Resumo: Em sede de comentários introdutórios, é possível evidenciar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com profundos sulcos, condicionou a propriedade ao atendimento de sua função social, de maneira que, uma vez ausente a função social ambiental, o proprietário se vê obstado do pleno exercício de sua propriedade. Clara é a dicção do artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da Carta de Outubro, ao consagrar, de maneira expressa, que o direito de propriedade é garantido aos titulares que comprovarem o atendimento de sua função social. A admissão do princípio da função socioambiental da propriedade tem como consequência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente, configurando um aspecto positivo, não bastando tão somente que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental, aspecto negativo. Em outros termos, é possível realçar, com cores quentes, que a função socioambiental não constitui um mero limite ao exercício do direito de propriedade, tal como aquela restrição tradicional, por meio da qual se concede ao proprietário, no exercício de seu direito, fazer tudo o que não acarrete prejuízos à coletividade e ao meio ambiente.
Palavras-chaves: Meio Ambiente. Princípio da Função Socioambiental da Propriedade. Direitos de Terceira Dimensão.
Sumário: 1 A Construção do Direito Ambiental: A Mutabilidade como Aspecto Renovador da Ciência Jurídica; 2 Análise do Meio Ambiente a partir de uma feição conceitual; 3 Anotações ao Princípio da Função Socioambiental da Propriedade: A Consolidação dos Aspectos Difusos dos Direitos de Terceira Dimensão no Ordenamento Brasileiro
1 A Construção do Direito Ambiental: A Mutabilidade como Aspecto Renovador da Ciência Jurídica
Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com a ênfase reclamada, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Nestes termos, o Direito não mais ostenta a feição engessada da interpretação dos elementos que estruturam suas balizas. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios apresentados pela população, suplantados em uma nova sistemática.
Com escora em tais premissas, cuida desfraldar, com bastante pertinência, como estandarte de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Deste modo, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas cravadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não estejam maculados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo fundamental é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica apoia-se, justamente, na constante e cogente mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados, moldando-se às nuances e particularidades caracterizadoras da situação concreta.
Ainda neste substrato de exposição, é possível realçar, com grossos traços, que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma sedimentada independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, compreende-se que o ponto nodal da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas.
Nas últimas décadas, o aspecto de mutabilidade tornou-se ainda mais evidente, em especial, quando se analisa a construção de novos que derivam da Ciência Jurídica. Entre estes, cuida destacar a ramificação ambiental, considerando como um ponto de congruência da formação de novos ideários e cânones, motivados, sobretudo, pela premissa de um manancial de novos valores adotados. Nesta trilha de argumentação, de boa técnica se apresenta os ensinamentos de Fernando de Azevedo Alves Brito que, em seu artigo, aduz: “Com a intensificação, entretanto, do interesse dos estudiosos do Direito pelo assunto, passou-se a desvendar as peculiaridades ambientais, que, por estarem muito mais ligadas às ciências biológicas, até então era marginalizadas”[4]. Assim, em decorrência da proeminência que os temas ambientais vêm, de maneira paulatina, alcançando, notadamente a partir das últimas discussões internacionais envolvendo a necessidade de um desenvolvimento econômico pautado em sustentabilidade, não é raro que prospere, mormente em razão de novos fatores, um verdadeiro remodelamento ou mesmo uma releitura dos conceitos que abalizam a ramificação ambiental do Direito, com o fito de permitir que ocorra a conservação e recuperação das áreas degradadas, primacialmente as culturais.
Ademais, há de ressaltar ainda que o direito ambiental passou a figurar, especialmente, depois das décadas de 1950 e 1960, como um elemento integrante da farta e sólida tábua de direitos fundamentais. Calha realçar, com cores quentes, que mais contemporâneos, os direitos que constituem a terceira dimensão recebem a alcunha de direitos de fraternidade ou, ainda, de solidariedade, contemplando, em sua estrutura, uma patente preocupação com o destino da humanidade[5]·. Ora, daí se verifica a inclusão de meio ambiente como um direito fundamental, logo, está umbilicalmente atrelado com humanismo e, por extensão, a um ideal de sociedade mais justa e solidária. Nesse sentido, ainda, é plausível citar o artigo 3°., inciso I, da Carta Política de 1988 que abriga em sua redação tais pressupostos como os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direitos: “Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” [6].
Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com o escopo de ilustrar, de maneira pertinente as ponderações vertidas, insta trazer à colação o entendimento do Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 1.856/RJ, em especial quando coloca em destaque que:
“Cabe assinalar, Senhor Presidente, que os direitos de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos denominados direitos de quarta geração (como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz), um momento importante no processo de expansão e reconhecimento dos direitos humanos, qualificados estes, enquanto valores fundamentais indisponíveis, como prerrogativas impregnadas de uma natureza essencialmente inexaurível”[7].
“Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[8]. Com efeito, os direitos de terceira dimensão, dentre os quais se inclui ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, positivado na Constituição Federal de 1988, emerge com um claro e tangível aspecto de familiaridade, como ápice da evolução e concretização dos direitos fundamentais.
2 Análise do Meio Ambiente a partir de uma feição conceitual
Ao lançar mão do sedimentado jurídico-doutrinário apresentado pelo inciso I do artigo 3º da Lei Nº. 6.938, de 31 de agosto de 1981[9], que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, salienta que o meio ambiente consiste no conjunto e conjunto de condições, leis e influências de ordem química, física e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Pois bem, com o escopo de promover uma facilitação do aspecto conceitual apresentado, é possível verificar que o meio ambiente se assenta em um complexo diálogo de fatores abióticos, provenientes de ordem química e física, e bióticos, consistentes nas plurais e diversificadas formas de seres viventes. Consoante os ensinamentos de Silva, considera-se meio-ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”[10].
Nesta senda, ainda, Fiorillo[11], ao tecer comentários acerca da acepção conceitual de meio ambiente, coloca em destaque que tal tema se assenta em um ideário jurídico indeterminado, incumbindo, ao intérprete das leis, promover o seu preenchimento. Dada à fluidez do tema, é possível colocar em evidência que o meio ambiente encontra íntima e umbilical relação com os componentes que cercam o ser humano, os quais são de imprescindível relevância para a sua existência. O Ministro Luiz Fux, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N°. 4.029, salientou, com bastante pertinência, que:
“(…) o meio ambiente é um conceito hoje geminado com o de saúde pública, saúde de cada indivíduo, sadia qualidade de vida, diz a Constituição, é por isso que estou falando de saúde, e hoje todos nós sabemos que ele é imbricado, é conceitualmente geminado com o próprio desenvolvimento. Se antes nós dizíamos que o meio ambiente é compatível com o desenvolvimento, hoje nós dizemos, a partir da Constituição, tecnicamente, que não pode haver desenvolvimento senão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. A geminação do conceito me parece de rigor técnico, porque salta da própria Constituição Federal”[12].
É verificável, desta sorte, que a constitucionalização do meio ambiente no Brasil viabilizou um verdadeiro salto qualitativo, no que concerne, especificamente, às normas de proteção ambiental. Tal fato decorre da premissa que os robustos corolários e princípios norteadores foram alçados ao patamar constitucional, assumindo colocação eminente, ao lado das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Superadas tais premissas, aprouve ao Constituinte, ao entalhar a Constituição Cidadã, ressoando os valores provenientes dos direitos de terceira dimensão, insculpir na redação do artigo 225 amplo e robusto respaldo ao meio ambiente como pilar integrante dos direitos fundamentais. “Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas de proteção ambiental são alçadas à categoria de normas constitucionais, com elaboração de capítulo especialmente dedicado à proteção do meio ambiente”[13]. Nesta toada, ainda, é observável que o caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988[14] está abalizado em quatro pilares distintos, robustos e singulares que, em conjunto, dão corpo a toda tábua ideológica e teórica que assegura o substrato de edificação da ramificação ambiental.
Primeiramente, em decorrência do tratamento dispensado pelo artífice da Constituição Federal, o meio ambiente foi içado à condição de direito de todos, presentes e futuras gerações. É encarado como algo pertencente a toda coletividade, assim, por esse prisma, não se admite o emprego de qualquer distinção entre brasileiro nato, naturalizado ou estrangeiro, destacando-se, sim, a necessidade de preservação, conservação e não-poluição. O artigo 225, devido ao cunho de direito difuso que possui, extrapola os limites territoriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão nacional, compreendendo toda a humanidade. Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade N° 1.856/RJ, destacou que:
“A preocupação com o meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor das gerações futuras (…) tem constituído, por isso mesmo, objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas, que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada Estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais, que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade”[15].
O termo “todos”, aludido na redação do caput do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, faz menção aos já nascidos (presente geração) e ainda aqueles que estão por nascer (futura geração), cabendo àqueles zelar para que esses tenham à sua disposição, no mínimo, os recursos naturais que hoje existem. Tal fato encontra como arrimo a premissa que foi reconhecido ao gênero humano o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e bem-estar. Pode-se considerar como um direito transgeracional, ou seja, ultrapassa as gerações, logo, é viável afirmar que o meio-ambiente é um direito público subjetivo. Desta feita, o ideário de que o meio ambiente substancializa patrimônio público a ser imperiosamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando verdadeiro encargo irrenunciável que se impõe, objetivando sempre o benefício das presentes e das futuras gerações, incumbindo tanto ao Poder Público quanto à coletividade considerada em si mesma.
Assim, decorrente de tal fato, produz efeito erga mones, sendo, portanto, oponível contra a todos, incluindo pessoa física/natural ou jurídica, de direito público interno ou externo, ou mesmo de direito privado, como também ente estatal, autarquia, fundação ou sociedade de economia mista. Impera, também, evidenciar que, como um direito difuso, não subiste a possibilidade de quantificar quantas são as pessoas atingidas, pois a poluição não afeta tão só a população local, mas sim toda a humanidade, pois a coletividade é indeterminada. Nesta senda, o direito à interidade do meio ambiente substancializa verdadeira prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, ressoando a expressão robusta de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas num sentido mais amplo, atribuído à própria coletividade social.
Com a nova sistemática entabulada pela redação do artigo 225 da Carta Maior, o meio-ambiente passou a ter autonomia, tal seja não está vinculada a lesões perpetradas contra o ser humano para se agasalhar das reprimendas a serem utilizadas em relação ao ato perpetrado. Figura-se, ergo, como bem de uso comum do povo o segundo pilar que dá corpo aos sustentáculos do tema em tela. O axioma a ser esmiuçado, está atrelado o meio-ambiente como vetor da sadia qualidade de vida, ou seja, manifesta-se na salubridade, precipuamente, ao vincular a espécie humana está se tratando do bem-estar e condições mínimas de existência. Igualmente, o sustentáculo em análise se corporifica também na higidez, ao cumprir os preceitos de ecologicamente equilibrado, salvaguardando a vida em todas as suas formas (diversidade de espécies).
Por derradeiro, o quarto pilar é a corresponsabilidade, que impõe ao Poder Público o dever geral de se responsabilizar por todos os elementos que integram o meio ambiente, assim como a condição positiva de atuar em prol de resguardar. Igualmente, tem a obrigação de atuar no sentido de zelar, defender e preservar, asseverando que o meio-ambiente permaneça intacto. Aliás, este último se diferencia de conservar que permite a ação antrópica, viabilizando melhorias no meio ambiente, trabalhando com as premissas de desenvolvimento sustentável, aliando progresso e conservação. Por seu turno, o cidadão tem o dever negativo, que se apresenta ao não poluir nem agredir o meio-ambiente com sua ação. Além disso, em razão da referida corresponsabilidade, são titulares do meio ambiente os cidadãos da presente e da futura geração.
Em tom de arremate, é possível destacar que a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresarias nem manter dependência de motivações de âmago essencialmente econômico, notadamente quando estiver presente a atividade econômica, considerada as ordenanças constitucionais que a norteiam, estando, dentre outros corolários, subordinadas ao preceito que privilegia a defesa do meio ambiente, que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. O corolário do desenvolvimento sustentável, além de estar impregnando de aspecto essencialmente constitucional, encontra guarida legitimadora em compromissos e tratados internacionais assumidos pelo Estado Brasileiro, os quais representam fator de obtenção do justo equilíbrio entre os reclamos da economia e os da ecologia, porém, a invocação desse preceito, quando materializada situação de conflito entre valores constitucionais e proeminentes, a uma condição inafastável, cuja observância não reste comprometida nem esvaziada do aspecto essencial de um dos mais relevantes direitos fundamentais, qual seja: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.
3 Anotações ao Princípio da Função Socioambiental da Propriedade: A Consolidação dos Aspectos Difusos dos Direitos de Terceira Dimensão no Ordenamento Brasileiro
Em sede de comentários introdutórios, é possível evidenciar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[16], com profundos sulcos, condicionou a propriedade ao atendimento de sua função social, de maneira que, uma vez ausente a função social ambiental, o proprietário se vê obstado do pleno exercício de sua propriedade. Clara é a dicção do artigo 5º[17], incisos XXII e XXIII, da Carta de Outubro, ao consagrar, de maneira expressa, que o direito de propriedade é garantido aos titulares que comprovarem o atendimento de sua função social.
Ao lado disso, é possível verificar que, dentre os baldrames que norteiam as atividades econômicas, encontra-se, novamente, prevista a função social da propriedade, consoante se extrai do conteúdo do inciso III do artigo 170[18] da Constituição Cidadã. No tocante à propriedade rural, é observável que a função social da propriedade restará materializada quando houver a confluência, concomitantemente, dos seguintes fatores, quais sejam: (i) aproveitamento racional e adequado; (ii) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (iii) observação das disposições que regulam as relações de trabalho; e, (iv) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores. “Dentre dessas normas é evidente que o exercício do direito de propriedade está condicionado à preservação do meio ambiente em prol da coletividade”[19], com o escopo de atender os feixes axiomáticos informadores alocados no artigo 225 da Constituição de 1988, notadamente assegurando a concreção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Neste sentido, é possível colacionar o entendimento jurisprudencial que robustece as ponderações aventadas até o momento:
“Ementa: Processo civil. Agravo de instrumento. Desapropriação. Existência concomitante de ação que discute a produtividade do imóvel. Suspensão da imissão de posse e da ação originária até o deslinde da questão. 1. O artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal assegura o direito de propriedade, devendo esta, contudo, atender à sua função social. O artigo 186 disciplina os requisitos que devem ser observados para que se cumpra a função social da propriedade, a saber: o aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e a exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores. […] 4. Agravo de instrumento a que se dá provimento. Prejudicado o pedido de reconsideração formulado pelo INCRA.” (Tribunal Regional Federal da Terceira Região – Quinta Turma/ Agravo de Instrumento N° 0027775-53.2009.4.03.0000/ Relator: Desembargador Federal Luiz Stefanini/ Julgado em 08.10.2012/ Publicado no DJe em 17.10.2012).
“Ementa: Processual Civil. Procedimento Administrativo. Função Social. Requisitos do art. 186 da Constituição Federal. Apreciação Simultânea. Procedimento Administrativo. Ministério Público Estadual. Verificação função social no aspecto ambiental. Impossibilidade. Esfera de atuação federal. Órgão competente. INCRA. I – O artigo 186 da Constituição da República estabelece que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, de forma simultânea, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais e disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho e d) exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e trabalhadores. […] VIII – Agravo de instrumento a que se nega provimento. IX – Prejudicado o agravo regimental”. (Tribunal Regional Federal da Terceira Região – Segunda Turma/ Agravo de Instrumento N° 0091215-62.2005.4.03.0000/ Relator: Juiz Convocado Paulo Sarno/ Julgado em 04.09.2007/ Publicado no DJe em 21.09.2007).
Ora, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[20], insta salientar que o direito de propriedade perdeu o aspecto absoluto, ilimitado e intangível, caracterizados pela concepção individualista contida na Lei Substantiva Civil então vigente, sendo revestido, por conseguinte, de uma moldura social como fator de progresso e promoção de bem-estar de todos. Quando se diz que a propriedade privada tem uma função social, na verdade está se afirmando que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em benefício da coletividade, sendo, precisamente, o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo seu titular. Nesses termos, ao estabelecer no artigo 186, inciso II, da Constituição Federal, que a propriedade rural cumpre a sua função social quando ela atende, entre outros requisitos, a preservação no meio-ambiente, implicitamente o Constituinte consagrou a função socioambiental da propriedade como corolário do exercício da propriedade.
A admissão do princípio da função socioambiental da propriedade tem como consequência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente, configurando um aspecto positivo, não bastando tão somente que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental, aspecto negativo. Em outros termos, é possível realçar, com cores quentes, que a função socioambiental não constitui um mero limite ao exercício do direito de propriedade, tal como aquela restrição tradicional, por meio da qual se concede ao proprietário, no exercício de seu direito, fazer tudo o que não acarrete prejuízos à coletividade e ao meio ambiente. Distintamente, a função socioambiental se estende e autoriza até que se estabeleça em relação ao proprietário comportamentos positivos no exercício de seu direito, com o escopo de promover a adequação da propriedade à preservação do meio ambiente.
Com efeito, “inexiste direito ilimitado ou absoluto de utilização das potencialidades econômicas de imóvel, pois antes até da promulgação da Constituição vigente, o legislador já cuidava de impor algumas restrições ao uso da propriedade com o escopo de preservar o meio ambiente"[21], tarefa essa que, no regime jurídico propiciado pela nova ordem constitucional, fundamenta-se na função ecológica do domínio e posse. “É o princípio da função socioambiental da propriedade que fundamenta a imposição ao proprietário rural do dever de manutenção, preservação, recuperação e recomposição da vegetação em áreas de preservação permanente (APP) e reserva legal”[22]. Sobreleva anotar que tal obrigação de manutenção da área destinada à reserva legal materializa verdadeira obrigação propter rem[23], ou seja, dever que está indissociavelmente atrelado ao titular do direito real. Nesta esteira de raciocínio, é possível colacionar o entendimento do Ministro Franciulli Netto, ao relatoriar o Recurso Especial N° 217.858, em especial quando evidencia que:
“A proteção ao meio ambiente, em contraposição ao clássico direito de propriedade, reveste-se de sensíveis peculiaridades, diante da evidente necessidade de garantia da sobrevivência de um meio ambiente saudável nos dias atuais. Com efeito, desde o início do século passado, o Estado Brasileiro vem se preocupando em editar normas que promovam o equilíbrio ambiental, razão pela qual a proteção das florestas já estava positivada desde 1934, com o Decreto n. 23.793, de 23 de janeiro desse ano. O artigo 16 do "Novo Código Florestal", Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, dispõe que deve ser excluída da exploração econômica da chamada reserva legal, constituída por 20% de todas "as florestas de domínio privado". Ora, como está explícito na legislação acima mencionada, a reserva legal, em qualquer propriedade, incluída a da recorrente, não pode ser objeto de exploração econômica, de maneira que, ainda que se não dê o reflorestamento imediato, referidas zonas não podem servir
como pastagens. […] É de elementar inferência, dessarte, que a obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental. Mais a mais, a doutrina tem entendido, à luz do dispositivo suso referido, que a manutenção da área destinada à reserva legal é obrigação propter rem, ou seja, decorre da relação existente entre o devedor e a coisa, de modo que o ônus de conservação do imóvel é automaticamente transferido do alienante ao adquirente, independentemente deste último ter responsabilidade pelo dano ambiental. Eventual prejuízo deverá ser discutido, por meio de ação própria entre o adquirente e o alienante que efetivamente provocou o dano”[24].
O direito de propriedade, na atual sistemática inaugurada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não é analisado como algo individual, intocável e inatingível; ao reverso, adota-se um prisma difuso, um instrumento apto a promover a concreção da função socioambiental a que se destina a propriedade[25]. Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio-ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade concretamente se condicione à preservação do meio ambiente.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES