A função social da empresa e sua repercussão nas relações jurídicas civis, empresariais e consumeristas

Resumo. O Código Civil vigente, ao unificar o direito obrigacional civil e empresarial, consagrou a função social da empresa em vários artigos genéricos, dispostos por todo seu texto legal, que orientam a correta aplicação de seus preceitos em consonância com os princípios gerais da atividade econômica insculpidos no Título VII (Da ordem econômica e financeira), Capítulo I (Dos princípios gerais da atividade econômica) da Constituição Federal de 1988. No âmbito civil, a função social da empresa é disciplinada, ainda, na Lei das Sociedades Anônimas, Leis Antitruste e de Propriedade Industrial, Lei da Recuperação Judicial, restando clarividente em todo o ordenamento jurídico pátrio que o princípio da função social da empresa está presente desde o surgimento da Empresa até a sua extinção. 

Palavras-chave: Empresa. Função Social. Repercussões.

Abstract. The Civil Code, to unify the obligatory civil and corporate law, enshrined the social role of business in several generic items, arranged throughout his legal text, guiding the correct application of its provisions in line with the general principles of economic activity described in the title VII (from an economic and financial), Chapter I (of the general principles of economic activity) of the Federal Constitution of 1988. Under civil, the social function of the company is disciplined, yet in Corporate Law, Antitrust and Intellectual Property, Law of the Judicial Reorganization, leaving clairvoyant around the legal parental rights, the principle of the social function of this company is since the inception of the company until its extinction.

Key words.  Company. Social Function. Repercussions.

Sumário: Introdução. 1. Repercussão da função social da empresa nas relações jurídicas civis e empresariais. 2. Repercussão da função social da empresa nas relações consumeristas. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O século XIX foi de extrema relevância para o desenvolvimento do direito, ficando marcado pelos movimentos jurídicos e filosóficos da época. Surge o Estado de Direito, com base no Princípio da Separação de Poderes, que veio a consolidar o Direito Público, tendo, ainda, importantes reflexos no campo do Direito Privado, especialmente pelo repúdio a privilégios e monopólios, duramente criticados pela filosofia do liberalismo, cuja ideologia central defende a colocação do indivíduo no centro do sistema, como sujeito de direitos reconhecidos pelo Estado, que lhe assegura completa liberdade de autodeterminação.

Ocorre que, com a passagem do século XIX para o século XX e as profundas mudanças político-econômicas desencadeadas em decorrência de diversos fatores sociais, como a 1ª Guerra Mundial, aquele Estado liberal (mero espectador das ações individuais) foi sucedido pelo Estado social intervencionista, agora com a tônica voltada para o bem-estar social, a ser garantido através de uma marcante atuação no domínio econômico.

No Estado intervencionista há uma completa mudança de enfoque, na medida em que o individual cede espaço para o coletivo, fazendo prevalecer não o direito como instrumento de realização da vontade individual, egoísta, mas de realização do bem-comum, do desenvolvimento econômico pautado em valores fundamentais e na Justiça Social. O Direito, por sua vez, passou a servir também como instrumento para a atuação estatal, assumindo uma função ativa, consistente na realização de diretrizes de interesses públicos e sociais, base de sustentação do chamado Estado Constitucional, que segundo Alexandre de Moraes (2008, p.6) “é mais do que o Estado de Direito, é também o Estado Democrático; introduzido no constitucionalismo como garantia de legitimação e limitação do poder”.

No que se refere à personificação da Empresa, percebe-se que esta resulta da organização de pessoas (mediante acordo de vontades), cuja soma de esforços interessa não apenas aos particulares, que visam à consecução de fins comuns (lucro), mas ao próprio Estado, tendo em vista o desenvolvimento da atividade econômica, permitindo a multiplicação de riquezas, com repercussão não só para os seus interessados como para a generalidade do grupo social.

Segundo o renomado professor Waldo Fazzio Júnior (2008, p.19):

“O código civil de 2002 não define a empresa. O conceito de empresa é estritamente econômico. A empresa não é um sujeito de direitos e obrigações. É uma atividade e, como tal, pode ser desenvolvida pelo empresário unipessoal ou pela sociedade empresária. Quer dizer, pela pessoa natural do empresário individual, ou pela pessoa jurídica contratual ou estatutária da sociedade empresária.”

Gladston Mamede (2005, p.5) reconhece o desafio teórico de conceituar Empresa e prefere apresentar sua compreensão jurídica afirmando que: “empresários e sociedades empresárias são aqueles que exercem profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”.

Assim, a realização da atividade econômica sob a forma de Empresa é hoje de interesse do próprio Estado Moderno, considerando o desenvolvimento econômico e social que tal atividade proporciona ao país, com repercussões em várias áreas ou ramos do direito (civil, empresarial, consumidor), mediante a criação de empregos, recolhimento de tributos e demais formas de produção de riquezas, contribuindo diretamente para o desenvolvimento da nação, o qual constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, II, da CF/88).

A ordem jurídica só tem sentido quando orientada basicamente por determinados valores sem os quais ela não tem justificativa possível. Tais valores radiam, em última análise, na dignidade da pessoa humana, na fundamental existência de direitos humanos e de igualdade entre todas as pessoas. A Empresa, realidade acidental e subordinada a esses valores reitores da ordem jurídica, existe para realizar determinados fins, considerados humana e socialmente relevantes.

Como parte integrante que é da Ordem Econômica, submete-se a Empresa no desempenho da sua atividade, à égide do art. 170 e incisos da CF/88, no qual são previstos os Princípios Gerais da Atividade Econômica. Conforme os ensinamentos dos professores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2008, p.933) observa-se que:

“O Estado refundado pela Carta de 1988 é um Estado Social Democrático, vale dizer, devem seus órgãos atuar efetivamente – mediante o desenvolvimento de políticas públicas ativas e prestações positivas – no intuito de se obter uma sociedade em que prevaleça a igualdade material, assegurando a todos, no mínimo, o necessário a uma existência digna (um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, vozado no inciso III do art. 3º, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”); é finalidade geral da ordem econômica, plasmada no art. 170, caput, ‘assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social’.”

Fiel aos ditames impostos pela hermenêutica constitucional Kelsiana, que determina uma relação harmônica entre todas as leis que compõem o ordenamento jurídico brasileiro e a supremacia hierárquica da Carta Magna de 1988 sobre as espécies normativas, é crucial destacar as repercussões do Princípio da Função Social da Empresa nos diversos ramos do direito.

1. REPERCUSSÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NAS RELAÇÕES JURÍDICAS CIVIS E EMPRESARIAIS

Ressalta-se que o Código Civil vigente atento às necessidades sociais foi estruturado com base nos pilares da socialidade, eticidade, e concretude, dando preferência às cláusulas gerais ou abertas de aplicação compulsória pelo magistrado no caso concreto. Assim, ao unificar o direito obrigacional civil e empresarial, consagrou a função social da empresa em artigos genéricos, dispostos por todo seu texto legal, que orientam a correta aplicação de seus preceitos.

Na área civil torna-se evidente que o nascimento da Empresa (sociedade) decorre da convergência de vontades que caracteriza o chamado contrato de sociedade (art. 981 CCB/02) – “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens e serviços, para o exercício da atividade econômica e a partilhar, entre si, os resultados”. Em se tratando de relação de natureza contratual, seus limites são definidos, exatamente pelo princípio da função social, inerente a este contrato, conforme disposto no art. 421, CCB/02 – “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Significa dizer que o contrato de sociedade ao mesmo tempo em que serve a vontade dos seus contratantes deve também atender à função social, reputada fundamental pelo Estado, cujas diretrizes são traçadas pelo art. 170, CF/88, que reza sobre os princípios da atividade econômica.

A função social da empresa aparece na área empresarial e é tutelada em vários dispositivos normativos, como por exemplo, na Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº. 6.404/76), conforme reza o art. 116: “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objetivo e cumprir a função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.

A função social da empresa se faz presente até mesmo quando o próprio Estado explora atividade econômica, através de Empresa Pública ou Sociedade de Economia Mista, nos casos de interesse coletivo ou segurança nacional, tal como previsto no art. 173, § 1º, inciso I da CF/88: “A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade”.

As Leis Antitruste e de Propriedade Industrial também limitam a atuação da empresa e dos empresários em relação ao respeito aos interesses socialmente relevantes.

Identifica-se, ainda, a função social da empresa no instituto da Recuperação Judicial, face ao moderno direito empresarial. Com efeito, é sabido que a recuperação judicial (art. 47 da Lei nº. 11.101/2005) tem a natureza jurídica de verdadeiro favor legal concedido pelo Estado ao devedor infeliz, porém de boa-fé e no desempenho da atividade empresarial regular, mas que se encontra em situação de crise econômico-financeira, no intuito de evitar-lhe a quebra ou superar a situação deficitária, permitindo-lhe o retorno às condições de normalidade do exercício da empresa.

Referido favor legal é concedido pelo Estado não só para atender a interesses pessoais do devedor, mas, principalmente, para evitar os efeitos nefastos da falência e suas consequências, como o desemprego, o inadimplemento contratual, o não pagamento de tributos e, em última análise, a insegurança econômica como um todo, revelando assim, nítido interesse público na sua concessão, resguardando, portanto, o princípio da função social da empresa.

2. REPERCUSSÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NAS RELAÇÕES CONSUMERISTAS

Na esfera consumerista verifica-se que o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90) determinou a responsabilidade empresarial pela prestação de serviços e pela qualidade dos produtos, reconhecendo, ainda, a sua função social ao estabelecer finalidades sociais e a obrigação de promover a proteção ao meio ambiente em seu art. 51. Tal artigo apresenta de forma exemplificativa, portanto, o rol de cláusulas consideradas por lei abusivas que, quando presentes nos contratos serão nulas de pleno direito. Neste sentido é oportuna a lição do prof. Leonardo de Medeiros Garcia (2008, p.267) que elucida:

“No intuito de proteger essa categoria vulnerável, denominada consumidor, o legislador privilegiou valores superiores ao dogma da autonomia de vontade (pacta sunt servanda), como a boa-fé objetiva e a justiça contratual, permitindo que o Poder Judiciário tenha condições de aferir, objetivamente, quando estará ocorrendo um desequilíbrio entre as partes, possibilitando, assim, um efetivo controle do conteúdo dos contratos de consumo.”

O Estado, visando estimular a reunião de pessoas e a concentração de recursos e esforços em prol de um objetivo comum e com vistas a incentivar a atividade econômica, valeu-se da Empresa. Ocorre que esta concepção promocional (atitude positiva) do Estado não desnatura, nem obstaculiza a sua outra função, qual seja, a função repressiva (atitude negativa), nos casos previstos por lei, de uso abusivo ou condutas ilícitas praticadas na atividade empresarial.

Assim, a tarefa do Estado, ao mesmo tempo em que garante a personificação da empresa conferindo-lhe autonomia patrimonial, poder de negar-lhe eficácia, sempre que dita entidade empresarial for utilizada indevidamente ou com desvio de suas funções, ensejando punição legal como nos casos de desconsideração da personalidade da Pessoa Jurídica, para o atingimento dos bens pessoais do sócio em certas e determinadas circunstâncias controladas por lei (art. 50, CCB/02).

Maria Helena Diniz (2004, p.278-280) defende a teoria da desconsideração da personalidade de pessoa jurídica como medida protetiva, que tem por escopo a preservação da sociedade e a tutela dos direitos de terceiros, que com ela efetivaram negócios. Não tem por finalidade retirar a personalidade jurídica, mas tão-somente desconsiderá-la, levantando o véu protetor, em determinadas situações, no que atina aos efeitos de garantir a desvinculação da responsabilidade dos sócios da sociedade, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos de direitos, que causem prejuízo ou danos a terceiros.

A lei consumerista também dispõe sobre o instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, como forma de garantir a proteção efetiva do indivíduo face às relações de consumo. Desta forma, é salutar a disposição do art. 28, caput, do CDC: “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contratos sociais”. Já o § 5º, do art. 28, CDC reza: “também poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor”.

CONCLUSÃO

Em síntese, o desempenho de atividade econômica por parte da Empresa no Brasil, apesar de introduzir interesse dos particulares, não se sobrepõe a outros interesses e valores tutelados pelo próprio Estado, devendo haver, em caso de conflito, uma compatibilidade de interesses, a qual deve tomar por parâmetro a própria vontade estatal, mormente quando materializada em preceitos legais e constitucionais, tais como: a função social da Empresa, ainda que em sacrifício, em determinadas situações, do instituto da personalidade jurídica.

Assim, toda e qualquer empresa, em sendo parte integrante da Ordem Econômica Nacional, deve respeito integral aos Princípios Gerais que regem a Atividade Econômica (art. 170, CF/88). Significa dizer que a violação de qualquer destes princípios, dos quais se destacam, desde logo, o da defesa do consumidor, meio ambiente sadio, livre concorrência, redução das desigualdades sociais e regionais, busca do pleno emprego etc., é motivo para fazer surgir a função punitiva do Estado, de forma a incidir as sanções negativas e/ou repressivas previstas em lei, objetivando a reparação necessária, ainda que, contrárias àquela função promocional que justifica a autonomia da personificação societária.

Do exposto, observa-se que com a promulgação do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, a função social da empresa assumiu importante status jurídico, em razão de toda alteração do perfil político, econômico e ideológico introduzido por estes novos estatutos legais, bem como sua relevância para o ordenamento jurídico brasileiro, cujo caráter subsidiário abastece todos os demais ramos do direito.

Desta forma, pode-se concluir frisando que respeitar a função social da empresa é, atualmente, uma obrigação que incide em sua atividade, ou seja, no exercício do empreendimento empresarial. Destarte, não pode o lucro ser perseguido cegamente, em detrimento dos interesses socialmente relevantes e de observância obrigatória.

 

Referências
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. vol. I. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2005.
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MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial. São Paulo: Atlas, 2005.
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PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 2.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
SILVA, Jorge Alberto Q. de Carvalho. Código de defesa do consumidor anotado e legislação complementar. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

Informações Sobre os Autores

Aurélia Carla Queiroga da Silva

Mestre em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação da UFRN. Especialista em Direito Processual Civil pela UFCG. Professora de Direito Civil e da Área Propedêutica na UERN

Francisco de Assis Cabral Gomes Júnior

Bacharel em Direito pela UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Advogado Militante e Presidente da Comissão de Orçamento da OAB Subseção Mossoró/RN


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