Resumo: O presente trabalho traz breves reflexões acerca da responsabilidade civil dos pais em relação aos filhos em caso de abandono afetivo, principalmente quando se fala em descumprimento dos deveres e obrigações dos pais decorrentes do poder familiar. Foi utilizado como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, dando destaque à recente decisão do STJ quanto ao assunto discutido neste artigo. Embora existam argumentos tentando negar a reparação civil por abandono afetivo sob a justificativa de não ser possível forçar a convivência entre pais e filhos, bem como o desenvolvimento do amor, os tribunais já vem se posicionando de forma positiva em indenizar os filhos nesses casos, atribuindo ao afeto valor jurídico.
Palavras-Chave: Família. Responsabilidade Civil. Abandono Afetivo
Abstract: This work brings brief reflections about the civil responsibility of parents in relation to their children in cases of affective abandonment, especially when it comes from the noncompliance of duties and obligations of parents arising from the family power. It was used as methodological approach the bibliographic research, highlighting the recent decision of STJ for the matter discussed in this article. Although there are argumentstrying to deny the civil reparation for affective abandonmentunder the justification of the impossibility of forcing the interactionbetween parents and children, as well as the development of love, the courts have been positioning themselves in a positive way to indemnify the children in these cases, assigning to the affecta juridical value.
Keywords: Family. Civil Responsibility. Affective Abandonment.
Sumário: Introdução 1. Poder familiar 2. Abandono Afetivo 3. Responsabilidade civil dos pais em relação aos filhos 4. Decisão do STJ. Considerações Finais. Referências.
Introdução
Todos nós, seres humanos, vivemos inseridos em um contexto familiar, mesmo estando fazendo parte de uma família monoparental, formada apenas pelo filho e somente um dos pais. Falar em família se tem logo à idéia de afeto, amor entre pessoas parentas por consanguinidade, ou melhor, dizendo, por vínculo sanguíneo ou por afinidade. Mas dessas relações também surgem diversos conflitos das mais diferentes ordens, sejam elas vinculadas à traição, ao abandono afetivo ou a falta de assistência material decorrente do descumprimento de deveres referentes ao poder familiar tão consagrado no Código Civil Brasileiro, na parte que trata do Direito de Família, na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e Adolescente.
Será que o afeto estaria inserido dentro do contexto de poder familiar? Seria possível cobrar na justiça que um pai ou mãe dê afeto ao seu filho? O afeto teria um valor jurídico?
Este trabalho tem o intuito de responder a esses questionamentos e verificar a responsabilidade civil dos pais em relação aos seus filhos quando os abandonam afetivamente. É um assunto de extrema importância para a família, para a sociedade e para o Estado.
Para a realização do presente artigo foi utilizado como procedimento metodológico a pesquisa bibliográfica, dando ênfase à recente Decisão do Superior Tribunal de Justiça, cujo julgamento ocorreu em 24 de Abril de 2012, que concede indenização por abandono afetivo.
Para melhor entendimento deste trabalho, foi necessário tecer alguns comentários a respeito da família, do poder familiar, de onde deriva os deveres dos pais em relação aos seus filhos, do abandono afetivo e da responsabilização dos pais em caso de descumprimento desses deveres na relação parental.
1. Do poder familiar
A família passou por um longo processo evolutivo, deixando um modelo tradicional, composta por pai, mãe e filhos passando a uma mais moderna, formada por um dos pais e filhos, por apenas irmãos, até por casais homoafetivos.
Apesar da Constituição Federal de 1988 e do próprio Código Civil Brasileiro de 2002 reconhecerem diversos tipos de entidades familiares, há de se falar em apenas um tipo de poder familiar, conhecido anteriormente como pátrio-poder, terminologia utilizada pelo Código Civil de1916.
Utilizando-se das sábias palavras de Miranda[1] :
“Sem dúvidas, é na família que se tem a primeira visão do mundo, das obrigações como cidadão, do respeito por si e pelos outros. As experiências que se tem no núcleo familiar definem o modo como a pessoa irá conviver na sociedade, isto é, os principais conceitos do ser nascem primeiro na família para depois ganhar a sociedade de modo que a personalidade da vida adulta depende dos primeiros anos de vida da pessoa. Essas orientações e experiências ganham especial relevo na relação entre pais e filhos, em razão da proximidade do vínculo existente.”
O próprio Código Civil estabelece que este poder familiar pertença a ambos os pais, o que reforça o princípio da isonomia dos pais em relação aos seus filhos menores de idade.
Há que se falar que o poder familiar representa uma autoridade temporária, já que cessa com a maioridade ou emancipação dos filhos.
Para Tartuce e Simão[2]: “Poder familiar é conceituado como sendo o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, dentro da idéia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto”.
Disciplinando os deveres e responsabilidades dos pais em relação aos seus filhos, dispõe no art. 1.634 do Código Civil[3] :
“Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I- Dirigir-lhes a criação e educação;
II- Tê-los em sua companhia e guarda;
III- Conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV- Nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobrevive, ou sobreveio não puder exercer o poder familiar;
V- Representa-los, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil e assistí-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI- Reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII- Exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.”
Existe uma discussão a respeito da terminologia, e qual seria a mais adequada, pátrio poder e poder familiar, mas alguns países utilizam autoridade parental, visto que, há a idéia de um poder físico sobre outro, autoridade dos pais sobre os filhos. Ainda há de se falar, que a família passou por um processo evolutivo que trouxe outro sentido a esse poder parental, assumindo um papel educativo, possibilitando um melhor desenvolvimento dos filhos (LÔBO[4]).
O poder familiar além da previsão no Código Civil de 2002, também está inserido no Estatuto da Criança e do Adolescente, expressamente nos artigos 21 a 24, que trata da convivência familiar e comunitária e do artigo 155 a 163, dedicado a procedimentos (LÔBO[5]).
Lôbo[6] acrescenta ainda que:
“Extrai-se do art. 227 da Constituição o conjunto mínimo de deveres cometidos à família – fortiori ao poder familiar – em benefício do filho, enquanto criança e adolescente, a saber: o direito à vida, à saúde, à alimentação (sustento), à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar. Por seu turno, o art. 229 estabelece que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Evidentemente, tal conjunto de deveres deixa pouco espaço ao poder. São deveres jurídicos correlativos a direitos cujo titular é o filho.”
Pode-se depreender a vasta legislação que existe acerca do assunto com o intuito de preservar o melhor interesse para as crianças e adolescentes, possibilitando uma convivência harmoniosa entre pais e filhos.
O exercício desse poder familiar, como conjunto de direitos e deveres, deve ser exercido conjuntamente por ambos os pais, e em caso de conflito ou divergência devem-se se socorrer do poder judiciário para dirimir o litígio (LÔBO[7]).
Na maioria das vezes, após a ruptura da relação conjugal, o genitor que não detém a guarda fica na incumbência de prestar alimentos e com o direito de visitação, momento em que, normalmente, dá-se a continuidade do vínculo afetivo entre pais e filhos. Esse posicionamento, na verdade, deveria ser a regra já que os filhos não devem ser afetados pelo rompimento do relacionamento dos pais. Ocorre que em muitos casos, os pais não detentores da guarda abandonam afetivamente seus filhos, preocupando-se apenas em pagar pensão alimentícia, visto que se vêem obrigados judicialmente, podendo até serem tolhidos de sua liberdade caso descumpram a obrigação alimentar.
A Constituição Federal de 1988, como lei maior, traz todos os direitos e garantias estabelecidas para preservação da família, destacando-se o princípio da afetividade, que está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar.
Podem-se observar do texto legal os direitos assegurados aos filhos (criança e adolescente) nas relações familiares, resumindo basicamente em assistência moral e material.
2. Abandono afetivo
O que leva um pai ou uma mãe a abandonar afetivamente seus filhos, a tratá-los com rejeição e frieza? Essa situação vem sendo muito discutida pelos tribunais, inclusive alguns já vem se posicionando de forma positiva para reparar o dano sofrido pelos filhos quanto ao abandono afetivo pelos pais.
Há de se convir que seja um assunto um tanto quanto delicado, visto ser muito difícil à justiça obrigar um pai ou mãe amar, dar carinho e atenção a um filho, além de se estabelecer um quantum pecuniário pela falta de afeto nessa relação entre pais e filhos.
Corroborando com o assunto, Lôbo[8] afirma que:
“São casos difíceis com ponderáveis razões em cada lado. Entendemos que o princípio da paternidade responsável estabelecido no art. 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória. O art. 227 da Constituição confere à criança e ao adolescente os direitos com absoluta prioridade, oponíveis à família – inclusive ao pai separado -, à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, que são direitos de conteúdo moral, integrantes da personalidade, cuja rejeição provoca dano moral.”
A própria Constituição Federal garante aos filhos a assistência material e moral, incluindo nesta o afeto, o direito dos filhos, mesmo após a separação dos pais, de ter uma convivência familiar que lhe permitam ter um desenvolvimento sadio e harmonioso e que o descumprimento desse dever pode gerar uma indenização para os filhos.
Seria o abandono afetivo descumprir com um dos deveres pertinentes ao poder familiar?
O afeto tem sido um dos fundamentos mais importantes na relação entre pais e filhos, embora não seja preceituado como uma garantia assegurada constitucionalmente, mas está presente, quase sempre nessas relações familiares.
Para Tartuce e Simão[9] : “Mesmo não constando à expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana”.
Ainda segundo os autores, didaticamente utiliza-se princípio da afetividade para se tratar de afeto, estando aquele com essência constitucional, pautada na dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e na igualdade entre filhos.
Muito se tem falado a respeito do abandono afetivo dos pais em relações aos filhos, mas poucos casos foram decididos pelos Tribunais, pois muito há que ser discutido para de consolidar essa matéria de suma importância para as famílias principalmente para os filhos que não tiveram afeto durante o período de desenvolvimento de sua personalidade.
Tratando de abandono afetivo Gagliano e Pamplona Filho[10] dizem que:
“Um dos primeiros juristas a tratar do tema foi o talentoso Rodrigo da Cunha Pereira que analisando o primeiro caso a chegar a uma Corte Superior Brasileira asseverou que: Será que há alguma razão∕justificativa para um pai deixar de dar assistência moral e afetiva a um filho? A ausência de uma assistência material seria até compreensível, se se tratasse de um pai totalmente desprovido de recursos. Mas deixar de dar amor e afeto a um filho… não há razão nenhuma capaz de explicar tal falta”.
Realmente, não dá muito para compreender o que justifica um abandono, principalmente porque os filhos não pedem para nascer e são os que mais sofrem com essa rejeição, que causa sérios transtornos de ordem psicológica, prejudicando assim o desenvolvimento de sua personalidade e comprometendo a sua vida adulta.
Corroborando com o assunto Gagliano e Pamplona Filho[11] acrescenta:
“Logicamente, dinheiro nenhum efetivamente compensará a ausência, a frieza, o desprezo de um pai ou de uma mãe por seu filho, ao longo da vida. Mas é preciso se compreender que a fixação dessa indenização tem um acentuado e necessário caráter punitivo e pedagógico, na perspectiva da função social da responsabilidade civil, para que não se consagre o paradoxo de se impor ao pai ou a mãe responsável por esse grave comportamento danoso (jurídico e espiritual), simplesmente, a perda do poder familiar, pois, se assim o for, para o genitor que o realiza, essa suposta sanção repercutiria como um verdadeiro favor”.
Os autores ainda trazem alguns comentários acerca do Projeto de Lei nº 700∕07 do Senador Marcelo Crivella que estabelece justamente a assistência afetiva pelos pais aos filhos, definindo como ela deve se dá e principalmente falando sobre a presença física dos genitores nos momentos de mais necessidade.
Merecem destaque as palavras de Miranda[12], quando diz:
“O vínculo entre pais e filhos não se extingue com o término da relação conjugal, permanecendo todas as obrigações já existentes durante o casamento, para tanto, são previstas formas de manutenção da convivência, como a guarda compartilhada. Ademais, nem mesmo é necessário o casamento para o reconhecimento e convívio dos filhos, podendo a família ser constituída por meio da união estável ou ser monoparental. A visão atual de família gravita em torno do afeto, como exposto inicialmente, a família hoje é apenas instrumento para desenvolvimento da dignidade da pessoa humana.”
Já que do abandono afetivo decorre um direito aos filhos pelos transtornos psicológicos decorrentes da ausência de um dos genitores, faz necessário falar um pouco da responsabilidade civil proveniente do descumprimento de um dever dos pais em relação aos filhos.
3. Responsabilidade civil dos pais em relação aos filhos
Antes de se adentar a esse tema propriamente dito, faz-se necessário conceituar o que seja responsabilidade civil, para melhor compreender a realização do presente trabalho.
Quando se causa um dano ou um prejuízo a uma pessoa há o dever de repará-lo ou ressarci-lo, mesmo que se tenha agido com intenção, que seria de forma dolosa ou sem intenção, com culpa.
O Código Civil Brasileiro[13] estabelece no art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Segundo Lobo[14]:
“O poder familiar não apenas diz respeito às relações entre pais e filhos. Interessam suas repercussões patrimoniais em relação a terceiros. Os pais respondem pelos danos causados por seus filhos menores, que estejam submetidos a seu poder familiar. Trata-se de responsabilidade civil transubjetiva, pois a responsabilidade pela reparação é imputável a quem não causou diretamente o dano.”
Acrescenta ainda o autor, que os pais são responsáveis pelos filhos que estiverem sob sua autoridade, no sentido de ser titular do poder familiar.
Os pais são responsáveis pelos atos praticados por seus filhos menores de idade e quando estes vêm causar algum dano a terceiros, nesses casos os pais devem repará-los. E quando os pais causam danos a seus filhos, também deve indenizá-los?
Essa situação é um pouco atípica, mas a sua incidência vem crescendo cada vez mais, o abandono dos pais em relação a seus filhos causa espanto à sociedade que vê na família o local onde os filhos deveriam receber sua criação, educação e afeto.
O que seria então essa responsabilidade?
Pode-se dizer que seria uma conseqüência decorrente de um ato praticado por uma pessoa que surtiu efeito negativo em outra, devendo àquela reparar o dano.
Segundo Gagliano e Pamplona Filho[15]: Deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas.
Há ainda de se falar que a responsabilidade pode ser derivada de um contrato, e nesta, ocorre à violação do que foi estipulado pelas partes e a extracontratual ou aquiliana, decorrente da infringência de uma norma (GAGLIANO E PAMPLONA FILHO[16]).
Por que deve haver reparação quando ocorre um dano? Tentando responder a esse questionamento contribui Bittar[17] :
“Havendo dano, produzido injustamente na esfera alheia, surge a necessidade de reparação, como imposição natural da vida em sociedade e, exatamente, para a sua própria existência e o desenvolvimento normal das potencialidades de cada ente personalizado. É que investidas ilícitas ou antijurídicas no circuito de bens ou de valores alheios perturbam o fluxo tranqüilo das relações sociais, exigindo, em contraponto, as reações que o Direito engendra e formula para a restauração do equilíbrio rompido.”
Seria até injusto não punir àquele que causa dano a outrem, viveríamos numa instabilidade, assim, deve haver a reparação civil mesmo quando não haja culpa, mas pelo simples fato de ter ocorrido uma conduta, que é um dos elementos da responsabilidade civil, junto ao dano e ao nexo de causalidade.
Passando a análise da responsabilidade civil nas relações familiares, direciona-se ao pensamento de que não se trata da reparação ou restituição de uma coisa, cujo conteúdo tenha cunho pecuniário, trata-se, por exemplo, do descumprimento de deveres dos pais em relação aos filhos, referentes à assistência moral e material.
Assim Rolf[18] contribui:
“Contudo, exatamente a carência afetiva, tão essencial na formação do caráter e do espírito do infante, justifica a reparação pelo irrecuperável agravo moral que a falta consciente deste suporte psicológico causa ao rebento, sendo muito comum escutar o argumento de não ser possível forçar a convivência e o desenvolvimento do amor, que deve ser espontâneo e nunca compulsório, como justificativa para a negativa da reparação civil pelo abandono afetivo.”
A ausência de qualquer uma dessas assistências que devem ser prestadas pelos pais em relação aos seus filhos causa na vida destes sérios transtornos de ordem psicológica, pois não é tão difícil se cobrar na justiça à prestação de alimentos, mas o dever de amar é um tanto quanto complexo.
Corroborando com o tema em apreço, Miranda[19]diz:
“A ausência de afeto dos pais ainda no início da formação da personalidade do ser pode desenvolver, na criança e no adolescente, problemas psíquicos, baixa auto-estima, sensação de rejeição e abandono com conseqüente dificuldade de relacionar-se socialmente em virtude da ausência de orientação, de demonstração efetiva de como viver em sociedade. Inicialmente fora afirmado que é na família que a criança desenvolve sua noção primeira da vida comunitária, a partir das experiências vividas no núcleo familiar é que percebe como respeitar o outro. A questão do abandono afetivo envolve não apenas interesses privados, mas é uma questão de ordem pública que gera conseqüências para toda a sociedade, tendo em mente que a criança com dificuldade para relacionar-se e sem a correta educação quanto aos valores que deve seguir leva para a sociedade seu comportamento desregrado”.
Essa questão de abandono afetivo dos pais em relação a seus filhos é situação muito séria, mas que aos poucos vem quebrando paradigmas e solidificando entendimentos positivos quanto ao direito dos filhos buscarem na justiça uma indenização pelos danos sofrida pela ausência de afeto.
4. Decisão do STJ
Recentemente o STJ, julgou no dia 24 de Abril de 2012 o recurso especial de nº. 1.159.242 – SP (2009⁄0193701-9), que trouxe inovações ao ordenamento jurídico brasileiro, quando reconheceu o afeto como valor jurídico e concedeu o direito à indenização à filha proveniente do abandono afetivo pelo pai.
Segue abaixo parte do Voto da Ministra Nancy Andrighi[20], que exemplifica a reparação civil por abandono afetivo nas relações entre pais e filhos:
“RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 – SP (2009⁄0193701-9)
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. FILHA HAVIDA DE RELAÇÃO AMOROSA ANTERIOR. ABANDONO MORAL E MATERIAL. PATERNIDADE RECONHECIDA JUDICIALMENTE. PAGAMENTO DA PENSÃO ARBITRADA EM DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS ATÉ A MAIORIDADE. ALIMENTANTE ABASTADO E PRÓSPERO. IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. […] Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever […].”
Analisando o voto da Ministra, há de se convencer que amar é algo subjetivo, que não se pode valorar, estabelecendo um valor pecuniário, mas o cuidado se encontra inserido no contexto de assistência moral, esta sim, possível de ser valorado e quando descumprida gera um dano moral. Em sábias palavras, Nancy resume “Amar é faculdade, cuidar é dever”, o que atribui ao afeto, por exemplo, valor jurídico, passível de ser cobrado na justiça, como mostra seu posicionamento acima.
Outro posicionamento jurisprudencial que também faz parte do Recurso Especial já transcrito acima e que também é pertinente mostrar e tecer alguns comentários:
“a) com a conclusão de procedência da ação, por abandono afetivo:
Responsabilidade civil. Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico. Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim. Apelação com revisão 5119034700”, TJSP, Rel. Des. CAETANO LAGRASTA, j. 12.8.2008); Indenização. Danos morais. Relação paterno-filial. Princípio da dignidade da pessoa humana. Princípio da afetividade. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana” (TJMG, Proc. 2.0000.00.408550-5/00, Rel. Des. UNIAS SILVA, j. 1.4.2004);
Não resta dúvida de que a relação entre pais e filhos está protegida e amparada pela doutrina e hoje reconhecida pelos Tribunais, como pode se observar dos posicionamentos apresentados. O abalo psicológico causado nos filhos decorrentes do abandono é inquestionável, ferindo, inclusive, o tão consagrado princípio da dignidade da pessoa humana.
Falando no princípio da dignidade da pessoa humana, tão respeitado e protegido pela Constituição Federal não poderia deixar de comentar sobre os direitos da personalidade, já que o abalo psíquico sofrido pelos filhos nos casos do abandono afetivo está relacionado diretamente a esse direito.
Gonçalves cit Francisco Amaral[21] define que os direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual.
Compreende-se esses direitos como algo inerente à pessoa, como por exemplo, o próprio direito à vida, ao nome, à imagem dentre outros e dessa forma não podem ser violados conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988.
Os direitos da personalidade receberam status de direito subjetivo a partir da Declaração dos Direitos do Homem, em 1789 e aos poucos vem sendo tutelado pela lei e jurisprudência, conforme relato de Gonçalves. (2011, P. 152).
Ainda segundo o autor, a Constituição Federal de 1988, com o intuito de reformular a idéia de respeito, estabelecido no art. 1º, III, preconiza que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X). Assim, a lei Maior vem fortalecer a noção dignidade da pessoa humana, assegurando a todo o indivíduo a reparação por parte de quem não venha respeitar o que está disposto na lei.
Não se pode esquecer que a dignidade humana deve está sempre à frente de todos os fundamentos assegurados constitucionalmente.
Aplicando a responsabilidade civil aos de casos de abandono afetivo, Miranda[22] entende que:
“Para auferir a aplicação da responsabilidade civil aos casos de abandono afetivo dos pais em relação aos filhos é necessário o enquadramento desta situação a todos os elementos da responsabilidade civil. Quanto à conduta, convém analisar se há ilicitude no ato de privar o filho de afeto na orientação e formação de sua personalidade, quer dizer, se a conduta está revestida de ilicitude. É certo que a responsabilidade no caso é extracontratual, consagrada no art. 186 do novel Código Civil, haja alhures transcrito, haja vista que os pais não se obrigam por contrato ou outro ato negocial a oferecerem afeto aos seus filhos, essa obrigação decorre diretamente de normas presente no ordenamento jurídico brasileiro.”
É inquestionável os deveres dos pais em relação a seus filhos provenientes do poder familiar, o qual pertence a ambos os cônjuges em igualdade, assim aquele que descumpri qualquer um desses deveres deve reparar o dano, seja este derivado de uma falta de assistência material ou moral. O sofrimento oriundo da rejeição ou da frieza dentro dessa relação entre pais e filhos compromete, sem dúvida, a formação da personalidade de ser que se encontra ainda em processo de desenvolvimento e dor a sofrida causará prejuízo até a vida adulta.
O descumprimento do dever de afeto deve ser reparado visto que, do ponto de vista jurídico, deve ser considerado um ato ilícito, passível de indenização conforme determina a lei.
Conclusão
Pode-se observar do estudo realizado, que esse assunto ainda precisa ser bastante discutido, embora aos poucos, os Tribunais já vêm se posicionando a respeito de forma a tentar reparar os prejuízos sofridos pelos filhos decorrentes do abandono afetivo.
Obrigar os pais darem afeto a seus filhos não será uma tarefa fácil, diferentemente da obrigação alimentar, ou seja, uma assistência material, que é possível cobrar através de uma mera ação judicial de alimentos, que em caso de descumprimento, pode até privar o genitor de sua liberdade.
Os danos causados aos filhos decorrentes da rejeição, do abandono trazem consequências graves na vida deles, que possivelmente perdurarão por toda a vida.
O poder familiar traz deveres e direitos a serem exercidos pelos pais na relação com seus filhos e quando não há o cumprimento desses deveres assegurados pelo Código Civil, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente os pais devem ser responsabilizados.
As crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento, e por esta condição devem ser respeitados e amados e têm direito a terem uma convivência familiar saudável, recebendo de seus genitores assistência morais e materiais.
Os Tribunais vêm concedendo aos filhos o direito a reparações civil decorrente do abandono afetivo e isso tem o intuito de conscientizar os pais a não descumprir o seu dever perante seus filhos e acredita-se que essa decisão judicial possa servir de exemplo, e espera-se que eles não venham mais rejeitar os filhos.
Ainda não é possível identificar o porquê, ou seja, o motivo pelo quais os pais rejeitam seus filhos e nenhuma justificativa pode ser aceita para tamanha crueldade.
Muito ainda tem que ser discutido até que se chegue ou se tome a melhor decisão para se preservar o melhor interesse dos filhos. É necessária uma mobilização maior de todas as pessoas envolvidas e responsáveis por esse processo, inclusive com a implementação de políticas públicas com o objetivo de apoiar essa instituição que vem sofrendo a cada dia, a família.
O afeto não se mede e nem se quantifica um valor, mas essas condenações dos pais em processos judiciais poderão minimizar um pouco o sofrimento pelos quais os filhos passaram e podem ainda mitigar os efeitos de abandonos futuros, pelo menos se espera que isso aconteça.
Há de se reconhecer a grande contribuição trazida pela recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, que acaba reconhecendo o afeto como valor jurídico passível de ser indezinável.
Informações Sobre o Autor
Adriana Pereira Dantas Carvalho
Especialista em Direito Educacional e Direito Processual e Mestre em Psicologia da Educação com linha de pesquisa em Gestão Educacional, no Instituto Superior de Línguas e Administração – ISLA e Doutoranda em Direito Civil na UBA. Professora e Coordenadora da Faculdade de Direito de Garanhuns-FDG