Resumo: O objeto do presente artigo consiste no exame da liberdade de religião como fundamento legítimo para a recusa de tratamento de saúde essencial à preservação da vida. O problema central deste estudo, portanto, é o seguinte: há legitimidade na recusa de tratamento de saúde necessário à preservação da vida com apoio exclusivamente em fundamento religioso? De modo a responder a referida problemática e, consequentemente, nortear o desenvolvimento do artigo vertente, foram delimitados os seguintes objetivos: inicialmente, analisar no cenário constitucional contemporâneo pátrio os contornos da aplicabilidade dos direitos fundamentais no plano horizontal; e, em seguida, examinar a legitimidade da recusa de tratamento de saúde essencial à preservação da vida, com base exclusivamente em fundamento religioso – tendo em conta os principais aspectos legais e éticos envolvidos. Logo, a metodologia manejada é de natureza exploratória, a fim de instrumentalizar uma reflexão teórica da bibliografia relacionada com o tema proposto. Em função das conclusões extraídas, demonstrou-se a necessidade da aplicação imediata dos direitos fundamentais no plano horizontal, desde que respeitada a autonomia da vontade do indivíduo como fruto da dignidade da pessoa humana, de maneira especial, nas hipóteses em que mais próxima a ação jurídica estiver da esfera privada. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser diretamente resguardado, no presente caso, por meio da escolha existencial da recusa de tratamento de saúde com fundamentação na liberdade religiosa. Por fim, o paciente voluntariamente poderá manifestar, de forma legítima, a recusa ao tratamento de saúde com fundamento religioso após os devidos esclarecimentos, além da prestação das informações relacionadas com os procedimentos diagnósticos.
Palavras-chave: direitos fundamentais; relações privadas; liberdade religiosa.
Abstract: The purpose of this Paper consists in exams freedom of belief religion as a legal basis for refusing to be subject to health treatment essential for life preservation. Major issue of this study, therefore, it is the follows one: Is there a legitimate behavior for refusing health treatment essential to conserve life based solely on religion beliefs? In an effort into answering referred problematic and, consequently, to guide the development of this Paper, the following objectives were defined: In the first place, analyzes in Brazilian contemporaneous constitutional context applicability shapes of fundamental rights in horizontal plan; and, then, exams the legitimation of refusal health treatment needed to preserve life, based exclusively in religion belief – taking as an effort major ethics and legal aspects involved. Soon, used methodology is from an explorative nature, in order to instrumentalist theoretical thought of literature related to suggested subject-matter. Due to extracted conclusions, it seems to be evident that it is necessary to immediately apply fundamental rights in horizontal plan, since individual freedom of choice is being respect as a result of human being dignity right, in a special view, in hypotheses, in which legal actions are closer of personal private sphere. Thus, dignity human being principle must to be directly kept , in this case, through existential choice of to refuse health treatment based on religion belief. Ultimately, patient can willing shows, in a legal way, to refuse himself of being submitted to a health treatment based on his religion beliefs, as long as He have previously been properly informed, besides had received all information related to the diagnostic procedures.
Keywords: fundamental rights; private relations; freedom of religion belief.
Sumário: Nota introdutória. 1. Panorama da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. 2. Liberdade religiosa como fundamento legítimo para a recusa de tratamento de saúde essencial à preservação da vida. 2.1 Aspectos Legais; 2.2 Aspectos Éticos. 3. Nota conclusiva.
Nota introdutória
As revoluções liberais ocorridas a partir dos séculos XVIII e XIX, especialmente as Norte-Americana (1776) e Francesa (1789), representaram movimentos de reação e limitação do amplo poder envergado pelo absolutismo monárquico que, à época, controlava com “mãos de ferro” as atividades sociais e econômicas. Tais revoluções encampadas, sobretudo pela classe burguesa, tiveram como norte tanto políticas de natureza libertárias quanto ideais de esclarecimento e racionalidade com ênfase no progresso e na perfectibilidade humana traçada pelos filósofos Iluministas.
No referido período, aliás, foram erigidos os direitos fundamentais[1] de primeira geração (negativos ou de defesa)[2], tendo em conta que a ideologia no período liberal consistia, em especial, na liberdade da sociedade conduzir as suas atividades em função da amplitude do direito de propriedade e de contratar, bem como da possibilidade dos agentes de mercado traçarem as regras no campo da economia, sendo resguardado ao Estado, portanto, bases mínimas de atuação.
Contudo, a partir do século XIX os ideais libertários pregados em contrariedade ao absolutismo monárquico começaram a entrar em declínio, na medida em que a burguesia passou a exercer um verdadeiro monopólio das atividades sociais e econômicas, o que, consequentemente, resultou em um franco sistema de dominação.
Nesse contexto, o discurso revolucionário burguês assim que posto em prática, revelou-se dissociado da libertação social inicialmente cobiçada, isto é, da busca pela limitação das amarras impostas pelo Estado monarca absolutista. Ao contrário da expectativa de libertação, o que ocorreu, de fato, foi a consolidação de um sistema de exploração mais contumaz da classe econômica menos desfavorecida pelos agentes com maior poderio econômico – a classe burguesa[3].
Daí porque e, não à toa, tendo em conta o naufrágio da política do Estado mínimo, notadamente com a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 e o trauma gerado, posteriormente, com a ocorrência das duas grandes guerras mundiais, foi desconstituída a visão de que tanto a sociedade quanto os mercados tinham plena capacidade de exercer, sem mazelas, a vertente da autorregulação[4].
Ante a retomada do constitucionalismo no âmbito do Estado Social (Welfare State), a cultura dos direitos fundamentais entre os particulares começou a ser realmente difundida, uma vez que, segundo apontado por Jane Reis Gonçalves Pereira, diversos postulados representaram um rompimento de obstáculos à materialização dos direitos fundamentais na senda privada, com destaque para três: “i) a estanque separação entre Estado e sociedade civil; ii) a noção de igualdade formal; iii) a neutralidade do Estado em face da dinâmica social”[5].
No cenário estatal contemporâneo, por sua vez, não mais se debate a aplicação direta dos direitos fundamentais[6] perante o Estado[7] (plano vertical), mas sim os limites que devem ser observados na aplicação das normas de direito fundamental nas relações entre privados (plano horizontal).
Assentadas tais premissas e, considerando as concepções envolvidas na aplicabilidade dos direitos fundamentais no plano horizontal, o objeto deste estudo consiste especificamente na análise da liberdade de religião como fundamento legítimo para a recusa de tratamento de saúde essencial à preservação da vida.
Nesse passo, o problema que se apresenta, portanto, é o seguinte: é legítima a recusa de tratamento necessário à preservação da vida com base exclusivamente em fundamento religioso?
O presente estudo tem como objetivos: primeiro, analisar no cenário constitucional contemporâneo pátrio os contornos da aplicabilidade dos direitos fundamentais no plano horizontal; e, ato contínuo, examinar a legitimidade da recusa de tratamento de saúde essencial à preservação da vida, com base exclusivamente em fundamento religioso.
Para tanto, a metodologia utilizada no vertente trabalho é de natureza exploratória[8], de modo a instrumentalizar uma reflexão teórica da bibliografia relacionada com o tema proposto.
1. Panorama da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares
Os direitos fundamentais, como mencionado, surgiram por meio do ideal presente na tradição clássica liberal, tendo como único destinatário o Estado. Mas a complexidade da sociedade moderna também originou frequentes debates em torno da aplicação dos direitos fundamentais nas relações mantidas apenas entre atores privados.
Por tal razão o debate em torno da aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais na seara privada, notadamente no panorama estatal contemporâneo, começou a ganhar força. Isso porque, pelo menos em tese, há uma relação entre iguais e, na mesma proporção, titulares dos direitos fundamentais.
Seria um contrassenso, pelo menos numa análise objetiva, permitir sem qualquer embargo ou baliza a aplicação dos direitos fundamentais entre atores privados, já que, do contrário, estar-se-ia legitimando uma substituição irrestrita por parte dos particulares de uma posição originalmente destinada ao Estado.
É digno de nota que o debate em torno da aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais perpassa, especialmente, pelas teorias da eficácia mediata ou imediata. A primeira tem como escopo a necessidade de o Estado[9] atuar na função de efetivar os direitos fundamentais nas relações privadas, por intermédio do manejo das cláusulas “abertas” ou “gerais”, tais como: boa-fé, função social, moral, bons costumes, dentre outras.
De outro lado, a teoria da eficácia imediata estabelece que a efetivação dos direitos fundamentais não depende de uma técnica específica tampouco da interpretação de cláusulas gerais. Isto, pelo fato de que no âmbito privado os referidos direitos decorrem do exercício de um direito subjetivo erga omnes e, dessa forma, destaca-se a autonomia da vontade e a liberdade dos particulares.
No ordenamento jurídico estadunidense esta discussão teve azo, sobretudo, com a teoria da “State Action Doutrine”[10], de modo que, os direitos fundamentais só seriam aplicáveis quando houvesse a identificação de uma ação estatal.
A teoria do “State Action Doutrine”, porém, teve um efeito pendular, na medida em que o primeiro ciclo de decisões da Suprema Corte Americana na década de 40 – do século XX – reforçou o seu uso. Já o segundo ciclo de decisões relativizou o uso desta teoria, mormente por meio do clássico exemplo da declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte Americana de uma lei do Texas que vedava a participação de negros nas eleições primárias do partido democrata. Por fim, na década de 70, o terceiro ciclo de decisões voltou a adotar um conceito mais restritivo da aludida teoria.
A fim de ilustrar este efeito pendular, Jane Reis Gonçalves Pereira menciona que:
“A evolução da jurisprudência sobre a incidência dos direitos civis na esfera privada reflete, de forma bastante nítida, as diversas etapas da interpretação constitucional norte-americana em matéria de liberdades, que se iniciou com feição conservadora, assumiu um caráter marcadamente ativista em meados do século XX, e sofreu um novo influxo conservador nas últimas décadas”.
A aplicabilidade mediata ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas teve origem no constitucionalismo alemão, em especial, através do caso “Lüth”[11]. A Corte Constitucional Alemã na análise deste caso entendeu pela aplicabilidade mediata dos direitos fundamentais na relação entre os privados[12], pois, segundo Jane Reis Gonçalves Pereira:
“A Corte Constitucional entendeu que os tribunais civis, ao examinar litígios de natureza privada, devem levar em consideração os direitos fundamentais, interpretando os direitos civis de forma a harmonizá-los com os valores que emanam da constituição. A jurisdição constitucional alemã orientou-se, assim, no sentido da eficácia mediata dos direitos fundamentais”[13].
A orientação alemã pode ser justificada, em linhas gerais, primeiro por um apego extremado aos ideais libertários empregados nas revoluções contra os Estados absolutos que, à época, eram os grandes responsáveis pela opressão dos indivíduos. Logo, não haveria justificativa, sob esta perspectiva, que os direitos fundamentais tivessem aplicação direta na relação mantida entre os agentes privados.
Além do mais, outra razão pode ser no tocante à natureza do controle de constitucionalidade e a existência de recurso constitucional, pois, caso fosse admitida a tese da aplicação imediata dos direitos fundamentais entre particulares, o tribunal alemão teria que passar a julgar um número sem fim de ações, o que, por óbvio, desvirtuaria a sua natureza.
Dessa forma, Claus-Wilhelm Canaris menciona, à luz dos direitos fundamentais, na Alemanha quem são os destinatários, o objeto de análise e quais as funções dos direitos fundamentais, conforme se segue:
“somente o Estado é destinatário dos direitos fundamentais, de acordo com a opinião prevalente na Alemanha. Não obstante elas também produzem efeitos sobre as relações entre sujeitos jusprivatistas, embora apenas “mediatamente”.
verifica-se que contratos, negócios jurídicos e outros atos de sujeitos jusprivatistas não constituem objeto de um exame direto com base nos direitos fundamentais, pois as pessoas que executam esses atos não são, como já foi exposto, destinatários dos direitos fundamentais.
encontramos uma boa explicação teórica para a assim chamada “eficácia externa mediata”, pois não abandonamos a constatação de que o destinatário dos direitos fundamentais é apenas o Estado (já que a este incumbe um dever de proteção nesta seara). Por outro lado, fica simultaneamente claro por que isso afeta outros cidadãos e por que os direitos fundamentais produzem efeitos também nas relações interprivadas, e isto, de certo modo, por via oblíqua: precisamente porque o Estado ou o ordenamento jurídico estão, em princípio, obrigados a proteger um cidadão contra o outro também nas relações entre si”[14].
No Brasil, por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal historicamente tem firmado a sua orientação no sentido de admitir a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações entre privados, como será demonstrado, adiante, em três casos paradigmáticos.
O primeiro caso[15] trata da exclusão de associado à determinada cooperativa por deliberação de assembleia geral, sem a adoção das regras estatutárias alusivas à defesa. Os ministros da Segunda Turma do STF, por unanimidade, muito embora não tenham entrado no mérito da aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações travadas entre particulares, decidiram que deveria se aplicar na relação estabelecida entre privados a garantia do devido processo legal.
O segundo caso[16] se relaciona com reclamação trabalhista movida por empregado brasileiro de companhia aérea francesa, objetivando, dentre outras coisas, fruir de prerrogativas do estatuto pessoal da empresa, o qual era aplicado apenas aos empregados franceses, diga-se de passagem, porquanto realizassem atividades idênticas aos brasileiros. Dessa forma, o acórdão recorrido não acolheu a pretensão do reclamante – empregado brasileiro –, sob o fundamento de que a sua nacionalidade não era francesa e, por tal razão, não lhe assistia direito à aplicação das disposições delineadas no estatuto pessoal da empresa.
No entanto, os ministros da Segunda Turma do STF entenderam que houve, na hipótese, violação do preceito isonômico e, dessa forma, esclareceram que discriminar empregados em virtude do atributo da nacionalidade é inconstitucional. Até porque, os funcionários franceses não exerciam tarefas típicas em relação aos brasileiros que, por si só, justificasse a quebra de isonomia no tratamento dispensado aos trabalhadores das citadas nacionalidades.
Já o terceiro caso[17] diz respeito à legitimidade da exclusão de associado da União Brasileira de Compositores (UBC), sob o fundamento de que teria que ser observado o princípio constitucional da ampla defesa no ato da sua exclusão. E, em que pese a divergência dos ministros da segunda turma do STF, o fato é que, nesta oportunidade adentraram no mérito da aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, os quais concluíram pela eficácia imediata.
Apesar de a jurisprudência do STF considerar que os direitos fundamentais têm eficácia imediata nas relações entre particulares, segundo Jane Reis Gonçalves Pereira, para tanto, as pautas argumentativas assinaladas adiante devem ser observadas:
“1) Se a ação violadora do direito puder ser indiretamente imputada ao Estado, os direitos fundamentais, em tese, devem ser aplicados. Assim, as ações de concessionárias de serviços públicos bem como as dos atores privados que ajam com suporte estatal devem observar os direitos fundamentais. Esse ponto não costuma suscitar maiores debates e é razoavelmente aceito em doutrina.
2) As pessoas privadas que se encontram em posição de supremacia devem ter suas ações limitadas pelos direitos fundamentais. Quanto mais intenso o poder da organização privada maior peso terá o direito fundamental que porventura venha a ser violado por suas ações.
3-) (…) Quanto mais próxima à esfera privada revelar-se uma ação jurídica, menor a possibilidade de um direito fundamental vir a prevalecer sobre a autonomia privada.
4-) (…) A incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares não pode conduzir a uma homogeneização da comunidade, ou seja, é preciso preservar a identidade e as peculiaridades dos diversos agentes sociais.”
Como se vê, portanto, não mais se concebe pertinente no cenário constitucional pátrio a visão clássica presente nas revoluções liberais, isto é, de que a aplicação dos direitos fundamentais consiste apenas no plano vertical, tampouco no plano horizontal a aplicação deve se limitar somente quando estiver presente uma atuação estatal (eficácia mediata).
Infere-se, em contrapartida, a possibilidade da aplicação dos direitos fundamentais no plano horizontal desde que respeitada, acima de tudo, a autonomia da vontade do indivíduo como fruto da dignidade da pessoa humana[18]. Isto, principalmente nas hipóteses em que mais próxima a ação jurídica estiver da esfera privada.
2. Liberdade religiosa[19] como fundamento legítimo para a recusa de tratamento de saúde essencial à preservação da vida
A legitimidade da recusa de tratamento necessário à preservação da vida (direito à vida[20]) com apoio em fundamento religioso (liberdade religiosa[21]), ainda é um tema recorrente e que suscita muito debate no campo jurídico, na medida em que traz à tona conflito entre direitos fundamentais. Em que pese existente acalorado debate em torno da prevalência dos direitos fundamentais à vida e à liberdade religiosa, frise-se, oportunamente, que a nosso ver não passa de aparente.
O Boletim Infomativo da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ) nº 200, de maio de 2010, evidencia a contenda acera do conflito entre os direitos fundamentais do direito à liberdade religiosa e à vida, tendo em conta a recusa das testemunhas de Jeová realizarem transfusão de sangue humano.
Embora não seja um tema pacífico, o posicionamento conclusivo da PGE-RJ foi esboçado no Parecer nº 01, LRB, de 06.04.2010, da lavra do Procurador do Estado Luis Roberto Barroso – aprovado através do Visto PG (LLGT), de 26.04.10 –, o qual considerou legítima a recusa de transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová, desde que genuíno. Em outras palavras, válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada.
Tal linha de raciocínio é vislumbrada no trecho transcrito, abaixo, do citado Boletim:
“LIBERDADE RELIGIOSA
1. A liberdade de religião é uma das liberdades básicas do indivíduo, constituindo uma escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana. 3. A gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno, o que significa dizer válido, inequívoco, livre e informado[22].”
Percebe-se, por tais razões, que a legitimidade da aplicação dos direitos fundamentais no plano horizontal deve estar condicionada à autonomia da vontade do indivíduo como fruto da dignidade da pessoa humana, tal como demonstrado no ponto anterior.
Assim, pelo menos em tese e, sem uma análise mais profunda a respeito do assunto, é cabível deduzir que, eventualmente, um médico ou enfermeiro, por exemplo, estariam impossibilitados de realizar qualquer tratamento de saúde em determinado paciente que fundamente a sua recusa sob um argumento de natureza religiosa.
Não custa frisar, também, que os direitos fundamentais quando em posição de conflito, devem ser ponderados, de tal forma que a dignidade da pessoa humana deve ser diretamente resguardada, como assevera Ana Paula de Barcellos: “Assim, em suma, verificando-se um conflito que exija ponderação, terão preferência as normas que atribuam direitos fundamentais ou diretamente resguardem a dignidade humana”[23].
De acordo com Cláudio da Silva Leiria ao citar Ana Carolina Dode Lopez:
“Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados. A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.
O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art. 1º, III, da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez.”[24]
Logo, o assunto analisado neste ponto também merece ser enfatizado sob a ótica dos estatutos internacionais e, sobretudo, contemplado e aprofundado em vista dos aspectos legais pátrios e de questões relacionadas com a ética profissional.
2.1. Aspectos Legais
No plano internacional a liberdade de religião foi sobremaneira enfatizada, tendo em vista a diversidade de diplomas que consagram a vedação de medidas que tenham por finalidade limitar os indivíduos de conservarem suas religiões ou crenças. Merecem destaque, nesse sentido: a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[25], o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966[26], a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969[27], a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas em Religião ou Crença de 1981[28].
Já na ordem jurídica pátria, ressalta-se que, conquanto o Brasil não tenha adotado uma religião oficial, a Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, ante a promulgação da Carta Constitucional invocou a proteção de Deus, conforme se verifica através de mera interpretação literal do preâmbulo[29]. Isto, ainda que superficialmente, faz crer a importância da religiosidade e da espiritualidade.
Aliás, a questão ainda pode ser enfrentada à luz do que dispõe a Constituição Federal de 1988 em consonância com os diplomas infraconstitucionais. O princípio constitucional da legalidade que disciplina à conduta dos particulares, estabelece que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, salvo em virtude de lei[30].
Ou seja, de modo geral não há no campo jurídico pátrio legislação que imponha ao paciente a obrigatoriedade de realizar tratamento de saúde contra a sua vontade, apesar de essencial à preservação da vida. Muito pelo contrário, conforme se verifica através de simples interpretação literal dos artigos 17 da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso)[31], 10 da Lei nº 9.434/97 (Lei dos Transplantes) com a redação dada pela Lei nº 10.211/01[32] e, principalmente, do artigo 15 do Código Civil de 2002. Dispositivo, este, que não deixa margem a dúvidas, na medida em que expõe: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
E não é só, o parágrafo único do artigo 3º da Lei nº 8.080/90 (Lei do Sistema Único de Saúde) estabelece que as ações de saúde não devem apenas garantir condições de bem-estar físico, mas também mental e social.
Ademais, o artigo 146 Código Penal[33] tipifica o crime de constrangimento ilegal e, no parágrafo 3º, inciso I, traça uma ressalva no seguinte sentido: “§ 3º – Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”.
O fato é que, a interpretação da aludida ressalva que melhor se coaduna com a lisura da autonomia do indivíduo como fruto da dignidade da pessoa humana, é aquela que o profissional de saúde ao realizar uma intervenção médica ou cirúrgica só não será responsabilizado pelo crime de constrangimento ilegal quando houver iminente perigo de vida para o paciente e, se não for crível ante as circunstâncias fáticas do caso, a obtenção livre e esclarecida do seu consentimento.
Em contrapartida, se for possível o paciente sustentar de forma livre e consciente a recusa de tratamento com base em fundamento religioso, embora ciente de que a sua vida corre risco e, ainda assim, o profissional de saúde realize a intervenção, cogita-se a responsabilidade penal deste profissional. Isto se justifica, uma vez que a autonomia do paciente como fruto da dignidade da pessoa humana, também deve ser vista sob o prisma do respeito à sua vida íntima e privada, frise-se, assegurada pela Carta Constitucional[34].
Não deve ser olvidado que a recusa dos indivíduos para não se submeter a tratamento de saúde, embora este se revele essencial à preservação da sua vida, deve ser fruto de uma decisão livre, voluntária e esclarecida dos procedimentos que serão adotados, em conformidade com o disposto na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria nº 675/GM de 2006)[35] e na Lei Estadual (RJ) nº 3.613/01[36].
Aliás, trata-se de direito personalíssimo, não havendo possibilidade de delegação aos familiares, conforme revela a ementa fruto do julgamento pela Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, do agravo de instrumento nº 2004.002.13229, abaixo transcrita:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido”[37].
Por essas razões, apenas o paciente voluntariamente poderá manifestar – de forma válida – a recusa ao tratamento de saúde com fundamento religioso, por óbvio, após o devido esclarecimento e por meio das informações relacionadas com os procedimentos diagnósticos – preventivos e terapêuticos. Não cabe, assim, o profissional de saúde reavaliar a escolha existencial do paciente sobre o próprio corpo e, em consonância com a sua convicção religiosa.
Registre-se, ainda, que a qualquer tempo o paciente também de forma livre e esclarecida, como na manifestação da recusa ao tratamento de saúde, poderá decidir revogá-la, sem que, com isso, sejam imputadas quaisquer sanções de natureza moral, administrativa ou legal[38].
2.2. Aspectos Éticos
Por certo que a relação entre os profissionais de saúde e o paciente deve ser pautada na ética, notadamente através dos preceitos do esclarecimento, informação e transparência, tendo como objetivo salvaguardar a autonomia do paciente.
Este cenário, a título exemplificativo, é corroborado através do Código de Ética Médica vigente (Resolução CFM nº 1931/09[39]), como se nota nos considerandos deste diploma, por meio da seguinte premissa: “a busca de melhor relacionamento com o paciente e a garantia de maior autonomia à sua vontade”.
Além disso, e, ainda em conformidade com os preceitos éticos, o médico deverá guardar absoluto respeito ao ser humano[40] e na tomada das suas decisões deverá aceitar as escolhas de seus pacientes[41]. Por aí já é válido inferir que a postura ética do médico deve ser lastreada no respeito à autonomia do paciente, a fim de permitir que este conduza seus próprios comportamentos e faça as escolhas que melhor lhe convier.
Logo, o médico não deve opor quaisquer obstáculos à liberdade do paciente recusar quaisquer tratamentos de saúde (ou escolher dentro dos possíveis, o que julgar mais apropriado), ainda que este tenha por apoio apenas fundamentos religiosos.
Traduzindo a importância da autonomia no contexto médico do direito norte-americano, Ronald Dworkin tece as seguintes considerações:
“Nos contextos médicos, essa autonomia está frequentemente em jogo. Por exemplo, uma Testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas. Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação. Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstância desse tipo”[42].
Mas o que, de fato, ratifica a autonomia do paciente, possibilitando a recusa a tratamento de saúde perante o médico, encontra-se na vedação consignada no artigo 31 do diploma ético citado, o qual explicita que é proibido ao médico: “Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” [43].
Também merece relevo o disposto no artigo 32 do estatuto ético em destaque: “Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”.
Como se vê, a própria ética médica estabelece que a vida do paciente não é mais importante do que a vida com dignidade, pois, em determinados casos – os cientificamente comprovados – os médicos poderão deixar de realizar todos os diagnósticos e tratamentos existentes quando não puderem suscitar nenhum benefício em prol do paciente.
É digno de nota, ainda, que a interpretação literal tanto do item XXII do Capítulo I[44] quanto do artigo 41, parágrafo único[45], ambos do Código de Ética Médica, evidencia que o médico no exercício profissional deve buscar a preservação da vida do paciente tendo como objetivo, principal, o respeito à dignidade da pessoa humana. Isto é, nota-se que o fator da preservação da vida, isoladamente, não se coaduna com o espírito consolidado no diploma ético em destaque.
Ao que tudo indica o Código de Ética de Enfermagem (Resolução COFEN nº 311/2007), por exemplo, também norteia os profissionais de enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem) por meio de princípios fundamentais que disciplinam a preservação da autonomia, da dignidade e dos direitos humanos em todas as dimensões dos pacientes, nomeadamente a promoção do ser humano na sua integralidade[46].
Nesse sentido, o artigo 18 do estatuto ético dos profissionais de enfermagem dispõe que: “Respeitar, reconhecer e realizar ações que garantam o direito da pessoa ou de seu representante legal, de tomar decisões sobre sua saúde, tratamento, conforto e bem estar”.
Não é de todo despropositado deduzir, assim, que os profissionais de enfermagem devem garantir o respeito à autonomia dos pacientes, especificamente em relação às decisões sobre quais tratamentos devem ser realizados.
3. Nota conclusiva
Os objetivos do presente estudo foram respondidos de forma satisfatória, pois, foi verificado que no cenário constitucional pátrio a aplicação dos direitos fundamentais não ocorre apenas no plano vertical, tampouco no plano horizontal a aplicação deve se limitar apenas por intermédio da atuação estatal (eficácia mediata).
Logo, demonstrou-se a necessidade da aplicação imediata dos direitos fundamentais no plano horizontal, desde que respeitada a autonomia da vontade do indivíduo como fruto da dignidade da pessoa humana, de maneira especial nas hipóteses em que mais próxima a ação jurídica estiver da esfera privada. Não à toa, a dignidade da pessoa humana deve ser diretamente resguardada, no presente caso, por meio da escolha existencial da recusa de tratamento de saúde com fundamentação na liberdade religiosa.
Os Códigos de Ética Médica e dos Profissionais de Enfermagem, como foi examinado, estabelecem como norte o absoluto respeito ao ser humano e à tomada de decisões pautadas nas escolhas existenciais dos pacientes, a fim de permitir que conduzam seus próprios comportamentos e façam as escolhas que julgarem mais apropriadas – tal como recusar tratamento de saúde com base em fundamento religioso. Logo, não cabe uma reavaliação da escolha existencial do paciente sobre o próprio corpo, em consonância com a sua convicção religiosa respectiva.
Além do mais, tendo em vista as disposições do ordenamento jurídico registradas no presente estudo e, sobretudo, o que prevê a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria nº 675/GM de 2006) e a Lei Estadual (RJ) nº 3.613/01, apenas o próprio paciente voluntariamente poderá manifestar, validamente, a recusa ao tratamento de saúde com fundamento religioso. Isto, por certo, após o devido esclarecimento e com apoio em informações relacionadas com os procedimentos diagnósticos.
Não é demais lembrar, por fim, que poderá o paciente a qualquer tempo também de forma livre e esclarecida, assim como na manifestação da recusa ao tratamento de saúde, decidir revogá-la, sem que sejam imputadas quaisquer sanções de natureza moral, administrativa ou legal.
Informações Sobre o Autor
Thiago Gomes do Carmo
Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho. Pós-Graduado em Direito do Estado e da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado do Instituto de Resseguros do Brasil S.A. (IRB-Brasil Re)