Resumo: O presente estudo visa à análise §3º do Art. 515 do CPC, não tocante à extensão efeito devolutivo da apelação, bem como, do §1º do Art. 518, também do CPC, este quanto aos limites de aplicação da súmula impeditiva do recurso de apelação. Assim, propõe-se a desenvolver esse estudo de modo a perquirir se as regras esculpidas nesses dispositivos afrontam os princípios constitucionais do Juiz Natural e do Devido Processo Legal, ou se na verdade, o que fazem é trazer uma mitigação desses em prol da tão aclamada celeridade processual, realizada por meio de uma ponderação de interesses entre aqueles e o Princípio da Duração Razoável do Processo.
Palavras-chave: Duração razoável do processo. Efeito devolutivo da apelação. ‘Teoria da causa madura’.
Abstract: This study aims to analyze § 3 of Art. 515 of the CPC, as regards the extension of the devolutive effect of the appeal, as well as, §1 of Art. 518, also of the CPC, this as the limits of application of inhibitive docket. We seek to develop the study keeping an eye on whether the rules carved on these devices injure the constitutional principles of Natural Justice and due process of law, or if in fact, bring a mitigation of same in favor of an acclaimed speed procedure, on the principle of Reasonable Duration weighting process.
Keywords: Reasonable length of proceedings. Devolutive effect of the appeal. ‘Mature cause theory’.
Sumário: 1. Introdução. 2. Da Análise Conjunta do §1º do art. 518 e do §3º do art. 515, ambos do CPC. 2.2. Do §1º do art. 518 do CPC. 2.3. Do §3º do art. 515 do CPC. 3. Conclusões. 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Inicialmente não se pode olvidar, que as regras trazidas nos dispositivos acima mencionados têm como objetivo a implementação de uma maior celeridade na prestação jurisdicional, de forma a dar real efetividade aos próprios princípios que regem o Processo Civil, quais sejam, os Princípios da Celeridade Processual e Economia Processual, e com isso, garantir ao jurisdicionado o direito a uma duração razoável do processo, direito este elevado à categoria de Direito Fundamental, a partir da EC 45, de 08-12-2004, através do inciso LXXVII ao Art. 5º da Lei Magna:
“Art. 5º …
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são asseguradas a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”[1]
A busca por um processo mais ágil, mais célere, mais econômico e com maior efetividade vem sendo um desafio ao legislador que, antes mesmo do direito a razoável duração do processo ser erigido como um direito fundamental, já havia implementado outros mecanismos de agilidade no julgamento, sendo um deles o que a doutrina passou a chamar de “teoria da causa madura”, cujo dispositivo correspondente é o §3º ao Art. 515, do CPC, que ora comentaremos.
Seguido a isso, diversas foram as leis infraconstitucionais que se originaram do Art. 5º, LXXVIII – direito fundamental a duração razoável do processo – com o fito de alcançar a tão aclamada celeridade e economia processual, a exemplo dessas muitas leis, tem-se a Lei 11.276/2006, que acresceu o §1º ao Art. 518 do CPC, também alvo deste trabalho, e que, na hipótese de casos concretos a exigirem a aplicação conjunta da regra do §3º do Art. 515, podem originar situações jurídicas especiais, até mesmo inusitadas no direito processual, como a possível reformatio ‘in pejus’ que poderá ocorrer, de forma excepcionalíssima nos casos que ainda exemplificaremos a seguir; o que leva a grande polêmica quanto a constitucionalidade do §1º, do Art. 518 do CPC.
Delimitando especificamente então o nosso tema, pontuamos que estamos a falar do que se passou no meio jurídico a chamar de “julgamento da causa madura” e da “súmula impeditiva de apelação” como referência às regras trazidas, respectivamente, nos §3º, do Art. 515, e §1º, do Art. 518, ambos do CPC. É o que passaremos a analisar doravante.
2. DA ANÁLISE CONJUNTA DO §1º DO ART. 518 E DO §3º DO ART. 515, AMBOS DO CPC:
De acordo com a redação do §1º, do Art. 518, do CPC, o juiz está autorizado a não receber o recurso de apelação quando constatar que a sentença por ele proferida está de acordo com as súmulas, tanto do STJ, quanto do STF, senão veja:
“Art. 518 …
§1º. O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.”[2]
Lado outro, o §3º, do Art. 515, dispõe que:
“Art. 515 …
§3º. Nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito (artigo 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento.”[3]
Dessa forma, o presente dispositivo autoriza o tribunal a julgar, desde logo, a lide, se estiverem presentes, no caso concreto, os requisitos que ali elenca: 1) nos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito; 2) se a causa versar questão ‘exclusivamente’ de direito; e 3) se o processo estiver em condições de imediato julgamento.
Extrai-se das regras em comento, que poderão surgir hipóteses processuais que gerarão situações complexas e inusitadas, dando margem até mesmo a uma situação sui generis no direito processual, como a reformatio in pejus, senão veja:
Num exemplo prático, temos a hipótese em que após a fase postulatória e a realização da perícia, o juiz profere sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, por considerar o réu, parte ilegítima para figurar no pólo passivo. Contra a sentença, o autor interpõe recurso de apelação. O juiz de primeiro grau, com fundamento no Art. 518, §1º, do CPC, deixa de receber o recurso, sob o argumento de que a sentença está em conformidade com súmula do STJ, quanto à ilegitimidade passiva do réu. Questiona-se então: 1º) Pode o Tribunal dar provimento ao agravo de instrumento, ao argumento de que a súmula do STJ invocada na sentença não deve ser prestigiada? 2º) Se for processada a apelação, é possível ao Tribunal julgar desde logo o mérito da causa, mesmo sem requerimento do autor? Em caso positivo, o julgamento poderá ser de improcedência do pedido ou isso representaria reformatio in pejus?
2.1. DO §1º DO ART. 518 DO CPC:
Procurando esboçar uma exposição mais didática possível, inicialmente cabe registrar aqui, que a sentença proferida no exemplo vertente é sentença terminativa, sendo desafiada por recurso de Apelação, o qual encontrará óbice para o seu recebimento no §1º, do Art. 518, do CPC, por estar em conformidade com súmula do STJ. Da decisão que não receber a apelação com base no §1º do Art. 518 CPC, caberá a interposição do recurso de Agravo de Instrumento para o Tribunal.
Posto isto, em casos tais deve ser analisada a possibilidade do Tribunal dar provimento ao agravo de instrumento, ao argumento de que a súmula do STJ invocada na sentença não deve ser prestigiada.
A resposta é positiva, por se tratar de sentença extintiva do processo sem julgamento do mérito (terminativa), o que implica dizer que o agravante trará a lume discussão sobre matéria eminentemente processual, no caso, discussão acerca da ilegitimidade passiva. Exatamente em razão de assim ser, é que se firmou na doutrina e jurisprudência, de forma majoritária, o entendimento de que o §1º do Art. 518 do CPC, deve ser lido, excluindo-se as súmulas que versem sobre matéria processual, de modo a afastar a aplicação deste dispositivo como fonte de embasamento ao não recebimento da apelação em casos tais.
É que somente as súmulas de conteúdo material podem fundamentar de forma direta uma sentença de procedência ou improcedência, enquanto que as Súmulas de conteúdo processual, não têm esse condão, e, por conseguinte, não as dotam de autoridade para o não recebimento da apelação com base no Art. 518, §1º, do CPC. De modo que, a discussão, nesta hipótese, a ser veiculada na Apelação interposta será travada em torno da aplicação ou não de súmula atinente a questão processual, que na espécie é a ilegitimidade passiva, o que afasta por completo a incidência da regra do §1º, do Art. 518 do CPC, o que permite o recebimento do Agravo de Instrumento interposto da decisão que não recebe a Apelação com fulcro neste dispositivo.
O doutrinador Fredie Didier Júnior, nesta hipótese, leciona que não haverá aplicação do §1º do Art. 518 do CPC:
“Se o apelante discutir a incidência da súmula no caso concreto: neste caso, o recorrente não discute a tese jurídica sumulada, mas sim, se o caso se subsume à hipótese normativa consolidada pela jurisprudência.
Assim, extinto o processo sem exame do mérito pela sentença proferida pelo juiz de primeira instância, poderá o tribunal, ao dar provimento à apelação, adentrar o exame do mérito, desde que já estejam nos autos todos os elementos de prova suficientes ao exame do pedido formulado pelo autor em sua petição inicial ou se a causa versar matéria exclusivamente de direito. O julgamento do mérito diretamente pelo tribunal não é consequência do efetio devolutivo do recurso, até proque ele ocorre após o julgamento do recurso – é um outo efeito da apelação, já denominado efeito desobstrutivo do recurso. Mas parece inegável que a possibilidade deste julgamento é efeito do recurso; mais precisamente é um efeito do julgamento do recurso.”[4]
2.2. DO §3º DO ART. 515 CPC:
Recebido então o Agravo de Instrumento pelo Tribunal, e em sendo este provido, a Apelação então deverá subir para ser apreciada pelo órgão ad quem.
Agora então, a questão passa a ser saber, se o Tribunal que recebeu essa Apelação, pode ou não passar, desde logo, ao exame e julgamento do mérito da causa, a luz do que se denominou ‘julgamento da causa madura’, (previsão do Art. 515, §3º, do CPC). E ainda, se tal poderá ser realizado, mesmo sem o requerimento do apelante neste sentido.
A resposta também é positiva.
E nesse ponto, cabe uma pequena explanação, para destacar que o Recurso de Apelação detém duplo efeito, o efeito devolutivo, que submete ao Tribunal o exame da matéria, e o efeito suspensivo, que estanca a eficácia imediata que a sentença deveria produzir. Lembrando que o efeito devolutivo deve ser analisado em sua extensão e em sua profundidade. A extensão é delimitada pela impugnação do recorrente, ficando assim, o Tribunal adstrito a apreciação do que se impugnou, tantum devolutum quantum appellatum. Desse modo, pode a impugnação ser parcial ou total, pelo que, por aplicação do Princípio da Congruência ao Processo Civil, a devolutividade também o será parcial ou total, nos limites da impugnação. Já com relação à profundidade, a devolução é de toda a matéria, ou seja, todas as questões, fundamentos e argumentos apreciados no órgão a quo são remetidos à apreciação do órgão ad quem, não obstante a devolução esteja limitada na sua extensão pelo recorrente, que pode recorrer integralmente da sentença ou de parte dela.
Pois bem, na hipótese vertente, por força do que dispõe o §3º, do Art. 515, do CPC, cabe ao Tribunal o exame e julgamento, desde logo, da matéria de mérito da causa, sendo este o atual entendimento do STJ, que vem reiteradamente assim decidindo:
“Processo civil – Execução Fiscal – Decadência afastada no segundo grau – Exame das demais questões de mérito – Possibilidade – Art. 515 do CPC – Superessão de instância – Não ocorrência. 1. Na hipótese dos autos, não se verifica a contrariedade, na espécie, a regra do art. 515 do CPC, que consagra o princípio do tantum devolutum quantum appellatum. 2. Afastada a decadência decretada no juízo singular, pode o tribunal ad quem julgar as demais questões suscitadas no recurso, ainda que não tenham sido analisadas dirtamente pela sentença, desde que a causa encontre-se suficientemente ‘madura’”. (AgRg no REsp 438555, DJ 17.03.2009).[5]
Com isso, o que se pode dizer é que, o §3º do art. 515 do CPC, traz uma ampliação do que se denominou “efeito devolutivo na sua extensão”, em outras palavras, ampliou a extensão do efeito devolutivo da apelação, à medida que permitiu ao Tribunal conhecer e julgar toda a matéria de mérito a ele devolvida, mesmo sem o requerimento do apelante, que poderá sim, delimitar a extensão da devolutividade, fazendo-o expressamente ao impugnar em parte a matéria, sob pena de, não o fazendo, ver toda a matéria devolvida ao Tribunal.
Nesse tema, leciona de forma brilhante o doutrinador José Roberto dos Santos Bedaque:
“Em síntese, a extensão do efeito devolutivo foi ampliada pelo §3º do art. 515, devendo o tribunal aplicar de ofício a regra. O apelante não pode, sem razão plausível, simplesmente impedir a incidência do dispositivo. Se presentes os requisitos legais, os autos não retornarão mais à origem. Se ele, ciente da nova sistemática, quiser limitar o âmbito de devolutividade a apenas parte da pretensão deduzida em 1º grau, deverá fazê-lo expressamente.”[6]
Severas foram as críticas quanto à constitucionalidade do §3º do Art. 515 do CPC, aos argumentos de supressão de instância, violação aos Princípios do duplo grau de jurisdição e do Juiz Natural.
Portanto, em que pese posições contrárias, que preconizam a inconstitucionalidade deste dispositivo, como o ilustre Nelson Nery, para quem há na regra do §3º do Art. 515, afronta ao Princípio do Juiz Natural, já que neste caso faltaria competência ao Tribunal para apreciar matéria (mérito da causa) não apreciada pelo juízo a quo, o que consequentemente leva a inconstitucionalidade do referido dispositivo, entendemos que há na hipótese uma exceção a regra do tantum devolutum quantum appellatum, aderindo ao posicionamento de Cândido Dinamarco Rangel, que entende haver sim uma supressão de instância, porém, não inconstitucional, vez que foram devidamente observados os princípios do contraditório e do devido processo legal.
Corrobora com este entendimento o Prof. Marcelo Abelha que assevera:
“Entendemos, contudo, que o art. 515, §3º, do CPC é constitucional, visto que pautado nos princípios da celeridade e da economia processual. Isso porque, ainda que o duplo grau de jurisdição esteja implicitamente previsto na CF/1988, é possível que, por meio do princípio da proporcionalidade, haja uma ponderação de interesses inspirada em outros princípios igualmente relevantes, possibilitando assim, que um princípio seja mitigado pela adoção de outro, no caso mais relevante.”[7]
Por fim, é cediço que há divergência na doutrina no que concerne à necessidade ou não do pedido do recorrente, como forma de possibilitar, desde logo, o julgamento do mérito da causa pelo Tribunal, na hipótese em comento. Isso porque, se apelando o autor, o Tribunal julgar de ofício, desde logo, improcedente a demanda, haverá uma piora para ele mesmo (autor), ou seja, estaremos diante de uma verdadeira reformatio in pejus, a qual é vedada em nosso ordenamento jurídico, embora nele não previsto expressamente, mas aceito na quase totalidade da doutrina.
Exatamente em razão desta possível consequência, muitos doutrinadores, como Fredie Didier[8] e Marcelo Abelha[9] defendem a necessidade de requerimento para que seja possível ao Tribunal conhecer e julgar a matéria de mérito da causa, não cabendo ao Tribunal o julgamento de ofício, sob pena, de piorar a situação do autor.
Não obstante, quanto à reformatio in pejus originada do julgamento de ofício pelo Tribunal, a luz do §3º, do Art. 515, CPC, adotamos o posicionamento dos festejados doutrinadores, Alexandre Câmara e José Roberto dos Santos Bedaque: O primeiro, de forma acertada pondera: “esta reformatio in pejus é absolutamente legítima, já que o tribunal nada mais estará fazendo do que emitir desde logo um pronunciamento sobre o mérito que, depois, será emitido de qualquer modo.”[10] E com maestria, conclui: “Tudo o que se tem aqui é uma aceleração do resultado do processo, já que ao mesmo resultado prático se chegaria (embora com menos rapidez) se o tribunal determinasse a baixa dos autos ao juízo de origem para que ali se proferisse julgamento sobre o mérito, vindo depois os autos novamente ao tribunal, por força de apelação interposta pelo vencido, para que então se pronunciasse sobre o objeto do processo.”[11] Já o segundo doutrinador concluindo o tema, arremata: “o sistema processual brasileiro passou a admitir, ainda que em caráter excepcional, a reformatio in pejus”.[12]
CONCLUSÃO:
Com estas considerações, concluímos que, o recurso de Agravo de Instrumento que hostiliza sentença de indeferimento da Apelação interposta de sentença terminativa, cujas razões de recorrer, baseiam-se na inaplicabilidade de Súmula do STJ ou STF invocada na sentença ao caso concreto submetido à análise do judiciário, pode sim ser conhecido pelo Tribunal, que, se lhe der provimento, reformará a sentença e determinará a remessa da Apelação ao Tribunal.
E ainda, que o Tribunal, quando do julgamento da Apelação, pode de ofício, aplicar a regra esculpida no §3º, do art. 515, do CPC, desde que preenchidos os requisitos legais ali enumerados, isso em razão deste dispositivo ter, admitido, de forma excepcional, uma ampliação da extensão do efeito devolutivo da apelação, de forma a permitir uma prestação jurisdicional mais célere, mas econômica e efetiva, permitido, por via de consequência, porém, também excepcionalmente, a possibilidade de ocorrer a reformatio in pejus no sistema processual civil.
Nessa senda, podemos concluir que o legislador infraconstitucional, embora conhecedor do princípio do duplo grau de jurisdição, do juiz natural e outros princípios não menos importantes, ainda que implícitos na CF/88 realizou um juízo de ponderação entre estes e o que o jurisdicionado tem a duração razoável do processo, como um direito fundamental preconizado pela CF/88, não havendo que se falar em inconstitucionalidade dos dispositivos em comento, que, ao contrário pautam-se nos princípios da economia processual e celeridade, indubitavelmente propulsores de uma razoável duração do processo.
Informações Sobre o Autor
Ana Lucia Pereira Machado
Analista Judiciário, especialista em Direito Constitucional e Pós-Graduanda Direito Processual Civil, em Direito Civil, Negocial e Imobiliário Processual Civil