Resumo: O presente artigo visa apresentar o caso 12.051, que trata da agressão sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes pelo seu até então marido, Marcos Antonio Heredia Viveros, que por duas vezes atentou contra a vida de sua esposa. Será analisado tal caso sob o enfoque dos conceitos e teorias dos sociólogos alemães Jürgen Habermas, Ulrich Beck, Niklas Luhmann e do antropólogo francês Norbert Rouland, apresentando brevemente aspectos da estrutura do direito, algumas de suas insuficiências e o contexto de aplicação da norma ao caso referido. A etapa do caso trabalhado é predominantemente a das próprias denúncias de agressão, feitas por Maria da Penha em detrimento da etapa de condenação do Estado brasileiro, ocorrido somente após a finalização do processo. Assim, pode-se observar como o caso se insere no ambiente jurídico e social brasileiro, como é recepcionado e encarado o processo que materializa o fenômeno da violência domiciliar e da desigualdade de gênero.[1]
Palavras-chave: Sociologia Jurídica. Violência contra a mulher. Antropologia.
Abstract: This article presentes the case 12,051, which comes to the agression suffered by Maria da Penha Maia Fernandes for his then husband, Marcos Antonio Heredia Viveros, who twice attempted against the life of his wife. Analyze this case under the focus of the concepts and theories of German sociologists Jürgen Habermas, Ulrich Beck, Niklas Luhmann and the French anthropologist Norbert Rouland, briefly presenting aspects of the law structure, some of their failures and the context of application of the rule to the referred case. The stage of the case is worked predominantly’s own allegations of assault made by Maria da Penha over the sentencing phase of the Brazilian state, occurred only after the finalization of the process. So, can observe how the case fits into the Brazilian social and legal environment, as it is seen and approved the process that embodies the phenomenon of domestic violence and gender inequality.
Keywords: Juridical Sociology. Violence against woman. Anthropology.
Sumário: Introdução; 1. Complexidade e insuficiência aplicadas ao caso; 2. Direitos humanos e noção de minorias aplicados ao caso; 3. Validade da norma utilizada no caso; Conclusão; Referências Bibliográficas.
Introdução
Para melhor compreendermos o tema desse trabalho, faz-se necessário a apresentação do caso em questão. A discriminação de gênero sofreu um forte golpe desde que sancionada a Lei 11.340/06 (que ficou conhecida como Lei Maria da Penha), mas é inegável sua persistência. Maria da Penha sofreu dois atentados contra sua vida: no primeiro deles, seu marido atirou contra ela enquanto a mesma estava dormindo, e como sequela, Maria da Penha ficou paraplégica; no segundo ataque, seu marido tentou eletrocutá-la. De início, sofreu calada, a exemplo de muitas mulheres que acabam inibidas por uma série de fatores, mas devido aos constantes atentados se viu forçada a levar seu caso até a Justiça. Foram necessários 19 anos até que seu já ex-marido, Marco Antonio Heredia Viveros, fosse condenado, porém cumpriu pena de somente dois dos 10 anos a que fora condenado, devido ao apelo a recursos jurídicos. Em vista da insatisfação com a pena aplicada, Maria da Penha viu-se mobilizada a entrar com processo judicial contra o Estado brasileiro, e através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) obteve uma recomendação ao Estado brasileiro, o que levou à criação da lei que recebeu seu nome.
É a partir dessa descrição, dos conceitos e teorias advindas dos pensadores supracitados que será analisado o procedimento do caso 12.051. Introduz-se a discussão apoiando-se em aspectos da teoria sistêmica de Luhmann, situando as expectativas normativas e a estrutura do direito no caso, com referência à complexidade social que gera essa situação de denúncia da violência contra a mulher, algo que antes não era amparado juridicamente de forma concreta. A complexidade gera superprodução de possibilidades e essa tem como resultado um desgaste das instituições e grandes categorias, explicação que pode ser apoiada por aspectos da sociedade de risco de Beck, ressaltando a diferenciação da subpolítica e a modernidade reflexiva. Posteriormente, os aspectos das minorias – no sentido não-literal – e dos direitos humanos são tratados fazendo referências a Rouland com a ideia do “Arquipélago Planetário”. Por último, trata-se do conceito de validade, de Habermas, aplicado ao caso.
1. Complexidade e insuficiência aplicadas ao caso
O caso Maria da Penha teve como protagonista um aspecto comum da sociedade e do sistema familiar: a violência contra a mulher. Enquanto sujeito de direito, ela pode criar expectativas normativas com relação ao Direito. Ao recorrer à Justiça, foi justamente isso que Maria da Penha fez. A estrutura do Direito forneceu um aparato que poderia ser usado a seu favor, em sua defesa, e em todas as vezes que acionou essa estrutura, a expectativa era de que ela funcionasse, pois, como diz Luhmann, “o direito é imprescindível enquanto estrutura, por que sem a generalização congruente de expectativas comportamentais normativas os homens não podem orientar-se entre si, não podem esperar suas expectativas” (LUHMANN. 1983, p. 170)
A norma não foi capaz de coagir o Sr. Heredia a ter a atitude normativa correta, mas o comportamento normativo esperado serve de instrumento de orientação para as condutas. O agressor pôde ser denunciado, apesar dos fatores desfavoráveis, por que sua forma de agir foi constante e insistentemente em desacordo com a lei, porém, a forma de recepção e condução dessa denúncia depende do ambiente jurídico-social em que se desenvolve o processo. Esse processo tem características peculiares, se tornando parcialmente independente do sistema jurídico e os fatores que são levados em consideração para se chegar a um resultado não são pré-definidos. Luhmann afirma que “os procedimentos são sistemas sociais orientados a curto prazo, constituídos tendo em vista um fim, aos quais são atribuídas funções especiais de elaboração de decisões vinculativas[…]. Cada processo, enquanto sistema temporário de interação, pode ser especificado funcionalmente, mas também diferenciado e estabelecido com autonomia relativa. Com isso ele adquire possibilidades próprias e uma temática também própria, com regras especiais sobre a relevância ou irrelevância, assumindo, nesses limites, uma margem de possibilidades e correspondente incerteza e uma história própria que absorve essa incerteza” (LUHMANN. 1983. p. 178).
Essa parcial independência do processo com relação ao concreto, ao real, confere mais dificuldade à mulher, que já enfrenta dificuldades para denunciar, na hora de fazer desenvolver o procedimento. A mesma incerteza leva Luhmann a afirmar que “um processo só existe quando há incerteza sobre sua conclusão, a qual é superada através do mesmo enquanto processo decisório seletivo. Isso implica em limites á relevância. O que é válido no mundo, não vale necessariamente no processo. Os papéis são diferenciados de forma análoga. Atua-se no processo não enquanto sogra, padeiro, adúltero, etc., e é só no processo que se decide quais os outros papéis dos participantes são relevantes ou não naquele contexto […]” (LUHMANN. 1983. p. 178).
Encontra-se aí a validade dos fatos no processo: o que está nos autos. O agressor pode exercer também, ocasionalmente, o papel de pai, chefe de família, o que camufla a personagem do agressor. O juiz pode considerar apenas o que está nos autos e se utilizar do senso comum teórico, definido por Luís Alberto Warat – o que, aliás, é muito comum – mas mesmo antes disso, a sociedade brasileira, enquanto ambiente social pode oferecer ao juiz um campo propício para interpretações parciais. Ou ainda, como foi constatado no processo do caso 12.051, a ineficácia da decisão e de seu descumprimento.
A complexidade da sociedade torna possível uma quantidade excessiva de possibilidades – dentre elas os delitos – que pressionam o direito a agir e se reestruturar. Nessa reestruturação os fatores que agem a favor poderiam ser bem descritos na concepção de Beck em sua sociedade de risco, onde as instituições e os grandes conceitos estão desgastados a ponto de se tornarem ineficazes. Pode-se considerar tanto que o caso se enquadra no roll das complexidades que não são abarcadas pelo direito por motivo de desgaste, quanto considerar que o problema está explícito e não se caracteriza enquanto “ponto cego” da sociedade de risco, mas é tratado como “risco residual”. Afinal, era claro que o Sr. Heredia violentava fisicamente sua esposa e as agressões não foram algo que se possa dizer que não estava visível para a sociedade.
Por serem ineficazes os instrumentos da política é que se desenvolve a subpolítica. O sistema é projetado “de cima para baixo”, ou seja, é ele que propõe as resoluções para os casos que surgem no sistema social. A sociedade brasileira, através do sistema – que não é tão autopoiético quanto o imaginado por Luhmann – não foi capaz de solucionar o caso de maneira satisfatória. Isso por que essas denúncias contra agressores de mulheres é uma demanda relativamente nova que surgiu no sistema “de baixo para cima”, ou seja, surgiu da complexidade de situações geradas na sociedade, onde a resolução era prevista formalmente no ordenamento jurídico, mas não havia demanda por punição nem anormalidade no fato de uma mulher ser agredida, por questões histórico-culturais.
Beck significa subpolítica como “moldar a sociedade de baixo para cima. Visto de cima, isto resulta na perda do poder de implementação, no encolhimento e na minimização da política. No despertar da subpolitização há oportunidades crescentes de se ter uma voz e uma participação no arranjo da sociedade para grupos que até então não estavam envolvidos na tecnificação essencial e no processo de industrialização: os cidadãos, a esfera pública, os movimentos sociais, os grupos especializados, os trabalhadores no local de trabalho; há até mesmo oportunidades para os indivíduos corajosos “moverem montanhas” nos centros estratégicos de desenvolvimento. Por isso, a politização implica um decréscimo da abordagem da regra central; significa que os processos que anteriormente sempre se desenvolveram sem atrito malograram, resistindo a objetivos contraditórios” (BECK. 1944, p. 35-36).
Podemos entender Maria da Penha como o “indivíduo corajoso” e o direito como centro estratégico de desenvolvimento. A analogia pode se estender também à falha dos processos que antes se desenvolviam sem atrito e que agora não resistem a objetivos contraditórios como sendo a inconformidade de Maria da Penha para com a injustiça cometida e sua busca por seus direitos mesmo depois de 19 anos.
2. Direitos humanos e noção de minorias aplicados ao caso
É importante levar em consideração a visão do antropólogo francês Norbert Rouland, que em sua obra “Direito das minorias e dos povos autóctones” trabalha o modo como esses grupos são tratados ao redor do mundo e é clara sua relação com a história de vida de Maria da Penha: “Ilumina também o que é, para nós, a função do direito das minorias e dos autóctones. Não, como muitos acreditam erroneamente, uma justificativa jurídica voltada para si, a abertura da caixa de Pandora que conduzirá a um novo apartheid e aos confrontos ‘étnicos’, mas, ao contrário, a busca de soluções jurídicas que permita a grupos, caluniados e colocados pela história em situação de inferioridade, que se redefinam em função das necessidades do presente, e que encontrem meios de uma coexistência pacífica construída por diversos mecanismos de aliança” (ROULAND. 2004, p. 20).
Em toda sua luta, Maria da Penha procurou justamente essa coexistência pacífica a que Rouland se refere. Seus incessantes esforços pelo combate à violência doméstica que vitima incontáveis mulheres – aqui no Brasil tratadas como minorias – encontram fortes obstáculos, principalmente no que diz respeito ao machismo extremamente difundido na sociedade brasileira e a banalização da violência doméstica.
Outro aspecto dos estudos de Rouland acerca das minorias cabe ser ressaltado na análise. No que concerne à proteção dos direitos humanos, uma vez que foi necessário a Maria da Penha uma apelação formal à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para obter a defesa de seu direito, Rouland observa um obstáculo que se faz presente no seu desenvolvimento. “Atualmente, os direitos do homem fazem parte do novo universalismo: certos direitos dizem respeito a todos os homens, o que estabelece em toda parte a obrigação dos Estados de respeitá-los e de permitir seu florescimento. Essa autolimitação da potência soberana caracterizaria particularmente os Estados de direito. Essa aspiração, alimentada pela tradição francesa, choca-se com vários obstáculos. A princípio, a constatação de uma outra universalidade: a do mal que um homem pode infligir a seus semelhantes” (ROULAND. 2004, p.10).
Para chegar a tal ponto, Maria da Penha enfrentou diversas vezes o Sr. Heredia perante a justiça. Na primeira delas, em 1991, seu marido foi a júri, no qual foi condenado a 15 anos de reclusão, porém, um ano depois a defesa recorreu de tal decisão e obteve sua anulação. Em 1996 foi realizado um novo julgamento, uma condenação de 10 anos foi-lhe aplicada, contudo, devido a recursos, cumpriu somente dois anos.
3. Validade da norma utilizada no caso
Torna-se possível trazer a esse estudo os pensamentos de Habermas acerca da decisão correta no Direito. Para ele, trata-se de uma decisão correta àquela que se perdura mesmo após todos os requerimentos, que mesmo a parte vencida aceite-a como a mais coerente. É pelo diálogo entre os diferentes que se chega a um resultado. É possível perceber que o caso Maria da Penha enquadra-se em uma interação entre o mundo-da-vida (espaço onde ocorrem as problematizações e discussões práticas que conduzem as discussões de valores morais) e o mundo-sistêmico (espaço onde prevalece a não linguagem, a não discussão) de Habermas. A ação do Estado em resposta à discussão trazida pela Maria da Penha acerca da violência doméstica, da desigualdade de gênero, possibilitou a criação da Lei que carrega seu nome.
Habermas traz ainda dois conceitos fundamentais para esse estudo: facticidade e validade. A facticidade nada mais é do que a as coisas como elas são, sem se importar com a questão do certo e errado, enquanto a validade trata das normas que se reconhecem como sendo corretas e que justificam as ações. O direito concebido como facticidade não consegue justificar sua obrigatoriedade e explicar sua legitimidade ao longo do tempo, e quando concebido como validade, o direito passa a desvincular seu engajamento com os fatos concretos. Sendo assim, para Habermas, o lugar do direito é entre a facticidade e a validade, como um médium (elo), tornando-se obrigatório, viável e concretizável no decorrer do tempo. Para ele “A tensão entre facticidade e validade, que se introduz no próprio modo de coordenação da ação, coloca exigências elevadas para a manutenção de ordens sociais. O mundo da vida, as instituições que surgem naturalmente e o direito têm que amortizar as instabilidades de um tipo de socialização que se realiza através das tomadas de posição – em termos de sim/não – com relação a pretensões de validade criticáveis. Nas modernas sociedades econômicas esse problema geral se agudiza, principalmente no tocante ao envoltório normativo das interações estratégicas, não englobadas pela eticidade tradicional. Isso explica, de um lado, a estrutura e o sentido da validade de direitos subjetivos e, de outro lado, as conotações idealistas de uma comunidade jurídica que, enquanto associação de cidadãos livres e iguais, determina por si mesma as regras de sua convivência” (HABERMAS. 1997, p. 25-26).
Mas o direito pode falhar nessa tarefa de amortizar as instabilidades, como bem prova o caso Maria da Penha. Habermas poderia justificar quando pensa que as normas jurídicas só tem validade social se o círculo de coassociados jurídicos de fato a aceitem. A sociedade brasileira é esse círculo de coassociados e a eficácia da norma varia em grande parte de seus aspectos culturais.
Conclusão
Mesmo com a criação da lei, muitas mulheres ainda são constantemente vítimas da submissão, e se veem inibidas a procurar ajuda devido a ameaças de seus agressores. É evidente que houve avanços na questão da desigualdade de gênero, mas os empecilhos ofertados pelo próprio Direito tornam a luta pelos direitos mais árdua. Obviamente que o direito não será capaz de resolver esse problema sozinho, toda uma reeducação é necessária. Mas é possível tomar por base Luhmann e a estabilização das possibilidades selecionadas quando afirma que “se as conquistas evolutivas devem ser estabilizadas, então as estruturas devem permitir mais ações, por seu lado mais variadas, ou seja, devem ser compatíveis com um número maior de situações no sistema social” (LUHMANN. 1983, p. 173).
Com isso, é necessário ter em mente que para assentar o direito numa base sólida, essa deve estar preparada para receber um sem-número de situações conflituosas e choques tanto entre as partes quanto entre o indivíduo e o sistema social. Assim, conclui-se que o caso 12.051 foi um choque predominantemente entre sujeito de direito e sociedade, onde o ambiente jurídico – aqui tido como a sociedade onde se desenvolve o caso – não habituado a lidar com essa espécie de processo, viu-se obrigada a se reestruturar. Mas essa reestruturação não pôde ser mais que superficial, pois o ambiente jurídico contém mais do que sistematicidade e inclui em sua complexidade os aspectos da cultura, que no caso brasileiro, ainda guardam traços severos do machismo.
Informações Sobre os Autores
Bruno Ribeiro de Almeida Lira
Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí
Oscar Lucas Monteiro Araújo
Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí