Resumo: O presente trabalho tem por finalidade o estudo da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Uma das mais importantes inovações processuais do Código em comento está regulada em seu artigo 6º, VIII, o qual possibilita ao juiz determinar, no processo civil, a inversão do ônus da prova, a favor do destinatário final de bens e serviços, quando for verossímil a alegação ou quando se tratar de consumidor hipossuficiente. O instituto da inversão modificou a linha da responsabilidade objetiva no direito brasileiro. A inversão do ônus da prova em favor do consumidor tem por escopo a facilitação da defesa do seu direito em juízo, sendo este o objetivo da referida inversão, tão-só e, exclusivamente a facilitação da defesa do seu direito, e não conferir-lhe vantagem para vencer mais facilmente uma demanda, em razão das garantias processuais do fornecedor réu. No presente trabalho, busca-se entender sobre o momento ideal para o magistrado conceder a inversão do ônus da prova, bem como, quando cabível ou necessária a aplicação de tal instituto. Assim, diante do exposto, o momento adequado para a inversão do ônus da prova é entre a propositura da ação e o despacho saneador, sendo o melhor momento no saneador por estarem os pontos controvertidos fixados e ser anterior a instrução do processo, evitando, portanto prejuízos à ampla defesa do réu.
Palavras-chave: Inversão do ônus da prova – CDC – momento processual
Abstract: The present work aims to study the reversal of the burden of proof in the Code of Consumer Protection. One of the most important procedural innovations of the code in comment is regulated in Article 6, VIII, which allows the judge to determine, in civil proceedings, the reversal of the burden of proof in favor of the final recipient of goods and services, as is probable the claim or when it is a disadvantage consumers. The Institute of inversion changed the line of strict liability under Brazilian law. The reversal of the burden of proof in favor of the consumer has the scope to facilitate the defense of their rights in court, this being the purpose of this inversion, so-only and exclusively to facilitate the defense of its right, and not give it advantage to win more easily a demand, because of the procedural guarantees of the defendant vendor. In this paper, we seek to understand about the ideal time for the magistrate to grant a reversal of the burden of proof and, when appropriate or necessary to apply this institute. Thus, in view of the foregoing, the right time to reverse the burden of proof is the bringing of the action and curative act, and the best time for being in exonerating the points at issue and must be fixed prior to investigating the case, thereby avoiding losses full defense of the defendant.
Keywords: Reversal of burden of proof – CDC – procedural moment
Sumário: 1. Introdução. 2. Facilitação da Defesa dos Consumidores 3. Distribuição do Ônus Probatório nas Relações de Consumo. . 4 Aplicação das Regras de Experiência e Presunções pelo Magistrado 5. A Inversão segundo Critérios do Juiz 6. Pressupostos da Inversão: Hipossuficiência e Verossimilhança. 7. Momento Processual em que se opera a Inversão: Entendimento Doutrinário e Jurisprudencial. 8. Conclusão. 9. Referências Bibliográficas.
1 Introdução
A Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, instituiu o Código de Defesa do Consumidor, trata-se de um projeto que antecede a Constituição Federal de 1988 e que tem como principal finalidade a proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo.
O desenvolvimento econômico e as transformações advindas deste, através da expansão da produção de massa de produtos, provocou conflitos nas relações de consumo, conflitos esses próprios da sociedade de massa que passaram a ser melhor resolvidos com a tutela coletiva dos interesses e direitos do consumidor.
Para garantir e assegurar o equilíbrio das relações de consumo e assim garantir uma prestação jurisdicional justa, a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 trouxe princípios especiais para regular as relações de consumo, tais regramentos são imprescindíveis para a sociedade contemporânea, tendo em vista que esta é uma sociedade de produção e de consumo em massa.
Com o intuito de proteger e defender o consumidor, é que se mostra imprescindível a correta aplicação dos institutos nele previstos, de forma a atingir plenamente o seu objetivo. Atualmente, o consumidor se encontra em uma situação vulnerável, tendo em vista que, muitas vezes é induzido a adquirir mais e mais produtos, e conseqüentemente, constatando que a qualidade e utilidade de muitos não satisfazem suas expectativas.
O Código de Defesa do Consumidor trouxe institutos que regulam as relações de consumo. Estes institutos tornam-se necessários devido ao grande desenvolvimento econômico do país e os conseqüentes conflitos na relação de consumo. A inversão do ônus da prova é um dos mais importantes institutos criados pelo Código de Defesa do Consumidor, que facilita o acesso e a defesa do consumidor em juízo.
A inversão do ônus da prova é uma facilitação dos direitos do consumidor e se justifica como uma norma dentre tantas outras previstas no CDC para garantir o equilíbrio da relação de consumo, em decorrência da reconhecida vulnerabilidade do consumidor.
O artigo 333, I e II do Código de Processo Civil, trata das regras processuais comuns, no qual se incumbe ao Autor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito e do réu a obrigação da prova quanto aos fatos modificativos ou extintivos do direito do Autor.
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor traz um dispositivo legal específico, o art. 6º, VIII, que trata do direito básico do consumidor a respeito da facilitação da defesa dos seus direitos em juízo, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, ou seja, parte mais fraca segundo as regras ordinárias de experiência.
A inversão do ônus da prova zela pelo princípio da igualdade e garante a efetividade dos direitos do indivíduo e da coletividade. Tem por finalidade a facilitação dos direitos do consumidor e se justifica como uma norma dentre tantas outras previstas no Código de Defesa do Consumidor para garantir o equilíbrio da relação de consumo, frente à supracitada vulnerabilidade do consumidor.
O instituto do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor é de grande relevância nos tempos atuais, de modo que, há muita divergência no Poder Judiciário em relação à lei consumerista. Sendo de ciência geral que a questão das provas é ponto fundamental em nosso sistema processual, isso porque é ela quem vai confirmar a verdade dos fatos afirmados pelas partes, servindo, também, como fundamento da pretensão jurídica.
2 Facilitação da Defesa dos Consumidores
O nosso Código de Defesa do Consumidor surgiu por meio de experiências estrangeiras, foi instituído como direito fundamental pelo artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal de 1988.
Note-se aqui a importância da Constituição Federal de 1988 ter reconhecido este novo sujeito de direitos, o consumidor, individual e coletivo, e assegurado sua proteção constitucionalmente, tanto como direito fundamental no art. 5.º, XXXII, como princípio da ordem econômica nacional no art. 170, V, da CF/88. Em outras palavras, a Constituição Federal de 1988 é a origem da codificação tutelar dos consumidores no Brasil, pois no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias encontra-se o mandamento (Gebot) para que o legislador ordinário estabelecesse um Código de Defesa e Proteção do Consumidor, o que aconteceu em 1990. É a Lei 8.078, de 1990, que aqui será chamada de Código de Defesa do Consumidor e abreviada por CDC[1].
Em face da crescente sofisticação da sociedade contemporânea, é por demais cristalina a verdadeira impossibilidade para o “homem médio” fazer frente a essa tarefa contra o profissional, principalmente nos casos de produtos e serviços de alta complexibilidade tecnológica[2].
Com o advento da Lei 8.078/90, ao consumidor foi garantido como direito básico a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, esta se justifica como uma norma dentre tantas outras previstas no Código de Defesa do Consumidor para garantir e estabilizar a relação de consumo, diante à reconhecida vulnerabilidade do consumidor.
Ao examinar o instituto da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, Carlos Roberto Barbosa Moreira[3] aduz que
“Uma das mais importantes inovações processuais do Código de Defesa do Consumidor reside na possibilidade, prevista em seu art. 6º, VIII, de o juiz determinar, no processo civil, a inversão do ônus da prova, a favor do destinatário final de bens e serviços, quando “for verossímil a alegação” ou quando se tratar de consumidor “hipossuficiente”. A relevância do dispositivo foi posta em destaque pelo próprio legislador, que proferiu inseri-lo no multi-facetado elenco dos “direitos básicos do consumidor” (Título I, Capítulo III) a situá-lo no Título III do Código, inteiramente dedicado às normas de natureza processual.”
Nesse sentido, Tania Liz Tizzoni Nogueira[4] corrobora com esse entendimento, vejamos:
“Em face da notória desvantagem dos consumidores nas relações de consumo, houve o Estado por bem intervir e, de sua intervenção nasceu o Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90. Que veio atender os reclamos da sociedade e restabelecer o princípio da boa fé e da igualdade nas relações entre consumidores e fornecedores.”
É de ser esclarecido que essa “desvantagem” é uma situação geral, motivo pelo qual preocupados com a defesa dos consumidores a ONU na Res. 39/248 de 10.4.85 recomendou adotassem os países-membros algumas regras para a “Facilitação da defesa dos consumidores”, tais regras são direitos básicos do consumidor, e estão elencadas no art. 6.º do CDC. O Brasil adotando as diretrizes de tal resolução, foi mais além, e incluiu entre os direitos do consumidor a inversão do ônus da prova[5].
Por fim, cumpre ressalvar que o Código de Defesa do Consumidor disciplina em seus artigos os meios de facilitação da defesa dos consumidores, de modo que, a inversão do ônus da prova constitui um desses meios, o que será objeto de estudo do presente trabalho.
3. Distribuição do Ônus Probatório nas Relações de Consumo
Inicialmente cumpre relembrar que a origem da palavra “ônus” vem do latim ônus que é sinônima de carga, fardo, peso. E, “prova” vem do latim probatio que significa prova, ensaio, verificação. A expressão originária do latim é o ônus probandi, querendo assim significar que aquele que tem o ônus de provar, tem a necessidade de produzir determinada prova, porque se não o fizer, o seu não cumprimento via de regra trar-lhe-á consequências negativas. Ou seja há que produzir determinada prova para atender seu interesse[6].
José Geraldo Brito Filomeno sustenta que, talvez a grande novidade, isto sim, seja o direito previsto no inc. III do mencionado art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, quando fala da inversão do ônus da prova, a seu favor, mas apenas no processo civil quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação do consumidor, ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência[7].
Em relação às regras de distribuição do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, este adotou como regra geral a responsabilidade objetiva, conforme dispõe o caput dos artigos 12 e 14 da referida lei[8]:
“Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente de existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
Em decorrência de tal responsabilidade, o consumidor não tem a necessidade de provar dolo ou culpa do agente, bastando somente provar o fato constitutivo do seu direito.
Contudo, o § 4º do artigo 14 do CDC estabeleceu a responsabilidade civil subjetiva referente aos profissionais liberais, responsabilidade que se configura mediante a verificação de culpa.
Relativo à publicidade, o artigo 38 da mencionada lei, versa que o ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina, assim, a distribuição da carga probatória cabe ao patrocinador.
Nesse sentido assevera Marco Aurélio Moreira Bortowski[9] “O Código de Defesa do Consumidor, ao atribuir a carga probatória da correção e veracidade da publicidade ao patrocinador, busca coibir a publicidade enganosa ou abusiva, tal como decorre do art. 37 da Lei.”
Outrossim, o Código também estabeleceu, a respeito das cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços, que estas serão nulas se estabelecerem inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor, conforme reza o artigo 51, VI da lei consumerista.
Por fim, o inciso VIII, do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, incluiu nos direitos básicos do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.
Diante do exposto, importante se faz destacar uma questão: o Código de Defesa do Consumidor alterou as regras do ônus da prova estabelecidas no artigo 333 do Código de Processo Civil brasileiro?
A resposta é não. De modo que, compete ao autor provar o fato constitutivo do seu direito e, ao demandado demonstrar os fatos extintivos, impeditivos ou modificativos ao direito do autor.
As normas de distribuição de carga probatória dispostas no artigo 333 do CPC são plenamente aplicáveis nas demandas judiciais que derivam de direitos reconhecidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Tais normas, em regra, dirigem-se ao destinatário maior da prova, o Magistrado, pois quem deve provar tem apenas o encargo de demonstrar os pressupostos da norma reguladora que lhe é favorável ao seu pedido deduzido.
O Código de Defesa do Consumidor, mesmo construído, codificado, organizado, autônomo e independente, é considerado um microssistema[10] e, na falta de regras específicas, rege-se pelas regras e princípios do Código de Processo Civil, portanto aqui a aplicação do ônus probatório não se mostra diferente.
São essas as questões que se passa a enfrentar, sem, todavia, esquecer que o tema é novo, com muitas divergências a respeito.
4. Aplicação das Regras de Experiência e Presunções pelo Magistrado
No momento da análise das provas, o magistrado poderá utilizar-se das regras de experiência e presunções para obter a certeza, de modo a esclarecer suas dúvidas.
Inicialmente, importante se faz explanar sobre as regras de presunção e de experiência, referente a tais regras ensina Cecília Matos[11]
“A presunção é um raciocínio lógico utilizado para que, de um fato conhecido (o indício) seja possível chegar a um fato desconhecido. A regra de experiência é também um processo lógico, baseado em fatos comuns, preexistentes, genéricos e abstratos do conhecimento humano, de uso corriqueiro pelo juiz.”
Nesse sentido, Gediel Claudino de Araujo Júnior[12] corrobora nesse entendimento, vejamos:
“Presunção é o processo mental pelo qual, partindo-se de um fato conhecido, se deduz outro desconhecido ou ignorado. Em outras palavras, é a conseqüência, ou conclusão, que a lei ou o juiz tiram tendo como ponto de partida um fato conhecido para chegar a outro Ignorado. A "presunção legal" pode ser absoluta (juris et de juri), que não aceita prova em contrário (v. g., todos conhecem a lei, art. 3º, LICC), ou relativa (juris tantum), que aceita prova em contrário (v. g., a entrega do título ao devedor firma a presunção de pagamento, arts. 322 e 324, CC/2002)”.
Ovídio Araújo Batista da Silva[13] aduz que segundo nosso Código, o juiz poderá aplicar as denominadas regras de experiência comum, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (art. 335). Certamente está facultado ao juiz valer-se dessas regras da experiência comum e mesmo, em muitos casos, como diz este dispositivo legal, poderá prescindir até da prova de certas regras técnicas, ressalvada a necessidade da prova pericial.
Ernane Fidélis dos Santos[14], explica que as regras de experiência comum, subministradas pelo que ordinariamente acontece, são de muita importância na avaliação do indício para se concluir na existência de outro fato, mas de modo geral, são também empregadas para a apreciação e valoração de todas as provas, a fim de que se alcance, ou, pelo menos, dela mais se aproxime, a verdade real.
No que concerne à presunção, Luiz Guilherme Marinoni[15] esclarece que para que a presunção possa ser utilizada, é necessário, em primeiro lugar, verificar se o fato que se pretende demonstrar por meio da prova indiciária é um fato pertinente e relevante para a definição do mérito. O fato indiciário é pertinente quando ele tem relação direta com o fato essencial, ao passo que será ele relevante quando, uma vez demonstrado, for efetivamente capaz de demonstrar o fato essencial e assim influir no julgamento.
As presunções não se confundem com os indícios, sendo que estas são deduções que deles decorrem, de modo que os indícios são fatos, que devem ser provados nos autos.
Deste modo, no momento de apreciar as provas do processo, a partir do indício, o juiz poderá presumir a verossimilhança dos fatos alegados por meio das regras de experiência e de presunções, tendo em vista que tais fatos não são provados.
Ademais, por meio de um raciocínio lógico, poderá o julgador diante de um fato não provado, entender que este fato possui um grande indício de probabilidade, desde que não exista qualquer tipo de prova contrária pela parte adversária.
Se reconhecida a prova durante sua valoração pelo magistrado, uma das partes será beneficiada através da presunção, presunção esta advinda da regra de experiência. A parte beneficiada então ficará livre de sofrer a desvantagem da incerteza, sendo que o ônus será transferido ao adversário.
Com isto, pretende-se afirmar que, ao se utilizar das regras de experiência, o juiz poderá aplicar de modo diverso as regras do ônus da prova: as alegações do demandante não foram por ele provadas, porém segundo as regras de experiência, são verossímeis e não foram contrariadas pelo adversário. Apesar de não se desvencilhar de seu encargo em provar, o demandante não sofrerá a desvantagem da incerteza do julgador, pois a seu favor milita uma regra de experiência[16].
Por fim, é importante destacarmos que as regras de experiências e as presunções, somente serão utilizadas na dúvida do magistrado, dúvida esta referente ao convencimento dos fatos.
5. A Inversão segundo Critérios do Juiz
A inversão de que trata o artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, dispõe que é direito básico do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.
O dispositivo supra mencionado decorre, necessariamente, de ato judicial, praticado no processo entre consumidor e fornecedor, assim, não pode ser diversa a exigência da cláusula “a critério do juiz”, nele regulada, portanto, ficando a seu critério sempre que se verificasse a verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência.
A circunstância de constar no texto legal a expressão “a critério do juiz” deu margem a que se afirmasse que o magistrado, desde que presentes os requisitos, tinha o “poder discricionário” de inverter ou não o ônus da prova em favor do consumidor.[17]
Todavia, esse entendimento afronta até mesmo a interpretação meramente literal do dispositivo. Com efeito, não diz a lei que fica “a critério do juiz” inverter o ônus da prova. O que fica “a critério do juiz” (rectius, a partir de seu livre convencimento motivado) é a tarefa de aferir, no caso concreto levado à sua presença, se o consumidor é hipossuficiente e se a sua inversão dos fatos é verossímil. Apenas até aí vai a sua esfera de decisão.[18]
Para Carlos Roberto Barbosa Moreira, não se cuida, portanto, de inversão que decorra diretamente da lei, como se passa nas hipóteses nas quais o próprio Código, dispensando o consumidor do ônus da prova do defeito – inequivocamente, fato constitutivo de seu direito à reparação -, transfere ao fornecedor o encargo de demonstrar que “o defeito inexiste” (arts. 12, § 3º, II e 14, §3º, I).
A opinião em sentido contrário, segundo a qual a inversão mencionada no art. 6º, VIII, seria produzida pela própria lei, não parece correta: se soa precisa a observação de que “o papel do magistrado é meramente o de aferir a presença dos requisitos impostos pelo CDC”, disso não se pode extrair que a norma, por si só, já acarrete a inversão, a qual dependerá, em qualquer caso, do pronunciamento do juiz. Se não houver decisão judicial ordenando a inversão – e acrescento: enquanto semelhante decisão não for proferida -, vigorarão, no tocante ao ônus da prova, as regras gerais do Código de Processo Civil. Só seria lícito identificar inversão legal desse ônus se a lei a houvesse estabelecido, indistintamente, como regra para os litígios envolvendo consumidores, sem dar ao magistrado qualquer margem na apreciação dos pressupostos que a autorizam[19].
No mesmo sentido, é o entendimento de Marco Aurélio Moreira Bortowski[20], senão vejamos: “Cremos que a norma é cogente. Uma vez presentes os pressupostos da aplicação da regra, o juiz é obrigado a proceder à inversão do encargo probatório” .
O juiz possui ampla liberdade no momento da apreciação dos requisitos legais para deferir a inversão, pois se tais requisitos lhe parecerem ausentes, indeferirá a medida, pois do convencimento judicial o magistrado não está obrigado, contudo, se concluir que no caso a inversão se configura, deverá ordená-la.
6. Pressupostos da Inversão: Hipossuficiência e Verossimilhança
Conforme reza o já mencionado artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, a inversão do ônus da prova poderá ser autorizada quando houver verossimilhança nas alegações, ou quando o consumidor for hipossuficiente, isto é, exige-se, neste último caso, que ele não tenha meios para custear perícias e outros elementos que visem demonstrar a viabilidade de seu interesse ou direito.
Os requisitos da hipossuficiência e da verossimilhança, conforme dispõe o texto legal, são alternativos, tal alternatividade é indicada pela interpretação literal do dispositivo, que utiliza a conjunção alternativa “ou”, que separa os dois requisitos.
Note-se também que a partícula “ou” bem esclarece que, a favor do consumidor, pode o juiz inverter o ônus da prova quando apenas uma das duas hipóteses está presente no caso. Não há qualquer outra exigência no CDC – sendo assim, ao juiz é facultado inverter o ônus da prova inclusive quando esta prova é difícil mesmo para o fornecedor, parte mais forte e expert na relação, pois o espírito do CDC é justamente de facilitar a defesa dos direitos dos consumidores e não o contrário, impondo provar o que é em verdade o “risco profissional” ao – vulnerável e leigo – consumidor[21].
A lei não contém palavras inúteis, desse modo, o legislador quis deixar claro que a inversão do ônus da prova é faculdade do juiz, bastado um dos requisitos elencados no dispositivo, quais sejam, a verossimilhança das alegações ou, alternativamente, a hipossuficiência.
Nesse sentido, é o julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, vejamos:
“APELAÇÃO CÍVEL. ENSINO PARTICULAR. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CRÉDITO EDUCATIVO. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE PROVA BASTANTE DO CANCELAMENTO DA MATRÍCULA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. FACULDADE DO JUIZ. INSTITUTO NÃO APLICÁVEL NO CASO CONCRETO. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70026968040, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura, Julgado em 26/08/2010)” (grifo nosso)
No corpo do acórdão se extrai:
“Em que pese aplicável a Lei nº 8.078/90 ao caso concreto, a inversão do ônus da prova prevista em seu art. 6º, VII é faculdade do juiz, não obrigação. Com efeito, os documento trazidos aos autos permitem a compreensão dos fatos e levam à formação do juízo de convicção indispensável para a solução da controvérsia, conforme adiante se verá.
Dessa forma, cabe ao recorrente a prova do que alega e não à credora, conforme determina o art. 333, II, do CPC, não se podendo impor à instituição de ensino produzir prova negativa.”[22]
Relativo aos pressupostos tratados em tela, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino[23] assevera, a saber:
“A hipossuficiência, que é um conceito próprio do CDC, relaciona-se à vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Não é uma definição meramente econômica, conforme parte da doutrina tentou inicialmente cunhar, relacionando-a ao conceito de necessidade da assistência judiciária gratuita. Trata-se de um conceito jurídico, derivando do desequilíbrio concreto em determinada relação de consumo. Num caso específico, a desigualdade entre o consumidor e o fornecedor é tão manifesta que, aplicadas as regras processuais normais, teria o autor remotas chances de comprovar os fatos constitutivos de seu direito. As circunstâncias probatórias indicam que a tarefa probatória do consumidor prejudicado é extremamente difícil.”
Nesse sentido, José Geraldo Brito Filomeno[24] corrobora o entendimento, senão vejamos:
“HIPOSSUFICIÊNCIA: O termo em pauta, na verdade, foi tomado por empréstimo pelos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor da doutrina do Direito do Trabalho, que assim considera o detentor da força de trabalho, economicamente frágil, em face do detentor do capital, seu empregador, que detém o poder de subordinação.”
A noção de hipossuficiente acolhida pelo CDC foi mais abrangente que a noção a que estávamos acostumados, ou seja a da Lei 1.060/50, que estabeleceu as condições para a concessão da Assistência Judiciária, a qual fala do “necessitado”, mas este necessitado a que a lei se refere é o pobre, é aquele que o é por necessidade econômio-financeira. Na noção desta lei, o hipossuficiente é o carente financeiramente falando. O CDC foi mais além incluindo no sentido do vocábulo a noção de hipossuficiência técnica[25].
Paulo de Tarso Sanseverino[26] exemplifica, para facilitar nosso entendimento a cerca da noção de hipossuficiência.
“Um portador do vírus da Aids alega ter contraído a doença em transfusões de sangue realizadas em determinado hospital há vários anos, somente agora aparecendo os sintomas, embora não possua mais qualquer elemento comprobatório da prestação de serviços pelo hospital. Apesar de não ser a alegação dotada de verossimilhança, mas de mera possibilidade, o juiz pode inverter o ônus da prova, determinando que o hospital comprove que o consumidor nunca foi seu paciente.”
Referente a verossimilhança das alegações, Antonio Gidi[27] afirma que verossímil é o que é semelhante a verdade, o que tem aparência de verdade, o que não repugna a verdade, enfim o provável. Sustenta ainda que é possível fazer uma aproximação entre a verossimilhança das alegações do consumidor e o fumus boni juris do processo cautelar, na qual seria, por assim dizer, uma espécie de fumus boni facti.
No mesmo entendimento, Carlos Roberto Barbosa Moreira[28] sustenta que:
“A verossimilhança se assenta num juízo de probabilidade, que resulta, por seu turno, da análise dos motivos que lhe são favoráveis (convergentes) e dos que lhe são desfavoráveis (divergentes). Se os motivos convergentes são inferiores aos divergentes, o juízo de probabilidade cresce; se os motivos divergentes são superiores aos convergentes, a probabilidade diminui.”
José Geraldo Brito Filomeno[29] fornece um exemplo elucidativo de verossimilhança. Um automóvel, por razões desconhecidas a priori, está em plena marcha, quando de repente ela é estancada, provocando seu capotamento, disso resultando ferimentos ou até a morte de seus usuários, ou terceiros, ou então ferimentos, perda total do próprio veículo e outros danos advindos do acidente. Verifica-se, posteriormente, por meio de um auto de constatação, mas sem maiores aprofundamentos técnicos, que o referido acidente se verificou pela ruptura de uma das rodas, por conter fissuras.
Como a prova em questão é de difícil produção – exame metalográfico -, a alegação do consumidor no sentido de que o acidente que sofrera resultara exatamente desse defeito, baseado no referido laudo de constatação, por exemplo, produzido pela polícia técnica, pode parecer ao magistrado que analisa a ação reparatória verossímil, ou seja, aparentando ser a expressão da verdade real, donde resulta a decretação da inversão do ônus probatório[30].
No mesmo sentido, o exemplo de Roberto Basilone Leite[31], senão vejamos:
“Suponha-se um grupo de pessoas encaminhado ao hospital, com cólicas, ao término de almoço servido em certo restaurante. Passados alguns dias do evento, não será mais possível a prova técnica de que as reações patológicas dos comensais forma causadas pela comida. É absolutamente verossímil, no entanto, a alegação de que o internamento dessas pessoas decorreu de acidente de consumo ocasionado pela ingestão de alimentos ruins fornecidos pelo restaurante. Inverte-se o ônus da prova: ao fornecedor compete produzir as provas tendentes a demonstrar que a internação não foi ocasionada pelo almoço”.
A verossimilhança, conforme reza o artigo 6º, VIII, do CDC, que autoriza a inversão do ônus da prova não é aquela relativa à simples possibilidade ou plausibilidade de a alegação ser verdadeira, mas aquela que configura verdadeira probabilidade, a verossimilhança do provável, esta sim corresponde ao art. 6º, VIII, do CDC.
Assim, tendo em vista a facilitação da defesa dos direitos do consumidor e, segundo as regras ordinárias de experiência tem-se em conta que a verossimilhança ou a hipossuficiência são umas das condições para que o juiz possa conceder a referida inversão do ônus da prova.
7. Momento Processual em que se opera a Inversão: Entendimento Doutrinário e Jurisprudencial
Questão polêmica refere-se ao momento processual em que deve o juiz inverter o ônus da prova. A respeito do momento próprio para a inversão existem três correntes.
A primeira corrente admite a inversão do ônus da prova por ocasião da sentença, fundamentando que se trata de regras de julgamento, competindo ao juiz inverter o ônus da prova após o término da instrução e por ocasião em que o juiz for proferir a sentença[32].
Nesse aspecto, inclusive, é o entendimento dos autores do anteprojeto[33], vejamos:
“Quanto ao momento da aplicação da regra de inversão do ônus da prova, mantemos o mesmo entendimento sustentado nas edições anteriores: é o do julgamento da causa. É que as regras de distribuição do ônus da prova são regras de juízo, e orientam o juiz, quando há um non liquet em matéria de fato, a respeito da solução a ser dada à causa.”
No mesmo sentido é o posicionamento de Cecília Matos[34], a saber:
“Justificamos a posição de que o momento processual para a análise da necessidade da aplicação das regras de distribuição do ônus da prova e sua inversão é por ocasião do julgamento da demanda e jamais quando do recebimento da petição inicial, na decisão saneadora ou no curso da instrução probatória.”
Afirma ainda, que de acordo com o art. 6.º, inc. VIII do CDC, o fornecedor tem ciência de que, em tese, serão invertidas às regras do ônus da prova se o juiz considerar como verossímeis as alegações do consumidor ou se ele for hipossuficiente. Além disto, o fornecedor sabe que dispõe do material técnico sobre o produto e o consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo e litigante eventual[35].
A inversão, se reservada para o momento da sentença, ofenderia os princípios do contraditório e da ampla defesa, com previsão legal no art. 5.º, inciso LV da Constituição Federal, pois ao mesmo tempo em que estivesse invertendo o ônus da prova, o juiz já estaria julgando, sem dar ao fornecedor a chance de apresentar novos elementos de convicção, elementos que poderiam cumprir seu novo encargo.
Antonio Gidi[36] corrobora o entendimento, a saber:
“Se fosse lícito ao magistrado operar a inversão do ônus da prova no exato momento da sentença, ocorreria a peculiar situação de, simultaneamente, se atribuir um ônus ao réu, e negar-lhe a possibilidade de desincumbir-se do encargo que antes inexistia.”
A segunda corrente considera que a inversão deverá ser deferida pelo juiz já no próprio despacho inicial. Contudo, tal corrente não possui aceitabilidade na doutrina.
Isolada nesse posicionamento, as palavras de Tania Liz Tizzoni Nogueira[37], senão vejamos: “Contudo, entendo que o autor consumidor deverá já na inicial requerer a inversão do ônus e, desta forma a fase processual em que o juiz deverá se manifestar sobre a questão será no ato do primeiro despacho, que não se trata de mero despacho determinante da citação, mas de decisão interlocutória, passível portanto de recurso de agravo. Tal proceder irá propiciar a defesa dos direitos do consumidor de forma ampla, de acordo com o espírito do CDC, uma vez que em não sendo concedida a inversão poderá o consumidor agravar da decisão interlocutória, e ser então revista a decisão.”
Diante do entendimento supra mencionado, este não parece correto, de modo que, enquanto não apresentada a resposta do fornecedor, o juiz não tem como saber que fatos se tornarão controvertidos, sendo que a atividade instrutória depende desses fatos. É evidente que, somente com a contestação é que poderá aferir a existência de polêmica relativa aquele fato determinado, se existe ou não divergência entre as partes.
Por fim, a última das três correntes diz que a oportunidade adequada para a inversão do ônus da prova deve anteceder ao início da instrução, momento em que manifesto opinião favorável.
Marco Aurélio Moreira Bortowski[38] aduz que a decisão que determinou a inversão deve ser expressamente comunicada à parte, para que ela possa, se for o caso, tomar as providências que entender de direito, inclusive, atacá-la via agravo de instrumento.
Nesse mesmo entrosamento, Carlos Roberto Barbosa Moreira[39] assevera:
“Como a inversão do ônus probatório, prevista no Código de Defesa do Consumidor, se dará com maior freqüência naqueles casos em que a prova técnica se faz imprescindível, segue-se que o juiz, ao indicar os “pontos controvertidos”, deverá, também se a hipótese comportar a medida, promover a inversão, da qual as partes serão intimadas na própria audiência de conciliação. Assim, já no início da fase instrutória saberão as partes não só quais são os fatos sobre os quais recairá a prova, mas também a qual delas toca o respectivo ônus. Preserva-se, com isso, a garantia constitucional da ampla defesa.”
Percebe-se na legislação consumerista, que há prévio critério valorativo a ser enfrentado: a verossimilhança, e/ou hipossuficiência. Denota-se, contudo, que a subjetividade está presente na decisão referente à inversão do ônus da prova, devendo o consumidor superar requisitos como verdadeiros obstáculos para, enfim, saber qual sistema probatório enfrentará. Ao fornecedor não é diferente: este precisa saber qual regime será adotado no processo em que atua.
Tratando-se de critérios subjetivos, as partes jamais saberão como se distribuir com relação à prova dos fatos, pois não saberão se é caso de inversão do ônus da prova ou não.
Por esse motivo é que parece inaceitável a realização da inversão no momento em que o juiz sentencia, dar conhecimento às partes sobre essa questão no momento da sentença acarretaria a ocorrência de surpresas processuais para as partes, assim estas não poderiam produzir provas de forma segura.
Quanto à jurisprudência, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul[40], em suas decisões, vem apresentando entendimento que a inversão é regra de procedimento, senão vejamos:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. REVISIONAL DE CONTRATO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REGRA DE PROCEDIMENTO. A Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) é aplicável aos contratos bancários. Súmula n. 297 do STJ. De regra, o momento processual adequado à análise da inversão do ônus probatório é aquele anterior à prolação da sentença, sob pena de surpreender as partes, em afronta ao princípio do devido processo legal e da ampla defesa. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO.” (Agravo de Instrumento Nº 70033466160, Segunda Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antonio Angelo, Julgado em 31/03/2010) (grifo meu)
O julgado assim se manifesta:
“O consumidor possui o direito de informação acerca do negócio jurídico realizado com o fornecedor (art. 6º, III, CDC), bem como de facilitação da sua defesa, inclusive com a inversão do ônus da prova a critério do Juiz (art. 6º, VIII, do CDC). Com a devida vênia ao entendimento do magistrado de origem, de regra, o momento adequado a analise da inversão do ônus da prova é aquele anterior à prolação da sentença, sob pena de surpreender as partes, as quais, na falta de provimento judicial em contrário, alinharam-se a regra geral prevista no CPC. A distribuição do ônus da prova determina o agir processual de cada uma das partes, razão pela qual nenhuma delas deve ser surpreendida com a inovação de um ônus que, antes da prolação da sentença, não lhe era atribuído.”
No mesmo sentido, segue mais um julgado do Tribunal Gaúcho[41]:
“AGRAVO. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. REGRA DE PROCEDIMENTO. MOMENTO E FATO GERADOR. A inversão dos ônus da prova, se aplicável o direito consumerista, não se dá automaticamente, ou seja, ope legis, mas ope judicis. É que a inversão do ônus da prova não opera automaticamente, por força de lei, cabendo tão somente nos casos em que, a critério do juiz, for verossímil a alegação, ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência, devendo ser assim declarado pelo julgador. A inversão do ônus da prova não é regra de julgamento, mas sim de procedimento. AGRAVO IMPROVIDO.” (Agravo de Instrumento Nº 70014175384, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Antônio Kretzmann, Julgado em 04/05/2006) (grifo meu)
Do voto do presente julgado se extrai:
“Mesmo sabedor da divergência doutrinária que reina, com reflexos na jurisprudência dos pretórios de nossa pátria, julgo que a inversão do ônus da prova não é de ser aplicada ope legis, mas sim ope judicis, cabendo ao julgador, no momento oportuno, e sempre antes do julgamento definitivo, declarar a aplicação ou não da referida regra insculpida no artigo 6º, VIII, do Diploma Consumerista (Lei 8.078/90). A inversão do ônus da prova não opera automaticamente, por força de lei, cabendo tão somente nos casos em que, a critério do juiz, for verossímil a alegação, ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência, devendo ser assim declarado pelo julgador. Hipossuficiência pode ser aferida initio litis; verossimilhança da alegação, também. A inversão do ônus da prova não é regra de julgamento, mas sim de procedimento.”
Nas decisões do Superior Tribunal de Justiça, temos que este apresenta divergências, vejamos:
“Recurso especial. Civil e processual civil. Responsabilidade civil. Indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Causa de pedir. Cegueira causada por tampa de refrigerante quando da abertura da garrafa. Procedente. Obrigação subjetiva de indenizar. Súmula 7/STJ. Prova de fato negativo. Superação. Possibilidade de prova de afirmativa ou fato contrário. inversão do ônus da prova em favor do consumidor. regra de julgamento. Doutrina e jurisprudência. arts. 159 do CC/1916, 333, I, do CPC e 6.°, VIII, do CDC.
– Se o Tribunal a quo entende presentes os três requisitos ensejadores da obrigação subjetiva de indenizar, quais sejam: (i) o ato ilícito, (ii) o dano experimentado pela vítima e (iii) o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a conduta ilícita; a alegação de violação ao art. 159 do CC/1916 (atual art. 186 do CC) esbarra no óbice da Súmula n.° 7 deste STJ.
– Tanto a doutrina como a jurisprudência superaram a complexa construção do direito antigo acerca da prova dos fatos negativos, razão pela qual a afirmação dogmática de que o fato negativo nunca se prova é inexata, pois há hipóteses em que uma alegação negativa traz, inerente, uma afirmativa que pode ser provada. Desse modo, sempre que for possível provar uma afirmativa ou um fato contrário àquele deduzido pela outra parte, tem-se como superada a alegação de “prova negativa”, ou “impossível”.
– Conforme posicionamento dominante da doutrina e da jurisprudência, a inversão do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do art. 6.º do CDC é regra de julgamento. Vencidos os Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros, que entenderam que a inversão do ônus da prova deve ocorrer no momento da dilação probatória.
Recurso especial não conhecido.” (REsp 422778/SP, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 220)[42] (grifo meu)
Ainda na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, encontramos entendimento completamente contrário ao adotado no julgado anterior, onde a inversão do ônus da prova é tratada como regra de procedimento, a saber:
“RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC. REGRA DE JULGAMENTO.
– A inversão do ônus da prova, prevista no Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, é regra de julgamento.
– Ressalva do entendimento do Relator, no sentido de que tal solução
não se compatibiliza com o devido processo legal.”
Do voto do presente julgado se extrai:
“Conclui, sem dúvidas, que a inversão do encargo probatório é regra de procedimento. É que sua prática envolve requisitos (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor) que devem ser ponderados em cada caso concreto. Tenho convicção que o processo não pode ser armadilha para as partes e causar-lhes surpresas inesperadas. Ora, a inversão do ônus da prova é exceção à regra prevista no Art. 333 do CPC, segundo a qual ao autor incumbe a prova do fato constitutivo do respectivo direito e ao réu cabe a prova referente à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Logo, se o caso se enquadra na previsão do Art. 6º, VIII, do CDC, é preciso que o Juiz declare a inversão clara e previamente ao início da instrução. Do contrário, cria-se insegurança as partes, compelindo-se uma das partes a, eventualmente, produzir prova contra si próprio por ter receio de sofrer prejuízo decorrente duma inversão de ônus no momento da sentença. A meu ver, a tese de que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento não é compatível com o devido processo legal. A adoção dessa tese permite que o processo corra sob clima de insegurança jurídica, colocando ao menos uma das partes em dúvida sobre seus encargos processuais.”[43]
Nessa senda, mais uma decisão do Superior Tribunal de Justiça:
“RECURSO ESPECIAL. CDC. APLICABILIDADE ÀS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. ENUNCIADO N. 297 DA SÚMULA DO STJ. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA (ART. 6º, INCISO VIII, DO CDC). MOMENTO PROCESSUAL. FASE INSTRUTÓRIA. POSSIBILIDADE.
1. Há muito se consolidou nesta Corte Superior o entendimento quanto à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras (enunciado n. 297 da Súmula do STJ) e, por conseguinte, da possibilidade de inversão do ônus da prova, nos termos do inciso VIII do artigo 6º da lei consumerista.
2. O Tribunal de origem determinou, porém, que a inversão fosse apreciada somente na sentença, porquanto consubstanciaria verdadeira "regra de julgamento".
3. Mesmo que controverso o tema, dúvida não há quanto ao cabimento da inversão do ônus da prova ainda na fase instrutória – momento, aliás, logicamente mais adequado do que na sentença, na medida em que não impõe qualquer surpresa às partes litigantes -, posicionamento que vem sendo adotado por este Superior Tribunal, conforme precedentes.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, no ponto, provido.” (REsp 662608/SP, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em 12/12/2006, DJ 05/02/2007, p. 242)[44] (grifo meu)
Desse modo, verificamos que há muita discussão, controvérsia doutrinária e jurisprudencial, divergências acerca do momento processual adequado para a concessão da inversão do ônus da prova a favor do consumidor.
Para que haja uma consolidação desta norma, será necessário amadurecimento por parte dos operadores do direito. De modo que, quando chegarmos a um entendimento pacífico sobre o adequado momento da inversão, tal norma será melhor aceita e utilizada por todos.
8. Conclusão
Ao consumidor, por ser reconhecido como a parte mais fraca na relação de consumo, face sua vulnerabilidade, foi lhe assegurado como direito básico a facilitação de seus direitos através da Lei n. 8.078/90, de modo que este se submete ao poder do fornecedor, que dispõe do controle sobre bens de produção para satisfazer suas necessidades de consumo.
O texto do art. 6º, VIII, do CDC, instituidor da inversão do ônus da prova, constituiu um dos mais importantes instrumentos de que dispõe o magistrado para compensar as desigualdades existentes entre consumidores e fornecedores.
É importante ressaltar que a aplicação deste instituto fica a critério do juiz quando for verossímil a alegação do consumidor ou quando este for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência. Tais regras só serão aplicadas quando seus requisitos estiverem presentes e evidentes, caso contrário, será observada a regra geral do ônus da prova que é aplicada no julgamento do processo.
Assim, não fosse a inversão do ônus da prova, muitas das ações que abrangem relação de consumo nem mesmo seriam ajuizadas, de modo que esta atua como verdadeiro mecanismo de libertação do consumidor, sujeito oprimido pelo mercado massificado de consumo.
Para vencer a demanda, é apropriado que cada parte deve se desincumbir do ônus da prova de acordo com sua necessidade ou, demonstrar uma situação jurídica favorável.
É possível que a inversão do ônus da prova possa ser utilizada irregularmente, pois uma pretensão, apesar de verossímil, pode ter por objeto a desmoralização do produto do fornecedor, ora demandado, um ato reprovável para seus concorrentes, sendo este obrigado a produzir todas as provas para não correr o risco de sofrer uma sentença desfavorável.
A inversão deve ser observada como instrumento de caráter excepcional, devendo ser manejada com todos os cuidados possíveis. É de suma importância que o juiz tenha cautela diante de sua convicção, é preciso uma conduta totalmente moderada por conta do magistrado.
O momento adequado para a inversão do ônus da prova é entre a propositura da ação e o despacho saneador, sendo o melhor momento no saneador, de modo que os pontos controvertidos estarão fixados e, este momento ser anterior a instrução do processo, evitando, portanto prejuízos à defesa do réu.
Se deferida no despacho saneador, o fornecedor poderá exercer amplamente seu direito de defesa na fase instrutória do processo, assim sua defesa não estaria prejudicada, pois tem o direito de ser comunicado com antecedência do ônus que lhe incumbe por ocasião do deferimento da inversão.
Importante destacar ainda que se deferida em tal momento, poderá o fornecedor atacar a decisão interlocutória que aplica a inversão via recurso de agravo.
Por fim, diante de todo o exposto nesta modesta exposição, cumpre ressaltar nosso entendimento de que a inversão do ônus da prova é matéria de instrução, regra de procedimento, devendo ser analisada no curso do processo, de preferência antes mesmo da abertura da fase instrutória, assim as partes poderão produzir as provas de maneira segura, com inteiro conhecimento do que devem comprovar, de modo contrário, as partes não saberiam quais encargos lhe competem e sofreriam extrema insegurança jurídica ao participar de um litígio.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Antônio Herman V; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
BORTOWSKI, Marco Aurélio Moreira. A carga probatória segundo a doutrina e código defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 7, p. 113, jul./set. 1993.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 422778/SP. Responsabilidade civil. Indenização por danos materiais e compensação por danos morais. Causa de pedir. Cegueira causada por tampa de refrigerante. Recurso especial não conhecido.Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI. Data do Julgamento: 19/06/2007. Disponível em: http://www.stj.gov.br, Acesso em 08 nov. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
Recurso Especial n. 949000/ES. Consumidor. Inversão do ônus da prova. Art.
6º,
VIII, do
CDC. Regra de julgamento. Ressalva do entendimento do Relator, no sentido de que tal solução não se compatibiliza com o devido processo legal. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Data do Julgamento: 27/03/2008. Disponível em: <http://www.stj.gov.br> Acesso em: 08 nov. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 662608/SP. Aplicabilidade às instituições financeiras. Enunciado n. 297 da Súmula do STJ. Inversão do ônus da prova. Recurso especial parcialmente conhecido e, no ponto, provido.Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa. Data do Julgamento: 12/12/2006. Disponível em: <http://www.stj.gov.br> acesso em: 08.11.2010
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direito do Consumidor. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
GIDI, Antonio. Aspectos da Inversão do Ônus da Prova no Código do Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 13, p. 32, jan./mar. 1995.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
LEITE, Roberto Basilone. Introdução ao direito do consumidor: os direitos do consumidor e a aplicação do código de defesa do consumidor. São Paulo: LTr, 2002. p. 108.
MARTINS, Plínio Lacerda. A inversão do ônus da prova na ação civil pública proposta pelo ministério público em defesa dos consumidores. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 31, p. 73. jul./set. 1999.
MATOS, Cecília. O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 11, p. 165, jul./set. 1994.
MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a Inversão do Ônus da Prova em benefício do Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 22, p. 134, abr./jun. 1997.
NOGUEIRA, Tania Lis Tizzoni. Direitos Básicos do Consumidor: A Facilitação da Defesa dos Consumidores e a Inversão do Ônus da Prova. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 10, p. 49, abr./jun. 1994.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 7002696804. Crédito educativo. Prescrição. Ausência de prova bastante do cancelamento da matrícula. Inversão do ônus da prova. Faculdade do juiz. Relator: Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura. Data do Julgamento 26/08/2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br> Acesso em: 08 nov. 2010.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 70033466160. Revisional de contrato. Inversão do ônus da prova. Regra de procedimento. Agravo de instrumento parcialmente provido. Relator: Marco Antonio Angelo. Data do Julgamento 31/03/2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br> Acesso em: 08 nov. 2010.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 70014175384. Inversão do ônus da prova. Regra de procedimento. Momento e fato gerador. Agravo improvido. (Relator: Paulo Antônio Kretzmann, Data do Julgamento 04/05/2006. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br> Acesso em: 08 nov. 2010.
SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual civil: processo de conhecimento. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 1.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2007.
Notas:
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, RS, UNISC. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Instituto Ritter dos Reis, Canoas, RS. Professora da Graduação e Pós-Graduação em Direito Processual Civil na Universidade Luterana do Brasil, ULBRA – Campus Santa Maria. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil e do Núcleo de Prática da Ulbra – Santa Maria/RS. Advogada