poder Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de Contas, o julgamento político das contas dos Chefes do Poder Executivo municipal. No mesmo passo, determinou que as contas dos demais administradores e responsáveis por haveres públicos (entre os quais figura o ordenador de despesa), seriam julgadas pelo Tribunal de Contas.
Em grande parte dos municípios brasileiros, no entanto, o Prefeito Municipal acumula a função de ordenador de despesas, fato que provoca grande confusão no que tange ao órgão responsável pelo julgamento de suas contas. Realmente, ao avocar a função de ordenador de despesa, o Prefeito gere duas modalidades de contas: as de governo, inerentes a seu cargo político e as de gestão, outorgadas ao ordenador de despesas.
Ora, é sabido que a Câmara de Vereadores deve julgar as contas de governo do Prefeito, mas deve o mesmo órgão político julgar as contas de gestão do Prefeito? Ou, ao contrário, deveria ser a Corte de Contas a instituição competente para o julgamento das contas de gestão relativas aos atos de ordenamento de despesas desempenhados pelo Prefeito?
Para deslinde da controvérsia, faz-se indispensável não olvidar o fato de que o Tribunal de Contas tem essência oriunda da estruturação do Estado Democrático de Direito, possuindo insofismável relevância à fiscalização técnica das contas dos agentes públicos. Com efeito, a Corte de Contas é o órgão responsável por garantir à sociedade a transparência e o exame das contas públicas, além de deter o poder sancionatório em face dos agentes públicos que não atuam em consonância com os fundamentos insculpidos na Constituição Federal. Por outro lado, a Câmara Municipal é órgão eminentemente político e, justamente por não deter competência para o exame técnico das contas de governo do Chefe do Executivo, é obrigatoriamente auxiliado pelo Tribunal de Contas.
Assim, há posição no sentido de apenas a Câmara de Vereadores ter a competência para o julgamento das contas do Prefeito, mesmo sendo ordenador de despesa. Ou seja, as contas deveriam ser julgadas de acordo com a autoridade que as conduz e não de acordo com a essência do que se contabiliza. E há os que entendem que quando Prefeito acumula a função de ordenador de despesa, maneja duas classes de contas, de sorte que devem ser julgadas duplamente: as contas de governo, julgadas pela Câmara, com emissão de parecer prévio do Tribunal de Contas e as de gestão julgadas exclusivamente pelo Tribunal de Contas.
A divergência jurisprudencial e doutrinária é nítida e revela um problema de fundo ainda mais funesto: a Corte de Contas, instituição democrática nascida como fruto de tanto labor da democracia, hoje tem sua força e autonomia encurtadas, de sorte a favorecer maus administradores públicos em detrimento dos devastadores prejuízos ao Estado e à sociedade. Pois é certo que a dúvida acerca da competência do Tribunal de Contas para o exame de contas de gestão (determinada pela Constituição Federal de 1988) é prova inequívoca da incipiente compreensão acerca dos fundamentos que norteiam o controle externo e das consequências danosas desta oscilação doutrinária e jurisprudencial.
Neste mister, o presente estudo visa a despertar o leitor para premente necessidade de reflexão acerca dos pilares da fiscalização pública, o papel desempenhado pelo Tribunal de Contas e as consequências devastadoras de eventual afastamento da competência do Tribunal de Contas para o julgamento das contas dos Prefeitos ordenadores de despesas.
2. Órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas
Muito embora a doutrina e a jurisprudência estejam consolidando o entendimento segundo o qual o Prefeito ordenador de despesas deve ser submetido ao duplo julgamento, Tribunal de Contas e Câmara Legislativa, muitas vozes se levantam na defesa de que o Prefeito sempre deve ser julgado pela Câmara Municipal, mesmo se acumular a função de ordenador de despesas.
2.1. Câmara Legislativa: órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito
Há entendimento no sentido de ser apenas o Poder Legislativo o órgão responsável pelo julgamento das contas do Prefeito. Os defensores de tal tese argumentam que o julgamento das contas se dá em função da qualidade da pessoa que as presta. Em outras palavras, a distinção entre as contas de governo e as contas de gestão se dá em função da pessoa e não em razão da essência do regime das contas em si. Nesse sentido, podem ser colacionadas as ilustres palavras do Ministro Marcelo Ribeiro:
“De fato, o art. 71 da Constituição Federal distingue as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos, definindo que, na primeira hipótese, caberá ao Tribunal de Contas da União apenas a apreciação, ou seja, o juízo consultivo, e na segunda circunstância, lhe competirá o julgamento. Pela leitura do dispositivo constitucional invocado, observa-se que a mencionada distinção levou em conta a qualidade da pessoa que presta as contas. Em outras palavras, as contas prestadas pelo Presidente da República serão sempre julgadas pelo Congresso Nacional, com parecer prévio do TCU, e aquelas apresentadas por pessoa diversa, que exerça a função de administrador, ou que seja responsável por dinheiro bens e valores públicos, serão julgadas pelo TCU.”
(TSE. Recurso Especial Eleitoral nº 29535, Acórdão de 22/09/2008, Relator (a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 22/9/2008).
No mesmo sentido, o Ministro Marco Aurélio promove igual distinção entre as contas do Chefe do Poder Executivo e dos demais responsáveis por recursos públicos, consoante é possível vislumbrar no RE 132.747:
“Nota-se, mediante leitura dos incisos I e II do artigo 71 em comento, a existência de tratamento diferenciado, consideradas as contas do Chefe do Poder Executivo da União e dos administradores em geral. Dá-se, sob tal ângulo, nítida dualidade de competência, ante a atuação do Tribunal de Contas. Este aprecia as contas prestadas pelo Presidente da República e, em relação a elas, limita-se a exarar parecer, não chegando, portanto, a emitir julgamento”.
(STF. RE 132747, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/1992, DJ 07-12-1995 PP-42610 EMENT VOL-01812-02 PP-00272).
Além disso, argui-se que o artigo 71 da Constituição Federal apenas seria aplicado à organização dos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais no que coubesse, consoante determinação do artigo 75 da Carta. Assim, o constituinte teria expressado sua vontade de que o prefeito ordenador de despesa seria julgado pela Câmara através do artigo 31, o qual determina que a fiscalização do Município seria exercida pelo Poder Legislativo, auxiliado pelo Tribunal de Contas, o qual emitiria parecer prévio.
Destarte, por expressa determinação constitucional, seria impossível aplicar o artigo 71 à realidade dos Municípios, devendo ser aplicado o artigo 31. Nesse sentido, podem ser trazidas as palavras do Ministro Marcelo Ribeiro, proferidas Recurso Especial Eleitoral nº 29.535:
“Verifica-se que o artigo 75 da Constituição Federal permite aplicação no que couber, da norma estabelecida no art. 71 à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas Estaduais e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas do Município.
No entanto, há regra constitucional expressa, definindo a atribuição dos Tribunais e Contas Municipais e Estaduais. O art. 31 da CF/88 dispõe que a fiscalização do Município será exercida, mediante controle externo, pelo Poder Legislativo Municipal, com auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou dos Municípios, que exercerão apenas função consultiva, apresentando parecer prévio.”
(TSE. Recurso Especial Eleitoral nº 29535, Acórdão de 22/09/2008, Relator (a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 22/9/2008)
O entendimento de inaplicação do artigo 71 da CF/88 aos Estados e Municípios, como defendem alguns ministros do TSE, não é esposado pelo STF. A Suprema Corte já teve a oportunidade de analisar a questão, tendo decido que há dever de simetria dos Estados e Municípios em face da Constituição Federal, conforme determinação do artigo 75 da Magna Carta.
Com efeito, foi julgada procedente ADI nº 1.779, formulada pelo Procurador Geral da República, em face dos artigos 14, VI e VII[1] e das expressões “e das mesas diretoras das Câmaras Municipais”, contida no inciso III do §1º, artigo 86[2] e “e a Mesa Diretora da Câmara Municipal”, contida no §2º do artigo 86[3], da Constituição do Estado de Pernambuco, os quais se chocam com determinação do artigo 75 e 71, II, da CF/88.
Resta clara, portanto, a competência do Tribunal de Contas Estadual para julgar as contas dos ordenadores de despesas, inclusive da Mesa Diretora da Câmara Municipal, Tribunal de Contas e Tribunal de Justiça:
“EMENTA: CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE PERNAMBUCO. INCISOS VI E VII DO ARTIGO 14 E AS EXPRESSÕES “E DAS MESAS DIRETORA DAS CÂMARAS MUNICIPAIS” E “E A MESA DIRETORA DA CÂMARA MUNICIPAL”, CONTIDAS, RESPECTIVAMENTE, NO INCISO III DO § 1.º E NO § 2.º, AMBOS DO ARTIGO 86. Disposições que, na conformidade da orientação assentada na jurisprudência do STF, ao atribuírem competência exclusiva à Assembleia Legislativa para julgar as contas do Poder Legislativo, do Tribunal de Contas, do Tribunal de Justiça e das Mesas Diretoras das Câmaras Municipais, entram em choque com a norma contida no inciso I do artigo 71 da Constituição Federal. Procedência da ação.”
(STF. ADI 1779, Relator (a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2001, DJ 14-09-2001 PP-00048 EMENT VOL-02043-01 PP-00037)
Assim, à vista do entendimento da Suprema Corte, o argumento de que a expressão “no que couber” contida no o artigo 75 da CF/88 impede a aplicação do artigo 75, I e II da CF/88 cai por terra.
A guisa de arremate, impende salientar que o TSE não possui entendimento pacífico acerca da competência para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesa, apesar haver tendência à posição de que o julgamento das contas do prefeito ordenador de despesas competir apenas à Câmara Legislativa:
“Registro de candidatura. Prefeito. Inelegibilidade. Art. 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90. Competência.
1. A competência para o julgamento das contas de prefeito é da Câmara Municipal, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio, o que se aplica tanto às contas relativas ao exercício financeiro, prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, quanto às contas de gestão ou atinentes à função de ordenador de despesas.
2. Não há falar em rejeição de contas de prefeito por mero decurso de prazo para sua apreciação pela Câmara Municipal, porquanto constitui esse Poder Legislativo o órgão competente para esse julgamento, sendo indispensável o seu efetivo pronunciamento. Agravo regimental a que se nega provimento.
(TSE. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 33747, Acórdão de 27/10/2008, Relator (a) Min. ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 27/10/2008) [4]
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. PEDIDO DE REGISTRO DE CANDIDATURA. ELEIÇÕES 2008. REJEIÇÃO DE CONTAS. PREFEITO. ORDENADOR DE DESPESAS NO MUNICÍPIO. JULGAMENTO. COMPETÊNCIA. CÂMARA MUNICIPAL. NÃO PROVIMENTO.
1. Compete à Câmara Municipal julgar as contas de prefeito ordenador de despesas no município. (Precedente: REspe 29.535, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, publicado em sessão de 22.9.2008; AgR-REspe 29.489/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, publicado na sessão de 6.10.2008)
2. O Tribunal de Contas emite parecer prévio que, nos termos do art. 31, § 2º, da Constituição da República, deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
3. In caso, o agravado, como prefeito municipal, ordenou despesas e suas contas foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas. Todavia, o parecer prévio não foi apreciado pela Câmara Municipal, não havendo falar na hipótese de inelegibilidade contida no art. 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90. 4. Agravo regimental não provido.”
(TSE. Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 32827, Acórdão de 12/11/2008, Relator (a) Min. FELIX FISCHER, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 12/11/2008)
Em palavras finais, é forçoso admitir que o entendimento esposado por aqueles que defendem a competência da Câmara dos Vereadores ao julgamento do Prefeito ordenador de despesas, é pautado em fundamentos resultantes da interpretação restritiva e, com a devida vênia, não atenta ao direito aplicável ao controle externo.
2.2. Tribunal de Contas: órgão competente para julgamento das contas de gestão
Relevante parcela da doutrina defende que ao Tribunal de Contas Estadual deve ser atribuída a competência para o julgamento do ordenador de despesas, mesmo que seja o Prefeito municipal. Os que assim entendem criticam veementemente o argumento de que, por ser agente político, o prefeito (mesmo ordenando despesas) não estaria sujeito ao julgamento técnico do Tribunal de Contas.
Inclusive, o jurista Flávio Sátiro Fernandes não permite olvidar que um dos princípios regentes da fiscalização contábil, orçamentária, patrimonial e financeira é a universalidade, de sorte que toda e qualquer pessoa que administre recursos públicos tem o dever de prestar contas dos seus atos.[5]
Com efeito, o fato ser Prefeito não significa que o ordenador de despesas goza isenção de responsabilidade, de sorte que os atos que importam em gestão de recursos públicos devem ser julgados pelo Tribunal de Contas. Assim, quando o Prefeito municipal acumula as funções de ordenador de despesa, suas contas devem ser julgadas separadamente: a) contas de governo – anualmente, as contas de governo pela Câmara Legislativa, sendo emitido parecer prévio pelo Tribunal de contas, nos termos do artigo 71, I e 75 da CF/88; b) contas de gestão – periodicamente ou a qualquer tempo (nas chamadas tomadas de contas), através de emissão de acórdão pelo Tribunal de Contas com força de título executivo, consoante artigos 71, II e §3º e 75, da CF/88.
Vale relembrar que o regime das contas públicas segue a natureza dos atos administrativos a que elas se referem, não sendo possível falar em contas públicas em função da qualidade da pessoa que as administra. Consoante amplamente demonstrado, de acordo com o regime das contas públicas, essas podem ser classificadas em contas de gestão, julgadas pelo Tribunal de Contas ou contas de governo, julgadas pelo Poder Legislativo.
Os ensinamentos do Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, Valdecir Pascoal, são aclaradores. Para ele, em parcela significativa dos municípios brasileiros, nos quais não há grande necessidade de descentralização administrativa, o Prefeito é o principal responsável pelos atos concernentes ao processamento das despesas e contratos, devendo ser, portanto, responsável pelas contas de gestão, sendo sujeito não somente ao julgamento da Câmara, como também ao da Corte de Contas. [6]
Para compreender o cerne da questão, é imprescindível proceder à leitura do artigo 80 do Decreto-Lei 200 de 1967. O dispositivo expressa de maneira inequívoca o conceito de ordenador de despesas, segundo o qual seria toda autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou pela qual este responda[7]. Através da determinação das funções do ordenador de despesas, vislumbra-se a completa possibilidade de o Prefeito Municipal, ou até mesmo o Governador Estadual ou Presidente da República[8], atuar como ordenador de despesas. Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu artigo 71, inciso II, não fez ressalvas relativamente ao ordenador de despesas. Em outras palavras, não há impedimento constitucional a que o Prefeito acumule o cargo de ordenador de despesas.
Ainda trazendo à baila a intelecção do artigo 71, II da CF/88, é possível perceber que o constituinte originário conferiu ao Poder Legislativo a competência para o julgamento das contas do Chefe do Poder Executivo, ao passo que ao Tribunal de Contas conferiu o julgamento das contas de gestão de toda e qualquer autoridade responsável, não fazendo qualquer ressalva quanto ao Chefe do Poder Executivo. Realmente, “o julgamento da hipótese do art. 71, II, da Carta Federal abrange todos aqueles que gerem recursos públicos, diferentemente do julgamento do Poder Legislativo, que alcança apenas o Chefe do Executivo responsável pelas contas globais”.[9]
Se fosse vontade do constituinte originário excluir o Prefeito ordenador de despesas do julgamento do Tribunal de Contas, na hipótese do julgamento das contas de gestão do inciso 71, II da CF/88, o teria feito através de simples ressalva quanto aos sujeitos do artigo 71, I da Magna Carta. Nada obstante, não há qualquer ressalva nesse sentido.
Forçoso admitir, portanto, que quando o Prefeito pratica atos de administrador (distintos dos atos inerente à sua função de governo), deve prestar contas ao Tribunal de Contas e por este ser julgado. Nesse sentido, ilustres são as palavras da Ministra Eliana Calmon, proferidas em voto condutor referente ao Recurso Ordinário nº 13.499:
“Observados os diversos incisos do art. 71, identificamos, entre as atividades do Tribunal de Contas, a apreciação das contas, atuando ele como órgão opinativo; APRECIA e emite PARECER PRÉVIO (inciso I); e a atribuição de JULGAR as contas daqueles que derem causa à perda, extravio ou outras irregularidades de que resulte prejuízo ao erário público (inciso II). Partindo-se da ideia de que não contém a Constituição palavras inúteis e de que se estendem os princípios constitucionais às três esferas de Poder – União, Estados e Municípios -, podemos afirmar que nos Estados o Tribunal de Contas funciona com a dupla atribuição: órgão auxiliar e órgão julgador. A diferença de atribuições fica na dependência do que se coloca para
apreciação. No exercício da função política de gerência estatal, quando são examinados os atos de império na confecção, atuação e realização orçamentária, é o Tribunal órgão opinativo e, como tal, assessora tecnicamente o Legislativo, a quem compete o julgamento das contas do chefe político: Prefeito, Governador e Presidente da República (art. 71, inciso I, c/c o art. 49, IX, da CF/88). Diferentemente, quando examina o agir do ordenador de despesas, o Tribunal de Contas vai além, porque lhe compete julgar tais contas. Nas organizações estatais mais complexas, é impensável que seja o Governador ou o Presidente da República, o ordenador de despesas, atividade que é delegada a servidor a ele subordinado.”
(STJ. RMS 13.499/CE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/08/2002, DJ 14/10/2002, p. 198).
Além disso, há que se afastar o argumento de que o artigo 31, da CF/88[10], induz à compreensão de que todas as contas do Município seriam julgadas exclusivamente pelo Poder Legislativo e que ao Tribunal de Contas seria atribuída apenas a função de auxiliar. O raciocínio não é correto, haja vista a função exclusiva da Instância de Contas de julgar as contas dos ordenadores de despesas municipais, da Mesa Diretora da Câmara Municipal. O que o constituinte originário desejou foi submeter à análise política das contas municipais, sem prejuízo da apreciação técnica, conferida, exclusivamente ao Tribunal de Contas.
Igualmente intolerável é o pensamento de que o Tribunal de Contas apenas não pode julgar as contas do ordenador de despesa quando este for Chefe do Poder Executivo. Ora, é essência do Estado Democrático de Direito a universalidade na fiscalização dos administradores de recursos públicos, sendo inconcebível a concessão de privilégio ao Prefeito Municipal em face do prejuízo à Administração Pública, decorrente da ausência de fiscalização.
Com efeito, é cediço que a Câmara dos Vereadores apenas realiza julgamento das contas globais do Chefe do Executivo, não tendo competência de imputar multa ou débito ao gestor improbo. De tal sorte, se ao Tribunal de Contas não fosse conferido o poder/dever de julgar as contas do Prefeito ordenador de despesas, bastaria que esse acumulasse a função de ordenador para que fosse anulado o poder fiscalizatório do Estado e da sociedade, indispensáveis ao desempenho da Administração Pública.
Oportuno colacionar a glosa do Conselheiro do Tribunal de Contas do Maranhão, José de Ribamar Caldas Furtado:
“[…] bastaria o Prefeito chamar a si as funções atribuídas aos ordenadores de despesas estaria prejudicada uma das mais importantes competências institucionais do Tribunal de Contas, que é julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por recursos públicos (CF, art. 71, II). Sem julgamento de contas pelo Tribunal, também estaria neutralizada a possibilidade do controle externo promover reparação de dano patrimonial, mediante imputação de débito prevista no artigo 71, §3º, da Lei Maior, haja vista que a Câmara de Vereadores não poder imputar débito ao Prefeito.” [11]
Igualmente notáveis são as palavras do Presidente do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba:
“No caso em que os Prefeitos são os ordenadores de despesas, querer que eles não se sujeitem ao julgamento do Tribunal significa querer que ninguém se responsabilize por tais despesas, pois outra pessoa não poderá, na hipótese, ser chamada a prestar contas se não foi ela a sua ordenadora. O fato de o Prefeito ser agente político não o isenta de responsabilidade, se ele atua como ordenador de despesas.” [12]
Impossível, portanto, afastar do crivo da Corte de Contas Estadual a competência para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas. Nas palavras dos Procuradores do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, Cecília Lou e Hilton Cavalcanti de Albuquerque:
“[…] o Acórdão do Tribunal de Contas, que imputa débito ou multa ao Prefeito enquanto ordenador de despesas não se confunde com o Parecer Prévio , meramente opinativo, emitido pela mesma Instituição de Contas, a ser sometido à Câmara dos Vereadores, e sim, consubstancia autêntico julgamento, de competência constitucional exclusivamente reservado à Corte de Contas pelo mandamento contido no inciso II, do art. 70 da Carta Magna, aplicável por expressa simetria, aos Tribunais de Contas Estaduais, nos termos do art. 75, ainda da Lei Maior.” [13]
Nesse mister, ao julgar o Prefeito ordenador de despesas, o Tribunal de Contas profere verdadeiro julgamento técnico sobre as contas de gestão e, paralelamente, emite parecer opinativo acerca das conta de governo, as quais são julgadas pelo Poder Legislativo.
Oportuno trazer à baila Resolução TCE nº 003/2002[14], editada pelo Tribunal de Contas de Pernambuco, a qual dispõe justamente sobre as formalidades a serem observadas nas publicações de Pareceres e Decisões, nos casos em que o Chefe do Executivo confundir-se com a figura do ordenador de despesa.
Importante destacar o posicionamento cada vez mais sedimentado entre os Tribunais Regionais Eleitorais e o Superior Tribunal de Justiça no sentido da competência do Tribunal de Contas para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas, consoante é possível perceber a partir dos julgamentos a seguir colacionados:
“ADMINISTRATIVO – TRIBUNAL DE CONTAS: FUNÇÕES (ARTS. 49, IX, C/C 71 DA CF/88).
1. O Tribunal de Contas tem como atribuição apreciar e emitir pareceres sobre as contas públicas (inciso I do art. 71 da CF/88), ou julgar as contas (inciso II do mesmo artigo).
2. As contas dos agentes políticos – Prefeito, Governador e Presidente da República – são julgados pelo Legislativo, mas as contas dos ordenadores de despesas são julgados pela Corte de Contas.
3. Prefeito Municipal que, como ordenador de despesas, comete ato de improbidade, sendo julgado pelo Tribunal de Contas.
4. Recurso ordinário improvido. (grifo nosso)
(STJ. RMS 13.499/CE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/08/2002, DJ 14/10/2002, p. 198) [15]
REGISTRO DE CANDIDATURA. REJEIÇÃO DE CONTAS PELO TCE. CONTAS DO PREFEITO. ÓRGÃO COMPETENTE. CÂMARA LEGISLATIVA. DECISÃO POLÍTICA. INEXISTÊNCIA.
1. As contas referentes a gestão financeira municipal devem ser apreciadas pela Casa Legislativa. Inexistência de decisão política pela rejeição das contas. Causa de inelegibilidade que se afasta.
2. Contas do Prefeito referentes à ordenação de despesas. Competência do Tribunal de Contas do Estado. Decisão definitiva pela rejeição das contas. Incidência da inelegibilidade prevista no art. 1°. I, g, da LC 64/90.
3. Para ensejar a inelegibilidade prevista no art. 1°, I, g, da Lei Complementar n° 64/90, a decisão que rejeitar as contas relativas ao exercício de cargo ou função pública deverá ter natureza insanável, não cabendo a Justiça Eleitoral avaliar o conteúdo da decisão proferida pelo tribunal de contas competente. Recurso a que se nega provimento, mantendo-se o indeferimento do registro de candidatura. (grifo nosso)
(TRE-RJ. RECURSO ELEITORAL nº 5960, Acórdão nº 35.640 de 04/09/2008, Relator (a) JACQUELINE LIMA MONTENEGRO, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 04/09/2008)
REGISTRO DE CANDIDATURA. ELEIÇÕES 2010. DEPUTADO ESTADUAL. PUBLICAÇÃO DE EDITAL. IMPUGNAÇÃO. IRREGUALRIDADES APURADAS EM SEDE DE ANÁLISE DE CONTAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO REFERENTES AO PERÍODO DE EXERCÍCIO DE CARGO DE PREFEITO. COMPETÊNCIA DO ÓRGÃO DE CONTAS PREFEITO ORDENADOR DE DESPESAS. ART. 1º, INCISO I, ALÍNEA G, DA LC 64/90. IMPROCEDÊNCIA DA IMPUGNAÇÃO. DEFERIMENTO DO PEDIDO DE REGISTRO DE CANDIDATURA. – O Tribunal de Contas, a teor do art. 71, inciso II, da CF/88, tem competência para julgar as contas de prefeito que age como ordenador de despesas, além da competência de emitir parecer sobre as contas destinado ao Poder Legislativo; – A teor das leis orgânicas do TCU e do TCE a constatação de irregularidades de contas abrange a apuração de vícios referentes à prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo e antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial. Por isso, além do julgamento pelo rejeição de contas, aplicação de multas com ou sem imputação de débito pela prática de irregularidades em licitações, contratações ou pagamentos feita em razão da prática de ilegalidade ou irregularidade de ato de gestão configura a rejeição de conta pelo órgão técnico; – O art. 1º, inciso I, alínea “g”, da LC 64/90, em sua redação conferida pela LC 135/90, também se aplica aos casos em que os julgamentos da Corte de Contas ocorreram antes do advento da nova redação, posto que a hipótese não traz a inelegibilidade como sanção, mas sim como requisito de acesso ao cargo público eletivo, na forma do art. 14, §9º, da Constituição Federal; […]
– Precedentes desta Corte no RRC 4406-92-2010.6.15.0000, relator Juiz Carlos Neves da Franca Neto, j. em 05/08/2010. – Improcedência da Impugnação e deferimento do registro de candidatura. (grifo nosso)
(TRE-PB. REGISTO DE CANDIDATOS nº 452298, Acórdão nº 617 de 05/08/2010, Relator (a) NILIANE MEIRA LIMA, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 05/08/2010) [16] […]
2. O julgamento administrativo definitivo efetuado pelo Tribunal de Contas, com fundamento no art. 71, II, da Constituição Federal, pode gerar, quanto aos chefes do Executivo que desempenham a função de ordenador de despesas, a eficácia jurídico-eleitoral definida pela Lei de Inelegibilidade no art. 1º, I, “g” , da LC 64/90. 3. Recurso desprovido. (grifo nosso)
(TRE-PB. RECURSO ELEITORAL nº 403, Acórdão nº 5645 de 18/08/2008, Relator (a) CRISTINA MARIA COSTA GARCEZ, Publicação: PSESS – Publicado em Sessão, Data 18/08/2008)
Eleições Municipais (2008). Recurso Eleitoral. Registro de candidatura. Indeferimento. Candidato. Prefeito. Ordenador de despesas. Prestação de contas. Rejeição. Parcelamento de débito. Ressarcimento. Cofres Públicos. Tribunal de Contas do Estado. Decisão. Prescrição. Ação Desconstitutiva. Desnecessidade. – A comunicação pelo Tribunal de Contas do Estado de decisão acerca do reconhecimento da dívida e o parcelamento de débito para restituição dos valores aos cofres públicos pela parte, corroborado com a prescrição da decisão, que afasta o ajuizamento de ação desconstitutiva, impossibilitam a sanção de inelegibilidade do candidato.
(TRE-PE. RECURSO nº 7863, Acórdão de 06/09/2008, Relator (a) MARGARIDA DE OLIVEIRA CANTARELLI, Publicação: DOE – Diário Oficial do Estado, Volume 75, Data 06/09/2008)
2.3. Órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas à luz do STF
A discussão acerca do órgão competente para o julgamento das contas do Prefeito ordenador de despesas permanece às voltas de intenso debate na Suprema Corte.
No Recurso Extraordinário nº 597362 RG/BA, proveniente do Recurso Especial Eleitoral nº 33747, o STF entendeu, em 2009, pela existência de repercussão geral do tema. Nada obstante, desde o pedido de vista realizado pelo Min. Dias Toffoli até a presente data, o recurso encontra-se pendente de julgamento.
Em decorrência da persistente ausência de posicionamento do STF, várias Reclamações estão sendo ajuizadas perante a Corte, sendo possível constatar, com a devida vênia, a dissonância entre as decisões proferidas pelos ministros.
A guisa de demonstração, é possível trazer à baila a Rcl. 10557, Rel. Min. Joaquim Barbosa, interposta em face de Acórdão proferido pelo Tribunal de Contas do Ceará, o qual imputou multa ao Prefeito Municipal. O reclamante alega que o TCE-CE teria ultrapassado os limites de sua competência, a qual estaria restrita à emissão de parecer prévio à Câmara Municipal, conduta esta que estaria em desconformidade com a jurisprudência do STF relativamente às ADIs nº 3.715, nº 1.779 e nº 849. O reclamante procedeu ao pedido de medida liminar, porquanto estaria inelegível, nos termos do art. 1º, I, ‘g’, da Lei Complementar nº. 135/2010.
Em sede de decisão monocrática do Relator, em setembro de 2010, a medida liminar não foi deferida, sendo reconhecida a inexistência de entendimento pacífico acerca do tema no âmbito da Suprema Corte.
Já na Rcl. 10.551, o Rel. Min. Gilmar entendeu presentes os requisitos para a concessão de Medida Liminar no sentido de suspender os efeitos do acórdão do TCE-CE, que julgou irregulares as contas do prefeito ordenador de despesas.
O Min. Gilmar Mendes apontou ainda seu entendimento no sentido de que a CF/88 seria clara ao estabelecer a competência do TCE para, simplesmente, emitir parecer sobre as contas do chefe do Poder Executivo, haja vista a natureza ad coadjuvandum da intervenção da Corte de Contas. De tal maneira, não poderia julgar as contas dos chefes do Poder Executivo, mesmo que este desempenhe função de ordenador de despesas, conforme é possível depreender da seguinte passagem de sua decisão:
“No âmbito das competências institucionais do Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre:
1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88;
2) a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88 (ADI n° 1.779-1/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 14.9.2001; ADI n° 1.140-5/RR, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 26.9.2003; ADI n° 849-8/MT, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 23.4.1999).
No primeiro caso, cabe ao Tribunal de Contas apenas apreciar, mediante parecer prévio, as contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo. A competência para julgar essas contas fica a cargo do Congresso Nacional, por força do art. 49, inciso IX, da Constituição.
Na segunda hipótese, a competência conferida constitucionalmente ao Tribunal de Contas é de julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio, ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário” (art. 71, II, CF/88).
A posição do Min. Gilmar Mendes se deu no mesmo sentido daquela adotada pelo Min. Celso de Melo em Reclamação de idêntico conteúdo, RCL n° 10.445, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 12 agosto de 2010. E no mesmo sentido foram julgadas as Reclamações nº 10493 MC, nº 10456, nº 10505 MC, nº 10445, nº 10342, todas do Rel. Min. Celso de Mello.
Por outro lado, os demais ministros da Suprema Corte apontam entendimento no sentido de negar provimento a essas reclamações que estão sendo intentadas.
Assim, em brilhante decisão na Reclamação 10.341/CE, a ex-Min. Ellen Gracie entendeu que não estar presente um dos pressupostos de admissibilidade da Reclamação, haja vista o fato de o instituto da reclamação pressupor a ocorrência de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal, a desobediência a súmula vinculante ou o descumprimento de decisão desta Corte proferida no exercício de controle abstrato de constitucionalidade ou em controle difuso, desde que neste último caso cuide-se da mesma relação jurídica em apreço na reclamação e das mesmas partes.
Na espécie, a ex-Min. Ellen Gracie entendeu que o conteúdo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 849/MT, cujo relator foi Min. Sepúlveda Pertence, 1.779/PE, Rel. Min. Ilmar Galvão e 3.715-MC/TO, não são idênticos ao objeto da Reclamação. Assim, pela ausência de materialidade formal, entendeu a ilustre Ministra ser impossível o acolhimento da referida Reclamação.
No mesmo sentido, é inevitável trazer à baila as sempre ilustradoras palavras do Min. Ayres Britto proferidas em sede de decisão monocrática na Rcl. 10680 / GO, de sua relatoria:
“Com efeito, em nenhum desses julgamentos houve específica análise acerca da competência do Tribunal de Contas Estadual para apreciação e julgamento de atos de gestão (contratos, por exemplo) dos Prefeitos Municipais. Noutras palavras, não há similitude ou identidade de objeto entre o ato reclamado (Resolução do TCM-GO) e as referidas decisões. E não se alegue que a conclusão do STF pela incompetência da Corte de Contas, nesses casos, deriva dos fundamentos determinantes contidos nos referidos julgados. É que o Plenário deste nosso Supremo Tribunal Federal ainda não firmou entendimento acerca da transcendência das razões de decidir nas ações de controle de constitucionalidade. Transcendência que, por ora, não autoriza o manejo de ação reclamatória, como já deixei assentado no julgamento da Rcl 7336/SP.”
Ainda na espécie da Rcl. 10341, a ex-Min. Ellen Gracie apontou o caráter infringente da referida Reclamação, haja vista o fato de a Reclamação não poder ser instrumento de desconstrução da decisão do TCE, de maneira a corroborar no entendimento do não prosseguimento da Reclamação.
O entendimento esposado pela Relatora encontra-se em conformidade com os julgamentos da Corte Suprema, conforme é possível notar da Rcl 10.496/CE, Rcl 10.538/CE, Rcl 10557, todas de relatoria da ex-Min. Ellen Gracie; na Rcl. 5.703-AgR/SP, Rcl 10.959/GO, na Rcl. 10548, de 26 de agosto de 2010, bem como recentíssima decisão na Rcl 10471 / CE (de junho de 2011), todas da Rel. Min. Carmem Lúcia; assim como as Rcl. 3.014/SP, Rel. Min. Ayres Britto; também os recentes julgados do Min. Ricardo Lewandowski, como na Rcl. 11.304; igualmente, a Rcl 10.550/CE, do Rel. Min. Dias Toffoli; Rcl. 10.499/CE e Rcl 10.533/PB, ambas de relatoria do Min. Marco Aurélio; na Rcl 10.557, de relatoria do Min. Joaquim Barbosa; sem olvidar a Rcl. 6.204-AgR/AL, Rcl. 6.319-AgR/SC, Rcl. 4.875-AgR/SP, Rcl.4.911-AgR/SC e Rcl.8.175-AgR/RN, todos de relatoria do ex-Min. Eros Grau.
3. Considerações finais
O Tribunal de Contas é fruto de grande labor da democracia, tendo surgido como instância responsável pelo exame das contas dos agentes públicos no intento de garantir à sociedade a fidedignidade dos atos das autoridades administrativas. Às Cortes de Contas a Constituição da República Federativa do Brasil conferiu autonomia e independência indispensáveis ao exercício de suas funções.
Concretamente, no entanto, parcela da doutrina e jurisprudência tem se posicionado no sentido da restrição do âmbito de atividades desempenhadas pelas Cortes de Contas. Com a devida vênia, não parecem ponderar os efeitos nocivos dessa constante limitação da competência dos Tribunais de Contas.
Exemplo disso é a persistente dúvida acerca do órgão responsável pelo julgamento das contas do Prefeito Municipal que acumula as funções de ordenador de despesas.
Ora, a Constituição Federal da República Brasileira expressa claramente a função do Tribunal de Contas de julgar as contas dos administradores e responsáveis por haveres públicos, dentre os quais está o ordenador de despesas. Inobstante, respeitadas vozes se erguem no sentido de que, sendo o Prefeito o ordenador de despesas, apenas a Câmara Municipal, auxiliada pelo Tribunal de Contas, poderá julgar suas contas.
Afasta-se o julgamento técnico das contas de gestão do Prefeito ordenador de despesas em favor de um único julgamento eminentemente político do Poder Legislativo pelo simples fato de o ordenador de despesa ser o Prefeito Municipal, como se o cargo político aportasse qualquer imunidade perante o julgamento do Tribunal de Contas.
Obviamente, a situação é demasiadamente favorável aos Prefeitos Municipais que não observam as regras da Administração Pública e atuam sem o devido zelo em relação ao erário. Com efeito, ao contrário do Tribunal de Contas, a Câmara dos Vereadores não detém competência para imputação de multa ou sanções ao mau Prefeito.
Com efeito, admitir a competência da Câmara Legislativa para julgar contas de gestão é impedir o desenvolvimento e o aprimoramento do Direito no controle externo e impedir a fiscalização dos atos do Prefeito que, desejando, acumule as funções de ordenador de despesa; é subestimar o alcance do inciso II do artigo 71 da Magna Carta e rebaixar o Tribunal de Contas à condição de mero pareceirista, quando, em verdade, a Instituição é fruto de grande labor em favor do Estado Democrático de Direito; é negar ao Tribunal de Contas o exercício da função para o qual foi criado.
Espera-se que o aprimoramento do direito aplicável ao controle externo e a renovação dos Tribunais Superiores possibilite maior compreensão acerca do tema, de sorte a conciliar a melhor solução para a sociedade e o Estado.
Informações Sobre o Autor
Fabiana Augusta de Araújo Pereira
Advogada, Professora de Direito Tributário e Gestão da Regulação na UFRPE, Mestranda em Direito do Estado, Regulação e Tributação Indutora pela UFPE, Pós-Graduação em Direito Tributário pelo IBET e Direito Constituicional pela Universidade Anhagura, Bacharela em Direito pela UFPE.