Enfocando a questão da Prisão preventiva para garantia das medidas protetivas de urgência nos termos do artigo 313, III, CPP, é de se considerar a manifestação doutrinária ousada de Mendonça ao alegar que, embora a lei fale no decreto extremo para “garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, a prisão poderia ser decretada em caráter substitutivo, ou seja, primeiro determinada uma medida protetiva e, face ao seu descumprimento, se decretaria a preventiva para assegurar a proteção do hipossuficiente. Ou em caráter autônomo e direto, ou seja, em casos de violência doméstica e familiar, independentemente da pena máxima cominada, poder-se-ia determinar diretamente a Prisão Preventiva do suposto infrator, ainda que sem a prévia determinação e infração a uma medida protetiva de urgência. Tudo dependeria somente de uma análise de proporcionalidade (adequação e necessidade) nos termos do artigo 282, I e II, CPP.
Toma-se a liberdade de transcrever o texto referido:
“Embora o legislador afirme que a decretação da prisão preventiva, nesse caso, seja para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, nada impede que a prisão preventiva seja imposta de maneira originária e autônoma. Em outras palavras, é possível a decretação da prisão preventiva com base no artigo 313, III, em duas situações diversas: a)de maneira substitutiva, em caso de descumprimento de medida alternativa anteriormente imposta (art. 319), para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; b)de maneira originária ou autônoma, quanto o juiz entender que a prisão é, desde logo, a única adequada para a situação concreta. Portanto, embora o dispositivo não seja expresso, o juiz poderá aplicar a prisão preventiva originariamente, sem necessidade de decretar anteriormente qualquer medida alternativa à prisão (chamada, no caso, de ‘medida de proteção’). O que deve guiar o magistrado é o princípio da adequação, nos termos do art. 282, inc. II, para verificar se é o caso de decretar desde logo a prisão ou se bastará, inicialmente, a imposição de uma medida alternativa e, apenas em caso de descumprimento, determinar a prisão”. [1]
Certamente, seguindo essa linha de raciocínio, poder-se-ia citar o artigo 20 da Lei 11. 340/06 como reforço da argumentação, vez que realmente menciona o dispositivo a possibilidade de preventiva em casos de violência doméstica e familiar sem fazer menção à qualidade ou quantidade de pena, conforme o faz o Código de Processo Penal. Isso, em tese, estaria a aumentar a credibilidade do argumento de que a preventiva poderia ser decretada de forma autônoma e não somente substitutiva em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e outros hipossuficientes.
Não obstante a bem urdida argumentação acima exposta, considera-se mais adequada a interpretação de que a preventiva, em casos de violência doméstica e familiar, conforme prevista no inciso III do artigo 313, CPP, somente é viável na forma substitutiva de medidas protetivas ou cautelares alternativas anteriormente impostas e violadas pelo infrator. Há algumas razões consideradas de relevância para tal entendimento:
Uma primeira motivação é a própria redação dada ao artigo 313, III, CPP. Sabe-se muito bem que o velho brocardo “in claris cessat interpretatio” (disposições claras não comportam interpretação) tem sido afastado pela mais moderna hermenêutica jurídica. Essa espécie de entendimento tem sido considerada “sem nenhum valor científico, ante as ideias triunfantes na atualidade”. [2] É mais que óbvio que para chegar à própria afirmação de que uma norma é clara, já se fez uma interpretação!
Não obstante, a dicção do inciso sob comento não deixa qualquer dúvida quanto à “mens legis” voltada para uma aplicação tão somente substitutiva da Prisão Preventiva. A lei exige dois requisitos bem claros:
a)Que o crime envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência;
b)Que a medida de prisão seja tomada para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
A simples leitura do inciso não deixa dúvida de que os dois requisitos não são independentes, mas nitidamente vinculados. Não basta que o crime envolva violência doméstica ou familiar, mas é precido, além disso, que a preventiva tenha uma motivação necessária, qual seja: que ela seja decretada “para” garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Indaga-se: como se poderá afirmar que a custódia se destina à garantia de medidas protetivas, se elas não existem? Garantir o quê se a custódia é decretada diretamente, sem a prévia determinação de medidas protetivas que teriam sido violadas pelo infrator? No caso a Prisão Preventiva estaria sendo decretada tão somente levando em conta o fato de que ocorre um caso de violência doméstica e familiar, mas isso não basta. A lei somente excepciona, no caso do inciso III do artigo 313, CPP, o “quantum” maior que 4 anos de pena máxima quando a medida extrema se destina a garantir medidas protetivas previamente decretadas e infringidas e não somente pelo fato de que o caso envolve violência doméstica e familiar.
Também não seria viável aceitar como fundamento um prognóstico de que o suspeito viria a infringir as medidas protetivas de urgência ou cautelares alternativas ainda nem impostas e submetidas a teste concreto. Essa avaliação somente é possível nos casos de crimes apenados acima de quatro anos (pena máxima) e para os reincidentes em crimes dolosos, quando claramente a preventiva é estabelecida de forma a ser aplicada diretamente, sem necessidade de passar antes por medidas alternativas. No caso do inciso III do artigo 313, CPP, fazer o prognóstico fora das hipóteses dos incisos I e II do artigo 313, CPP ante a redação legal seria uma espúria presunção de culpabilidade totalmente divorciada do sistema processual penal e, principalmente, constitucional. Se há violação efetiva de medidas protetivas previamente estabelecidas, não se trata de previsão ou prognóstico e sim de um ser presente no mundo real. Conforme aduz Sartre, “o passado é, com efeito, o ser que sou fora de mim, mas ser que sou sem possibilidade de não sê-lo”. Portanto, operada a violação, não há retorno e abre-se a possibilidade da preventiva. Agora, “o futuro que tenho de ser, ao contrário, é de tal ordem em seu ser que somente posso sê-lo porque minha liberdade o corrói em seu ser por debaixo. (…). Em suma, sou meu futuro na perspectiva constante da possibilidade de não sê-lo”. [3] Nota-se que a própria ontologia fenomenológica está a indicar a insegurança e a dúvida razoável que envolve um prognóstico dessa espécie, de forma a torná-lo incompatível com a adoção de uma cautelar constritiva de prisão, ao menos de acordo com a redação restritiva e vinculada dada pelo artigo 313, III, CPP. Caso contrário estaria a porta aberta para, por exemplo, a presunção de fuga por parte das autoridades, sem base em elementos fáticos dos autos no caso de assegurar a aplicação da lei penal; a presunção de que o indiciado ou réu irá pretender eliminar, intimidar ou subornar testemunhas, vítimas, peritos ou destruir provas com relação à conveniência da instrução criminal, mesmo sem base concreta existente nos autos. E a prisão de alguém não se pode basear numa inconsistente futurologia ou na mera intuição de quem quer que seja, mas somente em dados concretos a satisfazerem objetivamente os requisitos e fundamentos legais. Consigne-se que, para mais uma vez comprovar a afirmação de que nada de novo brotou na filosofia após os gregos, constata-se em Aristóteles o germe do existencialismo de Sartre e companhia. O estagirita já afirmava na antiguidade que “ninguém delibera sobre o passado, e sim apenas sobre o que está para acontecer e pode ser de outra forma, enquanto o que passou não pode deixar de ter ocorrido; e por isso Agaton tinha razão em dizer: ‘pois somente isto é ao próprio Deus vedado, considerar não sucedido o que já aconteceu’”. [4] Mas, essa maleabilidade do futuro permite ao pobre homem chegar a conclusões sempre precárias e arbitrárias sobre aquilo que virá a suceder, o que, para fins da prisão de alguém, constitui perversão inadmissível. Só o passado oferece a segurança necessária, especialmente quando a lei prescreve duas condições vinculadas para o decreto prisional (violência doméstica para garantia de medidas protetivas de urgência).
O dispositivo do artigo 20 da Lei Maria da Penha anteriormente mencionado em nada alterava e nem agora altera o quadro do regramento da preventiva no Código de Processo Penal. Apenas diz o óbvio: que nos casos de violência doméstica e familiar pode caber a preventiva, quando o caso e de acordo com os ditames legais e constitucionais atinentes à matéria.
É intuitivo que cabe o decreto preventivo diretamente, ainda que sem haver medidas protetivas prévias, em se tratando de crimes com pena máxima superior a 4 anos envolvendo violência doméstica e familiar, tais como estupro, homicídio, tentativa de homicídio, lesões graves ou gravíssimas, lesões seguidas de morte etc. Para isso o legislador não precisaria ter criado o antigo inciso IV do artigo 313, CPP (ora revogado) ou o atual inciso III do mesmo artigo, redigido nos termos da Lei 12.403/11. A própria criação dos dispositivos acima mencionados está a indicar que eles se destinam aos casos de crimes para os quais normalmente não seria cabível a preventiva. Na época do artigo 42 da Lei Maria da Penha (que criou o inciso IV, do artigo 313, CPP) para abranger os crimes apenados com detenção e facilitar a preventiva nos casos de descumprimento de medidas protetivas, já que normalmente não seria possível esse recurso a não ser em casos excepcionais. Agora, para os crimes apenados até 4 anos (reclusão ou detenção), quando, normalmente, também não seria possível a preventiva. O dispositivo é criado como um mecanismo de eficácia das medidas protetivas de urgência, um instrumento de força para sua imposição e cumprimento efetivo. E essa força é necessária somente para os casos em que a preventiva não seja cabível diretamente, senão não haveria necessidade de recurso ao antigo inciso IV, atual inciso III do artigo 313, CPP, mas simplesmente, considerando o fundamento da ordem pública, dever-se-ia proceder ao decreto extremo com base no próprio artigo 312 c/c 313, I, CPP. É, portanto, nítido que o dispositivo se refere tão somente aos casos em que normalmente não caberia preventiva direta, tornando sua aplicação viável “para” a garantia das medidas protetivas previamente impostas e violadas pelo investigado ou réu.
É claro que também em casos de crimes apenados acima de quatro anos, pode haver medidas protetivas violadas e o decreto de preventiva ser determinado também com base no artigo 313, III, CPP. No entanto, nessas situações ele funcionaria como um reforço ao motivo de garantia da ordem pública (art. 312, CPP) e ao inciso I do mesmo artigo.
Em trabalho anterior já se salientava a utilidade do dispositivo criado pelo artigo 42 da Lei Maria da Penha e agora reiterado pela Lei 12.403/11 com maior alcance:
“O dispositivo é providencial, constituindo-se em um utilíssimo instrumento para tornar efetivas as medidas de proteção preconizadas pela novel legislação. Não houvesse essa modificação, a maioria dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher ficaria privada do instrumento coercivo da Prisão Preventiva por ausência de sustentação nos motivos elencados no artigo 312, CPP, tradicionalmente e nos casos de cabimento arrolados no artigo 313, CPP.
É claro que deverão ser satisfeitos os requisitos do artigo 312, CPP, normalmente também nesses casos (prova do crime e indícios suficientes de autoria). O legislador apenas acrescentou mais uma hipótese criminal de cabimento do decreto extremo no artigo 313, CPP (casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher, independente dos demais incisos do dispositivo) e também criou mais uma motivação ou fundamento, agora situado fora do artigo 312, CPP, abrigado no inciso IV do artigo 313 do mesmo diploma, qual seja, ‘para garantir a execução das medidas protetivas de urgência’. [5] Estas, por seu turno, são aquelas elencadas nos artigos 22 a 24 da Lei 11.340/06.
A utilidade dessa inovação é cristalina. Basta, para exemplificar, destacar a inocuidade da medida protetiva de urgência de proibição ao agressor de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando um limite mínimo de distância entre estes e o agressor (art. 22, III, “a”, da Lei 11.340/06). Tal determinação judicial desprovida de um instrumento coercitivo rigoroso não passaria de formalidade estéril a desacreditar a própria Justiça” . [6]
Qual é então historicamente a motivação do antigo inciso IV e atual inciso III do artigo 313, CPP? Nada mais, nada menos do que possibilitar a preventiva em casos nos quais ela normalmente não teria cabimento e tão somente para a finalidade específica de garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Fora desses casos a preventiva somente poderá ser decretada estando prevista a situação em um dos outros incisos do artigo 313, CPP ou seu Parágrafo Único.
Outro entendimento equivaleria a tornar letra morta o inciso I do artigo 313, mesmo porque se fosse permitida a preventiva direta nos casos de violência doméstica e familiar o mesmo raciocínio deveria ser aplicado para o dispositivo que prevê a preventiva para o descumprimento de cautelares alternativas (artigos 319 e 320 c/c 312, Parágrafo Único e 282, §§ 4º. e 6º., CPP). Ora, a prosperar o entendimento de que mesmo dizendo o legislador que a preventiva seria aplicável “para” garantir as medidas protetivas, seria possível decretá-la diretamente, por que não seria aplicável o mesmo entendimento quando o legislador diz que a preventiva cabe para coibir o descumprimento de outras cautelares? Se assim fosse, então, em qualquer caso, independentemente da pena, pelo simples motivo de previsão de preventiva substitutiva, se concluiria que seria também possível a preventiva direta, independentemente da pena. Aliás, seria possível a preventiva direta, independentemente de ser o crime culposo ou doloso, pois que o Parágrafo Único do artigo 312, CPP nada diz a esse respeito. Parece que esse tipo de raciocínio não deve prosperar sob pena de tornar a limitação quantitativa proporcionalmente disposta no inciso I do artigo 313, CPP totalmente inócua, mediante a possibilidade de seu contorno por argumentos construídos “ad hoc”.
Mesmo a ligação umbilical existente entre o artigo 44, CP e o artigo 313, CPP não justifica a superação da excepcionalidade da medida extrema fora dos casos expressamente previstos na lei processual, com base, por exemplo, no inciso III do artigo 44, que veda as penas substitutivas, mesmo satisfeitos os demais incisos, considerando critérios subjetivos e circunstanciais de cada infração. Ocorre que esse inciso, deve ser reservado para a aplicação de uma pena efetiva, enquanto que o regramento da preventiva, medida cautelar por excelência, tem de submeter-se a requisitos próprios mais limitativos considerando a condição precária em que é decretada (Presunção de Inocência). Por isso a lei processual determina um critério de proporcionalidade considerando a pena máxima de quatro anos e a reincidência em crime doloso, critérios esses que coincidem com os incisos I e II do artigo 44, CP referente às penas alternativas. Mas, quando se trata do inciso III do artigo 44, CP não há correspondente na lei processual e sim apenas algumas exceções bem claras em que se abre mão dos quatro anos de pena máxima ou da reincidência em crime doloso. Essas exceções devem ser interpretadas na prisão provisória (não prisão – pena) de forma restritiva e a ampliação do cotejo entre o artigo 44, CP com o artigo 313, CPP nesse caso seria incabível por incompatibilidade lógica entre a lei material e a lei adjetiva. Há casos em que a promiscuidade entre dispositivos penais e processuais penais pode gerar lesões às garantias constitucionais, especialmente da Presunção de Inocência e da consequente excepcionalidade da prisão provisória. Não é desejável que haja uma ampliação desmesurada das hipóteses de prisão provisória através do uso de um dispositivo penal, no caso o artigo 44, III, CP, especialmente quando a legislação parece tão clara na determinação dos casos excepcionais em que admite certa ampliação contida. Inclusive não há se falar em proporcionalidade nessa situação, mesmo se valendo do artigo 282, I e II, CPP, vez que esta já está devidamente estabelecida pelos próprios incisos do artigo 313 e pelo artigo 312 e seu Parágrafo Único, CPP, que não permitem uma abertura da preventiva para casos não abrangidos expressamente por suas disposições.
Muitas vezes para chegar a uma solução mais consentânea e equilibrada é preciso agir como o cirurgião descrito por Kundera, abrindo a superfície das coisas e olhando aquilo que se oculta dentro delas. [7] Ao dissecar as disposições de uma prisão provisória, ainda que estas estejam ligadas a disposições penais, percebe-se que sua fisiologia e funcionamento não podem ter uma correspondência exata, sob o risco de que no campo processual haja violação do razoável.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.